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A CONSCIÊNCIA EM BUSCA DA LIBERDADE
A aventura da consciência em
busca do seu próprio complemento,
através da conciliação do para-si com o
em-si, veio revelar a característica de
que o ser do homem se configura
sempre como um fazer, um agir. Sartre
propõe descobrir a condição em que se
funda esta característica, que é, para
ele, a liberdade, e examinar as
estruturas das suas manifestações, no
interior do horizonte mundano. Sartre
analisa a liberdade e o agir humano, a
partir da teoria segundo a qual o
homem é um ser que escapa a todo o
rígido determinismo exterior e interior,
um ser imediata e integralmente
responsável por todas as suas ações. O
homem é intrínseca e ontologicamente
livre.
O objetivo de Sartre consiste em
desacreditar a idéia de uma
necessidade, exterior a nós, que
derivaria de uma estabilidade das
coisas ou de uma ordem moral
objetiva. Os indivíduos já não são
tributários de um caráter determinado
ou de uma essência definida, donde
resultariam todas as suas propriedades
e todos os seus atos, nem dos
constrangimentos que lhes vêm de
fora, isto é, da sociedade ou de Deus. O
princípio primeiro da existência
concreta dos indivíduos tem que se
situar numa opção profunda,
absolutamente gratuita, pela qual eles
se escolhem absolutamente.
Já em A Náusea, Sartre objetiva
o estudo da liberdade, que continua
em O Ser e o Nada. Retomarei só o
conceito de liberdade na obra A
Náusea, pois Sartre se refere a ela em
O Ser e o Nada.
Duas atitudes se tornam
possíveis, frente à escolha absoluta:
resistir àquelas impressões, tendências
ou impulsos, que os chamados
"normais" julgam estar obrigados a
repelir, censurando-se interiormente
por não o fazerem, ou, então, entregar-
se totalmente a esses impulsos,
tendências ou impressões, na firme
decisão de se fazer coincidir com eles.
Esta segunda atitude, Sartre designa
por "trapaça", pelo que encerra de
voluntário e de resoluto e, por isso
mesmo, de inquietante e de suspeito
aos olhos dos "normais": as regras
comuns são contestadas e renegadas.
Os trapaceiros, procurando mergulhar
a fundo na náusea, distinguem-se,
assim, dos outros indivíduos, ditos
"normais", que não trapaceiam, que
são os guardiões da ordem e da moral,
os fantoches produzidos em série.
Há duas condições para a
trapaça: primeiro, teremos de
renunciar à nossa personalidade, à
consciência pretensamente clara, que
só turva a espontaneidade da
existência e a sua livre expansão; isso,
fazemos renunciando à vontade, ao
dever, que apenas têm por efeito
impor aos nossos pensamentos e
sentimentos uma ordem artificial e um
constrangimento arbitrário, e, de fato,
exterior. O resultado desta
"despersonalização" será eliminar do
pensamento tudo o que nele houver de
"ponderado", ou tudo o que represente
constrangimento social, obediência a
imperativos estranhos. Elimina-se,
assim, a cortina que nos esconde o
nada e nos protege da Náusea. A
segunda condição consiste em
renunciar ao passado. O passado é o
meu eu solidificado, objetivado: tenho
que arrastá-lo atrás de mim como uma
coisa morta.
A experiência da trapaça faz
deslizar no seu nada esse mundo
confeccionado geometricamente.
Diante da existência reconduzida a si
mesma, diante do derramamento
pastoso, eu experimento, ao mesmo
tempo, um profundo desânimo. Nada
mais há do que a existência, ou seja,
qualquer coisa que é absolutamente
contingente e gratuita, que está aí, sem
se saber porque, sem nada que lhe
exija ou explique o aparecimento;
qualquer coisa que é essencialmente
absurda, "qualquer coisa que é demais
para a eternidade" (A Náusea, 113;
doravante, N; não aparecendo o '_', a
pág.. é de O Ser e o Nada).
A certa altura do relato da
novela, o que parecia uma seqüência
insuportável de vivências psíquicas
adquire um valor ontológico, na
intuição reveladora da personagem:
Mas eu não posso mais, eu sufoco: a
existência me penetra por todos os lados,
pelos olhos, pelo nariz, pela boca... A
Náusea não me abandonou e eu não creio
que ela me abandone tão cedo; mas já não
sofro, eu sou a náusea (N.160).
A náusea sou eu mesmo, qualquer
coisa de constitutivo daquilo que o
homem é.
A liberdade evidencia-se como
estando implicada na própria
possibilidade da trapaça. Por ela,
entrevejo a existência na sua estrutural
absurdidade: a existência existe sem
qualquer razão. A Náusea é o
sentimento de sufocação produzido
por esta revelação da existência,
conforme já dissemos; como qualquer
coisa que nos invade bruscamente. A
angústia revela-me a mim mesmo
como consciência, convencendo-me de
que há artifício no ser, de que o nada
acompanha o ser da existência.
A liberdade assenta sobre este
nada: é este mesmo nada, isto é, a
minha possibilidade de ser, pela
consciência, o ser que eu não sou, e de
não ser o ser que eu sou. Pode-se dizer
que eu sou constrangido a ser livre,
uma vez que não posso ser tal, senão
escolhendo-me a mim mesmo; e não
posso deixar de me escolher, pois não
escolher é ainda uma escolha. Lançado
na existência sem o meu
consentimento, eu devo assumir essa
existência, fazendo-me ser o que eu
quero, e sem poder contar com mais
ninguém senão comigo mesmo. Por
isso, a trapaça corresponde a um meio,
que conduz à liberdade, e, através
dela, ao valor, que é propriamente o
efeito da sua escolha, isto é, eu mesmo,
tal como livremente me escolhi. Eu
posso renunciar à liberdade, mas só
posso fazê-lo de má-fé, pois, só usando
da minha liberdade, é que eu posso
renunciar à liberdade.
Os termos "pastoso", "viscoso" e
"pegajoso" desempenham papel
importante para Sartre: são metáforas
do homem que, renunciando à
liberdade, e instalando-se na má-fé,
pretende transmutar-se em coisa, e
logo se prende, se torna pastoso. A
viscosidade é o estado intermediário
entre o nada, ou a fluidez da liberdade,
e o pleno, maciço e opaco do em-si, ou
da coisa. A consciência desliza na
viscosidade, como no sono. O homem
nunca se sente à vontade neste estado.
"O próprio viscoso, quando
compreende o seu estado, é o primeiro
a experimentar um sentimento de
horror, porque, para uma consciência,
será sempre uma coisa pavorosa
sentir-se presa na viscosidade" (698).
A liberdade é pesada. Tem
caráter opressivo, ao sobrecarregar os
meus ombros com o peso do meu ser, e
com o peso do mundo. Mas é o único
valor, porque não se apóia senão em si,
e é o valor absoluto, porque só através
da liberdade pode haver valor.
Retomando O Ser e o Nada, o
para-si tem aparecido, até agora, como
estando continuamente expulso de si
mesmo, em busca de um em-si
inatingível, com o qual pretende
coincidir. Mas este empenho do para-si
ocorre no mundo, e, como tal, é um
agir que está sempre a modificar a
configuração do mundo, na sua
própria materialidade. Analisemos
este agir.
Antes, porém, de explicar a
ação, precisamos conhecer a sua
condição primeira, que é a liberdade. E
qual é o fundamento da liberdade? O
homem é livre, precisamente porque
não é. O que é, não é livre: "é", sem
mais nada, e não pode deixar de ser,
nem ser o que não é. O homem, pelo
contrário, não é "si" nem pode sê-lo: é
pura presença a si. É justamente o
nada, feito ser no coração do homem,
que o constitui livre, e que é a sua
liberdade, obrigando-o a fazer-se em
lugar de ser. Por esta razão, para o
homem, ser é necessariamente
escolher-se: não se trata, para ele, de
receber ou de aceitar, mas de fazer-se
por uma escolha que tem caráter
inteiramente gratuito. Desde que é,
enquanto é, ele é necessária e
totalmente livre. Dessa forma, a
liberdade é propriamente o ser do
homem, isto é, "o seu nada de ser"
(508).
Com esta análise, Sartre quer,
em primeiro lugar, por de lado o
determinismo, incluindo o que
pretende associar a liberdade humana
ao determinismo do querer, isto é, ao
imperialismo das paixões. As paixões
não têm qualquer poder sobre a
vontade, porque então teríamos de
reconhecer no homem dois existentes,
dos quais um, dominado pelas
paixões, seria para o outro um puro
transcendente, um de fora. O homem,
ou é inteiramente determinado, o que
não tem sentido, pois uma consciência,
motivada pelo de fora, torna-se
imediatamente um de fora e deixa de
ser consciêncial, ou é totalmente livre.
Em segundo lugar, a vontade só
pode exercer-se baseando-se numa
liberdade original, que lhe permite
constituir-se como vontade, isto é,
como decisão definida, relativamente a
certos fins que ela deliberadamente se
propõe atingir, com determinados
meios. A vontade não pode, portanto,
exercer-se, senão dentro do quadro dos
fins pré-estabelecidos pelo homem.
Esses fins, não é ela que os cria; são os
que a realidade humana a si se dá
como projeção dos seus possíveis, nos
quais pretende completar-se em em-si-
para-si. Não podem ser concebidos,
nem como dados vindos de fora,
provindos de uma decisão que, de
antemão, traçasse ao homem as vias do
seu destino; nem tampouco como
expressões de uma pretensa natureza
interior, que o homem devesse
completar por sua ação. O homem
escolhe os seus fins, e, porque os
escolhe, dá-lhes uma existência
transcendente, que é como o termo
limite dos seus projetos. Aqui, a
existência precede e determina a
essência, isto é, o homem, com o seu
aparecimento, define o seu ser,
mediante os fins que a si próprio se
confere. É como brota originalmente a
minha liberdade. Este brotar é
fundamentalmente existência,
"porquanto o fundamento dos fins que
intento, quer pela minha vontade, quer
pelas minhas paixões, não é senão a
minha própria liberdade" (521).
Para melhor compreensão, é necessário
uma análise do que Sartre denomina
"motivos" e "móveis" da ação. O
motivo é a razão que justifica um ato,
ou seja, a apreensão objetiva de uma
relação entre meio e fim; o móvel, pelo
contrário, é subjetivo, porque traduz o
impulso dos desejos, das emoções e
das paixões. Esta distinção envolve
várias dificuldades, porque, quando
motivo e móvel se juntam na mesma
decisão, não se chega a dar conta da
relação que possa haver entre eles.
Convém esclarecer que não pode
haver motivação ou motivo em si, mas
somente em relação ao projeto de uma
ação, e, conseqüentemente, em relação
aos fins que a consciência já se deu a si
mesma, aos quais ela se prende e dos
quais se suspende sob a forma da
afetividade. Esta, que corresponde
rigorosamente ao móvel, é irracional,
porque é, para o homem, pura
consciência (de) si como projeto mais
ou menos firme, ou apaixonado, em
direção a um fim. O móvel, o motivo e
o fim são, portanto, três aspectos
inseparáveis de uma consciência
vivente e livre, projetando-se para as
suas possibilidades. Os motivos só
podem compreender-se em função de
um móvel, ou seja, de um fim ou de
um projeto ─ os motivos e o móvel não
se encontram no mesmo plano, como
termos em conflito. Mas creio que
Sartre erra, quando faz do móvel, do
projeto ou do fim, um puro irracional,
a expressão de uma absoluta
contingência na liberdade. O motivo
de agir traduz o fim escolhido. Mas o
fim pode ser concebido como possível,
e excluído como contrário à lei moral,
e, neste caso, os motivos que o teriam
justificado, se ele tivesse sido
escolhido, transformam-se em móveis,
isto é, em simples atrativo sensível.
Esta liberdade aparece, segundo
Sartre, como "totalidade insuscetível
de ser analisada" (513). Motivos,
móveis e fins não são senão o local
dessa liberdade. Mas isto não implica
que a liberdade tenha de ser concebida
como uma série de lances arbitrários.
Se, de fato, cada um dos meus atos é
totalmente livre, não poderá,
entretanto, ser um ato qualquer, nem
mesmo imprevisível, porque ele terá
de ser sempre e necessariamente a
expressão do meu projeto, ou da
escolha fundamental que fiz de mim
mesmo.
Quando Sartre define a
realidade humana, o para-si deve ser o
que ele é: ele é o que não é e não é o
que é. Com essas fórmulas Sartre
define a liberdade. Se a
intencionalidade da consciência
apresenta uma tessitura ontológica,
isto significa que o para-si, em seu ser
mesmo, é intencional, e, ao estudar a
ação humana, partimos da seguinte
fórmula: "todo ato humano é, por
princípio, intencional" (508). Como a
consciência, a ação humana sofre de
um nada. O poder nadificante do para-
si inaugura toda a ação humana; e
dizer que a ação se determina pelo
nada é o mesmo que dizer que é ela
pura indeterminação.
A liberdade e a consciência se
circunscrevem, reciprocamente. A
consciência, sendo um poder
nadificador, repele o determinismo.
Nenhum estado de fato motiva por si
mesmo qualquer ato, nenhum ato
pode levar a consciência a se definir e a
se determinar. Isto, porque o estado de
fato só é, só vem a ser, através do
poder nadificador do para-si. Posta a
consciência, abandona-se o ser para
invadir-se o terreno do não-ser. "É o
ato que decide de seus fins e de seus
móveis, e o ato é a expressão da
liberdade" (513). A liberdade se
instaura desprovida de necessidade
lógica. A existência precede a essência,
e a demarcação da liberdade torna-se
contraditória, uma vez que a liberdade
se explica como fundamento de todas
as essências. Trata-se do interior de
meu ser, e, analogamente à
consciência, deve-se ver na consciência
a necessidade de fato, uma
contingência radical. Não podemos
tocar o fundo da consciência, pois a
liberdade coincide com a auto-
nadificação do para-si. Sendo o
homem livre, ele escapa ao seu próprio
ser, faz-se sempre outra coisa do que
aquilo que se pode dele fazer.
Qualquer tentativa de colocar a
liberdade sob a tutela do ser termina
provocando a angústia, pois revelará a
insuficiência de ser, que é a realidade
humana. Tendo em vista que o para-si
habita em sua raiz o nada, não pode
ser, e permanece condenado a se fazer-
se abandonada, a realidade humana
deve escolher-se. Dizer que o ser do
homem reside na liberdade, é o mesmo
que afirmar que ele só se apóia em seu
nada de ser. Sendo assim, ou o homem
é absolutamente livre, ou não é. Sartre
é sempre radical: ou determinismo
absoluto ou liberdade absoluta; ou a
plenitude do em-si ou o nada no
coração do para-si: "a liberdade
coincide em seu fundo com o nada que
está no coração do para-si; "a liberdade
coincide em seu fundo com o nada que
está no coração do homem"(516). A
liberdade revela um sentido original e
ontológico: o para-si, resolve-se na
contingência absoluta e na gratuidade
fundamental.
Compreende-se a escolha
original, como algo anterior a tudo o
que possa motivá-la. A escolha
coincide com a consciência que temos
de nós mesmos: é "consciência-nós"
(539), tendo em vista que não se
distingue de nosso ser. Nosso ser se faz
pela escolha original: "É necessário ser
consciente para escolher e é necessário
escolher para ser consciente. Escolha e
consciência são uma e a mesma coisa"
(540). A consciência da escolha que nós
somos é plena, e, por essa razão, nossa
escolha não deriva de nenhuma
realidade anterior, é fundamento de si
mesma; a escolha é fonte das
significações que irão constituir a
realidade. Essa é a doutrina que deve
ser, entendido pela característica do
para-si, isto é, pela negação interna. É
lógico que a consciência é intencional,
e não poderia existir sem um dado: ela
tem ser, existe, a partir do dado. Mas já
que a consciência é negação do dado e,
portanto, o dado não a condiciona,
então pela negação o projeto de
condicionamento irá resultar em
incondicionamento. Temos, como
conseqüência, que, "a liberdade é o fato
de que a escolha termina sempre
incondicionada" (558), decorrendo
disso, o absurdo da escolha. A
liberdade é absurda porque é escolha
de seu ser, sem ser o seu fundamento;
ela não tem razão de ser, pois instaura
toda razão de ser e todo fundamento.
A compreensão do ato está
centrada na minha última e total
possibilidade, na qual se exprime a
escolha que eu fiz de mim. Este ato de
me escolher, não pode ser distinguido
do meu ser. É, simultaneamente,
escolha de mim mesmo no mundo e
descoberta do mundo. É, portanto, o
fundamento de todas as deliberações.
Como já disse, a escolha, quando é
profunda, identifica-se com a
consciência que eu tenho de mim:
"escolha e consciência são uma e a
mesma coisa" (540).
Assim sendo, estamos sempre
inteiramente presentes a nós mesmos:
somos, vivendo-a, a solução que
damos ao problema da nossa
existência e, de uma forma geral, ao
problema do ser. Sob este ponto de
vista, o mundo, tal como o vemos, dá-
nos a imagem do que somos:
escolhendo-nos, escolhemos o mundo,
não como um em-si que nos escapa,
mas no seu verdadeiro significado. "O
mundo é a minha escolha" (541).
Para ilustrar esta doutrina
Sartre descreve a seguinte situação:
Resolvo fazer uma excursão, durante a
qual, sentindo-me fatigado e já sem
poder resistir por mais tempo ao desejo
de desistir da caminhada, deixo-me cair
por terra. Poder-me-ão censurar a
desistência, alegando que eu deveria
ter-me esforçado por atingir o termo do
percurso. Defender-me-ei, entretanto,
invocando a minha enorme fadiga
(542).
Sartre não deixa claro se essa
dupla escolha, que de fato é uma só, se
funda sobre si mesma, ou se tem as
suas razões. Pois, a fadiga é suportável
ou não, segundo eu mesma. Eu defino
o seu valor e isso me define a mim, no
meu ser: a fadiga é uma realidade
vivida; eu existo na minha fadiga ou
existo na minha resistência à fadiga,
conforme a escolha que faço de mim.
Sartre afirma que as razões ou os
motivos são simples reflexo da escolha
original. Mas qual é a natureza dessa
escolha? Ela pode ser racional ou
afetiva. Pois eu sempre sou devolvida
a mim mesma, na dualidade interna de
um ser que tem, não somente de se
escolher a si mesmo, mas também de
"me" escolher, em "mim" mesma,
dentre as diversas possibilidades da
minha própria realização.
A consciência de me escolher
traduz-se, em mim, pelo sentimento da
angústia e da responsabilidade. De um
lado, os meus possíveis são
continuamente ameaçados pela minha
liberdade futura, e, por outro lado,
apreendo a minha escolha, isto é,
apreendo-me a mim mesma, como
injustificável, desde que o meu ser é
radicalmente contingente, e pela
minha liberdade assumo
necessariamente essa contingência. A
minha escolha não se funda em
nenhuma realidade anterior, como já
disse. Pelo contrário, ela é que deverá
fundar, para mim, o sentido do meu
ser e do mundo. Assim, tenho
consciência, não só do compromisso
necessário e absolutamente
contingente, que pesa sobre mim,
como tenho consciência da ameaça,
sob a qual me encontro, de me poder
escolher como não sou. "Abandono,
angústia e responsabilidade são os
sentimentos que assaltam
permanentemente a minha
consciência, ora às escuras, ora às
claras, enquanto me experimento como
pura e simples liberdade" (543).
É este o sentido da tese
sartreana de que a essência do homem
é posterior à sua existência. O homem
define-se, isto é, realiza a sua essência,
pela escolha dos seus fins. Aquilo que
denuncia a sua pessoa não está no
passado, como se a essência, já
estabelecida, pré-determinasse a sua
existência ─ mas no futuro. Os
possíveis não existem antes da sua
realização; o possível só existe
enquanto se possibilita, ao projetar-se
de novo em direção a um outro
mundo, isto é, em direção a um outro
aspecto do mundo. Este mesmo
projeto é sempre uma escolha
incondicionada, e os motivos que essa
escolha dá a si mesma fazem parte
integrante dela. É ainda uma escolha
necessária, porque se eu posso
escolher-me como quero, não posso
deixar de me escolher nem recusar-me
a ser, o que não passaria de outra
maneira de escolher e de ser.
O homem, pelo ser que é, como
existência, e que não foi por ele
escolhido, participa da contingência
radical de tudo o que existe e, por esse
mesmo motivo, da "absurdidade" total
do ser. "A liberdade é absurda, porque
se a escolha é razão do ser-escolhido, já
não o poderá ser de um escolher aquilo
de que a liberdade de forma alguma se
poderá eximir" (515). Aqui, entendo
que a liberdade, como Sartre a postula,
é uma criação ex nihilo, uma vez que,
por ela, o para-si faz-se aquilo que
quer, e de forma tão absoluta, que o
para-si se identifica com a liberdade.
Liberdade e para-si são uma e a
mesma coisa. O para-si surge sem
razão do em-si; o para-si não pode de
forma alguma ser emanação do em-si,
que o exclui absolutamente; de modo
que o para-si se faz surgir a si mesmo
do seu próprio nada:
Eu estou condenado a ser livre, pelo
fato de me ter sido dado o ser sem meu
consentimento, e sem razão, e por me
ver obrigado a assumi-lo ao fazer-me.
Todas as minhas razões mergulham
nesta absurdidade fundamental (561).
Sartre acrescenta que é pelo seu
próprio aparecimento que a liberdade
se determina a um fazer, sendo que
esse fazer será sempre o aniquilar de
uma coisa. Então, segue-se que a
liberdade é a falta de ser: eu sou livre
enquanto não sou, e pelo mesmo fato
de não ser. A liberdade pode ser
definida como um "buraco no ser" ou
um "nada ser" (564), uma vez que
surge como arrancamento ao ser, isto
é, "como aniquilação do ser que ela é,
no meio do qual ela está, e ao qual
deve subtrair-se projetando um
fim"(566). Entendo que projetar um
fim é modificar ou aniquilar uma
situação, e apreender-me como falta
desse ser que eu projeto. Por isto, terei
de apreender a minha liberdade como
faticidade, ou seja, como puro dado,
única realidade que eu posso
compreender.
Mas o dado não pode ser causa
da liberdade; a causa só é entendida no
plano do para-si. O dado não pode ser
sua razão, já que ele perde significado
sem a liberdade. E como entender a
relação do dado com o ato livre, que é
condicionamento ontológico? Se o
para-si é pura contingência, então não
faz sentido pretender que o dado seja
condição necessária do ato livre. Sendo
a liberdade negação interna do dado, o
dado não poderia ser indispensável ao
ser exercício. Sartre afirma:
O leitor compreendeu que esse dado não é outra
coisa do que o em-si nadificado pelo para-si que deve
ser, do que o corpo como ponto de vista sobre o
mundo, do que o passado como essência que o para-
si foi (567).
O ser envolve a liberdade; se o para-si
deve ser, então o ser resulta sendo o
compromisso e a ameaça do ato livre.
Isto significa que o dado se desvela
como motivo, submetido à um fim que
o determina.
Estamos condenados à
liberdade e abandonados nela. Por
isso, nossa liberdade está "em
situação", e não podemos modificar
nossa situação o nosso arbítrio.
"Denominaremos situação a
contingência da liberdade no plenum
do ser do mundo e enquanto é dado,
que não está ali mais que para
constranger a liberdade" (573). O para-
si se descobre como marcado no ser,
cercado pelo ser, ameaçado pelo ser;
descobre o estado de coisas que o
rodeia como motivo para uma reação
de defesa e ataque. O paradoxo da
liberdade é que "não há liberdade
senão em situação, e que não há
situação senão pela liberdade" (574).
Esta situação é derivada da
contingência da liberdade e da
contingência do em-si: é pela situação
que o em-si se transforma em motivo.
A situação aparece como resultado do
que o ato livre faz com o em-si; a
situação é o modo como o para-si
nadifica o em-si. Se a realidade
humana encontra resistências e
obstáculos, que não foram inventados
por ela, estas resistências e obstáculos
só adquirem sentido na livre escolha, e
através da livre escolha que a realidade
humana é. Embora a escolha seja
fundamental, a situação é estabelecida
pela faticidade: "a liberdade é a
apreensão de minha faticidade" (575).
Sartre descreve diversos tipos de
situação: "meu sítio; situação espacial e
geográfica; meu passado; meu corpo;
meu próximo" (570-73). Em todas elas
o resultado é o mesmo: tudo é
entendido a partir do poder
nadificador do para-si. Não se pode
descrever ou definir o "algo" da
faticidade em si mesmo, antes que a
liberdade a tenha apreendido; e sem
liberdade não haveria situação.
É importante ressaltar o poder
nadificador do para-si; o ser que
envolve a realidade humana, só será
admitido se for condicionado pelo
nada que habita o para-si; se o ser me
envolve, dele permaneço distanciado, e
essa separação não poderá ser
suprimida. Sendo assim, o
condicionamento ontológico pelo ser
se dá no condicionamento ontológico
pelo nada, isto é, o condicionamento
ontológico se torna, também ele,
condicionado. Como já disse, há uma
preeminência ontológica absoluta do
em-si: o em-si é o ser; mas a dimensão
ontológica do em-si é instaurada "pelo
nada que eu segrego e que eu sou"
(591). Sartre, nos diz que
somos separados das coisas por nada,
apenas por nossa liberdade; é ela que
faz com que haja coisas com toda a sua
indiferença, sua imprevisibilidade e
sua adversidade, e que nós sejamos
inelutavelmente separados delas, pois é
sobre um fundo de nadificação que elas
aparecem e se revelam como ligados
umas às outras (591).
É claro que o para-si nada
acrescenta às coisas; não poderia
jamais ser princípio constituinte das
coisas, posto que a realidade humana
constitui-se como projeto de si; e, pelo
projeto da liberdade, a faticidade é
trazida para dentro da esfera da
realidade humana, determinando,
assim, a ambigüidade da situação. Se o
homem se faz absolutamente livre e
responsável por sua situação, ele só é
livre em situação. Isso acontece de tal
forma, que é como se o projeto da
liberdade conseguisse lançar o nada,
de tal modo que o mesmo nada
passasse a ser anterior ao em-si; a
faticidade é a projeção nadificadora.
Dizer que o homem está condenado a
ser livre é o mesmo que afirmar que ele
está obrigado a nadificar a tudo e a
todos.
Desde que a liberdade é
necessária, total e infinita, o homem
terá que suportar sobre os ombros o
peso do mundo inteiro. É responsável
por si e pelo mundo, não na sua
existência, mas na sua maneira de ser,
visto que não pode deixar de ter
consciência da sua imputabilidade
quanto aos acontecimentos, e à
configuração do mundo. Imensa
responsabilidade, pois, reconhecendo-
se abandonado e livre, o homem
apreende-se como sendo aquilo que se
faz ser. Desta maneira, não se admite
qualquer lamentação, porque
nenhuma potência estranha pode
determinar aquilo que eu sou. Tudo o
que acontece é meu, e o mundo, tal
como é, apenas reflete a minha
imagem. A responsabilidade não é
aceitação, é a reivindicação lógica da
minha liberdade, e de todas as
conseqüências que dela emanam.
Compreende-se a afirmação de Sartre
de que "eu, em certo sentido, escolho
ter nascido" (641). O fato de meu
nascimento não me aparece em estado
bruto; o nascimento é mostrado como
reconstrução pro-jetiva do meu para-si:
posso ter vergonha de ter nascido. Sem
razão, nem explicação, vejo-me
lançado ao mundo sem saber porquê.
Sou responsável por tudo, menos pela
minha responsabilidade, uma vez que
não sou o fundamento do meu ser.
Dizer que estou condenado a ser livre
é também dizer que sou obrigado a ser
responsável. Estou no meio de um
mundo e assumo a responsabilidade
por esse mundo, já que, por mais que
faça, terei sempre que me escolher, e
não posso escolher-me senão como ser-
no-mundo. Assim sendo, se não nasci
por escolha, terei que me escolher
como ser-nascido, e, dentro desta
perspectiva, o mundo inteiro não será
para mim senão o conjunto de
probabilidades ou de ocasiões que me
são oferecidas para realizar esse ser
que eu tive de assumir, dando então
sentido ao mundo.
Esta é a minha condição, da
qual só "escaparei", sem conseguí-lo,
recorrendo à má-fé. Mas realizo na
angústia essa minha condição.
Descobrindo na angústia a minha
liberdade e, simultaneamente, o nada
que a angústia encerra, passo a não ter
remorso ou desculpa: "sou essa mesma
liberdade, cujo ser se afirma no ato
pelo qual eu a descubro" (642).
Sartre diz que a liberdade é
"autonomia de escolha" (563). Cabe
esclarecer que, se essa autonomia não
tem nenhum limite que a torne
impotente, não há uma faticidade
radical que à liberdade se imponha
como fronteira. Sartre reconhece que
há o que ele chama de "situação-
limite"(630), isto é, os limites externos
da situação se tornam "situação-limite".
Trata-se da morte e do nascimento, ou
do absurdo da morte e do absurdo do
nascimento. Absurdo porque ambos
são fatos contingentes. A morte é
simplesmente um fato puro ou
faticidade derivada de minha
contingência e de ser nada. Como o
nascimento, é afetada do mesmo
absurdo. É absurdo que tenhamos
nascido, como é absurdo que devamos
morrer. Esse absurdo se apresenta
como alienação permanente de meu
ser-possibilidade que não é já minha
possibilidade. É uma espera enganosa,
que isenta toda a significação da vida.
Eu sou "espera de esperas de espera
que a morte suprime totalmente (630).
Mas não traço limites à minha
liberdade. Trata-se, pois, de um limite
permanente aos meus projetos, e, como
tal, deve ser assumido este limite. Não
há diferença, no fundo, entre a escolha
pela qual a liberdade assume sua
morte como limite inacessível de sua
subjetividade e aquela pela qual
escolheu ser liberdade limitada. A
morte, para Sartre, é o signo mais claro
da negatividade do ser-para-si. E por
serem fatos puros e contingentes, fica
claro que não podem ter dimensão
ontológica: são subtraídos ao poder
nadificador do para-si. Então, a morte
não lhe poderia pertencer como
estrutura ontológica. Não há lugar
para a morte no para-si, ela é o dado
como tal, em estado absoluto; e sendo
estranha ao para-si não pode
constranger a liberdade: "a liberdade
que é minha liberdade permanece total
e infinita" (632). O que Sartre pretende
é manter a autonomia do ato livre, de
maneira radical, como recusa a toda e
qualquer possibilidade de
condicionamento.
O homem sartreano desenvolve
uma incessante atividade no mundo, e,
no entanto, permanece incapaz de com
o mundo instituir relações duráveis e
positivas, saindo do seu abstrato
isolamento. É com o objetivo de
eliminar esse isolamento que Sartre
elaborou a noção de "situação", que já
expliquei. Procurou, através da noção
de "situação", transformar a abstração
anônima do para-si nessa realidade
mais concreta que é o "homem-em-
situação" (583). Do ponto de vista
geral, a "situação" designa o complexo
dos determinismos e das estruturas
que condicionam o homem, enquanto
sujeito agente. Mas não se pense que a
situação coincide simplesmente com o
ser-em-si opaco do mundo, ser que de
diversos modos limita a minha
liberdade. Ela é, antes, a intersecção
entre esse ser-em-si e os meus livres
projetos. A situação define-se e
configura-se apenas em relação aos
projetos elaborados pelo ser humano.
O importante a ser ressaltado é
que, ao aprofundar a noção de
situação, Sartre desenvolverá o seu
próprio pensamento na direção de um
existencialismo consciente da presença
ativa e condicionante da história e da
sociedade, em relação à vida do
indivíduo. Nesta elaboração do
conceito de situação, não haverá,
contudo, uma superação convincente
da abstração e da solidão ontológica do
sujeito. Saliento o fato de que a
situação surge como estruturada pelo
sujeito e, em última análise, depende
dos seus projetos. Tudo o que
condiciona o sujeito constitui uma
situação, apenas se, e enquanto seja
assumida e vivida como tal. É
necessário observar que a situação não
chega a condicionar a liberdade
humana. Mesmo realizando-se apenas
no interior de uma situação, ela
permanece um absoluto, um
incondicionado, permanece algo de
intrínseco e ontologicamente
independente da realidade objetiva,
até mesmo a ela se contrapondo.
Com base nesta tese, não é fácil
estabelecer uma efetiva mediação entre
sujeito e mundo. A situação, longe de
se assumir como esta mediação, é
apresentada por Sartre como
correlação indispensável à liberdade,
isto é, como conjunto de "resistências"
e "obstáculos", na medida em que
sejam assumidos e tornados
significantes pela livre escolha do
sujeito" (592).
Esta tentativa de fazer com que
o sujeito supere o seu próprio
isolamento surge como sendo
substancialmente efetuada na parte
subjetiva. Enquanto a realidade deve
esperar que a envolvam num projeto,
para que adquira uma "presença"
significante sua, o sujeito permanece
como o efetivo e solitário protagonista
e realizador da sua própria vivência no
mundo.
Já vimos que o para-si é o ser
que existe como testemunho do seu
ser, fazendo-se anunciar o que é, pelo
possível que ele projeta ser, e que toma
o aspecto de valor, ou seja, do que está
faltando ao para-si para ser a
totalidade que pretende ser. A
liberdade é outro nome deste processo,
característico do para-si. O para-si só
escolhe porque é falho de ser, e a
liberdade, como foi estabelecida, não é
outra coisa senão essa falta, ou a
maneira de ser que se exprime em e
por essa falta. Segue-se que, sob o
ponto de vista ontológico, é válido
dizer que o possível e o valor surgem
como limites em direção aos quais uma
falta de ser se projeta, com o fim de se
anular, ou a liberdade pelo seu
aparecimento faz surgir seus possíveis
ao mesmo tempo definindo-os como
valores.
Pergunto qual será o possível
último, isto é, o valor absoluto, em
direção do qual se projeta o para-si?
Sartre responde que só se revelará este
valor através de uma psicanálise
existencial, que "procura determinar a
escolha original" (658), realizada
individualmente. Essa escolha "é o
centro de referências de uma infinitude
de significações polivalentes" (660), e
constitui o projeto fundamental do
homem. O homem opera ao
determinar a sua posição no mundo.
Em função dessa opção, anterior a toda
lógica, é que se poderá, interrogando a
multitude concreta das atitudes
empíricas, decifrar o sentido
ontológico que elas implicam e,
simultaneamente, exprimem, fixando-
as, depois, sob a forma de conceitos.
Este método apóia-se, efetivamente, no
princípio que admite "o homem como
um todo e não como coleção" (658),
encarando-o como um todo inteiro, no
seu comportamento concreto, por mais
insignificante que este seja. Em outro
capítulo, já disse que Sartre rejeita o
postulado do inconsciente: o fato
psíquico é coextensivo à consciência.
Mas embora o homem saiba em que
consiste seu projeto fundamental,
embora esse projeto seja vivido
plenamente por ele, e embora seja,
portanto, totalmente consciente, isso
não quer dizer que ele seja conhecido;
a psicanálise existencial propõe-se a
tornar conhecido o que todo para-si
compreende desde sempre. É imposta,
assim, a transformação do homem, no
sentido de que se lhe torne acessível "a
intuição final do sujeito" (662). Dessa
forma, a ontologia encontra o seu
significado último no que se propõe a
psicanálise existencial. Diante desta
proposta, "a ontologia nos abandona:
ela nos permite simplesmente
determinar os fins últimos da
realidade humana, seus possíveis
fundamentais e o valor que a
persegue" (707).
A estrutura da obra O Ser e o
Nada desemboca, necessariamente, em
uma Ética. Essa Ética não foi escrita,
mas nessa obra temos dois tipos
fundamentais de relação. A primeira é
a relação do sujeito consigo mesmo,
visto que o para-si se manifesta antes
de mais nada como presença a si; toda
moral só pode descobrir seu
fundamento na subjetividade do
sujeito. A segunda relação é a de
sujeito-objeto, pois, em última
instância, não há uma relação
intersubjetiva no existencialismo. O
conflito que preside ao relacionamento
com o outro termina por frustrar
qualquer tentativa de superar a
categoria do objeto. A relação sujeito-
objeto, no entanto, Sartre analisa nas
relações concretas com o outro, sem
dedicar a isto um capítulo específico.
Se a negação determina a
relação com o outro, a rigor a relação
se nega a si própria: uma relação
negativamente determinada não chega
a ser propriamente uma "relação". Os
dois tipos de relação consigo mesmo e
com o outro ─ constituem o lugar onde
se desenvolve o comportamento moral
do homem, e em que se apresentam os
conceitos da ética: liberdade, valor,
compromisso, responsabilidade, de
um modo geral, a ação humana. Sendo
o para-si a liberdade compreendida
como autonomia de escolha, por ela é
determinado um dos conceitos
principais da ética: o valor. Se a
liberdade é absoluta, o valor brota da
subjetividade. A ontologia e a
psicanálise existencial devem mostrar
ao homem que "ele é o ser pelo qual os
valores existem" (772). Entenda-se
"homem" como individualidade
subjetiva. Assim sendo, o valor exige
um fundamento; mas o fundamento
não pode ser o ser, pois se o fosse,
desde que o homem é norteado por
valores, todo comportamento
instauraria a má-fé e,
conseqüentemente, destruiria a
liberdade. Então:
a liberdade é o único fundamento dos
valores e ... nada, absolutamente nada,
me justifica ao adotar tal ou tal valor,
tal ou tal escala de valores. Enquanto
ser pelo qual os valores existem eu sou
injustificável. E minha liberdade se
angústia de ser o fundamento sem
fundamento dos valores (76).
Como não há uma natureza
humana que determine o que o
homem deve fazer, também não há
uma ordem pré-estabelecida de
valores. Desse modo, o valor encontra
a sua criação no ato livre, e é
absolutamente indeterminado:
escolher é inventar.
Portanto, partindo da
experiência, e baseando a investigação,
que revela a escolha original, na
concepção pré-ontológica ou
espontânea que o homem tem de si
mesmo, descobre-se que o projeto
fundamental ou escolha original do
homem não pode ser senão o projeto-
de-ser, pois é evidentemente
impossível ir para lá do ser. Não há,
porém, qualquer diferença entre
possível, valor, projeto-de-ser, e ser.
Fundamentalmente, o homem é desejo
de ser. E isto quer dizer que o para-si é
nele mesmo a sua própria falta de ser,
e que o ser que lhe falta é o em-si, na
busca do qual ele anda continuamente
empenhado. Deste modo, colocado
continuamente entre o em-si que ele
aniquila, por definição, e o em-si que
projeta ser, o para-si é nada. O em-si
corresponde verdadeiramente ao fim
da aniquilação que me constitui. O
homem é desejo de ser-em-si, isto é,
desejo de ser ele mesmo o seu próprio
fundamento. No entanto, o para-si,
que é, como tal, negação do em-si, não
pode desejar fundir-se na opacidade
bruta do em-si: o que ele pretende é
realizar essa união paradoxal que
Sartre designa pelo "em-si-para-si"
(654). Quer ser uma consciência, mas
possuir, como consciência, a densidade
plena e inteira do em-si. Sob este
aspecto, os possíveis projetados pelo
para-si correspondem apenas àquilo
que lhe permitiria transformar-se nesse
em-si-para-si que é, para ele, o valor
supremo. A este ser ideal que, pela
pura consciência que tivesse de si
mesmo, viesse a ser fundamento do
seu próprio ser, é que Sartre chama de
"Deus". E, no fim das contas, "o projeto
fundamental do homem é ser Deus"
(654).
Neste caso, poderá haver ainda
liberdade? Já mostrei que não haveria
liberdade se o homem fosse
primeiramente uma essência, ou uma
natureza a que ele, depois, viesse a dar
existência. Essa essência definiria, logo
no princípio, os caminhos aos quais o
homem se teria que cingir, abolindo,
portanto, a sua liberdade. Definindo-se
o homem como aquele que deseja ser
Deus, não haveria como conferir-lhe
um substituto dessa essência, que
corromperia a sua liberdade? Sartre
diz que esta objeção não procede,
porque, se é certo que o desejo do
homem, no seu verdadeiro sentido, só
se compreende como projeto de ser
Deus, também é certo que esse desejo,
de fato, nunca se explicita sob essa
forma; serve-se sempre de
modalidades de realização que o
implicam ou o simbolizam, sem o
manifestar, e que correspondem
também sempre a uma situação
empírica determinada. O desejo de ser
exprime-se e atualiza-se como desejo
de tal maneira específica de ser, e,
como tal, abre e impõe
simultaneamente à liberdade um
campo absolutamente ilimitado. O
desejo exprime uma estrutura de ser
universal, pela qual virá a ser definida
"a realidade humana da pessoa" (655).
Sartre esforça-se por desfazer a
idéia de qualquer semelhança entre
realidade humana, que é
fundamentalmente desejo de ser Deus,
e uma natureza ou essência. Não há
semelhança possível, porquanto o
desejo identifica-se com a falta de ser, e
isto implica que eu seja inicialmente
falho dessa essência em-si-para-si, que
ambiciono vir a ser. Não se poderá
admitir esta estrutura abstrata como
essência da liberdade. A liberdade não
tem essência, não é propriedade de
uma substância ou natureza que seria
antes dela. Ao contrário, ela funda a
natureza ou essência, isto é, ela é
existência, aparecimento
imediatamente concreto, que se
identifica com a sua escolha, ou seja,
com a pessoa. Sartre pensa que
essência poderia ser, antes da
existência, uma estrutura concreta. É
claro que ela não é senão uma
estrutura abstrata, e só pode tornar-se
concreta e singular pelo ato de existir,
o qual é, como tal, "aparecimento
imediatamente concreto" (655). Mas,
mesmo neste caso, tal como Sartre a
concebe, a essência conserva uma certa
precedência lógica em relação à
existência, uma vez que, sejam quais
forem as formas simbólicas e concretas
da sua realização, o desejo
fundamental, que define, para Sartre, a
realidade humana, está já dado, aí,
como quadro dentro do qual a
existência deverá manifestar-se. Sartre,
ao que parece, admite, aqui, um
substituto para uma "natureza". Mas,
também, não é solução admitir que o
homem, não sendo nem o em-si, nem o
em-si-para-si, nem Deus, pode-se
tornar como que um puro esforço para
ser Deus, esforço que não tem o que o
leve a esforçar-se. Dentro desta
concepção do para-si, o que se vê é
que, de qualquer forma, a pura relação
vivida do em-si original com o valor ─
o nada que constitui o homem ─ é esse
próprio esforço que ele despende para
se tornar substância, uma causa de si.
Esse esforço é realmente uma natureza.
Porque nada exige que uma essência
seja uma substância dada de antemão.
A noção de substância conduz ao
existente, que é o ser. A essência, pelo
contrário, é propriamente relativa ao
ser, e não uma coisa ou um sujeito.
Onde nos conduzirão estas
concepções da liberdade e do valor?
Sartre adverte que elas devem, antes
de tudo, eliminar "esprit de sérieux"
(609). Somos "sérios", quando
tomamos o mundo como primeiro
ponto de partida, ou ponto de apoio,
estabelecendo, assim, por prioridade, a
realidade do mundo; ou, então,
quando "não atribuímos a nós mesmos
realidade e valor, senão na medida em
que fazemos parte do mundo" (609).
Não é por acaso que os ricos e
revolucionários são "sérios": tanto uns
como outros só se conhecem em
função do mundo, que enriquece uns e
esmaga outros. "Marx foi quem
primeiro afirmou o dogma do sério,
quando deu prioridade ao objeto sobre
o sujeito, e o homem é sério quando se
toma por um objeto" (669). Esta
seriedade define a má-fé, que bloqueia
a espontaneidade inventiva dos atos.
Por isso, Sartre recusa toda moral
tradicional, que é livre para o mal e
não para o bem, que é livre para o erro
e não para a verdade.
De fato, o pensamento sério
"torna-se espesso pelo mundo";
"coagula". "O homem demite-se a favor
do mundo" (669), do qual já nem
mesmo lhe parece possível sair. Desta
forma, "o homem do mundo" passa a
ter a existência do rochedo; tem a
espessura, a densidade e a opacidade
das coisas do mundo. Esta situação
tem como símbolo a viscosidade. O
viscoso é a desforra do em-si, isto é, a
morte do para-si, morte açucarada, "a
vespa que se atola no doce e fica nele
submersa" (702). O pastoso poderá ter
o mesmo aspecto que o viscoso, mas
não fascina, não compromete, porque é
inerte. No viscoso a substância é
pegajosa, comprometedora e sem
equilíbrio, semelhante à metamorfose.
Tocar no viscoso é arriscarmo-nos a
sermos diluídos em viscosidade. Esta
diluição, por si mesma, já é horrorosa,
porque corresponde à absorção do
para-si pelo em-si, como se tratasse de
tinta absorvida pelo mata-borrão. Mas,
além disso, é tanto mais horrorosa
quando, podendo metamorfosear-nos
em coisa, vamo-nos metamorfosear em
viscosidade. Tornar-se viscoso é em si
horrível, para uma consciência. "E é
este temor que, no plano ontológico,
traduz a fuga do para-si diante do em-
si da faticidade" (702). Entretanto o
homem jamais poderá instalar-se
tranqüilamente nessa dimensão de si: o
para-si, que o constitui, não cessará de
se insurgir contra esse empastamento,
contra esse deslizar na viscosidade,
contra essa solidificação petrificada em
coisa. "A má-fé não é um refúgio de
completo repouso, e o artifício em que
ela incorre nos traz sempre
mergulhados num irremediável mal-
estar" (721). Este mal-estar nasce do
horror pelo viscoso, isto é, no plano
ontológico do temor, que experimenta
o para-si perante o risco de naufragar
na faticidade do em-si. Este tipo de ser,
de fato, não existe, senão como em-si-
para-si, e é representado unicamente
pelo viscoso.
É um ser ideal que eu repilo com todas
as minhas forças, mas que me
acompanha como o valor me
acompanha no meu ser; um ser ideal,
em que o em-si não fundado tem
prioridade sobre o para-si, e a que
chamaremos Antivalor(703).
O sério não é apresentado como
uma pura ilusão da subjetividade. O
valor, tal como ele o concebe e busca,
como se fosse um dado transcendente,
uma coisa ou um objeto que se tratasse
de atingir e possuir, "tal valor não é
senão uma miragem" (721). A
liberdade, apreedendo-se a si mesma
como nada de ser, uma vez que nela se
exprime o ser que não é, e não se
exprime o que é, renuncia, portanto, a
coincidir consigo, procurando, estar
sempre distante de si mesma. Deste
modo, "por uma conversão radical,
que é uma absoluta renúncia ao
espírito do sério, ela desejar-se-á si
mesma, e tornar-se-á o seu próprio
fundamento" (721). Daqui em diante, o
homem passará a aparecer
verdadeiramente como o ser por quem
os valores existem, e a liberdade, como
o nada pelo qual o mundo existe.
Como tal, o homem basta-se a si
mesmo e, pelo sentimento desse nada
criador de ser, faz-se Deus.
Nestas condições, não se deve
considerar a ação, uma vez que o
homem age e compromete-se, sem ter
a menor ilusão sobre os fins a que se
propõe. O espírito do sério é que leva
ao desespero, pois acaba sempre por
nos mostrar como são vãs e destinadas
ao fracasso todas as atividades do
homem. Conduzir povos ou
embebedar-se solitariamente são,
assim, atitudes equiparáveis. Se, na
realidade, uma pode prevalecer sobre
a outra, nunca é em razão do seu fim
concreto, como se uma escala de
valores objetivos permitisse diferenciar
esses fins, mas unicamente em razão
do grau de consciência que cada uma
das atitudes possui, em relação ao seu
termo ideal. Neste caso, "poderá
acontecer que a quietude do bêbado
solitário domine a inútil agitação do
condutor de povos" (752). Porque a
única verdade é que
"o homem se perde como homem, para
que Deus possa nascer. Mas a idéia de
Deus é contraditória e nos perdemos
em vão. O homem é uma paixão
inútil"(738).
Bem e mal, verdade e erro
devem ser invenções do homem.
Nesse sentido, Sartre diz que liberdade
é sinônimo de libertação. É libertação
de tudo o que não se confunde com a
própria subjetividade. A recusa à lei é
total, e tanto a recusa como a lei devem
ser compreendidas do modo mais
amplo possível: nem a concessão e
nem a reserva podem ser
resguardadas. Todo homem que se
refugia na desculpa de suas paixões,
todo homem que inventa um
determinismo é um homem de má-fé.
Mas, trata-se, aqui, também, de
libertação de si mesmo. Inventar um
determinismo é como introduzir o em-
si no fundamento do para-si, numa
tentativa de coincidir consigo mesmo
e, como conseqüência, de justificar-se
na condição de objetividade. No
entanto, a liberdade é fuga de si, é
manter-se à distância de si próprio, e
haver-se com a angústia de não poder
ser.
Uma liberdade que se quer como
liberdade é um ser-que-não-é-o-que-ele-
é e que-é-o-que-ele-não-é que escolhe,
como ideal de ser, o ser-o-que-ele-não-é
e o não-ser-o-que-ele-é (722).
Isto significa que a realidade
humana nunca se está realizando, e
quando pensa que está, incide na má-
fé. O homem se habita a si mesmo
perpetuamente, como um estranho.
Tendo em vista a concepção da
liberdade e do valor, Sartre pretende
erigir a sua moral da responsabilidade
e do compromisso. Definido o valor
como criação da subjetividade, diz o
que é a responsabilidade: "Tomamos a
palavra responsabilidade em seu
sentido banal, como consciência (de)
ser (o para-si), o autor incontestável de
um acontecimento ou de um objeto"
(639). Condenado a ser livre, o homem
carrega o peso do mundo; ele se torna
responsável pelo mundo e por si
mesmo, enquanto maneira de ser.
Sartre revela o subjetivismo de
maneira radical: "tudo o que me
acontece é meu", "tudo o que me
acontece me acontece por mim", se
"cada pessoa é uma escolha absoluta
de si, eu sou responsável por tudo,
salvo por minha própria
responsabilidade, porque eu não sou o
fundamento de meu ser"(641). Assim,
o fundamento da responsabilidade
permanece determinado de um modo
negativo, e ficamos sem entender
como o homem pode ser responsável
pelos outros. Mas trata-se de uma
criação de imagens, e dizer que o
homem é responsável por todos é o
mesmo que dizer que só é responsável
por si próprio: "sou responsável por
mim mesmo e por todos, e crio uma
certa imagem do homem que eu
escolho; escolhendo a mim, escolho o
homem" (O existencialismo é um
humanismo, 27; doravante, EH).
A concepção sartreana do
compromisso é que "cada vez que o
homem escolhe seu compromisso e seu
projeto com toda sinceridade, e com
toda lucidez, qualquer que seja esse
projeto, tornar-se-á impossível preferir
um outro(EH,79).
Tenho que retomar citações do
panfleto O Existencialismo é um
Humanismo, porque Sartre o cita em O
Ser e o Nada. O fundamento do
compromisso também sofre uma
determinação negativa, pois só é
esclarecida a partir da subjetividade
instauradora. Neste caso, não há como
verificar o compromisso; se a possível
objetividade do valor é determinada
pelo para-si, então o homem só se
compromete consigo mesmo; dizer
que o homem pode julgar o outro não
é suficiente para justificar o
compromisso e a responsabilidade. A
concepção sartreana do homem não
permite ao para-si aderir a nada,
porque ele só é, só tem ser, pelo nada,
e seu desenraizamento termina sendo
total.
Feita a análise da liberdade,
temos que: o em-si é o ser que é o que
é; a consciência não é objeto; o ser é
pleno e completo; a consciência é vazia
de ser; é possibilidade; a possibilidade
não é realidade; a consciência é
liberdade.
Mas a consciência não encontra
o ser apenas na estranha, opaca e,
portanto, inatingível forma da
realidade das coisas. Encontra-o
também encarnado na realidade do
“outro”, da “outra” consciência. A
esperança do sujeito de sair de sua
própria solidão e da sua própria falta e
de instituir uma relação finalmente
positiva e “completante” com o ser
reacende-se. É a odisséia do para-si, da
consciência intencional, lugar de
encontro e de desencontro entre
sujeitos humanos. Protagonistas de
uma complexa série de relações
dialéticas, o EU e o OUTRO atuam e
relacionam-se, de fato, num tempo e
num espaço absolutos que se subtraem
a qualquer fixação ou a qualquer
condicionamento de natureza histórico
–social e material. Na realidade, o Eu
não está só. E certos casos psíquicos
vêm revelar isso mesmo ao senso
comum: quando, por exemplo,
experimento um sentimento de
vergonha, aquilo que eu sinto implica
necessariamente a existência e a
presença do Outro. É apenas através
do Outro que eu posso e devo
envergonhar-me. Portanto, uma
estrutura constituinte do meu ser – do
ser “para-mim”, remete
necessariamente para o meu ser “para-
outro”. A dificuldade em nos
apercebermos desta intersubjetividade
originária, e em examinar a sua
complexa fenomenologia, está
relacionada com o fato de que o Outro
não é qualquer coisa de positivo que
possa ser conhecido na sua
positividade. A sua essência é a
negação; com efeito, o outro é o eu que
eu não sou. É assim que o encontro
entre dois sujeitos se configura desde a
sua origem como uma negação
recíproca que compromete o seu
próprio ser.
Em conclusão sobre a
intersubjetividade, é negativa: o Outro
é por definição inatingível. A essência
das relações entre as consciências é o
conflito. Em vão, pois, procuraria a
realidade humana sair deste dilema:
transcender o outro ou deixar-se
transcender com o seu ser-em-si.
PROFª. MS. CLÉA GOIS E SILVA
Formada em Filosofia, com obtenção do
Título de Ms. em Filosofia pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro - PUC-RJ. Aperfeiçoamento
em Ambiente Virtual de Aprendizagem
e Apoio Pedagógico pela Universidade
do Sul de Santa Catarina - UNISUL.
Professora Universitária.

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  • 1. A CONSCIÊNCIA EM BUSCA DA LIBERDADE A aventura da consciência em busca do seu próprio complemento, através da conciliação do para-si com o em-si, veio revelar a característica de que o ser do homem se configura sempre como um fazer, um agir. Sartre propõe descobrir a condição em que se funda esta característica, que é, para ele, a liberdade, e examinar as estruturas das suas manifestações, no interior do horizonte mundano. Sartre analisa a liberdade e o agir humano, a partir da teoria segundo a qual o homem é um ser que escapa a todo o rígido determinismo exterior e interior, um ser imediata e integralmente responsável por todas as suas ações. O homem é intrínseca e ontologicamente livre. O objetivo de Sartre consiste em desacreditar a idéia de uma necessidade, exterior a nós, que derivaria de uma estabilidade das coisas ou de uma ordem moral objetiva. Os indivíduos já não são tributários de um caráter determinado ou de uma essência definida, donde resultariam todas as suas propriedades e todos os seus atos, nem dos constrangimentos que lhes vêm de fora, isto é, da sociedade ou de Deus. O princípio primeiro da existência concreta dos indivíduos tem que se situar numa opção profunda, absolutamente gratuita, pela qual eles se escolhem absolutamente. Já em A Náusea, Sartre objetiva o estudo da liberdade, que continua em O Ser e o Nada. Retomarei só o conceito de liberdade na obra A Náusea, pois Sartre se refere a ela em O Ser e o Nada. Duas atitudes se tornam possíveis, frente à escolha absoluta: resistir àquelas impressões, tendências ou impulsos, que os chamados "normais" julgam estar obrigados a repelir, censurando-se interiormente por não o fazerem, ou, então, entregar- se totalmente a esses impulsos, tendências ou impressões, na firme decisão de se fazer coincidir com eles. Esta segunda atitude, Sartre designa por "trapaça", pelo que encerra de voluntário e de resoluto e, por isso mesmo, de inquietante e de suspeito aos olhos dos "normais": as regras comuns são contestadas e renegadas. Os trapaceiros, procurando mergulhar a fundo na náusea, distinguem-se, assim, dos outros indivíduos, ditos "normais", que não trapaceiam, que são os guardiões da ordem e da moral, os fantoches produzidos em série. Há duas condições para a trapaça: primeiro, teremos de renunciar à nossa personalidade, à consciência pretensamente clara, que só turva a espontaneidade da existência e a sua livre expansão; isso, fazemos renunciando à vontade, ao dever, que apenas têm por efeito impor aos nossos pensamentos e sentimentos uma ordem artificial e um constrangimento arbitrário, e, de fato, exterior. O resultado desta "despersonalização" será eliminar do pensamento tudo o que nele houver de "ponderado", ou tudo o que represente constrangimento social, obediência a imperativos estranhos. Elimina-se, assim, a cortina que nos esconde o nada e nos protege da Náusea. A segunda condição consiste em renunciar ao passado. O passado é o meu eu solidificado, objetivado: tenho
  • 2. que arrastá-lo atrás de mim como uma coisa morta. A experiência da trapaça faz deslizar no seu nada esse mundo confeccionado geometricamente. Diante da existência reconduzida a si mesma, diante do derramamento pastoso, eu experimento, ao mesmo tempo, um profundo desânimo. Nada mais há do que a existência, ou seja, qualquer coisa que é absolutamente contingente e gratuita, que está aí, sem se saber porque, sem nada que lhe exija ou explique o aparecimento; qualquer coisa que é essencialmente absurda, "qualquer coisa que é demais para a eternidade" (A Náusea, 113; doravante, N; não aparecendo o '_', a pág.. é de O Ser e o Nada). A certa altura do relato da novela, o que parecia uma seqüência insuportável de vivências psíquicas adquire um valor ontológico, na intuição reveladora da personagem: Mas eu não posso mais, eu sufoco: a existência me penetra por todos os lados, pelos olhos, pelo nariz, pela boca... A Náusea não me abandonou e eu não creio que ela me abandone tão cedo; mas já não sofro, eu sou a náusea (N.160). A náusea sou eu mesmo, qualquer coisa de constitutivo daquilo que o homem é. A liberdade evidencia-se como estando implicada na própria possibilidade da trapaça. Por ela, entrevejo a existência na sua estrutural absurdidade: a existência existe sem qualquer razão. A Náusea é o sentimento de sufocação produzido por esta revelação da existência, conforme já dissemos; como qualquer coisa que nos invade bruscamente. A angústia revela-me a mim mesmo como consciência, convencendo-me de que há artifício no ser, de que o nada acompanha o ser da existência. A liberdade assenta sobre este nada: é este mesmo nada, isto é, a minha possibilidade de ser, pela consciência, o ser que eu não sou, e de não ser o ser que eu sou. Pode-se dizer que eu sou constrangido a ser livre, uma vez que não posso ser tal, senão escolhendo-me a mim mesmo; e não posso deixar de me escolher, pois não escolher é ainda uma escolha. Lançado na existência sem o meu consentimento, eu devo assumir essa existência, fazendo-me ser o que eu quero, e sem poder contar com mais ninguém senão comigo mesmo. Por isso, a trapaça corresponde a um meio, que conduz à liberdade, e, através dela, ao valor, que é propriamente o efeito da sua escolha, isto é, eu mesmo, tal como livremente me escolhi. Eu posso renunciar à liberdade, mas só posso fazê-lo de má-fé, pois, só usando da minha liberdade, é que eu posso renunciar à liberdade. Os termos "pastoso", "viscoso" e "pegajoso" desempenham papel importante para Sartre: são metáforas do homem que, renunciando à liberdade, e instalando-se na má-fé, pretende transmutar-se em coisa, e logo se prende, se torna pastoso. A viscosidade é o estado intermediário entre o nada, ou a fluidez da liberdade, e o pleno, maciço e opaco do em-si, ou da coisa. A consciência desliza na viscosidade, como no sono. O homem nunca se sente à vontade neste estado. "O próprio viscoso, quando compreende o seu estado, é o primeiro a experimentar um sentimento de
  • 3. horror, porque, para uma consciência, será sempre uma coisa pavorosa sentir-se presa na viscosidade" (698). A liberdade é pesada. Tem caráter opressivo, ao sobrecarregar os meus ombros com o peso do meu ser, e com o peso do mundo. Mas é o único valor, porque não se apóia senão em si, e é o valor absoluto, porque só através da liberdade pode haver valor. Retomando O Ser e o Nada, o para-si tem aparecido, até agora, como estando continuamente expulso de si mesmo, em busca de um em-si inatingível, com o qual pretende coincidir. Mas este empenho do para-si ocorre no mundo, e, como tal, é um agir que está sempre a modificar a configuração do mundo, na sua própria materialidade. Analisemos este agir. Antes, porém, de explicar a ação, precisamos conhecer a sua condição primeira, que é a liberdade. E qual é o fundamento da liberdade? O homem é livre, precisamente porque não é. O que é, não é livre: "é", sem mais nada, e não pode deixar de ser, nem ser o que não é. O homem, pelo contrário, não é "si" nem pode sê-lo: é pura presença a si. É justamente o nada, feito ser no coração do homem, que o constitui livre, e que é a sua liberdade, obrigando-o a fazer-se em lugar de ser. Por esta razão, para o homem, ser é necessariamente escolher-se: não se trata, para ele, de receber ou de aceitar, mas de fazer-se por uma escolha que tem caráter inteiramente gratuito. Desde que é, enquanto é, ele é necessária e totalmente livre. Dessa forma, a liberdade é propriamente o ser do homem, isto é, "o seu nada de ser" (508). Com esta análise, Sartre quer, em primeiro lugar, por de lado o determinismo, incluindo o que pretende associar a liberdade humana ao determinismo do querer, isto é, ao imperialismo das paixões. As paixões não têm qualquer poder sobre a vontade, porque então teríamos de reconhecer no homem dois existentes, dos quais um, dominado pelas paixões, seria para o outro um puro transcendente, um de fora. O homem, ou é inteiramente determinado, o que não tem sentido, pois uma consciência, motivada pelo de fora, torna-se imediatamente um de fora e deixa de ser consciêncial, ou é totalmente livre. Em segundo lugar, a vontade só pode exercer-se baseando-se numa liberdade original, que lhe permite constituir-se como vontade, isto é, como decisão definida, relativamente a certos fins que ela deliberadamente se propõe atingir, com determinados meios. A vontade não pode, portanto, exercer-se, senão dentro do quadro dos fins pré-estabelecidos pelo homem. Esses fins, não é ela que os cria; são os que a realidade humana a si se dá como projeção dos seus possíveis, nos quais pretende completar-se em em-si- para-si. Não podem ser concebidos, nem como dados vindos de fora, provindos de uma decisão que, de antemão, traçasse ao homem as vias do seu destino; nem tampouco como expressões de uma pretensa natureza interior, que o homem devesse completar por sua ação. O homem escolhe os seus fins, e, porque os escolhe, dá-lhes uma existência
  • 4. transcendente, que é como o termo limite dos seus projetos. Aqui, a existência precede e determina a essência, isto é, o homem, com o seu aparecimento, define o seu ser, mediante os fins que a si próprio se confere. É como brota originalmente a minha liberdade. Este brotar é fundamentalmente existência, "porquanto o fundamento dos fins que intento, quer pela minha vontade, quer pelas minhas paixões, não é senão a minha própria liberdade" (521). Para melhor compreensão, é necessário uma análise do que Sartre denomina "motivos" e "móveis" da ação. O motivo é a razão que justifica um ato, ou seja, a apreensão objetiva de uma relação entre meio e fim; o móvel, pelo contrário, é subjetivo, porque traduz o impulso dos desejos, das emoções e das paixões. Esta distinção envolve várias dificuldades, porque, quando motivo e móvel se juntam na mesma decisão, não se chega a dar conta da relação que possa haver entre eles. Convém esclarecer que não pode haver motivação ou motivo em si, mas somente em relação ao projeto de uma ação, e, conseqüentemente, em relação aos fins que a consciência já se deu a si mesma, aos quais ela se prende e dos quais se suspende sob a forma da afetividade. Esta, que corresponde rigorosamente ao móvel, é irracional, porque é, para o homem, pura consciência (de) si como projeto mais ou menos firme, ou apaixonado, em direção a um fim. O móvel, o motivo e o fim são, portanto, três aspectos inseparáveis de uma consciência vivente e livre, projetando-se para as suas possibilidades. Os motivos só podem compreender-se em função de um móvel, ou seja, de um fim ou de um projeto ─ os motivos e o móvel não se encontram no mesmo plano, como termos em conflito. Mas creio que Sartre erra, quando faz do móvel, do projeto ou do fim, um puro irracional, a expressão de uma absoluta contingência na liberdade. O motivo de agir traduz o fim escolhido. Mas o fim pode ser concebido como possível, e excluído como contrário à lei moral, e, neste caso, os motivos que o teriam justificado, se ele tivesse sido escolhido, transformam-se em móveis, isto é, em simples atrativo sensível. Esta liberdade aparece, segundo Sartre, como "totalidade insuscetível de ser analisada" (513). Motivos, móveis e fins não são senão o local dessa liberdade. Mas isto não implica que a liberdade tenha de ser concebida como uma série de lances arbitrários. Se, de fato, cada um dos meus atos é totalmente livre, não poderá, entretanto, ser um ato qualquer, nem mesmo imprevisível, porque ele terá de ser sempre e necessariamente a expressão do meu projeto, ou da escolha fundamental que fiz de mim mesmo. Quando Sartre define a realidade humana, o para-si deve ser o que ele é: ele é o que não é e não é o que é. Com essas fórmulas Sartre define a liberdade. Se a intencionalidade da consciência apresenta uma tessitura ontológica, isto significa que o para-si, em seu ser mesmo, é intencional, e, ao estudar a ação humana, partimos da seguinte fórmula: "todo ato humano é, por princípio, intencional" (508). Como a
  • 5. consciência, a ação humana sofre de um nada. O poder nadificante do para- si inaugura toda a ação humana; e dizer que a ação se determina pelo nada é o mesmo que dizer que é ela pura indeterminação. A liberdade e a consciência se circunscrevem, reciprocamente. A consciência, sendo um poder nadificador, repele o determinismo. Nenhum estado de fato motiva por si mesmo qualquer ato, nenhum ato pode levar a consciência a se definir e a se determinar. Isto, porque o estado de fato só é, só vem a ser, através do poder nadificador do para-si. Posta a consciência, abandona-se o ser para invadir-se o terreno do não-ser. "É o ato que decide de seus fins e de seus móveis, e o ato é a expressão da liberdade" (513). A liberdade se instaura desprovida de necessidade lógica. A existência precede a essência, e a demarcação da liberdade torna-se contraditória, uma vez que a liberdade se explica como fundamento de todas as essências. Trata-se do interior de meu ser, e, analogamente à consciência, deve-se ver na consciência a necessidade de fato, uma contingência radical. Não podemos tocar o fundo da consciência, pois a liberdade coincide com a auto- nadificação do para-si. Sendo o homem livre, ele escapa ao seu próprio ser, faz-se sempre outra coisa do que aquilo que se pode dele fazer. Qualquer tentativa de colocar a liberdade sob a tutela do ser termina provocando a angústia, pois revelará a insuficiência de ser, que é a realidade humana. Tendo em vista que o para-si habita em sua raiz o nada, não pode ser, e permanece condenado a se fazer- se abandonada, a realidade humana deve escolher-se. Dizer que o ser do homem reside na liberdade, é o mesmo que afirmar que ele só se apóia em seu nada de ser. Sendo assim, ou o homem é absolutamente livre, ou não é. Sartre é sempre radical: ou determinismo absoluto ou liberdade absoluta; ou a plenitude do em-si ou o nada no coração do para-si: "a liberdade coincide em seu fundo com o nada que está no coração do para-si; "a liberdade coincide em seu fundo com o nada que está no coração do homem"(516). A liberdade revela um sentido original e ontológico: o para-si, resolve-se na contingência absoluta e na gratuidade fundamental. Compreende-se a escolha original, como algo anterior a tudo o que possa motivá-la. A escolha coincide com a consciência que temos de nós mesmos: é "consciência-nós" (539), tendo em vista que não se distingue de nosso ser. Nosso ser se faz pela escolha original: "É necessário ser consciente para escolher e é necessário escolher para ser consciente. Escolha e consciência são uma e a mesma coisa" (540). A consciência da escolha que nós somos é plena, e, por essa razão, nossa escolha não deriva de nenhuma realidade anterior, é fundamento de si mesma; a escolha é fonte das significações que irão constituir a realidade. Essa é a doutrina que deve ser, entendido pela característica do para-si, isto é, pela negação interna. É lógico que a consciência é intencional, e não poderia existir sem um dado: ela tem ser, existe, a partir do dado. Mas já que a consciência é negação do dado e,
  • 6. portanto, o dado não a condiciona, então pela negação o projeto de condicionamento irá resultar em incondicionamento. Temos, como conseqüência, que, "a liberdade é o fato de que a escolha termina sempre incondicionada" (558), decorrendo disso, o absurdo da escolha. A liberdade é absurda porque é escolha de seu ser, sem ser o seu fundamento; ela não tem razão de ser, pois instaura toda razão de ser e todo fundamento. A compreensão do ato está centrada na minha última e total possibilidade, na qual se exprime a escolha que eu fiz de mim. Este ato de me escolher, não pode ser distinguido do meu ser. É, simultaneamente, escolha de mim mesmo no mundo e descoberta do mundo. É, portanto, o fundamento de todas as deliberações. Como já disse, a escolha, quando é profunda, identifica-se com a consciência que eu tenho de mim: "escolha e consciência são uma e a mesma coisa" (540). Assim sendo, estamos sempre inteiramente presentes a nós mesmos: somos, vivendo-a, a solução que damos ao problema da nossa existência e, de uma forma geral, ao problema do ser. Sob este ponto de vista, o mundo, tal como o vemos, dá- nos a imagem do que somos: escolhendo-nos, escolhemos o mundo, não como um em-si que nos escapa, mas no seu verdadeiro significado. "O mundo é a minha escolha" (541). Para ilustrar esta doutrina Sartre descreve a seguinte situação: Resolvo fazer uma excursão, durante a qual, sentindo-me fatigado e já sem poder resistir por mais tempo ao desejo de desistir da caminhada, deixo-me cair por terra. Poder-me-ão censurar a desistência, alegando que eu deveria ter-me esforçado por atingir o termo do percurso. Defender-me-ei, entretanto, invocando a minha enorme fadiga (542). Sartre não deixa claro se essa dupla escolha, que de fato é uma só, se funda sobre si mesma, ou se tem as suas razões. Pois, a fadiga é suportável ou não, segundo eu mesma. Eu defino o seu valor e isso me define a mim, no meu ser: a fadiga é uma realidade vivida; eu existo na minha fadiga ou existo na minha resistência à fadiga, conforme a escolha que faço de mim. Sartre afirma que as razões ou os motivos são simples reflexo da escolha original. Mas qual é a natureza dessa escolha? Ela pode ser racional ou afetiva. Pois eu sempre sou devolvida a mim mesma, na dualidade interna de um ser que tem, não somente de se escolher a si mesmo, mas também de "me" escolher, em "mim" mesma, dentre as diversas possibilidades da minha própria realização. A consciência de me escolher traduz-se, em mim, pelo sentimento da angústia e da responsabilidade. De um lado, os meus possíveis são continuamente ameaçados pela minha liberdade futura, e, por outro lado, apreendo a minha escolha, isto é, apreendo-me a mim mesma, como injustificável, desde que o meu ser é radicalmente contingente, e pela minha liberdade assumo necessariamente essa contingência. A minha escolha não se funda em nenhuma realidade anterior, como já disse. Pelo contrário, ela é que deverá fundar, para mim, o sentido do meu ser e do mundo. Assim, tenho
  • 7. consciência, não só do compromisso necessário e absolutamente contingente, que pesa sobre mim, como tenho consciência da ameaça, sob a qual me encontro, de me poder escolher como não sou. "Abandono, angústia e responsabilidade são os sentimentos que assaltam permanentemente a minha consciência, ora às escuras, ora às claras, enquanto me experimento como pura e simples liberdade" (543). É este o sentido da tese sartreana de que a essência do homem é posterior à sua existência. O homem define-se, isto é, realiza a sua essência, pela escolha dos seus fins. Aquilo que denuncia a sua pessoa não está no passado, como se a essência, já estabelecida, pré-determinasse a sua existência ─ mas no futuro. Os possíveis não existem antes da sua realização; o possível só existe enquanto se possibilita, ao projetar-se de novo em direção a um outro mundo, isto é, em direção a um outro aspecto do mundo. Este mesmo projeto é sempre uma escolha incondicionada, e os motivos que essa escolha dá a si mesma fazem parte integrante dela. É ainda uma escolha necessária, porque se eu posso escolher-me como quero, não posso deixar de me escolher nem recusar-me a ser, o que não passaria de outra maneira de escolher e de ser. O homem, pelo ser que é, como existência, e que não foi por ele escolhido, participa da contingência radical de tudo o que existe e, por esse mesmo motivo, da "absurdidade" total do ser. "A liberdade é absurda, porque se a escolha é razão do ser-escolhido, já não o poderá ser de um escolher aquilo de que a liberdade de forma alguma se poderá eximir" (515). Aqui, entendo que a liberdade, como Sartre a postula, é uma criação ex nihilo, uma vez que, por ela, o para-si faz-se aquilo que quer, e de forma tão absoluta, que o para-si se identifica com a liberdade. Liberdade e para-si são uma e a mesma coisa. O para-si surge sem razão do em-si; o para-si não pode de forma alguma ser emanação do em-si, que o exclui absolutamente; de modo que o para-si se faz surgir a si mesmo do seu próprio nada: Eu estou condenado a ser livre, pelo fato de me ter sido dado o ser sem meu consentimento, e sem razão, e por me ver obrigado a assumi-lo ao fazer-me. Todas as minhas razões mergulham nesta absurdidade fundamental (561). Sartre acrescenta que é pelo seu próprio aparecimento que a liberdade se determina a um fazer, sendo que esse fazer será sempre o aniquilar de uma coisa. Então, segue-se que a liberdade é a falta de ser: eu sou livre enquanto não sou, e pelo mesmo fato de não ser. A liberdade pode ser definida como um "buraco no ser" ou um "nada ser" (564), uma vez que surge como arrancamento ao ser, isto é, "como aniquilação do ser que ela é, no meio do qual ela está, e ao qual deve subtrair-se projetando um fim"(566). Entendo que projetar um fim é modificar ou aniquilar uma situação, e apreender-me como falta desse ser que eu projeto. Por isto, terei de apreender a minha liberdade como faticidade, ou seja, como puro dado, única realidade que eu posso compreender. Mas o dado não pode ser causa
  • 8. da liberdade; a causa só é entendida no plano do para-si. O dado não pode ser sua razão, já que ele perde significado sem a liberdade. E como entender a relação do dado com o ato livre, que é condicionamento ontológico? Se o para-si é pura contingência, então não faz sentido pretender que o dado seja condição necessária do ato livre. Sendo a liberdade negação interna do dado, o dado não poderia ser indispensável ao ser exercício. Sartre afirma: O leitor compreendeu que esse dado não é outra coisa do que o em-si nadificado pelo para-si que deve ser, do que o corpo como ponto de vista sobre o mundo, do que o passado como essência que o para- si foi (567). O ser envolve a liberdade; se o para-si deve ser, então o ser resulta sendo o compromisso e a ameaça do ato livre. Isto significa que o dado se desvela como motivo, submetido à um fim que o determina. Estamos condenados à liberdade e abandonados nela. Por isso, nossa liberdade está "em situação", e não podemos modificar nossa situação o nosso arbítrio. "Denominaremos situação a contingência da liberdade no plenum do ser do mundo e enquanto é dado, que não está ali mais que para constranger a liberdade" (573). O para- si se descobre como marcado no ser, cercado pelo ser, ameaçado pelo ser; descobre o estado de coisas que o rodeia como motivo para uma reação de defesa e ataque. O paradoxo da liberdade é que "não há liberdade senão em situação, e que não há situação senão pela liberdade" (574). Esta situação é derivada da contingência da liberdade e da contingência do em-si: é pela situação que o em-si se transforma em motivo. A situação aparece como resultado do que o ato livre faz com o em-si; a situação é o modo como o para-si nadifica o em-si. Se a realidade humana encontra resistências e obstáculos, que não foram inventados por ela, estas resistências e obstáculos só adquirem sentido na livre escolha, e através da livre escolha que a realidade humana é. Embora a escolha seja fundamental, a situação é estabelecida pela faticidade: "a liberdade é a apreensão de minha faticidade" (575). Sartre descreve diversos tipos de situação: "meu sítio; situação espacial e geográfica; meu passado; meu corpo; meu próximo" (570-73). Em todas elas o resultado é o mesmo: tudo é entendido a partir do poder nadificador do para-si. Não se pode descrever ou definir o "algo" da faticidade em si mesmo, antes que a liberdade a tenha apreendido; e sem liberdade não haveria situação. É importante ressaltar o poder nadificador do para-si; o ser que envolve a realidade humana, só será admitido se for condicionado pelo nada que habita o para-si; se o ser me envolve, dele permaneço distanciado, e essa separação não poderá ser suprimida. Sendo assim, o condicionamento ontológico pelo ser se dá no condicionamento ontológico pelo nada, isto é, o condicionamento ontológico se torna, também ele, condicionado. Como já disse, há uma preeminência ontológica absoluta do em-si: o em-si é o ser; mas a dimensão ontológica do em-si é instaurada "pelo nada que eu segrego e que eu sou" (591). Sartre, nos diz que
  • 9. somos separados das coisas por nada, apenas por nossa liberdade; é ela que faz com que haja coisas com toda a sua indiferença, sua imprevisibilidade e sua adversidade, e que nós sejamos inelutavelmente separados delas, pois é sobre um fundo de nadificação que elas aparecem e se revelam como ligados umas às outras (591). É claro que o para-si nada acrescenta às coisas; não poderia jamais ser princípio constituinte das coisas, posto que a realidade humana constitui-se como projeto de si; e, pelo projeto da liberdade, a faticidade é trazida para dentro da esfera da realidade humana, determinando, assim, a ambigüidade da situação. Se o homem se faz absolutamente livre e responsável por sua situação, ele só é livre em situação. Isso acontece de tal forma, que é como se o projeto da liberdade conseguisse lançar o nada, de tal modo que o mesmo nada passasse a ser anterior ao em-si; a faticidade é a projeção nadificadora. Dizer que o homem está condenado a ser livre é o mesmo que afirmar que ele está obrigado a nadificar a tudo e a todos. Desde que a liberdade é necessária, total e infinita, o homem terá que suportar sobre os ombros o peso do mundo inteiro. É responsável por si e pelo mundo, não na sua existência, mas na sua maneira de ser, visto que não pode deixar de ter consciência da sua imputabilidade quanto aos acontecimentos, e à configuração do mundo. Imensa responsabilidade, pois, reconhecendo- se abandonado e livre, o homem apreende-se como sendo aquilo que se faz ser. Desta maneira, não se admite qualquer lamentação, porque nenhuma potência estranha pode determinar aquilo que eu sou. Tudo o que acontece é meu, e o mundo, tal como é, apenas reflete a minha imagem. A responsabilidade não é aceitação, é a reivindicação lógica da minha liberdade, e de todas as conseqüências que dela emanam. Compreende-se a afirmação de Sartre de que "eu, em certo sentido, escolho ter nascido" (641). O fato de meu nascimento não me aparece em estado bruto; o nascimento é mostrado como reconstrução pro-jetiva do meu para-si: posso ter vergonha de ter nascido. Sem razão, nem explicação, vejo-me lançado ao mundo sem saber porquê. Sou responsável por tudo, menos pela minha responsabilidade, uma vez que não sou o fundamento do meu ser. Dizer que estou condenado a ser livre é também dizer que sou obrigado a ser responsável. Estou no meio de um mundo e assumo a responsabilidade por esse mundo, já que, por mais que faça, terei sempre que me escolher, e não posso escolher-me senão como ser- no-mundo. Assim sendo, se não nasci por escolha, terei que me escolher como ser-nascido, e, dentro desta perspectiva, o mundo inteiro não será para mim senão o conjunto de probabilidades ou de ocasiões que me são oferecidas para realizar esse ser que eu tive de assumir, dando então sentido ao mundo. Esta é a minha condição, da qual só "escaparei", sem conseguí-lo, recorrendo à má-fé. Mas realizo na angústia essa minha condição. Descobrindo na angústia a minha liberdade e, simultaneamente, o nada
  • 10. que a angústia encerra, passo a não ter remorso ou desculpa: "sou essa mesma liberdade, cujo ser se afirma no ato pelo qual eu a descubro" (642). Sartre diz que a liberdade é "autonomia de escolha" (563). Cabe esclarecer que, se essa autonomia não tem nenhum limite que a torne impotente, não há uma faticidade radical que à liberdade se imponha como fronteira. Sartre reconhece que há o que ele chama de "situação- limite"(630), isto é, os limites externos da situação se tornam "situação-limite". Trata-se da morte e do nascimento, ou do absurdo da morte e do absurdo do nascimento. Absurdo porque ambos são fatos contingentes. A morte é simplesmente um fato puro ou faticidade derivada de minha contingência e de ser nada. Como o nascimento, é afetada do mesmo absurdo. É absurdo que tenhamos nascido, como é absurdo que devamos morrer. Esse absurdo se apresenta como alienação permanente de meu ser-possibilidade que não é já minha possibilidade. É uma espera enganosa, que isenta toda a significação da vida. Eu sou "espera de esperas de espera que a morte suprime totalmente (630). Mas não traço limites à minha liberdade. Trata-se, pois, de um limite permanente aos meus projetos, e, como tal, deve ser assumido este limite. Não há diferença, no fundo, entre a escolha pela qual a liberdade assume sua morte como limite inacessível de sua subjetividade e aquela pela qual escolheu ser liberdade limitada. A morte, para Sartre, é o signo mais claro da negatividade do ser-para-si. E por serem fatos puros e contingentes, fica claro que não podem ter dimensão ontológica: são subtraídos ao poder nadificador do para-si. Então, a morte não lhe poderia pertencer como estrutura ontológica. Não há lugar para a morte no para-si, ela é o dado como tal, em estado absoluto; e sendo estranha ao para-si não pode constranger a liberdade: "a liberdade que é minha liberdade permanece total e infinita" (632). O que Sartre pretende é manter a autonomia do ato livre, de maneira radical, como recusa a toda e qualquer possibilidade de condicionamento. O homem sartreano desenvolve uma incessante atividade no mundo, e, no entanto, permanece incapaz de com o mundo instituir relações duráveis e positivas, saindo do seu abstrato isolamento. É com o objetivo de eliminar esse isolamento que Sartre elaborou a noção de "situação", que já expliquei. Procurou, através da noção de "situação", transformar a abstração anônima do para-si nessa realidade mais concreta que é o "homem-em- situação" (583). Do ponto de vista geral, a "situação" designa o complexo dos determinismos e das estruturas que condicionam o homem, enquanto sujeito agente. Mas não se pense que a situação coincide simplesmente com o ser-em-si opaco do mundo, ser que de diversos modos limita a minha liberdade. Ela é, antes, a intersecção entre esse ser-em-si e os meus livres projetos. A situação define-se e configura-se apenas em relação aos projetos elaborados pelo ser humano. O importante a ser ressaltado é que, ao aprofundar a noção de situação, Sartre desenvolverá o seu
  • 11. próprio pensamento na direção de um existencialismo consciente da presença ativa e condicionante da história e da sociedade, em relação à vida do indivíduo. Nesta elaboração do conceito de situação, não haverá, contudo, uma superação convincente da abstração e da solidão ontológica do sujeito. Saliento o fato de que a situação surge como estruturada pelo sujeito e, em última análise, depende dos seus projetos. Tudo o que condiciona o sujeito constitui uma situação, apenas se, e enquanto seja assumida e vivida como tal. É necessário observar que a situação não chega a condicionar a liberdade humana. Mesmo realizando-se apenas no interior de uma situação, ela permanece um absoluto, um incondicionado, permanece algo de intrínseco e ontologicamente independente da realidade objetiva, até mesmo a ela se contrapondo. Com base nesta tese, não é fácil estabelecer uma efetiva mediação entre sujeito e mundo. A situação, longe de se assumir como esta mediação, é apresentada por Sartre como correlação indispensável à liberdade, isto é, como conjunto de "resistências" e "obstáculos", na medida em que sejam assumidos e tornados significantes pela livre escolha do sujeito" (592). Esta tentativa de fazer com que o sujeito supere o seu próprio isolamento surge como sendo substancialmente efetuada na parte subjetiva. Enquanto a realidade deve esperar que a envolvam num projeto, para que adquira uma "presença" significante sua, o sujeito permanece como o efetivo e solitário protagonista e realizador da sua própria vivência no mundo. Já vimos que o para-si é o ser que existe como testemunho do seu ser, fazendo-se anunciar o que é, pelo possível que ele projeta ser, e que toma o aspecto de valor, ou seja, do que está faltando ao para-si para ser a totalidade que pretende ser. A liberdade é outro nome deste processo, característico do para-si. O para-si só escolhe porque é falho de ser, e a liberdade, como foi estabelecida, não é outra coisa senão essa falta, ou a maneira de ser que se exprime em e por essa falta. Segue-se que, sob o ponto de vista ontológico, é válido dizer que o possível e o valor surgem como limites em direção aos quais uma falta de ser se projeta, com o fim de se anular, ou a liberdade pelo seu aparecimento faz surgir seus possíveis ao mesmo tempo definindo-os como valores. Pergunto qual será o possível último, isto é, o valor absoluto, em direção do qual se projeta o para-si? Sartre responde que só se revelará este valor através de uma psicanálise existencial, que "procura determinar a escolha original" (658), realizada individualmente. Essa escolha "é o centro de referências de uma infinitude de significações polivalentes" (660), e constitui o projeto fundamental do homem. O homem opera ao determinar a sua posição no mundo. Em função dessa opção, anterior a toda lógica, é que se poderá, interrogando a multitude concreta das atitudes empíricas, decifrar o sentido ontológico que elas implicam e,
  • 12. simultaneamente, exprimem, fixando- as, depois, sob a forma de conceitos. Este método apóia-se, efetivamente, no princípio que admite "o homem como um todo e não como coleção" (658), encarando-o como um todo inteiro, no seu comportamento concreto, por mais insignificante que este seja. Em outro capítulo, já disse que Sartre rejeita o postulado do inconsciente: o fato psíquico é coextensivo à consciência. Mas embora o homem saiba em que consiste seu projeto fundamental, embora esse projeto seja vivido plenamente por ele, e embora seja, portanto, totalmente consciente, isso não quer dizer que ele seja conhecido; a psicanálise existencial propõe-se a tornar conhecido o que todo para-si compreende desde sempre. É imposta, assim, a transformação do homem, no sentido de que se lhe torne acessível "a intuição final do sujeito" (662). Dessa forma, a ontologia encontra o seu significado último no que se propõe a psicanálise existencial. Diante desta proposta, "a ontologia nos abandona: ela nos permite simplesmente determinar os fins últimos da realidade humana, seus possíveis fundamentais e o valor que a persegue" (707). A estrutura da obra O Ser e o Nada desemboca, necessariamente, em uma Ética. Essa Ética não foi escrita, mas nessa obra temos dois tipos fundamentais de relação. A primeira é a relação do sujeito consigo mesmo, visto que o para-si se manifesta antes de mais nada como presença a si; toda moral só pode descobrir seu fundamento na subjetividade do sujeito. A segunda relação é a de sujeito-objeto, pois, em última instância, não há uma relação intersubjetiva no existencialismo. O conflito que preside ao relacionamento com o outro termina por frustrar qualquer tentativa de superar a categoria do objeto. A relação sujeito- objeto, no entanto, Sartre analisa nas relações concretas com o outro, sem dedicar a isto um capítulo específico. Se a negação determina a relação com o outro, a rigor a relação se nega a si própria: uma relação negativamente determinada não chega a ser propriamente uma "relação". Os dois tipos de relação consigo mesmo e com o outro ─ constituem o lugar onde se desenvolve o comportamento moral do homem, e em que se apresentam os conceitos da ética: liberdade, valor, compromisso, responsabilidade, de um modo geral, a ação humana. Sendo o para-si a liberdade compreendida como autonomia de escolha, por ela é determinado um dos conceitos principais da ética: o valor. Se a liberdade é absoluta, o valor brota da subjetividade. A ontologia e a psicanálise existencial devem mostrar ao homem que "ele é o ser pelo qual os valores existem" (772). Entenda-se "homem" como individualidade subjetiva. Assim sendo, o valor exige um fundamento; mas o fundamento não pode ser o ser, pois se o fosse, desde que o homem é norteado por valores, todo comportamento instauraria a má-fé e, conseqüentemente, destruiria a liberdade. Então: a liberdade é o único fundamento dos valores e ... nada, absolutamente nada, me justifica ao adotar tal ou tal valor, tal ou tal escala de valores. Enquanto
  • 13. ser pelo qual os valores existem eu sou injustificável. E minha liberdade se angústia de ser o fundamento sem fundamento dos valores (76). Como não há uma natureza humana que determine o que o homem deve fazer, também não há uma ordem pré-estabelecida de valores. Desse modo, o valor encontra a sua criação no ato livre, e é absolutamente indeterminado: escolher é inventar. Portanto, partindo da experiência, e baseando a investigação, que revela a escolha original, na concepção pré-ontológica ou espontânea que o homem tem de si mesmo, descobre-se que o projeto fundamental ou escolha original do homem não pode ser senão o projeto- de-ser, pois é evidentemente impossível ir para lá do ser. Não há, porém, qualquer diferença entre possível, valor, projeto-de-ser, e ser. Fundamentalmente, o homem é desejo de ser. E isto quer dizer que o para-si é nele mesmo a sua própria falta de ser, e que o ser que lhe falta é o em-si, na busca do qual ele anda continuamente empenhado. Deste modo, colocado continuamente entre o em-si que ele aniquila, por definição, e o em-si que projeta ser, o para-si é nada. O em-si corresponde verdadeiramente ao fim da aniquilação que me constitui. O homem é desejo de ser-em-si, isto é, desejo de ser ele mesmo o seu próprio fundamento. No entanto, o para-si, que é, como tal, negação do em-si, não pode desejar fundir-se na opacidade bruta do em-si: o que ele pretende é realizar essa união paradoxal que Sartre designa pelo "em-si-para-si" (654). Quer ser uma consciência, mas possuir, como consciência, a densidade plena e inteira do em-si. Sob este aspecto, os possíveis projetados pelo para-si correspondem apenas àquilo que lhe permitiria transformar-se nesse em-si-para-si que é, para ele, o valor supremo. A este ser ideal que, pela pura consciência que tivesse de si mesmo, viesse a ser fundamento do seu próprio ser, é que Sartre chama de "Deus". E, no fim das contas, "o projeto fundamental do homem é ser Deus" (654). Neste caso, poderá haver ainda liberdade? Já mostrei que não haveria liberdade se o homem fosse primeiramente uma essência, ou uma natureza a que ele, depois, viesse a dar existência. Essa essência definiria, logo no princípio, os caminhos aos quais o homem se teria que cingir, abolindo, portanto, a sua liberdade. Definindo-se o homem como aquele que deseja ser Deus, não haveria como conferir-lhe um substituto dessa essência, que corromperia a sua liberdade? Sartre diz que esta objeção não procede, porque, se é certo que o desejo do homem, no seu verdadeiro sentido, só se compreende como projeto de ser Deus, também é certo que esse desejo, de fato, nunca se explicita sob essa forma; serve-se sempre de modalidades de realização que o implicam ou o simbolizam, sem o manifestar, e que correspondem também sempre a uma situação empírica determinada. O desejo de ser exprime-se e atualiza-se como desejo de tal maneira específica de ser, e, como tal, abre e impõe simultaneamente à liberdade um campo absolutamente ilimitado. O
  • 14. desejo exprime uma estrutura de ser universal, pela qual virá a ser definida "a realidade humana da pessoa" (655). Sartre esforça-se por desfazer a idéia de qualquer semelhança entre realidade humana, que é fundamentalmente desejo de ser Deus, e uma natureza ou essência. Não há semelhança possível, porquanto o desejo identifica-se com a falta de ser, e isto implica que eu seja inicialmente falho dessa essência em-si-para-si, que ambiciono vir a ser. Não se poderá admitir esta estrutura abstrata como essência da liberdade. A liberdade não tem essência, não é propriedade de uma substância ou natureza que seria antes dela. Ao contrário, ela funda a natureza ou essência, isto é, ela é existência, aparecimento imediatamente concreto, que se identifica com a sua escolha, ou seja, com a pessoa. Sartre pensa que essência poderia ser, antes da existência, uma estrutura concreta. É claro que ela não é senão uma estrutura abstrata, e só pode tornar-se concreta e singular pelo ato de existir, o qual é, como tal, "aparecimento imediatamente concreto" (655). Mas, mesmo neste caso, tal como Sartre a concebe, a essência conserva uma certa precedência lógica em relação à existência, uma vez que, sejam quais forem as formas simbólicas e concretas da sua realização, o desejo fundamental, que define, para Sartre, a realidade humana, está já dado, aí, como quadro dentro do qual a existência deverá manifestar-se. Sartre, ao que parece, admite, aqui, um substituto para uma "natureza". Mas, também, não é solução admitir que o homem, não sendo nem o em-si, nem o em-si-para-si, nem Deus, pode-se tornar como que um puro esforço para ser Deus, esforço que não tem o que o leve a esforçar-se. Dentro desta concepção do para-si, o que se vê é que, de qualquer forma, a pura relação vivida do em-si original com o valor ─ o nada que constitui o homem ─ é esse próprio esforço que ele despende para se tornar substância, uma causa de si. Esse esforço é realmente uma natureza. Porque nada exige que uma essência seja uma substância dada de antemão. A noção de substância conduz ao existente, que é o ser. A essência, pelo contrário, é propriamente relativa ao ser, e não uma coisa ou um sujeito. Onde nos conduzirão estas concepções da liberdade e do valor? Sartre adverte que elas devem, antes de tudo, eliminar "esprit de sérieux" (609). Somos "sérios", quando tomamos o mundo como primeiro ponto de partida, ou ponto de apoio, estabelecendo, assim, por prioridade, a realidade do mundo; ou, então, quando "não atribuímos a nós mesmos realidade e valor, senão na medida em que fazemos parte do mundo" (609). Não é por acaso que os ricos e revolucionários são "sérios": tanto uns como outros só se conhecem em função do mundo, que enriquece uns e esmaga outros. "Marx foi quem primeiro afirmou o dogma do sério, quando deu prioridade ao objeto sobre o sujeito, e o homem é sério quando se toma por um objeto" (669). Esta seriedade define a má-fé, que bloqueia a espontaneidade inventiva dos atos. Por isso, Sartre recusa toda moral tradicional, que é livre para o mal e
  • 15. não para o bem, que é livre para o erro e não para a verdade. De fato, o pensamento sério "torna-se espesso pelo mundo"; "coagula". "O homem demite-se a favor do mundo" (669), do qual já nem mesmo lhe parece possível sair. Desta forma, "o homem do mundo" passa a ter a existência do rochedo; tem a espessura, a densidade e a opacidade das coisas do mundo. Esta situação tem como símbolo a viscosidade. O viscoso é a desforra do em-si, isto é, a morte do para-si, morte açucarada, "a vespa que se atola no doce e fica nele submersa" (702). O pastoso poderá ter o mesmo aspecto que o viscoso, mas não fascina, não compromete, porque é inerte. No viscoso a substância é pegajosa, comprometedora e sem equilíbrio, semelhante à metamorfose. Tocar no viscoso é arriscarmo-nos a sermos diluídos em viscosidade. Esta diluição, por si mesma, já é horrorosa, porque corresponde à absorção do para-si pelo em-si, como se tratasse de tinta absorvida pelo mata-borrão. Mas, além disso, é tanto mais horrorosa quando, podendo metamorfosear-nos em coisa, vamo-nos metamorfosear em viscosidade. Tornar-se viscoso é em si horrível, para uma consciência. "E é este temor que, no plano ontológico, traduz a fuga do para-si diante do em- si da faticidade" (702). Entretanto o homem jamais poderá instalar-se tranqüilamente nessa dimensão de si: o para-si, que o constitui, não cessará de se insurgir contra esse empastamento, contra esse deslizar na viscosidade, contra essa solidificação petrificada em coisa. "A má-fé não é um refúgio de completo repouso, e o artifício em que ela incorre nos traz sempre mergulhados num irremediável mal- estar" (721). Este mal-estar nasce do horror pelo viscoso, isto é, no plano ontológico do temor, que experimenta o para-si perante o risco de naufragar na faticidade do em-si. Este tipo de ser, de fato, não existe, senão como em-si- para-si, e é representado unicamente pelo viscoso. É um ser ideal que eu repilo com todas as minhas forças, mas que me acompanha como o valor me acompanha no meu ser; um ser ideal, em que o em-si não fundado tem prioridade sobre o para-si, e a que chamaremos Antivalor(703). O sério não é apresentado como uma pura ilusão da subjetividade. O valor, tal como ele o concebe e busca, como se fosse um dado transcendente, uma coisa ou um objeto que se tratasse de atingir e possuir, "tal valor não é senão uma miragem" (721). A liberdade, apreedendo-se a si mesma como nada de ser, uma vez que nela se exprime o ser que não é, e não se exprime o que é, renuncia, portanto, a coincidir consigo, procurando, estar sempre distante de si mesma. Deste modo, "por uma conversão radical, que é uma absoluta renúncia ao espírito do sério, ela desejar-se-á si mesma, e tornar-se-á o seu próprio fundamento" (721). Daqui em diante, o homem passará a aparecer verdadeiramente como o ser por quem os valores existem, e a liberdade, como o nada pelo qual o mundo existe. Como tal, o homem basta-se a si mesmo e, pelo sentimento desse nada criador de ser, faz-se Deus. Nestas condições, não se deve considerar a ação, uma vez que o
  • 16. homem age e compromete-se, sem ter a menor ilusão sobre os fins a que se propõe. O espírito do sério é que leva ao desespero, pois acaba sempre por nos mostrar como são vãs e destinadas ao fracasso todas as atividades do homem. Conduzir povos ou embebedar-se solitariamente são, assim, atitudes equiparáveis. Se, na realidade, uma pode prevalecer sobre a outra, nunca é em razão do seu fim concreto, como se uma escala de valores objetivos permitisse diferenciar esses fins, mas unicamente em razão do grau de consciência que cada uma das atitudes possui, em relação ao seu termo ideal. Neste caso, "poderá acontecer que a quietude do bêbado solitário domine a inútil agitação do condutor de povos" (752). Porque a única verdade é que "o homem se perde como homem, para que Deus possa nascer. Mas a idéia de Deus é contraditória e nos perdemos em vão. O homem é uma paixão inútil"(738). Bem e mal, verdade e erro devem ser invenções do homem. Nesse sentido, Sartre diz que liberdade é sinônimo de libertação. É libertação de tudo o que não se confunde com a própria subjetividade. A recusa à lei é total, e tanto a recusa como a lei devem ser compreendidas do modo mais amplo possível: nem a concessão e nem a reserva podem ser resguardadas. Todo homem que se refugia na desculpa de suas paixões, todo homem que inventa um determinismo é um homem de má-fé. Mas, trata-se, aqui, também, de libertação de si mesmo. Inventar um determinismo é como introduzir o em- si no fundamento do para-si, numa tentativa de coincidir consigo mesmo e, como conseqüência, de justificar-se na condição de objetividade. No entanto, a liberdade é fuga de si, é manter-se à distância de si próprio, e haver-se com a angústia de não poder ser. Uma liberdade que se quer como liberdade é um ser-que-não-é-o-que-ele- é e que-é-o-que-ele-não-é que escolhe, como ideal de ser, o ser-o-que-ele-não-é e o não-ser-o-que-ele-é (722). Isto significa que a realidade humana nunca se está realizando, e quando pensa que está, incide na má- fé. O homem se habita a si mesmo perpetuamente, como um estranho. Tendo em vista a concepção da liberdade e do valor, Sartre pretende erigir a sua moral da responsabilidade e do compromisso. Definido o valor como criação da subjetividade, diz o que é a responsabilidade: "Tomamos a palavra responsabilidade em seu sentido banal, como consciência (de) ser (o para-si), o autor incontestável de um acontecimento ou de um objeto" (639). Condenado a ser livre, o homem carrega o peso do mundo; ele se torna responsável pelo mundo e por si mesmo, enquanto maneira de ser. Sartre revela o subjetivismo de maneira radical: "tudo o que me acontece é meu", "tudo o que me acontece me acontece por mim", se "cada pessoa é uma escolha absoluta de si, eu sou responsável por tudo, salvo por minha própria responsabilidade, porque eu não sou o fundamento de meu ser"(641). Assim, o fundamento da responsabilidade permanece determinado de um modo negativo, e ficamos sem entender como o homem pode ser responsável
  • 17. pelos outros. Mas trata-se de uma criação de imagens, e dizer que o homem é responsável por todos é o mesmo que dizer que só é responsável por si próprio: "sou responsável por mim mesmo e por todos, e crio uma certa imagem do homem que eu escolho; escolhendo a mim, escolho o homem" (O existencialismo é um humanismo, 27; doravante, EH). A concepção sartreana do compromisso é que "cada vez que o homem escolhe seu compromisso e seu projeto com toda sinceridade, e com toda lucidez, qualquer que seja esse projeto, tornar-se-á impossível preferir um outro(EH,79). Tenho que retomar citações do panfleto O Existencialismo é um Humanismo, porque Sartre o cita em O Ser e o Nada. O fundamento do compromisso também sofre uma determinação negativa, pois só é esclarecida a partir da subjetividade instauradora. Neste caso, não há como verificar o compromisso; se a possível objetividade do valor é determinada pelo para-si, então o homem só se compromete consigo mesmo; dizer que o homem pode julgar o outro não é suficiente para justificar o compromisso e a responsabilidade. A concepção sartreana do homem não permite ao para-si aderir a nada, porque ele só é, só tem ser, pelo nada, e seu desenraizamento termina sendo total. Feita a análise da liberdade, temos que: o em-si é o ser que é o que é; a consciência não é objeto; o ser é pleno e completo; a consciência é vazia de ser; é possibilidade; a possibilidade não é realidade; a consciência é liberdade. Mas a consciência não encontra o ser apenas na estranha, opaca e, portanto, inatingível forma da realidade das coisas. Encontra-o também encarnado na realidade do “outro”, da “outra” consciência. A esperança do sujeito de sair de sua própria solidão e da sua própria falta e de instituir uma relação finalmente positiva e “completante” com o ser reacende-se. É a odisséia do para-si, da consciência intencional, lugar de encontro e de desencontro entre sujeitos humanos. Protagonistas de uma complexa série de relações dialéticas, o EU e o OUTRO atuam e relacionam-se, de fato, num tempo e num espaço absolutos que se subtraem a qualquer fixação ou a qualquer condicionamento de natureza histórico –social e material. Na realidade, o Eu não está só. E certos casos psíquicos vêm revelar isso mesmo ao senso comum: quando, por exemplo, experimento um sentimento de vergonha, aquilo que eu sinto implica necessariamente a existência e a presença do Outro. É apenas através do Outro que eu posso e devo envergonhar-me. Portanto, uma estrutura constituinte do meu ser – do ser “para-mim”, remete necessariamente para o meu ser “para- outro”. A dificuldade em nos apercebermos desta intersubjetividade originária, e em examinar a sua complexa fenomenologia, está relacionada com o fato de que o Outro não é qualquer coisa de positivo que possa ser conhecido na sua positividade. A sua essência é a negação; com efeito, o outro é o eu que
  • 18. eu não sou. É assim que o encontro entre dois sujeitos se configura desde a sua origem como uma negação recíproca que compromete o seu próprio ser. Em conclusão sobre a intersubjetividade, é negativa: o Outro é por definição inatingível. A essência das relações entre as consciências é o conflito. Em vão, pois, procuraria a realidade humana sair deste dilema: transcender o outro ou deixar-se transcender com o seu ser-em-si. PROFª. MS. CLÉA GOIS E SILVA Formada em Filosofia, com obtenção do Título de Ms. em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-RJ. Aperfeiçoamento em Ambiente Virtual de Aprendizagem e Apoio Pedagógico pela Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL. Professora Universitária.