Este documento é a edição número 37 do e-zine literário Chicos, publicado em fevereiro de 2013. Contém resumos e trechos de obras de diversos autores, como o poeta iraquiano Badr Shakir Al Sayyab, o escritor paulistano Ferréz e o poeta argentino Claudio Sesín. Também apresenta colaborações de Gabriel Franco, Sebastião Nozza Bielli Lotti e Fernando Abritta.
Edição 37 do e-zine Chicos traz poesia e prosa de diversos autores
1.
2. Chicos
N. 37
Fevereiro 2013
e-zine de literatura e ideias
de Cataguases – MG
Capa
Um dedo de prosa
Esta é a edição número 37 de 28 de fevereiro de 2013.
Devemos desculpas ao Cunha de Leiradella, na última edição
cometemos um erro imperdoável. Erramos o título de sua
colaboração, o correto é Memorial em tons de azul, quem não leu
De Gabriel Franco sobre foto de Vicente Costa
retorne ao blog e dê uma olhada em nosso número 36.
Um dos jornalões paulistas publicou um inédito do João
Editores
Emerson Teixeira Cardoso Antônio, repartimos com vocês o conto.
José Antonio Pereira Apresentamos Badr Shakir Al Sayyab um poeta iraquiano.
Quem estreia por aqui é o artista plástico Sebastião Nozza
Colaboradores desta edição
Bielli Lotti, o Slotti
Antônio Jaime Trazemos aos nossos leitores Ferréz, escritor paulistano
Antônio Perin
que tem como matéria prima a periferia da nossa maior metrópole.
Claudio Sesín
Emanuel Medeiros Como defendemos o ensino da língua espanhola em nossas
Fernando Abritta escolas, publicamos, em espanhol, a poesia de Claudio Sesín -
Ferréz
grande poeta e amigo - lá de Catamarca na Argentina.
José Vecchi
Ronaldo Cagiano Reaparecem também aqui Emanuel Medeiros e José Vecchi
Rubens Shirassu Jr.
Sebastião Nozza Bielli Lotti
A edição está recheada de boa prosa e ótima poesia.
Fale conosco em:
cataletras.chicos@gmail.com Uma boa leitura para todos.
Visite-nos em:
http://chicoscataletras.blogspot.com/
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3. Badr Shakir Al Sayyab
Badr Shakir Al Sayyab nasceu em 25 de postura comunista e inspira vários de seus poemas
dezembro de 1926 na aldeia de Jaykour (distrito de mais famosos.
Abu Al Khasseb na província de Al Basrah) no sul do Seus poemas, A prostituta cega e Armas e crianças de
Iraque. Jaykour é a paixão da vida do poeta. 1926 é 1954, revelam o poeta maduro. Em 1960 publica: A
o ano em que fixam a fron-teira com a Turquia, perto canção da chuva onde apresenta poemas escritos desde
da queda e divisão do Império Turco entre os aliados 1952 e representa o melhor de sua obra poética. No
da Primeira Guerra. O Iraque é tutelado pelos início de 1961, viaja de Bagdá para Basra, onde seu
ingleses. terceiro filho nasce, ocasião em que a doença paralisa
Sua mãe morre durante o parto de uma irmã que sua perna esquerda. Em sua busca desesperada por
nasce morta. O pai, casa-se novamente e deixa os uma cura começa uma longa jornada que se torna o
filhos com o avô. A poesia, surge em Basra, para seu calvário até a morte: viagens ao Kuwait, Bagdá,
onde mudara com sua avó materna para cursar o Londres, Paris, tratamentos modernos e hospitais,
ensino médio. Transfere-se para Bagdá em 1944, curandeiros, contatos com seitas religiosas...
onde entra na Faculdade e frequenta o curso de Investigando todas possibilidades e sempre por trás,
Língua e Literatura Árabe. Em Bagdá, desenvolveu sua poesia, testemunhando sua luta desesperada.
duas qualidades de sua personalidade, que eram Suas últimas obras: do templo rebaixado (1962) e A
visíveis desde a sua infância e adolescência: sua Casa dos Escravos (1963) testemunham a sua morte
ideologia de compromisso social e a postura poética. lenta, dúvidas sobre a morte, sua incerteza em relação
Filia-se ao Partido Comunista do Iraque. Luta pela à vida. Deprimido e entregue ao seu destino, volta
retirada das tropas inglesas do Iraque e por uma para o Iraque em 1963. Agravada sua saúde, é
resposta mundial aos assentamentos maciços de transferido para o Kuwait em 1964, morrendo em 24
judeus na Palestina. Devido à sua atividade de dezembro de 1964. No dia seguinte é enterrado
revolucionária é preso várias vezes até ser expulso em em Basra, no mesmo dia, publica-se sua última
1946 da Faculdade. Readmitido mais tarde muda de obra As persianas da filha do Marquês , onde plasma
especialidade e em 1948 forma-se em Inglês e com intensidade assustadora seu terror, seu vazio e
Literatura. Por razões políticas é obrigado a deixar o ansiedade. Agora, sua poesia é puro existencialismo.
Iraque. O exílio, leva-o a pensar sua ideologia e
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4. O poeta maldito
a Charles Baudelaire
Você, leva à luta tua espada enferrujada,
agita-a na mão quase queimando o céu
pelo teu sangue inflamado e iluminado
querendo rasgar o ar.
Reúne-se às mulheres
a uma mulher cujos lábios são de sangue sobre o gelo
seu corpo enganosamente ingênuo
uma víbora caminhando, sobre almofadas no leito...
Não queres
abrir as clarabóias para que entre a luz,
para não sentir o que é vida.
O Oriente alça ante teus olhos os véus,
quase abraças a beleza junto ao trono de Deus,
quase a vês
reluzir em uma nuvem de fragrância e luz.
Vês o mamilo de um seio que acende as estrelas
com seu rubor ...
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5. Os efeitos que saem
de uma tumba, arrasta a nuvem de fumaça,
em sua sombra dorme um pobre fugitivo
um príncipe cercado por jarros de bebidas e escravos,
sua grandiosa morada em ruínas
é uma das ilhas de coral,
mar que purifica Lesbos com sal.
Teu espírito o bebe do eco ao abismo
como Safo herdarás um fogo nas veias,
mas não abraçará a ti e teu sono eterno
como quem abraça o seu espectro debruçado em uma janela.
Fogo de Narciso! Tântalo e os frutos!
Se diria que a indolente e lânguida África
(seus caudalosos rios, os atabaques,
suas densas florestas de sombras e chuvas,
sua seca umidade... a lua)
se envolvera com uma mulher que perdeu a honra,
mamando dela veneno e chamas
e sobre ela pingarás tua estranha poção ...
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6. Se diria que da nuvem de fumaça na noite
te alçarás, entre um mundo que estendem o faiscar do ouro
e um mundo de imaginação e pensamentos,
de um muro de embriaguez,
onde tua sombra aconchegara sem ferir a humanidade.
Entrei pelo teu pecaminoso livro
no jardim de sangue que arde com as flores,
bebi o néctar de suas letras,
seios de uma loba nas estepes,
seu leite é fúria
e sua sombra fecundidade.
Submergi, nas ondas que me golpeavam
atirando-me de uma márgem para outra margem.
Levei do seu abismo a madrepérola do castigo
Eu levo a ti.
Estenda-me as mãos!
Afaste as pedras e a terra!
Basra, 24/03/1962
Versão de Antônio Perin
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7. Janela de Wafiqa
A janela de Wafiqa na aldeia
ébria, domina o espaço
como a Galiléia espera caminhar,
espera Jesus. Dispersa suas paisagens.
Ícaro, roça o sol
com penas de águia. Sente-se livre.
Ícaro, pega-o, o horizonte
o atira até as profundezas, à sepultura.
Janela de Wafiqa, oh, árvore!
Respirem na escuridão crepuscular
os olhos que junto a ti esperam.
Espreitam a flor da maçã,
Buwayb é um hino
e o vento devolve
as melodias da água sobre as folhas.
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8. Wafiqa olha penalizada
das profundezas do túmulo e espera:
passar o murmúrio do rio
a sombra que ondula qual sino
a alvorada de uma festa,
assoviar qual sopro nas sementes.
O vento devolve
as melodias da água. É a chuva.
E o sol gargalha entre as folhas.
És janela rindo no brilho?
Ou porta que se abre na parede
para fugir pelas asas da fragrância
um espírito que anseia pela luz?
Oh rota para ascender ao coração!
Imagens de amizade e amor!
Caminho que sobe ao Senhor!
Se não fosse por ti não viria da aldeia ofegante.
No vento um perfume
pelas ondas do rio nos arrulha e nos canta.
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9. Ulisses se vai com as ondas,
o vento lembra ilhas esquecidas:
"Da velhice, vento, livrai-nos!"
O mundo abre sua janela
a partir desta janela azul
torna-se uno, torna-se seus espinhos
flores de perfume delicado.
Uma janela como se estivesse no Líbano,
Uma janela como se estivesse na Índia,
sonhos de uma menina no Japão
como Wafiqa sonho no sepulcro
com raios verdes e trovões.
A janela deWafiqa na aldeia
ébria, domina o espaço
como a Galileia sonha caminhar
sonha com Jesus.
Ardem suas paisagens.
Wafiqa - Parente e companheira de brincadeiras do poeta em sua infância.
Poemas de: O Templo Submergido 1962
Versão de Antônio Perin
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10. Fernando Abritta
O nó górdio (recortes)
entre o ato e o fato
Existe
entre o ato
e o fato
existe
entre o ato e o fato ex iste
entre o ato eo fat existe o Eof
entre o ato
e o fato
Existir
11. o relógio de ponto
olhos arregalados
que nada vêem
coração dispara
todos os músculos
trabalham desordenados
desesperado
cérebro pergunta as horas
soma tempo de viagem
confere hora do coletivo
diminui minutos do café
confere roupas documentos
braços se cansam
dependurados
corpo se choca
a muitos outros
com a freada
ouvido tolera
xingatório
pernas correm
pesadas
mãos na alavanca
E
odiado estrondo
do ponto batido
me acorda para menos um dia
de que me valem
estas horas
se minha filha
está presa em uma escola
onde aprende a ficar sozinha
sem chorar
se meu filho chora
no ouvido de quem nem conheço
se minha mulher estica na feira
meu salário
se o que aqui faço
não consigo ter.
12. na fila
conversa encurta
tempo perdido
ritmado pelo barulho
do relógio de ponto
na fila
conversa comenta
corpo doido
enquanto espera
a comida
na mesa
conversa ajuda
engolir sem sentir
arroz feito sem amor
13. suor derrete
corpo
em calor
mão cola no
papel.
bravamente
lá fora sol.
olho resiste
manhosamente
pensamento
pálpebras descem
escorrega
violento cérebro
lápis
reage
ventilador
pálpebras correm
sopra
olho ao trabalho.
espirros.
lá fora
árvores
refrescam uma
rua vazia.
lá fora céu azul
termina em
morros azuis
e, certamente, a tarde vem
um córrego o chefe passa quantas
a brisa
corre lá fora não existe. horas?
refresca.
por entre pedras
lisas e lodosas.
quantas dores?
meia hora? esticar pernas
quantas horas? a luz é sempre
o corpo grudento a luz invariável devagar
equilibra ideias. neste dia artificial. espichar braços
vigilante.
vinte minutos
para a sua hora? quantas horas
quantas horas?
sorriso pálido para a liberdade?
olhos vermelhos
salgado de suor.
olheiras.
14. tirei do trabalho a emoção
do dia horas vendidas
da vida o cansaço
e pude ver
o que me dói
e quem me fere.
o ferrão
e dente que me sangram.
vivi noites e feriados
e já me acostumara
com minhas mãos
e meu cérebro vendidos.
entendi ausência de conforto
e dinheiro curto
e me revoltei resignado
até que facilidade
de aumento extra
negado,
me pôs de novo
rugindo
15. CASA GRANDE:
Não gosto desta casa
paredes altas
belas salas
não gosto
me causa mal
cansa
faz doente
lago + jardins + árvores
e o peixe colorido
em seu nado quadrado
Oprime
O peitO
minha colunA.
não.
16. []
[ ] Quem pela senzala passa
[ ] leva consigo marca
[ ] que muito fala
[ ] lava
[ ] rala
[ ] origem que não cala.
[]
[ ] Se na casa grande,
[ ] é mudo:
[ ] impossível ao tom da sala;
[ ] faminto:
[ ] indomáveis garfo e faca;
[ ] mãos e pés desajeitam,
[ ] dançam num corte,
[ ] recorte na corte,
[ ] incapazes.
[]
[ ] Se na cozinha resvala,
[ ] inútil fala
[ ] presença invisível
[ ] pigarro e cala.
[]
[ ] Quem pela senzala passa
[ ] traz consigo chaga
[ ] por mais que faça
[ ] nada apaga.
[]
[ ] Pra casa grande
[ ] traz budum
[ ] catinga
[ ] desconfiança na sala.
[]
[ ] Quem pela senzala
[ ] passa
[ ] é não confiável
[ ] ao povo da sala.
17. Tamara Kamenszain
Tamara Kamenszain nasceu em Buenos de amor y otros ensayos sobre poesía e La boca del testimonio.
Aires, Argentina. É poeta e ensaísta. Seus livros foram traduzidos para o inglês, francês,
Pertence, junto com Arturo Carrera e Nestor português e alemão.
Perlongher, a geração de poetas dos anos setenta. É considerada uma das vozes que influenciaram as
Entre seus livros de poesia estão De este lado del novas gerações de poetas
Mediterráneo, Los No, La Casa Grande, Vida de living, O poema Tango Bar foi traduzido por Ronaldo
Tango Bar, Solos y solas e La novela de la poesía, os livros Cagiano
de ensaio El texto silencioso, La edad de la poesía, Historias
18. Tango Bar
(...)
A simpatia dele pelo diabo
é o ninho de minha antipatia.
Assusta-me e aborrece-me
tudo o que está mal
no bom sentido
da palavra. Pecado,
pecado seria então
seguir a ele tão longe
quando jura e perjura
que estamos perto.
Mamãe, papai, fui
com este mauzinho crioulo
e na cruz de seu poncho
me dei por perdida.
Será possível que em minha religião
sozinha
atrás de um homem
Eu sempre sinta frio?
19. (...)
Outra vez no bar das mulheres
tomo o cálice do esquecimento
“O tango é macho”
cantam minhas amigas
mas como o tango
elas são musas tristes
ou vêm
como bonecas murchas.
E a julgar por mim
(tão esquecida de mim!)
não sei se nós agora
formamos uma orquestra
de senhoritas
ou se são eles os rapazes de antes
os que agora tocam de ouvido
nosso repertório
enquanto nós
antes de esgotar o copo
já cantávamos mal.
Tradução Ronaldo Cagiano
20. Claudio Sesín
Claudio Luis Sesín nasceu em 9 de junho de El libro de los poemas casuales (2008) este em edição bilíngue
1959 em Villa Dolores, Velle Viejo, cresceu e passou sua espanhol-português
infância em Pomán, província de Catamarca – Argentina. Palabras Sencillas (2010).
Publicou entre outros: Foi colaborador da revista Ideas para uma cultura popular e
La Barbárie (1993) integrou a redação do periódico cultural El Croponopio - do
El círculo de fuego (1997) Movimiento de Escritores por la Liberación – MEL.
Cuaresma
La hora que aquí es, no está en el tiempo.
La brisa,
esa mendiga de tan suaves gestos
se parece a una idea ofreciendo cariño.
Y al fin, es la memoria,
la última armonía de una canción lejana
perdiéndose en la noche
de un carnaval
estremecido.
21. Carnavalearte
Tomamos los suspiros de la noche
a la hora que cumple su presencia
y le ponemos luz para que encienda
nuestra penetración a las tinieblas.
Artistas trashumantes y traslúcidos,
llegan al puerto casual de los sin rumbo.
Hermosas
como novias corriendo en los pasillos,
ebrias hembras felices
de túnicas livianas y cabelleras frescas,
celebrarán las armonías y los acordes
que sólo traen piel,
de cuando el barro mezcla a sangre y fuego,
ese argumento de eternidad y hombre.
22. Furtivas y cenizas, ligeras, insolentes,
acuden a esta fiesta de torbellinas almas,
las mismas locas locas, de cuando loca es santo,
y redimen sus vidas, ahora celebradas.
Aquí los laberintos son presurosas risas y suspiros.
Aquí cruzamos los umbrales de cálidas maderas,
y en aguas transparentes, blanca estrella,
y en los cuerpos luciérnagas,
y en los labios la sed que hace encender al cielo,
y en el aire ese aroma
que esparce y enrojece la idea del instinto.
Siempre es feliz la piel lanzada en torbellinos,
que abraza las cadencias y las libera,
agua marina, almendra y chocolate,
en el aire, en la lengua, en los amplios momentos,
en los pequeños.
23. ¿Qué latitud aguarda
esa dulzura turbia que precede al orgasmo?
¿Qué humo se consume al pensamiento
en un fulgor de gloria sin fracasos?
Signos del cielo en invisibles trazas,
sangre apretada al flujo y tremolar de los sentidos,
canción urbana a nombre de un buen vino.
Golpeamos los cinceles en las piedras
que un día rotarán al infinito.
La mirada es de Dios sobre los cuerpos.
24. Mirar el Mundo
Nuestro otoño es capaz
de enmudecer tejados, vertederos,
las afueras del hombre,
las extensiones puras y solemnes,
en donde no podremos llegar a los secretos
sin mirar los insólitos, fugaces y lejanos,
cómplices de belleza del mundo prometido
por las desposeídas constelaciones huérfanas.
Agua en la brisa
Ni quebrado, ni caído. Solo.
En el atardecer, soy árbol
que descansa esperando las lluvias
en tierras duras y de sol violento.
He vuelto de mi amor por las desgracias.
No hay remordimientos,
el humo es ciudadano y sin creencias.
Sigo esperando ese silencio amable
que sin reproches cruzaré la niebla.
25. A Media Voz
Sueña la noche un sol en la llanura
para que el miedo tenga precipicio,
y cubra con el manto de lo limpio
este débil sostén de la cordura.
Pero retumban furias y locuras,
como un río entroncando sus crecientes,
excitando las guerras de la mente
por los extraños campos de la luna.
Por las nieblas del mundo emocionada,
el alma se despide del pasado,
y florece en mi suerte, a mi costado,
esta canción de sombras y de brumas.
Soy el que a media muerte fue tocado
y a media voz enciende la penumbra.
Claudio Sesín
Catamarca - AR
26. Emanuel Medeiros
Emanuel Medeiros Vieira nasceu em da Fundação Pedroso Horta. Redator de discursos
Florianópolis, SC, em 1945. Formado em Direito parlamentares, foi membro do conselho editorial do
pela UFRGS (1969), foi cineclubista, professor, jornal “Movimento”, e correspondente em SC do
crítico de cinema, editor, vendedor de livros, semanário “Opinião”. É detentor de diversos
jornalista e funcionário público. Ativo militante da prêmios literários nacionais. Tem 17 livros
política estudantil, foi dirigente do IEPES, embrião publicados.
Homem diante do mar
Homem diante do mar
(instância interrogativa).
Precária caravela.
E finita: a vida
Trapiche:
o homem só contempla
(desembarcado).
No estatuto da memória:
ele se interroga, nunca mais a ação.
No porto: a rapariga rosada estendeu um lenço.
Limo: foram-se a juventude, o trapiche, a rapariga, o lenço.
(Mátria: sou apenas um homem diante do mar.)
Desterro: instante convertido em sempre.
O homem desembarcado só pode viver de memória: diante do mar.
27. Atlântico
Imperfeitos,
singraram o Atlântico,
mãos ansiosas, mapeando novas terras,
bússolas afetivas,
acalentando sonhos distantes,
peles queimadas,
gosto de sal na boca
(tanto mar, tanto mar),
febre, malária, fibra e pranto.
28. Na cadeira de balanço –
depositário da memória da tribo,
contemplo a caravela de madeira, pai, mãe, tio
violinista,
um agregado louco,
penso no Atlântico,
velas ao vento,
astrolábios,
à beira do poço do passado,
que não passa nunca,
imanente no presente.
Mas proclamo – celebrante –
“terra à vista, terra à vista”.
(Alvíssaras!)
Emanuel Medeiros
Brasília - DF
29. Antônio Perin
Antônio Perin nasceu em Cataguases, onde vive e escreve. Com sua
Itaobim, migrou para Cataguases, onde virou poesia, colabora e participa de nossas
baiano, viveu alguns anos no Rio, morou um publicações aqui no Chicos regularmente.
bom tempo em São Paulo, e voltou a residir em
O silêncio de meu pai
As palavras que eu preciso
estão entaladas na garganta
de meu pai
como sementes na cal
elas não brotarão
não são palavras escritas
nunca vou ler
foram confinadas
na boleia do caminhão
esquecidas pelas estradas
algumas, talvez, depositadas
no ventre de minha mãe
sua maior paixão.
Seria eu uma destas palavras?
30. A imortalidade do tecelão
No caminho da tecelagem
pedras queimavam os pés
no tempo, que não sonhei.
Entre anestésicos e dores
vejo nas mesmas pedras
arderem pés de fiandeiros
rumo à mesma tecelagem.
Em filas de corredores
andei para os exames
Na sala cirúrgica onde
o escuro é todo branco
vi, sem apelação um juiz
de branco me condenar
Neste negro mundo branco
meu grito morre no silêncio
o ar é puro mas é mecânico
sopra de um tubo verde.
Daqui te vejo no quintal
pendurar minha imagem
tecida no branco algodão
branqueada na sanitária
para o desbote final.
Antônio Perin
Cataguases MG
31. Ronaldo Cagiano
Noite em Cataguases
Noite em Cataguases.
Da Ponte Velha a inscrição de Virgílio batizando o metal.
Fachada desbotada da Casa Rama.
Ancoradouro no areeiro da Rodoviária. Flamboyants.
Da torre em forma de ogiva da Matriz de Santa Rita
Os olhos da escuridão denunciam
Que outros pecados implodirão o confessionário.
Pouca gente sem pressa, tantos homens dissimulados.
A algaravia nos trailers de cachorro quente: convulsão dos estômagos.
Um motociclista calunia a cidade que dorme!
Calmaria, meia-noite em ponto. O trem cargueiro deflora a insípida madrugada.
Cataguases sem festa dos silêncios das ausências.
Das imensas crateras na alma de seu povo.
Que não enxerga, nunca, homiziado nos becos solitários,
A tristeza hiperbólica dos operários imunes aos barcos que deslizam sobre o Pomba.
Cataguases, senzala sem promessa: das ilhas dos espíritos desertos.
E da feiura caótica e trevosa das enchentes
Ronaldo Cagiano
São Paulo - SP
32. Emerson Teixeira Cardoso
Dois minicontos de mistério
Boa noite estranho
Abriu a porta subitamente com uma sensação tirou do bolso a lanterna e acionou o botão da
de medo, pavor. Um olhar mais apurado o fez luz seguindo uma trilha em direção à lagoa
distinguir de sua janela um reflexo qualquer na amarela, morada misteriosa do horrível
lagoa: incrível! Onde já havia visto aquele monstro.
rosto, pensou. Ato contínuo, fechou a janela. Mas que grande surpresa! Quando se
A porta que já estava entreaberta fechou aproximou da lagoa não viu nada além do seu
também dando duas voltas na chave. próprio rosto que dentro da água se refletia e
Já dentro do quarto apanhou o machado. dentro da noite escura também refletida na
Agora, decidido a desvendar aquele mistério, água, a lua.
33. O cavaleiro da chuva
Preparava-me para sair, quando campo de guerra. Eu levava a capa e o fatídico
ouvi os tambores do tempo anunciando chuva. guarda-chuva o que me parecia o bastante para
Imediatamente dei meia volta procurando encarar a fera que rugia e soltava vermelhas
abrigo e armamento adequado para enfrentar o labaredas.
inimigo terrível: a intempérie. Durante todo o tempo que durou a luta
Armei-me de um capote, espécie de senti-me um verdadeiro cavaleiro medieval
vestimenta larga e obsoleta, que além de com armadura e tudo. Levava a lança e o
impermeável cobria-me até os tornozelos – nos escudo para o duelo com o dragão líquido e
sapatos, providenciais galochas. Não dispensei gelado, que expelia golfadas gigantescas de
nem o último acessório de meu estranho água pelas narinas
aparato, portentoso guarda-chuva. A batalha foi terrível: minha lança
Assim devidamente equipado lancei-me à brilhava a cada explosão dos trovões e ao
aventura. Devia buscar nos ares a face do reflexo dos raios. Repito: foi uma grande
terrível gigante – mas, ai de mim! O malvado peleja. O tempo parecia não ter fim, mas como
não aparecia. um Cavaleiro da Ordem do Rei fui o grande
Largas passadas levou-me a adentrar o vencedor e o inimigo debandou soltando
prédio do cinema e ali durante toda a sessão de rugidos de dor.
um filme tudo o que eu podia ver eram cortinas O céu apareceu estrelado. Olhei para o
se agitando. O monstro lá fora rugindo, alto e dei um grito de vitória depois da luta
rugindo. mortal que travei.
Findo o evento restava-me cruel
alternativa: permanecer ali no recinto ou sair
para enfrentar o adversário no seu próprio
Emerson Teixeira Cardoso
Cataguases –MG
34. João Antônio
João Antônio Ferreira Filho, nascido em São no Brasil. O nome do conto é Um Dia no Cais,
Paulo em 27 de janeiro de 1937, além de jornalista, é retratando o cotidiano dos trabalhadores do Porto de
considerado um intérprete do submundo e um bom Santos. Ainda fez parte da equipe da revista
malandro da escrita e da literatura. Sua linguagem Manchete, trabalhou no O Pasquim e outros órgãos
rápida, suas frases curtas, lhe deram o título de criação de imprensa que se opunham à ditadura militar.
do conto reportagem. Suas obras retratam pessoas Estranhamente, nos últimos anos da década de 60,
marginalizadas, o proletariado, prostitutas e as figuras João muda radicalmente de vida. Sai do emprego,
da periferia das grandes metrópoles. arrebenta seus cartões de banco, vende o carro e
De origem humilde, veio de uma família de divorcia-se da mulher e passa a se vestir de forma
comerciantes suburbanos de São Paulo. Teve que simples e despojada. Aparentemente influenciado pela
aceitar diversos sub-empregos antes de ficar famoso literatura beat, na qual os autores viajavam e
com o lançamento de seu mais lido livro de contos, relatavam suas experiências, João rumou por cidades
Malagueta, Perus e Bacanaço, publicado em 1963. A obra brasileiras em 1978 e foi para Europa em 1985. Dois
foi um sucesso entre os críticos e o povão, que via sua anos depois, após ganhar uma bolsa de estudos,
cara descrita nas páginas do livro, mas o interessante mudou-se para a Alemanha e lá ficou até 89. Faleceu
sobre esta obra é a maneira como foi feita. no Rio de Janeiro em 31 de outubro de 1996.
Em 1960 o livro teve os originais queimados em um
incêndio ocorrido na casa da família de João Antônio. Principais obras: Malagueta, Perus e Bacanaço (1963),
O escritor e sua família perderam quase tudo, mas, Leão-de-chácara (1975), Malhação do Judas carioca (1975),
crente de que precisava de dinheiro, João isolou-se Casa de Loucos (1976), Lambões de Caçarola (Trabalhadores
dentro da Biblioteca Municipal Mário de Andrade e do Brasil!) (1977), Calvário e Porres do Pingente Afonso
reescreveu todo o livro de cabeça. Henriques de Lima Barreto (1977), Ô Copacabana! (1978),
Com o sucesso de Malagueta, Perus e Bacanaço, João Dedo-duro (1982), Meninão do caixote (coletânea) (1984),
tornou-se jornalista e trabalhou no Jornal do Brasil. Abraçado ao meu rancor (1986), Zicartola e que tudo mais vá
Participou da fundação de uma das revistas mais pro inferno! (1991), Guardador (1992), Um herói sem
importante de sua época, a Revista Realidade, onde paradeiro (1993), Patuléia (1996), ete vezes rua (1996),
publicou o conto-reportagem pioneiro do jornalismo Dama do Encantado (1996).
35. A um palmo acima dos joelhos
Você não brigue comigo, pequena. é dos outros e em gaiola não vive. Dizem, os
E nem fique, sonsa, me encabulando com pardais também cantam. E só cantam
essa sedução de olhos mansos. Eu lhe quando estão em turma.
conheço, dengosa. Nada a fazer com a pardalada. Deixá-los.
Que você nem era nascida. Então. Cumprem a sina que lhes é dada nas tardes e
Este calor derreia a gente, é fevereiro, nas manhãs. Pardal nem anda; pula, pulula,
começo de fevereiro no Rio, aguentamos mal andejo e voador, gorrião no mundo, os tenho
e mal, pegajosos. E este suor. visto por aí tudo, pardal urbano, sempre,
Mariuska, não fique boba. Não se ponha, inquieto, intrujão, metido, saído, mal
toda ciúme, fula, por aqui, me rodeando e a lambido, bicão enfiando-se no que não é dele.
medo, me palpando, esse modo inseguro de E um, Mariuska, pode viver muitos anos,
agoniada. Seus olhos suplicantes saiam de aqui, alhures, em Amsterdam, na China.
mim. Não queira agarrar os meus joelhos Gatunam e, aí, gatunar é o modo deles.
com a boca para, depois, pousar a cabeça Nem me pergunte, de olhos, olhando para
neles. eles e, após, indagando os meus olhos, para
Não me pergunte com os olhos. Só estou que servem o pardal e o gato. Bem. Eles
perdido em mim, criatura, olhando a linha do servem para nada e, também por isso, são
horizonte. música do mundo.
Nada, pequena, bobagem, é um nada. Ou é Você me dança esses seus olhos vivos, que
muito. espetam e só faltam dizer.
Faz pouco, lá em cima, no apartamento, você Digamos. Há de ser sempre, sabe-se lá, um
fez a cena, feia. À toa, à toa. trabalho garimpeiro o de descobrir por que
Abri a porta do terraço. Olhar alguma coisa uma pessoa, tantas idas e vindas após, e tudo
nos varais e nas plantas, este verão tosta e passa tão depressa, acaba só.
castiga, este solaço... dei com os pardais
ciscando feito galinhas sequiosas ou meio ***
ladrões, rápidos, numa agitação procurando Ouça. Tenho cada lembrança lá do morro e
alguma aguinha caída daquela com que você nem era nascida. A vida lá no alto não
reguei as flores. era ruim nada.
Pulavam, precisados. Sofriam o calorão, De pequeno, tropicava em alguns pedaços
vinham, gatunos, bicos abertos puxando a maus. Nada que me lembre do morro me
respiração. Então, uma alegria grande me chega sem os gostos. Será difícil esquecer o
entrou no peito. Eles são pequenos. E eu os gosto de fel de chá para os rins, chá de
saudei: carqueja empurrado goela abaixo pelas mãos
- Ô, pequenininho, você veio me visitar? de minha bisavó Júlia, apelidada Lula pela
Voluntariosa, saída, ficou fera, ardida. Já lhe gente miúda, penca de bisnetos amulatados,
falei, o ciúme mata um. Rói e remói: é um- mequetrefes, molecadinha impossível. Vó
dois, verruma depressinha. Um-dois. Fique Lula, escura e geniosa, cabelos lisos
maneira. Nenhum sofrimento inútil. Estou mamelucos, quem sabe, na mocidade,
tratando com os meus fantasmas, me deixe. sensual e com certeza supersticiosa e de
Você, indócil, aguarde. Coração ciumoso, arroubos imprevisíveis, acostumada
atrapalha, sua. mandona. Tratava filhos, uns trezes, netos e,
Ansiosa, tenha modos. depois, a bisnetaiada pela homeopatia. Os
Qu’eu saiba ninguém dá jeito de domesticar doentes não tomassem café.
um pardal, bicho avoado, entrão, toma o que Não brilhei, fui razoável.
36. Havia o campo de malha, o de bocha e o cariocas no morro e, na empolgação deles,
campinho de futebol, onde virei centro- embarcávamos, mordidos.
médio. Não, corria um tempo em que não Não éramos tão urbanos. Para final, fazíamos
existia meia-armador. Era centro-médio. paçoca no pilão, nossos curaus e pamonhas
Chutava com os dois pés, cobria o meio de doces e não salgados como se diziam que
campo, recuava ou avançava conforme o eram os do Norte… a paçoca do morro, veja
andado do jogo e os mais atilados na posição, lá, levava carne pilada, o charque, o jabá.
houvesse brecha, cavavam espaço e, Essa, de carne-seca, era daqui. Da ponta da
pontudos, faziam gol. Eu, destro. orelha.
De assim, para compensar, me treinei Batíamos o café em grão comprado nos
repetido e solitário, e tanto, na perna armazéns na estrada de ferro. Tínhamos o
esquerda que, na sequência, pendia para cuscuz paulista, com palmito, ovo, camarão
abrir, armar jogo, lançador por aquele flanco. ou sardinha ou galinha, meio caiçara e
Bem. admirado, falado. Invejado, sabíamos.
Quando a luz elétrica nos veio, o morro teve Salgado, era primor, distinto do baiano, que é
dois rádios por onde a vida do mundo, lá de branco e doce. E do pernambucano - outra
fora, barulhava e chegava. Um, o rádio coisa. Bom mais ainda com manteiga, da
enorme da venda de dona Otília e de seu salgada. Havendo manteiga-de-garrafa, se
Augusto; outro, menor e simplezinho, da lambiam os beiços e se comia até ficar triste.
minha tia-avó Elisa, carioca, asseada, um Fazíamos a carne-seca com mandioca cozida
capricho na organização. Os dois quase desmanchando, e não frita.
novidadeiros trazendo notícias, humor, E não fique aí boba, pequena. Que tínhamos
radionovela, Jerônimo, o herói do sertão, forno em que fazíamos pão de milho, broa de
Nhô Totico, a PRK 30, mel em chuvada de fubá, biscoito de araruta, bolos de farinha de
riso, que a gente alcançava do Rio de Janeiro, trigo, assados em dia de festa. Havia
Maria Joaquina Dobradiça da Porta Baixa, cabritadas no morro e Vó Lula, prevenida,
portuguesa, espeloteada, casca-grossa e tão alma de quituteira, pedia aos santos nas
mangada. Terminavam os números musicais, vésperas paz para esses dias. Cabritada era
uma voz ajuntava: entra o disco das palmas. risco.
Desabava o auditório e desabávamos no Poder, podia escorregar, destrambelhar para
morro. Aqueles dois animadores foram malsucedida armando brigas, ingresias,
primeiros; devo ter aprendido com eles que, desfeitas, mexidas, confusões. Fuá. Podia dar
de algum jeito, é preciso rir de si mesmo. bode num forrobodó-de-cuia, rebordosa
Irradiação dos jogos de futebol, paixão. Febre arrevesada, uma cabritada. Então, devagar
mosqueteira, que o morro era, maioria com o andar, que o santo é de barro. O
inflamada, corintiano roxo e sabia, de cor e seguro morreu de velho, mas a prudência foi
salteado a escalação preta e branca, que ao enterro. Rogar aos santos, assim, era de
terminava na linha de ataque: Cláudio, lei.
Luisinho, Baltazar, Carbone e Mário. Ou Doce de marmelo, de goiaba, de laranja, de
Souzinha, dependendo, na extrema esquerda. abóbora, de cidra, de limão, de coco,
Dessa linha atacante, cada minúcia sutil e bananadas, ameixadas de ameixa amarela e
muito singular, cada um de nós, molecadinha não da preta fumegavam no fogão a lenha e
do morro, falaria uma semana. E, depois, Vó Lula, pontificou plena, principal.
mais uma. Esclarecia. Para a cozinha era preciso mão.
O que nos chegava. E vinham pela música as Ninguém se gabasse diante dela, que mãos
novas de outras terras, baianas, nordestinas, cutubas tinha ela, mãos de rainha, dona,
cariocas, nos fazendo imaginar, enfeitiçados, adonada, sabedora.
meio aos suspiros, mordidos de curiosidade,
uma porção de vidas diferentes, nossas
desconhecidas e mais rurais. Havia baianos e
37. José Antonio Pereira
Olha eu na foto
Ontem me vi numa foto de jornal. Está pouco de despeito. No final da festa dos
com inveja? Estava em uma badaladíssima festa. cinquenta anos de casamento dos Bitencourt.
Sem ressentimentos! Não é preconceito não. Procurando um champanhe, entrei na dispensa.
Mas, gente chique é outra coisa. Olhe bem para Vi Nanete de quatro e Armando corcoveando-a
a foto. Só gente bonita. Parece que a beleza é a com o desembaraço de amantes bastante
maior parceira da riqueza. íntimos.
Festa já varando pela madrugada. Eu lá firme. No casamento da filha dos Castro Lima, outra
Presta atenção! Quem ainda está impecável? família de potentados, parecia-me que os
Alinhadíssimo. Claro que é eu. Estilo herdeiros de toda a riqueza da cidade estavam
despojado, sem relógio, cabelos bem aparados e presentes. Um horror! Quem não pertence ao
corpo ereto. meio, está ferrado, vira mobília, é invisível.
Entreouvia o diretor de um banco, tentando ser Herdeiros são terríveis. Deitam e rolam, são
próximo da senhora da casa, ironizava os cruéis com os que não pertencem a sua casta.
extorsivos juros cobrados. Nunca entre em uma Enquanto bebem, fazem piadas vis e grosseiras
agencia bancária. Não passe nem mesmo em com seus empregados e todos os de baixo. O
sua calçada. E eu continuava andando entre os Lula então? Onde já se viu? Um presidente,
convidados. pobre, retirante cabeça chata e operário. Isto é
Era sempre assim em recepções de famílias um absurdo! Só num país fodido como este tal
tradicionais e riquíssimas, eu vestido em meu barbaridade acontece!
impecável linho braspérola, engomado, lavado e Jussara, mulata bonita e atraente trabalha para a
passado todos os dias. Na casa dos Bitencourt, família Castro Lima. Assediada e abusada pelo
local da festa na foto, Dona Dalva não permitia patrão, é mantida no emprego sobre ameaças
perfumes, era proibido. Ela, com requinte, batia dele. É constantemente humilhada e perseguida
palmas compassadas, para chamar os serviçais. pela patroa. Nesta festa, Jussara e outras
Tinha o topete de mandar o Armando, seu mulheres que trabalhavam no evento, sofreram o
mordomo, cheirar todos os empregados para ter diabo nas mãos dos herdeiros já entupidos de
certeza que sua proibição era respeitada. Botava cocaína.
reparo até no aparado das unhas. Na cozinha, Como sei de tudo isto? Olhe novamente para a
não sei se por ressentimento, Nanete, uma foto. Ainda não me achou? Ninguém me nota.
ajudante dizia: Armando é vinte anos, mais Sei que em todo lugar é assim, sou invisível.
novo que a patroa. É o bichinho de estimação Olhe bem, no canto direito da foto, ao lado do
favorito dela. Cheia de veneno: Principalmente diretor do banco. Isto! Este mesmo! Por que o
nas ausências do Doutor Bitencourt. Vai aí um espanto. Eu sou o garçom.
38. Rubens Shirassu Jr.
Ilustrador e escritor Rubens Shirassu Jr paulista Peixe (crônicas, 2004) e Muito Macho na Cozinha
de Presidente Prudente é autor de entre outros de e Outras Crônicas (2010)e Novas de Macho na
Cobra de Vidro (poemas,2012) Religar às Origens Cozinha e Outros Ingredientes II (Clube de
(artigos e ensaios, 2011); Mais Molho e Menos Autores, 2012).
Fora da hora
Enquanto o bafo do mormaço bate Só sei que havia um sol escaldante e, apesar do
em meu rosto, ouvi apenas o canto de um galo calor sufocante, que embaralhava meus
rompendo o silêncio preguiçoso da tarde. Nem pensamentos misturando-os a um som que
sei de onde viera, só sei apenas que estava passa desapercebido no turbilhão de
próximo de minha casa. É apenas um galo e seu pensamentos, de pernas e veículos correndo
canto que trazia um clima brejeiro, de sopro que giram a máquina registradora do mundo
vida e, isso dá uma alegria e tem uma beleza de da civilização. Em meio aos recursos visuais
vida simples, natural e ingênua, sem das placas e fachadas, aos múltiplos sons, a
compromisso. É um momento apenas. cena se perdia.
39. Será que alguém nota o galo que canta numa agosto, tivesse dançado ateu no ar. Depois, aos
tarde, em plena zona norte da cidade? poucos, foi se acendendo um carmesim, de
Como uma figura campestre e exótica em cigarro de palha de milho, e sob ele o mar de
contraste com a selva de cimento, aço, plástico concreto espalhou o cheiro de roça. Imaginei o
e antenas. Esse nosso personagem foge da calor das famílias na varanda, arrumando
coreografia da sinfonia concreta, porque traz casamento e a vida alheia, do jeito de tribunal
uma natureza morta em nosso horizonte sujo, do júri, prestando contas no confessionário do
embaçado pela fuligem dos escapamentos e padre da paróquia, deixavam o galo, orgulhoso
chaminés, talvez, seja um cantor para e soberano no terreiro e galinheiro.
despertar... Por que aflora dentro de mim, uma Mas o bem-estar leve, quase suave, como se eu
imagem adormecida, em sono profundo, quem tivesse, de repente, despertado de um transe
sabe, anunciando um verde esperança? profundo, trouxe-me um pensamento que
Eu tentava fixar o galo com os olhos do aprendi com os antigos vizinhos e coleguinhas
espírito, ao jogo de intensa luz. Pode ser um de escola: os galos cantam entre às 4 ou 5 da
momento feliz, e em si mesmo talvez fosse, e madrugada, na alvorada de um novo dia,
aquele singelo quadro da natureza morta me sinalizando a hora do retireiro ordenhar as
fez bem, mas uma fina, indefinível angústia me vacas no curral, enfim, os compromissos da
vem misturada com esse fenômeno sonoro e gente do campo. Será que o desrespeito do
fotográfico. homem com a natureza onde ocorreram as
Devo estar saudoso de minha infância na Vila mudanças nas estações do ano, o excesso de
Marina e no Parque São Judas Tadeu, quando asfalto que interferiu no escoamento da chuva,
o galo cantou às 15h50. Mas deixei minha o desmatamento das florestas, a poluição dos
pouca alegria para mirar com um vago sorriso rios, a migração de aves e animais à área
perdido no espaço. Era um instante de graça e urbana, alterou o relógio biológico dos galos
felicidade. Um momento de raro prazer sonoro. entre outras espécies da fauna? Um garoto dirá
Senti a necessidade de mostrar aquele fato raro que o galo ficou desconfigurado! O sentimento
às pessoas que prezo: “Escutem, o galo cantar a era de que aquele momento luminoso e poético
essa hora...” Mas, o prazer daquela audição me soa como um alerta. Dentro de minha cabeça
bastava. Porém, refleti que mostrar por houve um torvelinho de milhões de
mostrar ou, quem sabe, para repartir aquele pensamentos misturados aos tons pretos,
instante de beleza como quem reparte um doce, cinzas de tristeza e perplexidade expostos nesse
como sinal de estima e de simplicidade; em quadro impressionista.
sinal de comunhão ou, talvez, para disfarçar o
mal-estar com o vazio da vida atual.
Aquele som tão vivo era todo solto, de meus
ouvidos, uma palpitação no coração. Eu queria
me aproximar, aquele galináceo que anda sem
rumo e seu canto, passando entre a cortina
branca que realçam os objetos em cima da
mesa e a parede creme. Mas, a barra do dia
entre a cortina era uma vaga música dos
tempos do chão de terra, a cerca de balaústre e Rubens Shirassu Junior
a mornidão da rotina dos dias interrompida Presidente Prudente –SP
pelas boiadas guiadas pelo tropeiro, o aroma
característico de fumo de rolo parado no ar
misturava a poeira amarelada que pairava no
ar.
Na segunda-feira de carnaval, havia nuvens
leves, espalhadas em várias direções, como se
durante a noite o vento seco, semelhante a
40. Antônio Jaime
Produtores de fitas
Gente mais antiga no meio mudando-se depois para o Rio. Luxento, tipo
cinematográfico chamava filme de fita, como se contratar Ângela Maria ou Carlos Galhardo para
sabe. E cinema, a sala de projeção, era casa. Daí cantarem no aniversário da filha, em sua casa.
que, na filial da Embrafilme em São Paulo, ouvi Quando morreu, o médico contou à filha que
o gerente falando ao telefone: “A fita dos tinha uma frase tatuada no piru: Tutto per te.
Trapalhões dobra em Ribeirão? Nas duas No Rio, as produtoras às vezes nem tinham
casas?”. Por lei, se uma fita atingia a freqüência água de beber, já em Sampa rolavam queijos e
média numa casa, reprisava na semana seguinte vinhos, por aí, depois das reuniões. Ou um café
e por isso A noviça rebelde ficou 53 semanas em caprichado no Maksoud Plaza. Gostaria de ter
cartaz no Cine Palácio, no Rio. Já O anunciador, conhecido lá o produtor Primo Carbonari, nome
uma semaninha, no Paissandu. de mafioso, mas fiquei com Aníbal Massaini,
Produtor que chamava filme de fita, só Enzo Barone, Assunção Hernandes e César
conheci Mario Falaschi. Ele e seu irmão tinham Mêmolo Jr. Este, puto com o fracasso de O
um hotel na Itália, onde se hospedava uma Homem do Pau Brasil, de Joaquim Pedro de
família paulistana. Gostou de Brasilina, uma das Andrade, e Ato de Violência, de Eduardo
moças daquela família, veio para São Paulo e Escorel, decidiu nunca mais produzir cinema, só
casou-se com ela. E com a leva de italianos que comerciais de TV.
vieram fazer a Vera Cruz, entrou para o cinema,
41. Mas cumpriu o doloroso dever de ressarcir com Dona Lucíola (mãe de Lucy), a “Vovó
a Embrafita (êpa!) por aqueles rombos. O Donalda”, porque fazendeira em Goiás, sócia do
normal era rolarem a dívida, contando com um Unibanco, por aí.
sucesso futuro. E nem todos tinham dinheiro Mais uma: na première de Bye Bye Brasil,
vivo ou o caráter de Mêmolo. no Rian, chegou de surpresa um amigo
Em geral, todo cineasta abre uma americano de Barreto. Gente até no chão, o jeito
produtora, para facilitar as coisas. Daí alguns era desalojar alguém e ele escolheu uma mulher
folclóricos, como um tal William Cobbett. Parece desacompanhada: “A senhora é penetra? Cadê o
pseudônimo, mas era seu nome, mesmo, e convite?”. Betty Faria ouviu e acudiu: “Quê isso,
cearense. Ganhou uma boa grana distribuindo Luix Carlox, é a Josefina, peça dexculpax”.
aqueles filmes russos que vimos pré-64 e Ninguém menos que Josefina Jordan, ícone da
produzia uns abacaxis, tentando vendê-los como sociedade carioca. Ibrahim, Zózimo e outros
arte. Mesmo gente de mais prestígio, como os deitariam na sopa e o cinema tupiniquim, já tão
Farias, não escapava das más línguas. Diziam sem cartaz, pois é.
que Roberto ia à missa todo santo dia, pagando
pecado, por viver em concubinato e, nos fins-de-
semana, toda a gang se reunia em Friburgo, para
a missa-mor, com a matriarca da família. Me dei
bem com eles, disseram que em 30 anos de
produtora ninguém entendeu melhor o que
queriam dizer. Obrigado.
Agora, a barretada. Deu para perceber que
são muito francos e não de todo elegantes. Estive
Antônio Jaime Soares
“n” vezes na casa deles e, numa delas, subi de Cataguases –MG
elevador com Lucy, Luiz Carlos e uma vizinha,
que levava um ramo de flores. Lucy tapou o
nariz: “Que cheiro horrível”. E Luiz Carlos:
“Cheiro de jasmim”. E ela: “Cheiro de defunto,
isso, sim”. Na cara da mulher, fiquei com
vergonha por eles. Comigo, tudo bem. Só estive
uma vez com Bruno, outra com Fábio e várias
42. José Vecchi
José Vecchi de Carvalho nasceu em Um dos autores de A Casa da Rua Alferes e
Cataguases, atualmente mora na cidade de outras crônicas. Com suas crônicas e contos é
Viçosa, aqui mesmo na Zona da Mata Mineira. dos colaboradores do Chicos desde suas
primeiras edições.
Anatomia das pernas
Inesquecíveis pernas. Tão presentes em obstinado contador de histórias que
meus pensamentos e visões que vez por Zemeckis fez correr por um país inteiro,
outra causam-me tamanha desordem, ao ultrapassando tempos e fronteiras.
ponto de eu me deixar levar por Pernas que zombaram da insensibilidade
devaneios, urdindo esdrúxulas e dos preconceitos.
comparações. Hoje mesmo, após o almoço, sem
Dias atrás, num pequeno espaço mais nem menos, lembrei-me das pernas
de tempo concedido involuntariamente inesquecíveis do Mané Garrincha: tortas,
pelo descuido do chefe da seção onde desengonçadas, pareciam se chocar uma
trabalho, vieram-me à memória as pernas na outra, mas com uma habilidade
de Tom Hanks, digo, de Forrest Gump, o invejável.
43. Os dribles desconcertantes deixavam tendões, ligamentos e meniscos, mas pela
perplexos não só os adversários, mas harmonia entre as partes que provocam
também, os companheiros, o treinador e em mim a impossibilidade de vê-las ou
todos os torcedores presentes nos imaginá-las separadas. Separá-las seria
estádios. Pernas mágicas que pareciam rasurar uma prova documental, pichar
brincar com a bola, com o jogo, com as um monumento, cortar cenas de um
pessoas; pareciam rir de tudo e de todos, filme, coibir a beleza.
não com desprezo ou superioridade, mas Quando a dona era uma menina de
com um jeito ingênuo e moleque; era um doze ou treze anos, tais pernas não me
bailar ilusionista que confundia o mundo foram tão impressionantes. O músculo
num piscar de olhos e arrancava suspiros vasto lateral, o reto, o bíceps da coxa, o
e aplausos nas arquibancadas. gastrocnêmio e o tibial anterior não eram
No entanto, essas famosas pernas suficientes para encobrir fêmures e
vêm-me à tona sem o menor nexo com as rótulas, tíbias e fíbulas. Voltei a vê-las,
que, de fato, me impressionaram ao porém, quando sua dona ia já com seus
ponto de eu ter que despejar no vinte e cinco anos. Levei um susto
inconfidente papel minhas perturbadoras enorme e tive que me conter para não
sensações. Omito o nome da dona não deixar reveladas as minhas reações.
por alguma razão que alguém possa dizer Por baixo de uma saia bege que ia
que seja óbvia, aliás, não existe nada de pouco abaixo do quadril, passaram por
óbvio na omissão de um juízo diante de mim duas belas e desconcertantes pernas,
uma obra-prima. Omito porque tenho a atravessaram a rua no sentido da calçada
impressão de ver essas pernas com outras em que eu me encontrava procurando um
donas; e também, por alimentar a ilusão endereço que só voltei a procurar dias
de guardar só para mim a deliciosa depois. Mesmo assim, ao voltar ao local,
sensação que tive. Aproveitando a seção no mesmo horário de antes, procurei de
das justificativas, peço desculpas aos um lado a outro da rua, buscando a visão
estudiosos da anatomia humana, mas estonteante que tive dias atrás. A cor da
trato aqui das pernas e das coxas sem pele, a firmeza delicada dos músculos, os
separação; unidas não só pelo joelho, com contornos, as medidas... tudo
sua belíssima articulação gínglima, seus desmedidamente belo e atraente.
44. Pernas lisas e certas, que
proporcionavam à dona um caminhar
leve e fascinante, salientando a
exuberância e o menear compassado das
nádegas. Em mim provocaram algo como
uma hipnose, com a cor num tom moreno
indescritível e inigualável. Além disso,
com um movimento que era uma
coreografia sensual, perfeita. Confesso
que perdi o fôlego e o rumo, como perco
aqui as palavras para qualificar tamanha
beleza.
Um dia desses, tais pernas
elegantemente cruzadas sob a negligência
de um índigo fizeram-me ver a dona que
não era. E depois daquele dia tem sido
sempre assim. Procuro nas menores
oportunidades e penso vê-las aqui e ali.
Pernas lascivas, mágicas, ágeis que
parecem me driblar; parecem rir de mim;
percorrem e atravessam meus territórios,
meus sonhos e insônias, enfim, dias e
José Vecchi
Viçosa –MG
dias, deixando como rastro minhas
divagações e intumescências. Mas no real,
no palpável, desaparecem. Passam por
mim como se eu fosse um zagueiro
ineficiente. Acho que por isso, busco nas
comparações, mesmo nas mais
desconexas, uma forma de prendê-las.
Inesquecíveis pernas. Tão presentes em
meus pensamentos e visões...
45. Ferréz
Ferréz, nome artístico de Reginaldo Ferreira da Ferréz já publicou diversos livros, entre
Silva, é um romancista, contista e poeta. Ligado a eles Fortaleza da Desilusão (1997), Capão
corrente considerada literatura marginal por ser Pecado (2001), Amanhecer Esmeralda (2005)
desenvolvida na periferia das grandes cidades e e Ninguém É Inocente em São Paulo (2006). É
tratar de temas relacionados a este universo. fundador do 1DaSul, grupo interessado em
Dotado de linguagem influenciada pela variante promover eventos e ações culturais na região do
linguística usada na periferia de São Paulo, Capão Redondo, ligados ao movimento hip-hop.
‘Quem não pode falar escreve’
Nascido e criado na zona sul, quando pequeno
dizia que queria ser engenheiro; o pai achava a
profissão bonita, o filho mal conseguiu
terminar o segundo colegial, tinha que ajudar
nas despesas de casa. Namorou com a mesma
menina por dois anos, mas ela não viu futuro
– a casa dos pais dele, de dois cômodos, não
dava pra subir laje. Somente seis meses depois
de terminar o curso, Marcos conseguiu JB Neto/Estadão
emprego numa contabilidade. Chão ensanguentado em bar do Campo Limpo,
palco da primeira chacina do ano
46. Depois de trabalhar por 23 anos como Polícia comunitária, um termo bonito, mas o
empregada doméstica a tia de Marcos havia sapato estava na cabeça de Marcos, a mão
comprado um carro, e graças a Marcos ia direita na água suja que descia pelo canto do
deixar de pegar ônibus toda sexta para voltar calçada.
do serviço, onde passava toda a semana A mãe de Marcos vendo a cena chegou perto e
limpando a casa e cozinhando. Marcos seria convenceu os policiais, explicando a origem do
seu motorista. Em contrapartida, pagou o carro. Marcos se levantou, a cabeça suja de
curso para o sobrinho, e deixava o carro a terra, os olhares dos vizinhos. Não teve ódio,
semana toda com ele. Os vizinhos nem sequer ficou revoltado. Chegou no seu
comentavam que o rapaz, agora andando de barraco, olhou para a camisa toda suja, uma das
social e com o carro, teria um futuro na vida, três que tinha para ir trabalhar, ajoelhou em
que finalmente alguém daquela comunidade frente à estátua de Nossa Senhora Aparecida e
havia vencido. agradeceu por estar vivo.
Marcos parou naquela sexta-feira no Três horas depois disso, 15 homens estavam
mercadinho. Sempre sorridente, sendo revistados num bar no Jardim Rosana. Os
cumprimentou todos e foi comprar uma cera. policiais chegaram de repente, miraram os
Deixaria o carro brilhando como a tia gostava, revólveres, nem o dono do bar escapou da
para ir buscá-la. revista. Terminaram o enquadro, entraram nas
Entrou no carro com o pacote, ligou na Antena viaturas e disseram:
1, sua rádio preferida, as músicas o deixavam – Boa noite, fiquem com Deus.
calmo no intenso trânsito. Colocou o cinto de As conversas foram retomadas no bar, um deles
segurança e viu a viatura da Polícia Militar falava sobre os ganhadores da Mega Sena, outro
parar. Logo foi pego pelo colarinho e arrastado falou que ia tomar a saideira, a patroa em casa
para fora do carro. Tentou falar, mas a voz do já devia estar nervosa, um que voltava do
policial militar sobrepôs a sua. banheiro ria dos que haviam sido abordados,
– Ladrão de carro filho da puta. dessa ele tinha escapado.
– O carro é da minha tia –, tentava falar Os minutos se passaram, mais duas cervejas
enquanto outro policial jogou ele atrás do foram pedidas, a conversa agora foi para o
carro e pisou em sua cabeça. Marcos olhava Corinthians abalando o Japão. Mais alguns
para o sapato, estilo social que nem o seu, algo minutos, a rua quieta, só as conversas no bar.
pensado no novo uniforme da PM para dar Foi quando se fez a matemática perversa, 14
aspecto de menos hostilidade, como antes homens encapuzados, olhos arregalados, uma
tinha a antiga farda e o coturno. cadeira cai no chão,
47. a vizinha ouve barulhos, deve ser bomba de vida. A pressão pra fazer algo é grande, nem
comemoração. Catorze braços atiram em sempre externa, mas o dono da padaria
quem estava dentro do bar, nove são baleados, pergunta se não vamos fazer nada, a mãe de um
sete morrem, a conversa acaba. O cheiro de amigo me para na rua e diz:
pólvora domina todo o ambiente, o dono do – Não somos animais, não somos ratos para
bar se arrasta com um ferimento na perna. morrer assim.
Quando chamei meus amigos no sábado de O estudante que tem que voltar para casa após
manhã para encaixotar livros e fazer a pintura 11 da noite não sabe como vai fazer, a mãe fica
na ONG Interferência, não imaginávamos que acordada todos os dias com medo de o filho não
horas depois estaríamos num cemitério. regressar; o cozinheiro do restaurante fino
O coveiro chega perto do Evandro e diz: trabalha a noite toda, a mulher pediu para ele
– Você aqui de novo, cara! É a terceira vez que dormir por lá para evitar o pior. A conversa saiu
te vejo essa semana. do meio comum, um enterro cheio de gente
Evandro fica sem graça, vai comprar uma igual, sofredora, onde a conversa principal é
água, realmente não queria voltar ali, mais um como vamos sair de casa de hoje em diante.
amigo para enterrar. Pressionar politicamente parecia ser o caminho,
O muro do lado do bar onde aconteceu a mas tal deputado num atende, tal vereador tá de
primeira chacina do ano estava pichado. férias, não se convive com quem toma decisões,
Quem não pode falar escreve. "Unidos estão todos longe daqui, quem mora aqui sabe o
venceremos as batalhas da vida". Versos do tamanho do risco, mas muitos também
rapper que acabou de lançar o primeiro CD, assistiram O Pianista.
depois de muitos anos de batalha, o mesmo Nunca em minha existência aqui tinha visto
rapaz que tem um avô chamado Lino, uma tantas pessoas comuns revoltadas, esse não é o
esposa chamada Raiane, um filho chamado mesmo País que anunciam na televisão. O que
Ryan e uma mãe chamada Lilian. ninguém pensa é que, infelizmente, isso tem
Um verso de esperança de um jovem que não mão dupla, porque quem sai pro crime sai mais
sabia que por estar num bar sua vida estaria violento.
atrelada à primeira chacina do ano. O morador de periferia hoje se sente
"Nunca desista nem se sinta inferior, seja desamparado, tem sua liberdade estrangulada,
forte, seja nobre, um guerreiro lutador". Letra cerceada. Sem Sesc, centro cultural ou casa de
do grupo de rap do DJ Lah, também presente cultura nas favelas, a antessala de estar de todo
no bar, o último lugar em que estaria com mundo é o bar.
48. O cidadão comum que levanta quando é simpatizantes da Rota, a tropa de elite da PM
escuro, que cuida do ensino da elite e não tem paulista) a gente tá com medo também.
uma escola de qualidade para seu filho, que Eu entendo o repórter, de uma chacina para
faz a comida deles, cuida de sua segurança, e outra, da leste pra sul. Olho sua mochila, calça
não tem segurança onde mora, não quer morte larga, cara de cansado, na faculdade não
– nem de farda nem de bombeta. falaram que ia ser assim.
A segurança individual está em segundo plano A solução agora não é só a investigação, mas a
perante a morte sistemática de inocentes. emergência é pela não repetição. A questão
Quem vai gritar se as vítimas forem do crime? policial também é cultural, desde a abordagem
Quem vai meter a cara? Foram 24 chacinas, e até o jeito que tratam a comunidade e, por
se só algumas das 80 vítimas têm passagem, a consequência, são tratados.
tendência é menosprezar o ocorrido, fica Quantas vidas podem ser salvas se procurarmos
legitimado o ato. soluções reais, não tapa-buracos. Ajudaria se o
A periferia da década de 1980 teve grandes discurso não fosse vago, se a certeza da
mudanças. No caso das chacinas, o modus impunidade não fosse tão presente. Um
operandi mudou. A periferia, com suas casas discurso articulado do secretário de Segurança
na maioria de madeira, tinha pavor dos grupos pode ser o início, real empenho na solução das
chamados de pés de pato. Hoje, associam mortes pode brecar algo que pode tomar
essas ocorrências ao único representante do proporções irreversíveis.
Estado presente aqui, a Polícia Militar. É Saímos do Cemitério Jesuíta, calças largas,
proposital, oprimir sensação de terror, está bonés, frases das letras de rap na camisa, hoje
dando certo, as mães cabisbaixas, sete somos o tema das letras, a canção será mais
enterros, três da mesma rua, o filho chorando triste quando for ouvida, e quando íamos cruzar
na beira do caixão, o repórter que chama a a avenida, mais um enquadro, todo mundo na
gente no canto: parede.
– Pô, as pessoas acusam a imprensa, mas Um ônibus para, algumas pessoas que estavam
quando chego nas chacinas, vou fazer a no enterro descem, a polícia teme, o povo
matéria, a primeira coisa é ser abordado. A avança, um dos rappers está sendo revistado,
polícia pede meus documentos. Cara, depois um menino chega perto do policial, olha pro
do que aconteceu com o (André) Caramante alto, bem nos seus olhos, o policial nota os olhos
(repórter policial da Folha de S. Paulo que teve úmidos, o menino diz.
que sair do País após ser ameaçado por – Acabamos de vir do enterro, vocês não
respeitam nada?
49. Sebastião Nozza Bielli Lotti
O buraco
Abre a porta envidraçada da varanda e joga a andar em torno, e a profundidade, ao usar
uma interjeição de negro humor no espaço. um cabo de vassoura achado próximo ao latão.
Tão indignado com o buraco! Também parece procurar coisas jogadas por
Dois homens opacos, que cultivavam o alguém - todo mundo tem mania de jogar
hábito de fumar de cócoras, vieram com as coisas num buraco - e, quem sabe, o possível
picaretas e as pás. Cavaram o dito cujo e, após peixe imaginário na água da chuva? Até que o
filosofarem ( ou falavam de coisas técnicas?) tédio do buraco o engole e ele titubeia em sua
por uma tarde inteira em torno da enorme volta, felizmente, sem cair. Acordando para o
cavidade, bem próxima ao latão onde os dia luminoso, sai correndo atrás de novas
moradores da pequena rua depositam o lixo, emoções.
sumiram Um buraco, a princípio, é apenas uma
Uma semana, ele contava... Oito dias... E cavidade, mas, com o tempo, vai adquirindo
nada. Do alto do seu avarandado, procurava proporções que o aproximam de um elemento
entender. Toda manhã olhava o céu, tentando metafísico; improvável de se medir o tamanho.
desviar a atenção daquele estorvo, mas todo É um vácuo aparente, talvez um espaço vazio
buraco possui certo magnetismo e nem sempre cheio de incongruências. Ninguém caiu e
é necessário botar um aviso com letras quebrou a perna, ou um veículo descuidado
vermelhas; ao vê-lo pela primeira vez, o alerta resvalou por ele, enquanto buraco, contudo,
“cuidado” já se fixa na mente. era um buraco repleto de iminências.
A rua foi ficando mais barulhenta com os Da varanda, ele passou a falar alto para que
motoristas, que se atrapalhavam. O menino os vizinhos ouvissem, da precariedade do
olha o buraco como um acidente no cenário serviço público, a falta de respeito com os
onde costuma brincar e passa a pesquisar sua contribuintes: “Uma vergonha!”.
real dimensão: a circunferência, quando se põe
50. E o buraco metafísico e possivelmente A vizinha teve dengue e precisou se
perigoso, virou um buraco político. internar no hospital. Os carros, que se viam
Nenhuma informação sobre a necessidade obrigados a usar parte da calçada, devido ao
e o porquê da obra. As pessoas passavam e exíguo espaço nas laterais, com as precárias
coçavam a orelha. tábuas escorregadias protegendo as
Enquanto, da casa mais próxima, a mulher na escavações, passavam por momentos difíceis,
janela olhava com desdém: além do latão de precisando contar com a ajuda dos pedestres,
lixo que os gatos e os cães reviravam durante a até que um deles derrapou e acabou dentro do
noite - ela ficara indignada quando ali o enorme fosso. Foi preciso apelar para o
colocaram-, agora surgia mais esse elemento guincho e o motorista berrando no celular,
antiestético para atrapalhar a sua cotidiana ameaçou processar a prefeitura.
distração. Um dia, os homens voltaram. A A mulher que o acompanhava, com duas
esperança de que agora resolveriam de vez crianças em uniformes escolares, teve uma
aquela situação tornaram “os bons-dias” mais crise de nervos, ficando toda suja de lama. A
afáveis. vizinha da frente trouxe água com açúcar e o
Lendo o jornal na varanda, ela observava o camburão da PM parou na esquina. Os
terceiro operário, que não fumava de cócoras, policiais tentaram intimidar o homem que
andar até a extremidade da rua e voltar berrava. O guincho demorou a aparecer e o
silenciosamente, parar para conversar com os tumulto foi geral, com a rua cheia de
outros dois. Ele achou estranho porque o espectadores.
pessoal do caminhão do lixo e as mulheres da Ele já não lia mais o jornal na varanda e
limpeza que varriam a rua com as vassouras de evitava sair. As obras duraram quase três
bambu eram terrivelmente barulhentos. meses, mas, dias antes de completar o
Alguma coisa estava acontecendo... Passaram a segundo, ele arrumou a mochila e fugiu para
tarde inteira assim, confabulando. Começou a as montanhas.
chover e eles saíram.
Choveu a noite inteira. No dia seguinte, às
sete horas, voltaram e começaram a cavar
dentro do barro espesso. O buraco foi
crescendo lentamente por toda pequena rua
sem saída, em direção ao magro rio
apodrecido, onde, décadas atrás, nadava com
os sobrinhos.
As chuvas voltaram e se avolumaram,
Sebastião Nozza
deixando os moradores daquela área Bielli Lotti
preocupados com a possível enchente. Os Cataguases –MG
trabalhadores, de novo, se ausentaram,
retornando só três dias depois, quando a
estiagem parecia definitiva. Apenas os três
homens, com instrumentos rudimentares. E o
buraco, paulatinamente, ia se transformando
numa vala que virou um canal, quando as
chuvas voltaram. A lama amarela tornou a rua
intransitável. Os trabalhadores, de novo,
deram no pé, aguardando outra estiagem, que
não ocorria.
51. Ronaldo Cagiano
Os novos ases de Cataguases
Em recente artigo intitulado “Uma cidade de pioneiro de Humberto Mauro, responsáveis
escritores”, publicado no suplemento “Fim de pela definitiva posição de Cataguases como
Semana”, do jornal Valor Econômico, um dos cidade de efervescência intelectual e
mais lidos pela classe empresarial do país, o inclinações vanguardistas, que acabaram por
escritor conterrâneo Luiz Ruffato faz um projetar-se em outros campos, alcançando as
minucioso e fiel panorama dos nossos diversas linguagens.
movimentos literários, a partir da eclosão da Não é de hoje o assombro causado por esses
revista Verde (1927-1929). fenômenos culturais que de época em época
Sua análise ressalta a ousadia e importância da aqui pipocam, apesar de alguns períodos de
chama inicial acesa pelos jovens Rosario Fusco, ostracismo, uma espécie de reafirmação
Ascânio Lopes, Guilhermino Cesar, Francisco genética do DNA de uma intelligentsia que só
Inácio Peixoto, Camilo Soares, Fonte-Boa, aconteceria às margens do Pomba. Nesse
Oswaldo Abritta, Martins Mendes e Enrique de sentido, não foi inusitado nem hiperbólico o
Resende. Ao mesmo tempo assinala a espanto que na década de 20 despertamos no
convergência de outras manifestações artísticas resto Brasil, tendo levado Ribeiro Couto a uma
e culturais na esteira dos ventos estéticos perplexa constatação: “Todo o Brasil está
renovadores deflagrados com o cinema surpreso: existe Cataguases!”.
52. E hoje a reação não poderia ser outra, pois são um trabalho aglutinador ao intercambiar
tantos os nomes e as obras produzidas com autores nacionais e estrangeiros; Sônia Bonzi,
qualidade de lá para cá. Não é demais registrar Antônio Jaime Soares e Washington
os momentos que justificam a consciência Magalhães, cronistas de primeira. Abre-se um
endossada por Ruffato de que tudo aquilo parêntesis para uma nova voz que surge nesse
“parece ter se transformado num celeiro de ambiente criativo: a do ficcionista Diogo
talentos”. Aquela semeadura que produziu Andrade que, embora não tenha livros
colheitas de primeira linha (Lina Tâmega, publicados, vem demonstrando grande
Francisco Marcelo Cabral, Henrique Silveira, as potencial em textos publicados na imprensa
irmãs Maria do Carmo e Celina Ferreira, local e na internet, um talento em ascensão.
Ronaldo Werneck, a família Branco (Joaquim, Em outras regiões pontificam as obras de
Aquiles e P. J. Ribeiro), Fernando Cesário - outros cataguasenses: Marcos Bagno, um dos
autor que nada deve aos grandes ficcionistas mais importantes lingüistas do País,
nacionais, pela alta voltagem estética e pelo reconhecido internacionalmente; Marcelo
compromisso ético de sua escritura -, Márcia Benini e Mauro Sérgio Fernandes (em
Carrano, Plínio Filho, Sebastião Carvalho e Brasília), Delson Gonçalves Ferreira, Luiz
Lecy Delfim) desaguou numa recente e Carlos Abritta, Flausina Silva e Laly Cataguases
promissora geração, autores que independente (em Belo Horizonte), Tadeu Costa, José Santos
da faixa etária em que começaram a produzir e Eltânia André (em São Paulo) e Fernando
literatura, vêm se constituindo num novo Abritta (em Juiz de Fora). Um time sem igual.
patamar na bibliografia cataguasense atual, Mais do que celebrar essa pujante realidade, é
muitos deles radicados em outras cidades. necessário tornar público aos leitores e inserir
Esses ases contemporâneos trazem hálito novo nos programas didáticos das escolas o estudo
ao cenário de nossas letras, com destaque para desses autores e obras, não como numa reserva
Marcos Vinícius Ferreira de Oliveira e de mercado para a grade didático-pedagógica,
Leonardo de Paula Campos, duas vozes mas como possibilidade críticoreflexiva, para
distintas e seguramente exponenciais uma compreensão dessa tradição a partir do
nesses novos tempos, pela qualidade e universo criativo de cada um deles.
maturidade de suas obras; José Antonio
Pereira e Emerson Teixeira Cardoso, este Publicado originalmente no “Cataguases” em 09/11/2012
desde os tempos da revista ‘Trem Azul” e agora
com a “Chicos Cataletras”, vêm publicando Ronaldo Cagiano
São Paulo - SP
poemas e textos ficcionais e críticos, realizando
53. José Antonio Pereira
Um olhar
enviesado sobre Vicente
reunimos para assistir algum filme de seu
Faz algum tempo que estou querendo fantástico acervo. Livros e filmes, são algumas
escrever algumas linhas sobre o último de nossas paixões e das mais antigas.
romance de Fernando Cesário, mesmo porque Vicente, o personagem, faz parte de uma
me pareceu ao término da leitura, que Olhos geração que viveu o início do golpe militar lá
vesgos de Maquiavel não é livro para leituras em 64, ainda um menino em sua escola.
apressadas. Fiquei algum tempo deglutindo Adulto volta ao seu antigo ginásio, como
algumas passagens e ruminando minhas professor e, a ditadura ainda teima, persiste
memórias. Afinal me senti, e de certa forma fui, nos seus mais de vinte anos de existência.
contemporâneo do narrador. O autoritarismo molda ao seu feitio aqueles
Fernando é amigo de velha data. Estudamos que vergam com facilidade a espinha, já os que
nas mesmas escolas públicas de Cataguases; não se deixam dobrar são perseguidos até por
crianças, frequentávamos a igrejinha da vila, bedéis, simplórios acólitos de um poder
conduzidos por nossas mães, fervorosas estabelecido pelo medo. Sua escola, lá atrás,
católicas. Também fomos vizinhos e depois de foi responsável por uma formação mais
muitos anos de andanças e mudanças, mais humanista, incompatível com a doutrina da
minhas do que dele, novamente, voltamos a ditadura, que se fiava o tempo todo no terror e
nos tornar vizinhos. Regularmente nos na delação.
54. Os ditadores e seus títeres trataram logo de Além da amizade, o que torna estas linhas ainda um
reformar o ensino, parecendo que o único tanto quanto tendenciosas, é ter encontrado entre
objetivo era afastá-lo do livre pensamento. Uma os personagens, um que se inspira em Antônio
das inadaptações do novo professor deriva desta Pereira, meu velho, o que me deixou bastante feliz.
incompatibilidade entre as duas escolas. Seu
amadurecimento em tempos de angústias
ideológicas, violências físicas e morais,
transformam sua vida em uma agonia existencial
sem fim. A censura, o estado policialesco torna sua
pequena cidade um lugar vazio, oco, os relaciona-
mentos artificializam-se, mentem uma lealdade
inexistente. Como sempre, em meio às ditaduras,
ou por medo ou por conveniência, muitos não
titubeiam em covardemente, cometer traições. É
neste pantanoso ambiente, de uma escola onde do
diretor ao bedel campeia a delação que vai tentar
trabalhar Vicente.
Em meio a isto surge uma aluna adolescente que
transforma sua vida em uma montanha russa de
sensações e ações. Professores vivem no fio da
navalha; adultos, vivem cercados de adolescentes
“transbordando” hormônios, descobrindo seus
corpos e latejando sexualidade. Imagino não ser
nada fácil, controlar o despertar das “paixões” e
suas próprias excitações. Já Vicente, quem sabe por
ter tido Nabokov como uma das suas leituras
adolescente, deixou-se levar por esta Lolita,
querendo que se revelasse uma machadiana Capitu, José Antonio Pereira
Cataguases - MG
numa fantasia que subvertesse aquele tempo de
obscuridade e frustrações, com a beleza irradiada
por aquela mulher-menina.
Fernando constrói o romance como cineasta na
moviola, faz cortes que tira o leitor de um rumo
previsível, atiçando-o a reflexões. Curtos trechos de
notícias reais vão balizando a temporalidade da
narrativa. É um romance instigante.