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Chicos
               N. 37
          Fevereiro 2013

 e-zine de literatura e ideias
     de Cataguases – MG
Capa




                                                                      Um dedo de prosa

                                                               Esta é a edição número 37 de 28 de fevereiro de 2013.

                                                               Devemos desculpas ao Cunha de Leiradella, na última edição

                                                        cometemos um erro imperdoável. Erramos o título de sua
                                                        colaboração, o correto é Memorial em tons de azul, quem não leu
        De Gabriel Franco sobre foto de Vicente Costa
                                                        retorne ao blog e dê uma olhada em nosso número 36.
                                                                Um dos jornalões paulistas publicou um inédito do João
Editores
Emerson Teixeira Cardoso                                Antônio, repartimos com vocês o conto.
José Antonio Pereira                                            Apresentamos Badr Shakir Al Sayyab um poeta iraquiano.
                                                                  Quem estreia por aqui é o artista plástico Sebastião Nozza
Colaboradores desta edição
                                                        Bielli Lotti, o Slotti
Antônio Jaime                                                     Trazemos aos nossos leitores Ferréz, escritor paulistano
Antônio Perin
                                                        que tem como matéria prima a periferia da nossa maior metrópole.
Claudio Sesín
Emanuel Medeiros                                                  Como defendemos o ensino da língua espanhola em nossas
Fernando Abritta                                        escolas, publicamos, em espanhol, a poesia de Claudio Sesín -
Ferréz
                                                        grande poeta e amigo - lá de Catamarca na Argentina.
José Vecchi
Ronaldo Cagiano                                                 Reaparecem também aqui Emanuel Medeiros e José Vecchi
Rubens Shirassu Jr.
Sebastião Nozza Bielli Lotti
                                                                  A edição está recheada de boa prosa e ótima poesia.

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cataletras.chicos@gmail.com                                                      Uma boa leitura para todos.

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                                                                                                                               1
Badr Shakir Al Sayyab



            Badr Shakir Al Sayyab nasceu em 25 de        postura comunista e inspira vários de seus poemas
dezembro de 1926 na aldeia de Jaykour (distrito de       mais famosos.
Abu Al Khasseb na província de Al Basrah) no sul do      Seus poemas, A prostituta cega e Armas e crianças de
Iraque. Jaykour é a paixão da vida do poeta. 1926 é      1954, revelam o poeta maduro. Em 1960 publica: A
o ano em que fixam a fron-teira com a Turquia, perto     canção da chuva onde apresenta poemas escritos desde
da queda e divisão do Império Turco entre os aliados     1952 e representa o melhor de sua obra poética. No
da Primeira Guerra. O Iraque é tutelado pelos            início de 1961, viaja de Bagdá para Basra, onde seu
ingleses.                                                terceiro filho nasce, ocasião em que a doença paralisa
Sua mãe morre durante o parto de uma irmã que            sua perna esquerda. Em sua busca desesperada por
nasce morta. O pai, casa-se novamente e deixa os         uma cura começa uma longa jornada que se torna o
filhos com o avô. A poesia, surge em Basra, para         seu calvário até a morte: viagens ao Kuwait, Bagdá,
onde mudara com sua avó materna para cursar o            Londres, Paris, tratamentos modernos e hospitais,
ensino médio. Transfere-se para Bagdá em 1944,           curandeiros, contatos com seitas religiosas...
onde entra na Faculdade e frequenta o curso de           Investigando todas possibilidades e sempre por trás,
Língua e Literatura Árabe. Em Bagdá, desenvolveu         sua poesia, testemunhando sua luta desesperada.
duas qualidades de sua personalidade, que eram            Suas últimas obras: do templo rebaixado (1962) e A
visíveis desde a sua infância e adolescência: sua        Casa dos Escravos (1963) testemunham a sua morte
ideologia de compromisso social e a postura poética.     lenta, dúvidas sobre a morte, sua incerteza em relação
Filia-se ao Partido Comunista do Iraque. Luta pela       à vida. Deprimido e entregue ao seu destino, volta
retirada das tropas inglesas do Iraque e por uma         para o Iraque em 1963.         Agravada sua saúde, é
resposta mundial aos assentamentos maciços de            transferido para o Kuwait em 1964, morrendo em 24
judeus na Palestina.         Devido à sua atividade      de dezembro de 1964. No dia seguinte é enterrado
revolucionária é preso várias vezes até ser expulso em   em Basra, no mesmo dia, publica-se sua última
1946 da Faculdade. Readmitido mais tarde muda de         obra As persianas da filha do Marquês , onde plasma
especialidade e em 1948 forma-se em Inglês e             com intensidade assustadora seu terror, seu vazio e
Literatura. Por razões políticas é obrigado a deixar o   ansiedade. Agora, sua poesia é puro existencialismo.
Iraque. O exílio, leva-o a pensar sua ideologia e


                                                                                                                  2
O poeta maldito
a Charles Baudelaire



                 Você, leva à luta tua espada enferrujada,

                 agita-a na mão quase queimando o céu

                 pelo teu sangue inflamado e iluminado

                 querendo rasgar o ar.

                 Reúne-se às mulheres

                 a uma mulher cujos lábios são de sangue sobre o gelo

                 seu corpo enganosamente ingênuo

                 uma víbora caminhando, sobre almofadas no leito...

                 Não queres

                 abrir as clarabóias para que entre a luz,

                 para não sentir o que é vida.

                 O Oriente alça ante teus olhos os véus,

                 quase abraças a beleza junto ao trono de Deus,

                 quase a vês

                 reluzir em uma nuvem de fragrância e luz.

                 Vês o mamilo de um seio que acende as estrelas

                 com seu rubor ...




                                                                        3
Os efeitos que saem

de uma tumba, arrasta a nuvem de fumaça,

em sua sombra dorme um pobre fugitivo

um príncipe cercado por jarros de bebidas e escravos,

sua grandiosa morada em ruínas

é uma das ilhas de coral,

mar que purifica Lesbos com sal.

Teu espírito o bebe do eco ao abismo

como Safo herdarás um fogo nas veias,

mas não abraçará a ti e teu sono eterno

como quem abraça o seu espectro debruçado em uma janela.

Fogo de Narciso! Tântalo e os frutos!

Se diria que a indolente e lânguida África

(seus caudalosos rios, os atabaques,

suas densas florestas de sombras e chuvas,

sua seca umidade... a lua)

se envolvera com uma mulher que perdeu a honra,

mamando dela veneno e chamas

e sobre ela pingarás tua estranha poção ...




                                                           4
Se diria que da nuvem de fumaça na noite

                    te alçarás, entre um mundo que estendem o faiscar do ouro

                    e um mundo de imaginação e pensamentos,

                    de um muro de embriaguez,

                    onde tua sombra aconchegara sem ferir a humanidade.

                    Entrei pelo teu pecaminoso livro

                    no jardim de sangue que arde com as flores,

                    bebi o néctar de suas letras,

                    seios de uma loba nas estepes,

                    seu leite é fúria

                    e sua sombra fecundidade.

                    Submergi, nas ondas que me golpeavam

                    atirando-me de uma márgem para outra margem.

                    Levei do seu abismo a madrepérola do castigo

                    Eu levo a ti.

                    Estenda-me as mãos!

                    Afaste as pedras e a terra!


Basra, 24/03/1962




                                                                    Versão de Antônio Perin




                                                                                              5
Janela de Wafiqa


A janela de Wafiqa na aldeia

ébria, domina o espaço

como a Galiléia espera caminhar,

espera Jesus. Dispersa suas paisagens.

Ícaro, roça o sol

com penas de águia. Sente-se livre.

Ícaro, pega-o, o horizonte

o atira até as profundezas, à sepultura.

Janela de Wafiqa, oh, árvore!

Respirem na escuridão crepuscular

os olhos que junto a ti esperam.



Espreitam a flor da maçã,

Buwayb é um hino

e o vento devolve

as melodias da água sobre as folhas.




                                           6
Wafiqa olha penalizada

das profundezas do túmulo e espera:

passar o murmúrio do rio

a sombra que ondula qual sino

a alvorada de uma festa,

assoviar qual sopro nas sementes.

O vento devolve

as melodias da água. É a chuva.

E o sol gargalha entre as folhas.

És janela rindo no brilho?

Ou porta que se abre na parede

para fugir pelas asas da fragrância

um espírito que anseia pela luz?



Oh rota para ascender ao coração!

Imagens de amizade e amor!

Caminho que sobe ao Senhor!

Se não fosse por ti não viria da aldeia ofegante.

No vento um perfume

pelas ondas do rio nos arrulha e nos canta.




                                                    7
Ulisses se vai com as ondas,

                                        o vento lembra ilhas esquecidas:

                                        "Da velhice, vento, livrai-nos!"



                                        O mundo abre sua janela

                                        a partir desta janela azul

                                        torna-se uno, torna-se seus espinhos

                                        flores de perfume delicado.



                                        Uma janela como se estivesse no Líbano,

                                        Uma janela como se estivesse na Índia,

                                         sonhos de uma menina no Japão

                                        como Wafiqa sonho no sepulcro

                                        com raios verdes e trovões.

                                        A janela deWafiqa na aldeia

                                        ébria, domina o espaço

                                        como a Galileia sonha caminhar

                                        sonha com Jesus.

                                        Ardem suas paisagens.

             Wafiqa - Parente e companheira de brincadeiras do poeta em sua infância.
Poemas de: O Templo Submergido 1962
                                                                                        Versão de Antônio Perin




                                                                                                                  8
Fernando Abritta
  O nó górdio (recortes)


   entre o ato e o fato

       Existe
                 entre o ato
                    e o fato
                               existe
  entre o ato       e o fato   ex iste
   entre o ato        eo fat existe o    Eof
   entre o ato
      e o fato
                  Existir
o relógio de ponto
              olhos arregalados
                que nada vêem
                coração dispara
              todos os músculos
           trabalham desordenados
                  desesperado
          cérebro pergunta as horas
            soma tempo de viagem
           confere hora do coletivo
           diminui minutos do café
         confere roupas documentos
               braços se cansam
                 dependurados
                 corpo se choca
                a muitos outros
                  com a freada
                  ouvido tolera
                   xingatório
                 pernas correm
                    pesadas
              mãos na alavanca


                    E
odiado estrondo
do ponto batido
me acorda para menos um dia

de que me valem
estas horas
se minha filha
está presa em uma escola
onde aprende a ficar sozinha
sem chorar
se meu filho chora
no ouvido de quem nem conheço
se minha mulher estica na feira
meu salário
se o que aqui faço
não consigo ter.
na fila
     conversa encurta
        tempo perdido
ritmado pelo barulho
   do relógio de ponto
                na fila
    conversa comenta
          corpo doido
      enquanto espera
             a comida
              na mesa
       conversa ajuda
    engolir sem sentir
arroz feito sem amor
suor derrete
          corpo
       em calor
    mão cola no
          papel.
                            bravamente
      lá fora sol.
                             olho resiste
                        manhosamente
     pensamento
                     pálpebras descem
       escorrega
                       violento cérebro
            lápis
                                   reage
      ventilador
                     pálpebras correm
           sopra
                      olho ao trabalho.
        espirros.

          lá fora
         árvores
 refrescam uma
      rua vazia.
 lá fora céu azul
      termina em
    morros azuis
   e, certamente,                                          a tarde vem
      um córrego          o chefe passa          quantas
                                                                 a brisa
             corre   lá fora não existe.          horas?
                                                               refresca.
por entre pedras
  lisas e lodosas.




                                                 quantas dores?
                         meia hora?               esticar pernas
        quantas horas? a luz é sempre
       o corpo grudento a luz invariável             devagar
       equilibra ideias. neste dia artificial.   espichar braços
                                                    vigilante.
                                 vinte minutos
                             para a sua hora?         quantas horas
       quantas horas?
                                sorriso pálido     para a liberdade?
       olhos vermelhos
                              salgado de suor.
       olheiras.
tirei do trabalho a emoção
do dia horas vendidas
da vida o cansaço
e pude ver
o que me dói
e quem me fere.

o ferrão
e dente que me sangram.

vivi noites e feriados
e já me acostumara
com minhas mãos
e meu cérebro vendidos.

entendi ausência de conforto
e dinheiro curto
e me revoltei resignado

até que facilidade
de aumento extra
negado,
me pôs de novo
rugindo
CASA GRANDE:
Não gosto desta casa
           paredes altas
           belas salas

não gosto

                       me causa mal
                         cansa
                       faz doente

       lago + jardins + árvores
       e    o peixe colorido
       em seu nado quadrado

Oprime
O peitO
minha colunA.

não.
[]
[ ] Quem pela senzala passa
[ ] leva consigo marca
[ ] que muito fala
[ ] lava
[ ] rala
[ ] origem que não cala.
[]
[ ] Se na casa grande,
[ ] é mudo:
[ ] impossível ao tom da sala;
[ ] faminto:
[ ] indomáveis garfo e faca;
[ ] mãos e pés desajeitam,
[ ] dançam num corte,
[ ] recorte na corte,
[ ] incapazes.
[]
[ ] Se na cozinha resvala,
[ ] inútil fala
[ ] presença invisível
[ ] pigarro e cala.
[]
[ ] Quem pela senzala passa
[ ] traz consigo chaga
[ ] por mais que faça
[ ] nada apaga.
[]
[ ] Pra casa grande
[ ] traz budum
[ ] catinga
[ ] desconfiança na sala.
[]
[ ] Quem pela senzala
[ ] passa
[ ] é não confiável
[ ] ao povo da sala.
Tamara Kamenszain


              Tamara Kamenszain nasceu em Buenos                 de amor y otros ensayos sobre poesía e La boca del testimonio.
Aires, Argentina. É poeta e ensaísta.                            Seus livros foram traduzidos para o inglês, francês,
Pertence, junto com Arturo Carrera e Nestor                      português e alemão.
Perlongher, a geração de poetas dos anos setenta.                É considerada uma das vozes que influenciaram as
Entre seus livros de poesia estão De este lado del               novas gerações de poetas
Mediterráneo, Los No, La Casa Grande, Vida de living,                  O poema Tango Bar foi traduzido por Ronaldo
Tango Bar, Solos y solas e La novela de la poesía, os livros     Cagiano
de ensaio El texto silencioso, La edad de la poesía, Historias
Tango Bar

(...)


        A simpatia dele pelo diabo

        é o ninho de minha antipatia.

        Assusta-me e aborrece-me

        tudo o que está mal

        no bom sentido

        da palavra. Pecado,

        pecado seria então

        seguir a ele tão longe

        quando jura e perjura

        que estamos perto.

        Mamãe, papai, fui

        com este mauzinho crioulo

        e na cruz de seu poncho

        me dei por perdida.

        Será possível que em minha religião

        sozinha

        atrás de um homem

        Eu sempre sinta frio?
(...)

        Outra vez no bar das mulheres

        tomo o cálice do esquecimento

        “O tango é macho”

        cantam minhas amigas

        mas como o tango

        elas são musas tristes

        ou vêm

        como bonecas murchas.

        E a julgar por mim

        (tão esquecida de mim!)

        não sei se nós agora

        formamos uma orquestra

                    de senhoritas

        ou se são eles os rapazes de antes

        os que agora tocam de ouvido

        nosso repertório

        enquanto nós

        antes de esgotar o copo

        já cantávamos mal.

                                             Tradução Ronaldo Cagiano
Claudio Sesín
                Claudio Luis Sesín nasceu em 9 de junho de    El libro de los poemas casuales (2008) este em edição bilíngue
1959 em Villa Dolores, Velle Viejo, cresceu e passou sua     espanhol-português
infância em Pomán, província de Catamarca – Argentina.       Palabras Sencillas (2010).
Publicou entre outros:                                       Foi colaborador da revista Ideas para uma cultura popular e
 La Barbárie (1993)                                          integrou a redação do periódico cultural El Croponopio - do
El círculo de fuego (1997)                                   Movimiento de Escritores por la Liberación – MEL.




                                                 Cuaresma

                                La hora que aquí es, no está en el tiempo.
                                La brisa,
                                esa mendiga de tan suaves gestos
                                se parece a una idea ofreciendo cariño.


                                Y al fin, es la memoria,
                                la última armonía de una canción lejana
                                perdiéndose en la noche
                                de un carnaval
                                estremecido.
Carnavalearte



Tomamos los suspiros de la noche
a la hora que cumple su presencia
y le ponemos luz para que encienda
nuestra penetración a las tinieblas.




Artistas trashumantes y traslúcidos,
llegan al puerto casual de los sin rumbo.




Hermosas
como novias corriendo en los pasillos,
ebrias hembras felices
de túnicas livianas y cabelleras frescas,
celebrarán las armonías y los acordes
que sólo traen piel,
de cuando el barro mezcla a sangre y fuego,
ese argumento de eternidad y hombre.
Furtivas y cenizas, ligeras, insolentes,
acuden a esta fiesta de torbellinas almas,
las mismas locas locas, de cuando loca es santo,
y redimen sus vidas, ahora celebradas.




Aquí los laberintos son presurosas risas y suspiros.
Aquí cruzamos los umbrales de cálidas maderas,
y en aguas transparentes, blanca estrella,
y en los cuerpos luciérnagas,
y en los labios la sed que hace encender al cielo,
y en el aire ese aroma
que esparce y enrojece la idea del instinto.




Siempre es feliz la piel lanzada en torbellinos,
que abraza las cadencias y las libera,
agua marina, almendra y chocolate,
en el aire, en la lengua, en los amplios momentos,
en los pequeños.
¿Qué latitud aguarda
esa dulzura turbia que precede al orgasmo?
¿Qué humo se consume al pensamiento
en un fulgor de gloria sin fracasos?


Signos del cielo en invisibles trazas,
sangre apretada al flujo y tremolar de los sentidos,
canción urbana a nombre de un buen vino.


Golpeamos los cinceles en las piedras
que un día rotarán al infinito.


La mirada es de Dios sobre los cuerpos.
Mirar el Mundo

Nuestro otoño es capaz
de enmudecer tejados, vertederos,
las afueras del hombre,
las extensiones puras y solemnes,
en donde no podremos llegar a los secretos
sin mirar los insólitos, fugaces y lejanos,
cómplices de belleza del mundo prometido
por las desposeídas constelaciones huérfanas.




      Agua en la brisa

Ni quebrado, ni caído. Solo.
En el atardecer, soy árbol
que descansa esperando las lluvias
en tierras duras y de sol violento.

He vuelto de mi amor por las desgracias.

No hay remordimientos,
el humo es ciudadano y sin creencias.
Sigo esperando ese silencio amable
que sin reproches cruzaré la niebla.
A Media Voz


Sueña la noche un sol en la llanura
para que el miedo tenga precipicio,
y cubra con el manto de lo limpio
este débil sostén de la cordura.

Pero retumban furias y locuras,
como un río entroncando sus crecientes,
excitando las guerras de la mente
por los extraños campos de la luna.

Por las nieblas del mundo emocionada,
el alma se despide del pasado,
y florece en mi suerte, a mi costado,
esta canción de sombras y de brumas.
Soy el que a media muerte fue tocado
y a media voz enciende la penumbra.




                                            Claudio Sesín
                                          Catamarca - AR
Emanuel Medeiros
               Emanuel Medeiros Vieira nasceu em       da Fundação Pedroso Horta. Redator de discursos
Florianópolis, SC, em 1945. Formado em Direito         parlamentares, foi membro do conselho editorial do
pela UFRGS (1969), foi cineclubista, professor,        jornal “Movimento”, e correspondente em SC do
crítico de cinema, editor, vendedor de livros,         semanário “Opinião”. É detentor de diversos
jornalista e funcionário público. Ativo militante da   prêmios   literários   nacionais.   Tem   17   livros
política estudantil, foi dirigente do IEPES, embrião   publicados.




                          Homem diante do mar
                      Homem diante do mar
                      (instância interrogativa).
                      Precária caravela.
                      E finita: a vida

                      Trapiche:
                      o homem só contempla
                      (desembarcado).

                      No estatuto da memória:
                      ele se interroga, nunca mais a ação.

                      No porto: a rapariga rosada estendeu um lenço.
                      Limo: foram-se a juventude, o trapiche, a rapariga, o lenço.

                      (Mátria: sou apenas um homem diante do mar.)

                      Desterro: instante convertido em sempre.

                      O homem desembarcado só pode viver de memória: diante do mar.
Atlântico

      Imperfeitos,

singraram o Atlântico,

mãos ansiosas, mapeando novas terras,

bússolas afetivas,

acalentando sonhos distantes,

peles queimadas,

gosto de sal na boca

(tanto mar, tanto mar),

febre, malária, fibra e pranto.
Na cadeira de balanço –

depositário da memória da tribo,

contemplo a caravela de madeira, pai, mãe, tio

violinista,

um agregado louco,

penso no Atlântico,

velas ao vento,

astrolábios,

à beira do poço do passado,

que não passa nunca,

imanente no presente.



Mas proclamo – celebrante –

“terra à vista, terra à vista”.

(Alvíssaras!)




                                                 Emanuel Medeiros
                                                     Brasília - DF
Antônio Perin
             Antônio    Perin   nasceu    em     Cataguases, onde vive e escreve. Com sua
Itaobim, migrou para Cataguases, onde virou      poesia,   colabora   e   participa   de    nossas
baiano, viveu alguns anos no Rio, morou um       publicações aqui no Chicos regularmente.
bom tempo em São Paulo, e voltou a residir em




                            O silêncio de meu pai


                         As palavras que eu preciso
                         estão entaladas na garganta
                                         de meu pai
                         como sementes na cal
                         elas não brotarão
                         não são palavras escritas
                         nunca vou ler
                         foram confinadas
                         na boleia do caminhão
                         esquecidas pelas estradas
                         algumas, talvez, depositadas
                         no ventre de minha mãe
                         sua maior paixão.


                         Seria eu uma destas palavras?
A imortalidade do tecelão
 No caminho da tecelagem
 pedras queimavam os pés
 no tempo, que não sonhei.


 Entre anestésicos e dores
 vejo nas mesmas pedras
 arderem pés de fiandeiros
 rumo à mesma tecelagem.


 Em filas de corredores
 andei para os exames
 Na sala cirúrgica onde
 o escuro é todo branco
 vi, sem apelação um juiz
 de branco me condenar
 Neste negro mundo branco
 meu grito morre no silêncio
 o ar é puro mas é mecânico
 sopra de um tubo verde.


 Daqui te vejo no quintal
 pendurar minha imagem
 tecida no branco algodão
 branqueada na sanitária
 para o desbote final.
                                 Antônio Perin
                               Cataguases MG
Ronaldo Cagiano
                    Noite em Cataguases

Noite em Cataguases.
Da Ponte Velha a inscrição de Virgílio batizando o metal.
Fachada desbotada da Casa Rama.
Ancoradouro no areeiro da Rodoviária. Flamboyants.
Da torre em forma de ogiva da Matriz de Santa Rita
Os olhos da escuridão denunciam
Que outros pecados implodirão o confessionário.


Pouca gente sem pressa, tantos homens dissimulados.
A algaravia nos trailers de cachorro quente: convulsão dos estômagos.
Um motociclista calunia a cidade que dorme!
Calmaria, meia-noite em ponto. O trem cargueiro deflora a insípida madrugada.


Cataguases sem festa dos silêncios das ausências.
Das imensas crateras na alma de seu povo.
Que não enxerga, nunca, homiziado nos becos solitários,
A tristeza hiperbólica dos operários imunes aos barcos que deslizam sobre o Pomba.
Cataguases, senzala sem promessa: das ilhas dos espíritos desertos.
E da feiura caótica e trevosa das enchentes

                                                                          Ronaldo Cagiano
                                                                           São Paulo - SP
Emerson Teixeira Cardoso


                 Dois minicontos de mistério



                              Boa noite estranho



 Abriu a porta subitamente com uma sensação       tirou do bolso a lanterna e acionou o botão da
de medo, pavor. Um olhar mais apurado o fez       luz seguindo uma trilha em direção à lagoa
distinguir de sua janela um reflexo qualquer na   amarela, morada misteriosa do horrível
lagoa: incrível!    Onde já havia visto aquele    monstro.
rosto, pensou. Ato contínuo, fechou a janela.           Mas que grande surpresa! Quando se
A porta que já estava entreaberta fechou          aproximou da lagoa não viu nada além do seu
também dando duas voltas na chave.                próprio rosto que dentro da água se refletia e
      Já dentro do quarto apanhou o machado.      dentro da noite escura também refletida na
Agora, decidido a desvendar aquele mistério,      água, a lua.
O cavaleiro da chuva



             Preparava-me para sair, quando        campo de guerra. Eu levava a capa e o fatídico
ouvi os tambores do tempo anunciando chuva.        guarda-chuva o que me parecia o bastante para
Imediatamente dei meia volta procurando            encarar a fera que rugia e soltava vermelhas
abrigo e armamento adequado para enfrentar o       labaredas.
inimigo terrível: a intempérie.                          Durante todo o tempo que durou a luta
     Armei-me de um capote, espécie de             senti-me um verdadeiro cavaleiro medieval
vestimenta larga e obsoleta, que além de           com armadura e tudo.      Levava a lança e o
impermeável cobria-me até os tornozelos – nos      escudo para o duelo com o dragão líquido e
sapatos, providenciais galochas. Não dispensei     gelado, que expelia golfadas gigantescas de
nem o último acessório de meu estranho             água pelas narinas
aparato, portentoso guarda-chuva.                        A batalha foi terrível: minha lança
     Assim devidamente equipado lancei-me à        brilhava a cada explosão dos trovões e ao
aventura. Devia buscar nos ares a face do          reflexo dos raios.   Repito: foi uma grande
terrível gigante – mas, ai de mim! O malvado       peleja. O tempo parecia não ter fim, mas como
não aparecia.                                      um Cavaleiro da Ordem do Rei fui o grande
     Largas passadas levou-me a adentrar o         vencedor e o inimigo debandou soltando
prédio do cinema e ali durante toda a sessão de    rugidos de dor.
um filme tudo o que eu podia ver eram cortinas          O céu apareceu estrelado.     Olhei para o
se agitando.        O monstro lá fora rugindo,     alto e dei um grito de vitória depois da luta
rugindo.                                           mortal que travei.
     Findo      o    evento   restava-me   cruel
alternativa: permanecer ali no recinto ou sair
para enfrentar o adversário no seu próprio
                                                                                Emerson Teixeira Cardoso
                                                                                        Cataguases –MG
João Antônio
       João Antônio Ferreira Filho, nascido em São          no Brasil. O nome do conto é Um Dia no Cais,
Paulo em 27 de janeiro de 1937, além de jornalista, é       retratando o cotidiano dos trabalhadores do Porto de
considerado um intérprete do submundo e um bom              Santos. Ainda fez parte da equipe da revista
malandro da escrita e da literatura. Sua linguagem          Manchete, trabalhou no O Pasquim e outros órgãos
rápida, suas frases curtas, lhe deram o título de criação   de imprensa que se opunham à ditadura militar.
do conto reportagem. Suas obras retratam pessoas            Estranhamente, nos últimos anos da década de 60,
marginalizadas, o proletariado, prostitutas e as figuras    João muda radicalmente de vida. Sai do emprego,
da periferia das grandes metrópoles.                        arrebenta seus cartões de banco, vende o carro e
De origem humilde, veio de uma família de                   divorcia-se da mulher e passa a se vestir de forma
comerciantes suburbanos de São Paulo. Teve que              simples e despojada. Aparentemente influenciado pela
aceitar diversos sub-empregos antes de ficar famoso         literatura beat, na qual os autores viajavam e
com o lançamento de seu mais lido livro de contos,          relatavam suas experiências, João rumou por cidades
Malagueta, Perus e Bacanaço, publicado em 1963. A obra      brasileiras em 1978 e foi para Europa em 1985. Dois
foi um sucesso entre os críticos e o povão, que via sua     anos depois, após ganhar uma bolsa de estudos,
cara descrita nas páginas do livro, mas o interessante      mudou-se para a Alemanha e lá ficou até 89. Faleceu
sobre esta obra é a maneira como foi feita.                 no Rio de Janeiro em 31 de outubro de 1996.
Em 1960 o livro teve os originais queimados em um
incêndio ocorrido na casa da família de João Antônio.       Principais obras: Malagueta, Perus e Bacanaço (1963),
O escritor e sua família perderam quase tudo, mas,          Leão-de-chácara (1975), Malhação do Judas carioca (1975),
crente de que precisava de dinheiro, João isolou-se         Casa de Loucos (1976), Lambões de Caçarola (Trabalhadores
dentro da Biblioteca Municipal Mário de Andrade e           do Brasil!) (1977), Calvário e Porres do Pingente Afonso
reescreveu todo o livro de cabeça.                          Henriques de Lima Barreto (1977), Ô Copacabana! (1978),
Com o sucesso de Malagueta, Perus e Bacanaço, João          Dedo-duro (1982), Meninão do caixote (coletânea) (1984),
tornou-se jornalista e trabalhou no Jornal do Brasil.       Abraçado ao meu rancor (1986), Zicartola e que tudo mais vá
Participou da fundação de uma das revistas mais             pro inferno! (1991), Guardador (1992), Um herói sem
importante de sua época, a Revista Realidade, onde          paradeiro (1993), Patuléia (1996), ete vezes rua (1996),
publicou o conto-reportagem pioneiro do jornalismo          Dama do Encantado (1996).
A um palmo acima dos joelhos
Você não brigue comigo, pequena.                  é dos outros e em gaiola não vive. Dizem, os
E nem fique, sonsa, me encabulando com            pardais também cantam. E só cantam
essa sedução de olhos mansos. Eu lhe              quando estão em turma.
conheço, dengosa.                                 Nada a fazer com a pardalada. Deixá-los.
Que você nem era nascida. Então.                  Cumprem a sina que lhes é dada nas tardes e
Este calor derreia a gente, é fevereiro,          nas manhãs. Pardal nem anda; pula, pulula,
começo de fevereiro no Rio, aguentamos mal        andejo e voador, gorrião no mundo, os tenho
e mal, pegajosos. E este suor.                    visto por aí tudo, pardal urbano, sempre,
Mariuska, não fique boba. Não se ponha,           inquieto, intrujão, metido, saído, mal
toda ciúme, fula, por aqui, me rodeando e a       lambido, bicão enfiando-se no que não é dele.
medo, me palpando, esse modo inseguro de          E um, Mariuska, pode viver muitos anos,
agoniada. Seus olhos suplicantes saiam de         aqui, alhures, em Amsterdam, na China.
mim. Não queira agarrar os meus joelhos           Gatunam e, aí, gatunar é o modo deles.
com a boca para, depois, pousar a cabeça          Nem me pergunte, de olhos, olhando para
neles.                                            eles e, após, indagando os meus olhos, para
Não me pergunte com os olhos. Só estou            que servem o pardal e o gato. Bem. Eles
perdido em mim, criatura, olhando a linha do      servem para nada e, também por isso, são
horizonte.                                        música do mundo.
Nada, pequena, bobagem, é um nada. Ou é           Você me dança esses seus olhos vivos, que
muito.                                            espetam e só faltam dizer.
Faz pouco, lá em cima, no apartamento, você       Digamos. Há de ser sempre, sabe-se lá, um
fez a cena, feia. À toa, à toa.                   trabalho garimpeiro o de descobrir por que
Abri a porta do terraço. Olhar alguma coisa       uma pessoa, tantas idas e vindas após, e tudo
nos varais e nas plantas, este verão tosta e      passa tão depressa, acaba só.
castiga, este solaço... dei com os pardais
ciscando feito galinhas sequiosas ou meio         ***
ladrões, rápidos, numa agitação procurando        Ouça. Tenho cada lembrança lá do morro e
alguma aguinha caída daquela com que              você nem era nascida. A vida lá no alto não
reguei as flores.                                 era ruim nada.
Pulavam, precisados. Sofriam o calorão,           De pequeno, tropicava em alguns pedaços
vinham, gatunos, bicos abertos puxando a          maus. Nada que me lembre do morro me
respiração. Então, uma alegria grande me          chega sem os gostos. Será difícil esquecer o
entrou no peito. Eles são pequenos. E eu os       gosto de fel de chá para os rins, chá de
saudei:                                           carqueja empurrado goela abaixo pelas mãos
- Ô, pequenininho, você veio me visitar?          de minha bisavó Júlia, apelidada Lula pela
Voluntariosa, saída, ficou fera, ardida. Já lhe   gente miúda, penca de bisnetos amulatados,
falei, o ciúme mata um. Rói e remói: é um-        mequetrefes, molecadinha impossível. Vó
dois, verruma depressinha. Um-dois. Fique         Lula, escura e geniosa, cabelos lisos
maneira. Nenhum sofrimento inútil. Estou          mamelucos, quem sabe, na mocidade,
tratando com os meus fantasmas, me deixe.         sensual e com certeza supersticiosa e de
Você, indócil, aguarde. Coração ciumoso,          arroubos       imprevisíveis,    acostumada
atrapalha, sua.                                   mandona. Tratava filhos, uns trezes, netos e,
Ansiosa, tenha modos.                             depois, a bisnetaiada pela homeopatia. Os
Qu’eu saiba ninguém dá jeito de domesticar        doentes não tomassem café.
um pardal, bicho avoado, entrão, toma o que       Não brilhei, fui razoável.
Havia o campo de malha, o de bocha e o            cariocas no morro e, na empolgação deles,
campinho de futebol, onde virei centro-           embarcávamos, mordidos.
médio. Não, corria um tempo em que não            Não éramos tão urbanos. Para final, fazíamos
existia meia-armador. Era centro-médio.           paçoca no pilão, nossos curaus e pamonhas
Chutava com os dois pés, cobria o meio de         doces e não salgados como se diziam que
campo, recuava ou avançava conforme o             eram os do Norte… a paçoca do morro, veja
andado do jogo e os mais atilados na posição,     lá, levava carne pilada, o charque, o jabá.
houvesse brecha, cavavam espaço e,                Essa, de carne-seca, era daqui. Da ponta da
pontudos, faziam gol. Eu, destro.                 orelha.
De assim, para compensar, me treinei              Batíamos o café em grão comprado nos
repetido e solitário, e tanto, na perna           armazéns na estrada de ferro. Tínhamos o
esquerda que, na sequência, pendia para           cuscuz paulista, com palmito, ovo, camarão
abrir, armar jogo, lançador por aquele flanco.    ou sardinha ou galinha, meio caiçara e
Bem.                                              admirado, falado. Invejado, sabíamos.
Quando a luz elétrica nos veio, o morro teve      Salgado, era primor, distinto do baiano, que é
dois rádios por onde a vida do mundo, lá de       branco e doce. E do pernambucano - outra
fora, barulhava e chegava. Um, o rádio            coisa. Bom mais ainda com manteiga, da
enorme da venda de dona Otília e de seu           salgada. Havendo manteiga-de-garrafa, se
Augusto; outro, menor e simplezinho, da           lambiam os beiços e se comia até ficar triste.
minha tia-avó Elisa, carioca, asseada, um         Fazíamos a carne-seca com mandioca cozida
capricho     na     organização.     Os    dois   quase desmanchando, e não frita.
novidadeiros trazendo notícias, humor,            E não fique aí boba, pequena. Que tínhamos
radionovela, Jerônimo, o herói do sertão,         forno em que fazíamos pão de milho, broa de
Nhô Totico, a PRK 30, mel em chuvada de           fubá, biscoito de araruta, bolos de farinha de
riso, que a gente alcançava do Rio de Janeiro,    trigo, assados em dia de festa. Havia
Maria Joaquina Dobradiça da Porta Baixa,          cabritadas no morro e Vó Lula, prevenida,
portuguesa, espeloteada, casca-grossa e tão       alma de quituteira, pedia aos santos nas
mangada. Terminavam os números musicais,          vésperas paz para esses dias. Cabritada era
uma voz ajuntava: entra o disco das palmas.       risco.
Desabava o auditório e desabávamos no             Poder, podia escorregar, destrambelhar para
morro. Aqueles dois animadores foram              malsucedida armando brigas, ingresias,
primeiros; devo ter aprendido com eles que,       desfeitas, mexidas, confusões. Fuá. Podia dar
de algum jeito, é preciso rir de si mesmo.        bode num forrobodó-de-cuia, rebordosa
Irradiação dos jogos de futebol, paixão. Febre    arrevesada, uma cabritada. Então, devagar
mosqueteira, que o morro era, maioria             com o andar, que o santo é de barro. O
inflamada, corintiano roxo e sabia, de cor e      seguro morreu de velho, mas a prudência foi
salteado a escalação preta e branca, que          ao enterro. Rogar aos santos, assim, era de
terminava na linha de ataque: Cláudio,            lei.
Luisinho, Baltazar, Carbone e Mário. Ou           Doce de marmelo, de goiaba, de laranja, de
Souzinha, dependendo, na extrema esquerda.        abóbora, de cidra, de limão, de coco,
Dessa linha atacante, cada minúcia sutil e        bananadas, ameixadas de ameixa amarela e
muito singular, cada um de nós, molecadinha       não da preta fumegavam no fogão a lenha e
do morro, falaria uma semana. E, depois,          Vó Lula, pontificou plena, principal.
mais uma.                                         Esclarecia. Para a cozinha era preciso mão.
O que nos chegava. E vinham pela música as        Ninguém se gabasse diante dela, que mãos
novas de outras terras, baianas, nordestinas,     cutubas tinha ela, mãos de rainha, dona,
cariocas, nos fazendo imaginar, enfeitiçados,     adonada, sabedora.
meio aos suspiros, mordidos de curiosidade,
uma porção de vidas diferentes, nossas
desconhecidas e mais rurais. Havia baianos e
José Antonio Pereira

                                    Olha eu na foto
         Ontem me vi numa foto de jornal. Está      pouco de despeito. No final da festa dos
com inveja? Estava em uma badaladíssima festa.      cinquenta anos de casamento dos Bitencourt.
Sem ressentimentos! Não é preconceito não.          Procurando um champanhe, entrei na dispensa.
Mas, gente chique é outra coisa. Olhe bem para      Vi Nanete de quatro e Armando corcoveando-a
a foto. Só gente bonita. Parece que a beleza é a    com o desembaraço de amantes bastante
maior parceira da riqueza.                          íntimos.
Festa já varando pela madrugada. Eu lá firme.       No casamento da filha dos Castro Lima, outra
Presta atenção! Quem ainda está impecável?          família de potentados, parecia-me que os
Alinhadíssimo.      Claro que é eu.        Estilo   herdeiros de toda a riqueza da cidade estavam
despojado, sem relógio, cabelos bem aparados e      presentes. Um horror! Quem não pertence ao
corpo ereto.                                        meio, está ferrado, vira mobília, é invisível.
Entreouvia o diretor de um banco, tentando ser      Herdeiros são terríveis. Deitam e rolam, são
próximo da senhora da casa, ironizava os            cruéis com os que não pertencem a sua casta.
extorsivos juros cobrados. Nunca entre em uma       Enquanto bebem, fazem piadas vis e grosseiras
agencia bancária. Não passe nem mesmo em            com seus empregados e todos os de baixo. O
sua calçada. E eu continuava andando entre os       Lula então? Onde já se viu? Um presidente,
convidados.                                         pobre, retirante cabeça chata e operário. Isto é
Era sempre assim em recepções de famílias           um absurdo! Só num país fodido como este tal
tradicionais e riquíssimas, eu vestido em meu       barbaridade acontece!
impecável linho braspérola, engomado, lavado e      Jussara, mulata bonita e atraente trabalha para a
passado todos os dias. Na casa dos Bitencourt,      família Castro Lima. Assediada e abusada pelo
local da festa na foto, Dona Dalva não permitia     patrão, é mantida no emprego sobre ameaças
perfumes, era proibido. Ela, com requinte, batia    dele. É constantemente humilhada e perseguida
palmas compassadas, para chamar os serviçais.       pela patroa.     Nesta festa, Jussara e outras
Tinha o topete de mandar o Armando, seu             mulheres que trabalhavam no evento, sofreram o
mordomo, cheirar todos os empregados para ter       diabo nas mãos dos herdeiros já entupidos de
certeza que sua proibição era respeitada. Botava    cocaína.
reparo até no aparado das unhas. Na cozinha,        Como sei de tudo isto? Olhe novamente para a
não sei se por ressentimento, Nanete, uma           foto. Ainda não me achou? Ninguém me nota.
ajudante dizia: Armando é vinte anos, mais          Sei que em todo lugar é assim, sou invisível.
novo que a patroa. É o bichinho de estimação        Olhe bem, no canto direito da foto, ao lado do
favorito dela. Cheia de veneno: Principalmente      diretor do banco. Isto! Este mesmo! Por que o
nas ausências do Doutor Bitencourt. Vai aí um       espanto. Eu sou o garçom.
Rubens Shirassu Jr.
Ilustrador e escritor Rubens Shirassu Jr paulista   Peixe (crônicas, 2004) e Muito Macho na Cozinha
de Presidente Prudente é autor de entre outros de   e Outras Crônicas (2010)e Novas de Macho na
Cobra de Vidro (poemas,2012) Religar às Origens     Cozinha e Outros Ingredientes II (Clube de
(artigos e ensaios, 2011); Mais Molho e Menos       Autores, 2012).




                                       Fora da hora



           Enquanto o bafo do mormaço bate           Só sei que havia um sol escaldante e, apesar do
em meu rosto, ouvi apenas o canto de um galo        calor sufocante, que embaralhava meus
rompendo o silêncio preguiçoso da tarde. Nem        pensamentos misturando-os a um som que
sei de onde viera, só sei apenas que estava         passa desapercebido no turbilhão de
próximo de minha casa. É apenas um galo e seu       pensamentos, de pernas e veículos correndo
canto que trazia um clima brejeiro, de sopro        que giram a máquina registradora do mundo
vida e, isso dá uma alegria e tem uma beleza de     da civilização. Em meio aos recursos visuais
vida simples, natural e ingênua, sem                das placas e fachadas, aos múltiplos sons, a
compromisso. É um momento apenas.                   cena se perdia.
Será que alguém nota o galo que canta numa        agosto, tivesse dançado ateu no ar. Depois, aos
tarde, em plena zona norte da cidade?             poucos, foi se acendendo um carmesim, de
Como uma figura campestre e exótica em            cigarro de palha de milho, e sob ele o mar de
contraste com a selva de cimento, aço, plástico   concreto espalhou o cheiro de roça. Imaginei o
e antenas. Esse nosso personagem foge da          calor das famílias na varanda, arrumando
coreografia da sinfonia concreta, porque traz     casamento e a vida alheia, do jeito de tribunal
uma natureza morta em nosso horizonte sujo,       do júri, prestando contas no confessionário do
embaçado pela fuligem dos escapamentos e          padre da paróquia, deixavam o galo, orgulhoso
chaminés, talvez, seja um cantor para             e soberano no terreiro e galinheiro.
despertar... Por que aflora dentro de mim, uma    Mas o bem-estar leve, quase suave, como se eu
imagem adormecida, em sono profundo, quem         tivesse, de repente, despertado de um transe
sabe, anunciando um verde esperança?              profundo, trouxe-me um pensamento que
Eu tentava fixar o galo com os olhos do           aprendi com os antigos vizinhos e coleguinhas
espírito, ao jogo de intensa luz. Pode ser um     de escola: os galos cantam entre às 4 ou 5 da
momento feliz, e em si mesmo talvez fosse, e      madrugada, na alvorada de um novo dia,
aquele singelo quadro da natureza morta me        sinalizando a hora do retireiro ordenhar as
fez bem, mas uma fina, indefinível angústia me    vacas no curral, enfim, os compromissos da
vem misturada com esse fenômeno sonoro e          gente do campo. Será que o desrespeito do
fotográfico.                                      homem com a natureza onde ocorreram as
Devo estar saudoso de minha infância na Vila      mudanças nas estações do ano, o excesso de
Marina e no Parque São Judas Tadeu, quando        asfalto que interferiu no escoamento da chuva,
o galo cantou às 15h50. Mas deixei minha          o desmatamento das florestas, a poluição dos
pouca alegria para mirar com um vago sorriso      rios, a migração de aves e animais à área
perdido no espaço. Era um instante de graça e     urbana, alterou o relógio biológico dos galos
felicidade. Um momento de raro prazer sonoro.     entre outras espécies da fauna? Um garoto dirá
Senti a necessidade de mostrar aquele fato raro   que o galo ficou desconfigurado! O sentimento
às pessoas que prezo: “Escutem, o galo cantar a   era de que aquele momento luminoso e poético
essa hora...” Mas, o prazer daquela audição me    soa como um alerta. Dentro de minha cabeça
bastava. Porém, refleti que mostrar por           houve um torvelinho de milhões de
mostrar ou, quem sabe, para repartir aquele       pensamentos misturados aos tons pretos,
instante de beleza como quem reparte um doce,     cinzas de tristeza e perplexidade expostos nesse
como sinal de estima e de simplicidade; em        quadro impressionista.
sinal de comunhão ou, talvez, para disfarçar o
mal-estar com o vazio da vida atual.
Aquele som tão vivo era todo solto, de meus
ouvidos, uma palpitação no coração. Eu queria
me aproximar, aquele galináceo que anda sem
rumo e seu canto, passando entre a cortina
branca que realçam os objetos em cima da
mesa e a parede creme. Mas, a barra do dia
entre a cortina era uma vaga música dos
tempos do chão de terra, a cerca de balaústre e                                   Rubens Shirassu Junior
a mornidão da rotina dos dias interrompida                                       Presidente Prudente –SP
pelas boiadas guiadas pelo tropeiro, o aroma
característico de fumo de rolo parado no ar
misturava a poeira amarelada que pairava no
ar.
Na segunda-feira de carnaval, havia nuvens
leves, espalhadas em várias direções, como se
durante a noite o vento seco, semelhante a
Antônio Jaime


                                Produtores de fitas


          Gente    mais     antiga    no    meio     mudando-se depois para o Rio. Luxento, tipo
cinematográfico chamava filme de fita, como se       contratar Ângela Maria ou Carlos Galhardo para
sabe. E cinema, a sala de projeção, era casa. Daí    cantarem no aniversário da filha, em sua casa.
que, na filial da Embrafilme em São Paulo, ouvi      Quando morreu, o médico contou à filha que
o gerente falando ao telefone: “A fita dos           tinha uma frase tatuada no piru: Tutto per te.
Trapalhões dobra em Ribeirão? Nas duas                    No Rio, as produtoras às vezes nem tinham
casas?”. Por lei, se uma fita atingia a freqüência   água de beber, já em Sampa rolavam queijos e
média numa casa, reprisava na semana seguinte        vinhos, por aí, depois das reuniões. Ou um café
e por isso A noviça rebelde ficou 53 semanas em      caprichado no Maksoud Plaza. Gostaria de ter
cartaz no Cine Palácio, no Rio. Já O anunciador,     conhecido lá o produtor Primo Carbonari, nome
uma semaninha, no Paissandu.                         de mafioso, mas fiquei com Aníbal Massaini,
     Produtor que chamava filme de fita, só          Enzo Barone, Assunção Hernandes e César
conheci Mario Falaschi. Ele e seu irmão tinham       Mêmolo Jr. Este, puto com o fracasso de O
um hotel na Itália, onde se hospedava uma            Homem do Pau Brasil, de Joaquim Pedro de
família paulistana. Gostou de Brasilina, uma das     Andrade, e Ato de Violência, de Eduardo
moças daquela família, veio para São Paulo e         Escorel, decidiu nunca mais produzir cinema, só
casou-se com ela. E com a leva de italianos que      comerciais de TV.
vieram fazer a Vera Cruz, entrou para o cinema,
Mas cumpriu o doloroso dever de ressarcir      com Dona Lucíola (mãe de Lucy), a “Vovó
a Embrafita (êpa!) por aqueles rombos. O            Donalda”, porque fazendeira em Goiás, sócia do
normal era rolarem a dívida, contando com um        Unibanco, por aí.
sucesso futuro. E nem todos tinham dinheiro              Mais uma: na première de Bye Bye Brasil,
vivo ou o caráter de Mêmolo.                        no Rian,    chegou de surpresa um amigo
     Em    geral,   todo   cineasta   abre   uma    americano de Barreto. Gente até no chão, o jeito
produtora, para facilitar as coisas. Daí alguns     era desalojar alguém e ele escolheu uma mulher
folclóricos, como um tal William Cobbett. Parece    desacompanhada: “A senhora é penetra? Cadê o
pseudônimo, mas era seu nome, mesmo, e              convite?”. Betty Faria ouviu e acudiu: “Quê isso,
cearense. Ganhou uma boa grana distribuindo         Luix Carlox, é a Josefina, peça dexculpax”.
aqueles filmes russos que vimos pré-64 e            Ninguém menos que Josefina Jordan, ícone da
produzia uns abacaxis, tentando vendê-los como      sociedade carioca. Ibrahim, Zózimo e outros
arte. Mesmo gente de mais prestígio, como os        deitariam na sopa e o cinema tupiniquim, já tão
Farias, não escapava das más línguas. Diziam        sem cartaz, pois é.
que Roberto ia à missa todo santo dia, pagando
pecado, por viver em concubinato e, nos fins-de-
semana, toda a gang se reunia em Friburgo, para
a missa-mor, com a matriarca da família. Me dei
bem com eles, disseram que em 30 anos de
produtora ninguém entendeu melhor o que
queriam dizer. Obrigado.
     Agora, a barretada. Deu para perceber que
são muito francos e não de todo elegantes. Estive
                                                                                     Antônio Jaime Soares
“n” vezes na casa deles e, numa delas, subi de                                           Cataguases –MG


elevador com Lucy, Luiz Carlos e uma vizinha,
que levava um ramo de flores. Lucy tapou o
nariz: “Que cheiro horrível”. E Luiz Carlos:
“Cheiro de jasmim”. E ela: “Cheiro de defunto,
isso, sim”. Na cara da mulher, fiquei com
vergonha por eles. Comigo, tudo bem. Só estive
uma vez com Bruno, outra com Fábio e várias
José Vecchi

      José Vecchi de Carvalho nasceu em          Um dos autores de A Casa da Rua Alferes e
Cataguases, atualmente mora na cidade de         outras crônicas. Com suas crônicas e contos é
Viçosa, aqui mesmo na Zona da Mata Mineira.      dos colaboradores do Chicos desde suas
                                                 primeiras edições.




                            Anatomia das pernas

     Inesquecíveis pernas. Tão presentes em           obstinado contador de histórias que
     meus pensamentos e visões que vez por            Zemeckis fez correr por um país inteiro,
     outra causam-me tamanha desordem, ao             ultrapassando    tempos   e   fronteiras.
     ponto   de eu   me deixar     levar   por        Pernas que zombaram da insensibilidade
     devaneios,      urdindo      esdrúxulas          e dos preconceitos.
     comparações.                                             Hoje mesmo, após o almoço, sem
             Dias atrás, num pequeno espaço           mais nem menos, lembrei-me das pernas
     de tempo concedido involuntariamente             inesquecíveis do Mané Garrincha: tortas,
     pelo descuido do chefe da seção onde             desengonçadas, pareciam se chocar uma
     trabalho, vieram-me à memória as pernas          na outra, mas com uma habilidade
     de Tom Hanks, digo, de Forrest Gump, o           invejável.
Os dribles desconcertantes deixavam            tendões, ligamentos e meniscos, mas pela
perplexos não só os adversários, mas           harmonia entre as partes que provocam
também, os companheiros, o treinador e         em mim a impossibilidade de vê-las ou
todos   os   torcedores   presentes      nos   imaginá-las separadas. Separá-las seria
estádios. Pernas mágicas que pareciam          rasurar uma prova documental, pichar
brincar com a bola, com o jogo, com as         um monumento, cortar cenas de um
pessoas; pareciam rir de tudo e de todos,      filme, coibir a beleza.
não com desprezo ou superioridade, mas                Quando a dona era uma menina de
com um jeito ingênuo e moleque; era um         doze ou treze anos, tais pernas não me
bailar ilusionista que confundia o mundo       foram tão impressionantes. O músculo
num piscar de olhos e arrancava suspiros       vasto lateral, o reto, o bíceps da coxa, o
e aplausos nas arquibancadas.                  gastrocnêmio e o tibial anterior não eram
        No entanto, essas famosas pernas       suficientes para     encobrir    fêmures   e
vêm-me à tona sem o menor nexo com as          rótulas, tíbias e fíbulas. Voltei a vê-las,
que, de fato, me impressionaram ao             porém, quando sua dona ia já com seus
ponto   de   eu   ter   que   despejar   no    vinte e cinco anos. Levei um susto
inconfidente papel minhas perturbadoras        enorme e tive que me conter para não
sensações. Omito o nome da dona não            deixar reveladas as minhas reações.
por alguma razão que alguém possa dizer               Por baixo de uma saia bege que ia
que seja óbvia, aliás, não existe nada de      pouco abaixo do quadril, passaram por
óbvio na omissão de um juízo diante de         mim duas belas e desconcertantes pernas,
uma obra-prima. Omito porque tenho a           atravessaram a rua no sentido da calçada
impressão de ver essas pernas com outras       em que eu me encontrava procurando um
donas; e também, por alimentar a ilusão        endereço que só voltei a procurar dias
de guardar só para mim a deliciosa             depois. Mesmo assim, ao voltar ao local,
sensação que tive. Aproveitando a seção        no mesmo horário de antes, procurei de
das justificativas, peço desculpas aos         um lado a outro da rua, buscando a visão
estudiosos da anatomia humana, mas             estonteante que tive dias atrás. A cor da
trato aqui das pernas e das coxas sem          pele, a firmeza delicada dos músculos, os
separação; unidas não só pelo joelho, com      contornos,      as        medidas...   tudo
sua belíssima articulação gínglima, seus       desmedidamente belo e atraente.
Pernas       lisas   e     certas,     que
proporcionavam à dona um caminhar
leve      e   fascinante,        salientando     a
exuberância e o menear compassado das
nádegas. Em mim provocaram algo como
uma hipnose, com a cor num tom moreno
indescritível e inigualável. Além disso,
com     um    movimento          que   era     uma
coreografia sensual, perfeita. Confesso
que perdi o fôlego e o rumo, como perco
aqui as palavras para qualificar tamanha
beleza.
        Um     dia     desses,     tais      pernas
elegantemente cruzadas sob a negligência
de um índigo fizeram-me ver a dona que
não era. E depois daquele dia tem sido
sempre assim. Procuro nas menores
oportunidades e penso vê-las aqui e ali.
        Pernas lascivas, mágicas, ágeis que
parecem me driblar; parecem rir de mim;
percorrem e atravessam meus territórios,
meus sonhos e insônias, enfim, dias e
                                                      José Vecchi
                                                      Viçosa –MG
dias,     deixando    como       rastro   minhas
divagações e intumescências. Mas no real,
no palpável, desaparecem. Passam por
mim como se eu fosse um zagueiro
ineficiente. Acho que por isso, busco nas
comparações,          mesmo         nas       mais
desconexas, uma forma de prendê-las.
Inesquecíveis pernas. Tão presentes em
meus pensamentos e visões...
Ferréz
Ferréz, nome artístico de Reginaldo Ferreira da       Ferréz     já    publicou   diversos   livros,   entre
Silva, é um romancista, contista e poeta. Ligado a    eles Fortaleza       da     Desilusão (1997), Capão
corrente considerada literatura marginal por ser      Pecado (2001), Amanhecer           Esmeralda (2005)
desenvolvida na periferia das grandes cidades e       e Ninguém É Inocente em São Paulo (2006). É
tratar de temas relacionados a este universo.         fundador do 1DaSul, grupo interessado em
Dotado de linguagem influenciada pela variante        promover eventos e ações culturais na região do
linguística usada na periferia de São Paulo,          Capão Redondo, ligados ao movimento hip-hop.




                   ‘Quem não pode falar escreve’


Nascido e criado na zona sul, quando pequeno
dizia que queria ser engenheiro; o pai achava a
profissão bonita, o filho mal conseguiu
terminar o segundo colegial, tinha que ajudar
nas despesas de casa. Namorou com a mesma
menina por dois anos, mas ela não viu futuro
– a casa dos pais dele, de dois cômodos, não
dava pra subir laje. Somente seis meses depois
de terminar o curso, Marcos conseguiu                JB Neto/Estadão

emprego numa contabilidade.                          Chão ensanguentado em bar do Campo Limpo,
                                                     palco da primeira chacina do ano
Depois de trabalhar por 23 anos como                    Polícia comunitária, um termo bonito, mas o
empregada doméstica a tia de Marcos havia               sapato estava na cabeça de Marcos, a mão
comprado um carro, e graças a Marcos ia                 direita na água suja que descia pelo canto do
deixar de pegar ônibus toda sexta para voltar           calçada.
do serviço, onde passava toda a semana                  A mãe de Marcos vendo a cena chegou perto e
limpando a casa e cozinhando. Marcos seria              convenceu os policiais, explicando a origem do
seu motorista. Em contrapartida, pagou o                carro. Marcos se levantou, a cabeça suja de
curso para o sobrinho, e deixava o carro a              terra, os olhares dos vizinhos. Não teve ódio,
semana     toda     com    ele.      Os     vizinhos    nem sequer ficou revoltado. Chegou no seu
comentavam que o rapaz, agora andando de                barraco, olhou para a camisa toda suja, uma das
social e com o carro, teria um futuro na vida,          três que tinha para ir trabalhar, ajoelhou em
que finalmente alguém daquela comunidade                frente à estátua de Nossa Senhora Aparecida e
havia vencido.                                          agradeceu por estar vivo.
Marcos     parou    naquela        sexta-feira    no    Três horas depois disso, 15 homens estavam
mercadinho.          Sempre               sorridente,   sendo revistados num bar no Jardim Rosana. Os
cumprimentou todos e foi comprar uma cera.              policiais chegaram de repente, miraram os
Deixaria o carro brilhando como a tia gostava,          revólveres, nem o dono do bar escapou da
para ir buscá-la.                                       revista. Terminaram o enquadro, entraram nas
Entrou no carro com o pacote, ligou na Antena           viaturas e disseram:
1, sua rádio preferida, as músicas o deixavam           – Boa noite, fiquem com Deus.
calmo no intenso trânsito. Colocou o cinto de           As conversas foram retomadas no bar, um deles
segurança e viu a viatura da Polícia Militar            falava sobre os ganhadores da Mega Sena, outro
parar. Logo foi pego pelo colarinho e arrastado         falou que ia tomar a saideira, a patroa em casa
para fora do carro. Tentou falar, mas a voz do          já devia estar nervosa, um que voltava do
policial militar sobrepôs a sua.                        banheiro ria dos que haviam sido abordados,
– Ladrão de carro filho da puta.                        dessa ele tinha escapado.
– O carro é da minha tia –, tentava falar               Os minutos se passaram, mais duas cervejas
enquanto outro policial jogou ele atrás do              foram pedidas, a conversa agora foi para o
carro e pisou em sua cabeça. Marcos olhava              Corinthians abalando o Japão. Mais alguns
para o sapato, estilo social que nem o seu, algo        minutos, a rua quieta, só as conversas no bar.
pensado no novo uniforme da PM para dar                 Foi quando se fez a matemática perversa, 14
aspecto de menos hostilidade, como antes                homens encapuzados, olhos arregalados, uma
tinha a antiga farda e o coturno.                       cadeira cai no chão,
a vizinha ouve barulhos, deve ser bomba de        vida. A pressão pra fazer algo é grande, nem
comemoração. Catorze braços atiram em             sempre externa, mas o dono da padaria
quem estava dentro do bar, nove são baleados,     pergunta se não vamos fazer nada, a mãe de um
sete morrem, a conversa acaba. O cheiro de        amigo me para na rua e diz:
pólvora domina todo o ambiente, o dono do         – Não somos animais, não somos ratos para
bar se arrasta com um ferimento na perna.         morrer assim.
Quando chamei meus amigos no sábado de            O estudante que tem que voltar para casa após
manhã para encaixotar livros e fazer a pintura    11 da noite não sabe como vai fazer, a mãe fica
na ONG Interferência, não imaginávamos que        acordada todos os dias com medo de o filho não
horas depois estaríamos num cemitério.            regressar; o cozinheiro do restaurante fino
O coveiro chega perto do Evandro e diz:           trabalha a noite toda, a mulher pediu para ele
– Você aqui de novo, cara! É a terceira vez que   dormir por lá para evitar o pior. A conversa saiu
te vejo essa semana.                              do meio comum, um enterro cheio de gente
Evandro fica sem graça, vai comprar uma           igual, sofredora, onde a conversa principal é
água, realmente não queria voltar ali, mais um    como vamos sair de casa de hoje em diante.
amigo para enterrar.                              Pressionar politicamente parecia ser o caminho,
O muro do lado do bar onde aconteceu a            mas tal deputado num atende, tal vereador tá de
primeira chacina do ano estava pichado.           férias, não se convive com quem toma decisões,
Quem não      pode falar    escreve.   "Unidos    estão todos longe daqui, quem mora aqui sabe o
venceremos as batalhas da vida". Versos do        tamanho     do   risco,   mas     muitos    também
rapper que acabou de lançar o primeiro CD,        assistiram O Pianista.
depois de muitos anos de batalha, o mesmo         Nunca em minha existência aqui tinha visto
rapaz que tem um avô chamado Lino, uma            tantas pessoas comuns revoltadas, esse não é o
esposa chamada Raiane, um filho chamado           mesmo País que anunciam na televisão. O que
Ryan e uma mãe chamada Lilian.                    ninguém pensa é que, infelizmente, isso tem
Um verso de esperança de um jovem que não         mão dupla, porque quem sai pro crime sai mais
sabia que por estar num bar sua vida estaria      violento.
atrelada à primeira chacina do ano.               O   morador      de   periferia   hoje     se   sente
"Nunca desista nem se sinta inferior, seja        desamparado, tem sua liberdade estrangulada,
forte, seja nobre, um guerreiro lutador". Letra   cerceada. Sem Sesc, centro cultural ou casa de
do grupo de rap do DJ Lah, também presente        cultura nas favelas, a antessala de estar de todo
no bar, o último lugar em que estaria com         mundo é o bar.
O cidadão comum que levanta quando é                simpatizantes da Rota, a tropa de elite da PM
escuro, que cuida do ensino da elite e não tem      paulista) a gente tá com medo também.
uma escola de qualidade para seu filho, que         Eu entendo o repórter, de uma chacina para
faz a comida deles, cuida de sua segurança, e       outra, da leste pra sul. Olho sua mochila, calça
não tem segurança onde mora, não quer morte         larga, cara de cansado, na faculdade não
– nem de farda nem de bombeta.                      falaram que ia ser assim.
A segurança individual está em segundo plano        A solução agora não é só a investigação, mas a
perante a morte sistemática de inocentes.           emergência é pela não repetição. A questão
Quem vai gritar se as vítimas forem do crime?       policial também é cultural, desde a abordagem
Quem vai meter a cara? Foram 24 chacinas, e         até o jeito que tratam a comunidade e, por
se só algumas das 80 vítimas têm passagem, a        consequência, são tratados.
tendência é menosprezar o ocorrido, fica            Quantas vidas podem ser salvas se procurarmos
legitimado o ato.                                   soluções reais, não tapa-buracos. Ajudaria se o
A periferia da década de 1980 teve grandes          discurso não fosse vago, se a certeza da
mudanças. No caso das chacinas, o modus             impunidade    não    fosse    tão   presente.   Um
operandi mudou. A periferia, com suas casas         discurso articulado do secretário de Segurança
na maioria de madeira, tinha pavor dos grupos       pode ser o início, real empenho na solução das
chamados de pés de pato. Hoje, associam             mortes pode brecar algo que pode tomar
essas ocorrências ao único representante do         proporções irreversíveis.
Estado presente aqui, a Polícia Militar. É          Saímos do Cemitério Jesuíta, calças largas,
proposital, oprimir sensação de terror, está        bonés, frases das letras de rap na camisa, hoje
dando   certo,    as   mães   cabisbaixas,   sete   somos o tema das letras, a canção será mais
enterros, três da mesma rua, o filho chorando       triste quando for ouvida, e quando íamos cruzar
na beira do caixão, o repórter que chama a          a avenida, mais um enquadro, todo mundo na
gente no canto:                                     parede.
– Pô, as pessoas acusam a imprensa, mas             Um ônibus para, algumas pessoas que estavam
quando chego nas chacinas, vou fazer a              no enterro descem, a polícia teme, o povo
matéria, a primeira coisa é ser abordado. A         avança, um dos rappers está sendo revistado,
polícia pede meus documentos. Cara, depois          um menino chega perto do policial, olha pro
do que aconteceu com o (André) Caramante            alto, bem nos seus olhos, o policial nota os olhos
(repórter policial da Folha de S. Paulo que teve    úmidos, o menino diz.
que sair do País após ser ameaçado por              – Acabamos de vir do enterro, vocês não
                                                    respeitam nada?
Sebastião Nozza Bielli Lotti


                                         O buraco


  Abre a porta envidraçada da varanda e joga      a andar em torno, e a profundidade, ao usar
uma interjeição de negro humor no espaço.         um cabo de vassoura achado próximo ao latão.
Tão indignado com o buraco!                       Também parece procurar coisas jogadas por
     Dois homens opacos, que cultivavam o         alguém - todo mundo tem mania de jogar
hábito de fumar de cócoras, vieram com as         coisas num buraco - e, quem sabe, o possível
picaretas e as pás. Cavaram o dito cujo e, após   peixe imaginário na água da chuva? Até que o
filosofarem ( ou falavam de coisas técnicas?)     tédio do buraco o engole e ele titubeia em sua
por uma tarde inteira em torno da enorme          volta, felizmente, sem cair. Acordando para o
cavidade, bem próxima ao latão onde os            dia luminoso, sai correndo atrás de novas
moradores da pequena rua depositam o lixo,        emoções.
sumiram                                              Um buraco, a princípio, é apenas uma
     Uma semana, ele contava... Oito dias... E    cavidade, mas, com o tempo, vai adquirindo
nada. Do alto do seu avarandado, procurava        proporções que o aproximam de um elemento
entender. Toda manhã olhava o céu, tentando       metafísico; improvável de se medir o tamanho.
desviar a atenção daquele estorvo, mas todo       É um vácuo aparente, talvez um espaço vazio
buraco possui certo magnetismo e nem sempre       cheio de incongruências. Ninguém caiu e
é necessário botar um aviso com letras            quebrou a perna, ou um veículo descuidado
vermelhas; ao vê-lo pela primeira vez, o alerta   resvalou por ele, enquanto buraco, contudo,
“cuidado” já se fixa na mente.                    era um buraco repleto de iminências.
     A rua foi ficando mais barulhenta com os        Da varanda, ele passou a falar alto para que
motoristas, que se atrapalhavam. O menino         os vizinhos ouvissem, da precariedade do
olha o buraco como um acidente no cenário         serviço público, a falta de respeito com os
onde costuma brincar e passa a pesquisar sua      contribuintes: “Uma vergonha!”.
real dimensão: a circunferência, quando se põe
E o buraco metafísico e possivelmente                 A vizinha teve dengue e precisou se
perigoso, virou um buraco político.               internar no hospital. Os carros, que se viam
    Nenhuma informação sobre a necessidade        obrigados a usar parte da calçada, devido ao
e o porquê da obra. As pessoas passavam e         exíguo espaço nas laterais, com as precárias
coçavam a orelha.                                 tábuas     escorregadias     protegendo     as
 Enquanto, da casa mais próxima, a mulher na      escavações, passavam por momentos difíceis,
janela olhava com desdém: além do latão de        precisando contar com a ajuda dos pedestres,
lixo que os gatos e os cães reviravam durante a   até que um deles derrapou e acabou dentro do
noite - ela ficara indignada quando ali o         enorme fosso. Foi preciso apelar para o
colocaram-, agora surgia mais esse elemento       guincho e o motorista berrando no celular,
antiestético para atrapalhar a sua cotidiana      ameaçou processar a prefeitura.
distração. Um dia, os homens voltaram. A             A mulher que o acompanhava, com duas
esperança de que agora resolveriam de vez         crianças em uniformes escolares, teve uma
aquela situação tornaram “os bons-dias” mais      crise de nervos, ficando toda suja de lama. A
afáveis.                                          vizinha da frente trouxe água com açúcar e o
    Lendo o jornal na varanda, ela observava o    camburão da PM parou na esquina.           Os
terceiro operário, que não fumava de cócoras,     policiais tentaram intimidar o homem que
andar até a extremidade da rua e voltar           berrava. O guincho demorou a aparecer e o
silenciosamente, parar para conversar com os      tumulto foi geral, com a rua cheia de
outros dois.     Ele achou estranho porque o      espectadores.
pessoal do caminhão do lixo e as mulheres da         Ele já não lia mais o jornal na varanda e
limpeza que varriam a rua com as vassouras de     evitava sair. As obras duraram quase três
bambu eram terrivelmente barulhentos.             meses, mas, dias antes de completar o
Alguma coisa estava acontecendo... Passaram a     segundo, ele arrumou a mochila e fugiu para
tarde inteira assim, confabulando. Começou a      as montanhas.
chover e eles saíram.
    Choveu a noite inteira. No dia seguinte, às
sete horas, voltaram e começaram a cavar
dentro do barro espesso.          O buraco foi
crescendo lentamente por toda pequena rua
sem saída, em direção ao magro rio
apodrecido, onde, décadas atrás, nadava com
os sobrinhos.
    As chuvas voltaram e se avolumaram,
                                                                                     Sebastião Nozza
deixando os moradores daquela área                                                        Bielli Lotti
preocupados com a possível enchente. Os                                             Cataguases –MG
trabalhadores, de novo, se ausentaram,
retornando só três dias depois, quando a
estiagem parecia definitiva. Apenas os três
homens, com instrumentos rudimentares. E o
buraco, paulatinamente, ia se transformando
numa vala que virou um canal, quando as
chuvas voltaram. A lama amarela tornou a rua
intransitável.    Os trabalhadores, de novo,
deram no pé, aguardando outra estiagem, que
não ocorria.
Ronaldo Cagiano


                          Os novos ases de Cataguases


Em recente artigo intitulado “Uma cidade de            pioneiro de Humberto Mauro, responsáveis
escritores”, publicado no suplemento “Fim de           pela definitiva posição de Cataguases como
Semana”, do jornal Valor Econômico, um dos             cidade    de    efervescência     intelectual   e
mais lidos pela classe empresarial do país, o          inclinações vanguardistas, que acabaram por
escritor conterrâneo Luiz Ruffato faz um               projetar-se em outros campos, alcançando as
minucioso     e    fiel   panorama      dos   nossos   diversas linguagens.
movimentos literários, a partir da eclosão da          Não é de hoje o assombro causado por esses
revista Verde (1927-1929).                             fenômenos culturais que de época em época
Sua análise ressalta a ousadia e importância da        aqui pipocam, apesar de alguns períodos de
chama inicial acesa pelos jovens Rosario Fusco,        ostracismo,    uma     espécie   de   reafirmação
Ascânio Lopes, Guilhermino Cesar, Francisco            genética do DNA de uma intelligentsia que só
Inácio Peixoto, Camilo Soares, Fonte-Boa,              aconteceria às margens do Pomba. Nesse
Oswaldo Abritta, Martins Mendes e Enrique de           sentido, não foi inusitado nem hiperbólico o
Resende.    Ao     mesmo        tempo   assinala   a   espanto que na década de 20 despertamos no
convergência de outras manifestações artísticas        resto Brasil, tendo levado Ribeiro Couto a uma
e culturais na esteira dos ventos estéticos            perplexa constatação: “Todo o Brasil está
renovadores       deflagrados     com    o    cinema   surpreso: existe Cataguases!”.
E hoje a reação não poderia ser outra, pois são        um trabalho aglutinador ao intercambiar
tantos os nomes e as obras produzidas com              autores nacionais e estrangeiros; Sônia Bonzi,
qualidade de lá para cá. Não é demais registrar        Antônio           Jaime           Soares          e      Washington
os momentos que justificam a consciência               Magalhães, cronistas de primeira. Abre-se um
endossada por Ruffato de que tudo aquilo               parêntesis para uma nova voz que surge nesse
“parece ter se transformado num celeiro de             ambiente criativo: a do ficcionista Diogo
talentos”. Aquela semeadura que produziu               Andrade           que,      embora           não        tenha     livros
colheitas de primeira linha (Lina Tâmega,              publicados,             vem         demonstrando                grande
Francisco Marcelo Cabral, Henrique Silveira, as        potencial em textos publicados na imprensa
irmãs Maria do Carmo e Celina Ferreira,                local e na internet, um talento em ascensão.
Ronaldo Werneck, a família Branco (Joaquim,            Em outras regiões pontificam as obras de
Aquiles e P. J. Ribeiro), Fernando Cesário -           outros cataguasenses: Marcos Bagno, um dos
autor que nada deve aos grandes ficcionistas           mais         importantes              lingüistas          do       País,
nacionais, pela alta voltagem estética e pelo          reconhecido              internacionalmente;                   Marcelo
compromisso ético de sua escritura -, Márcia           Benini        e     Mauro          Sérgio        Fernandes          (em
Carrano, Plínio Filho, Sebastião Carvalho e            Brasília), Delson Gonçalves Ferreira, Luiz
Lecy     Delfim)   desaguou      numa    recente   e   Carlos Abritta, Flausina Silva e Laly Cataguases
promissora geração, autores que independente           (em Belo Horizonte), Tadeu Costa, José Santos
da faixa etária em que começaram a produzir            e Eltânia André (em São Paulo) e Fernando
literatura, vêm se constituindo num novo               Abritta (em Juiz de Fora). Um time sem igual.
patamar na bibliografia cataguasense atual,            Mais do que celebrar essa pujante realidade, é
muitos deles radicados em outras cidades.              necessário tornar público aos leitores e inserir
Esses ases contemporâneos trazem hálito novo           nos programas didáticos das escolas o estudo
ao cenário de nossas letras, com destaque para         desses autores e obras, não como numa reserva
Marcos     Vinícius   Ferreira    de    Oliveira   e   de mercado para a grade didático-pedagógica,
Leonardo de Paula Campos, duas vozes                   mas como possibilidade críticoreflexiva, para
distintas e seguramente exponenciais                   uma compreensão dessa tradição a partir do
nesses    novos    tempos,    pela     qualidade   e   universo criativo de cada um deles.
maturidade de suas obras; José Antonio
Pereira e Emerson Teixeira Cardoso, este               Publicado originalmente no “Cataguases” em 09/11/2012

desde os tempos da revista ‘Trem Azul” e agora
com      a “Chicos Cataletras”, vêm publicando                                                                   Ronaldo Cagiano
                                                                                                                   São Paulo - SP
poemas e textos ficcionais e críticos, realizando
José Antonio Pereira

                                      Um olhar
                               enviesado sobre Vicente

                                                      reunimos para assistir algum filme de seu
           Faz algum tempo que estou querendo         fantástico acervo. Livros e filmes, são algumas
escrever    algumas     linhas   sobre   o   último   de nossas paixões e das mais antigas.
romance de Fernando Cesário, mesmo porque             Vicente, o personagem, faz parte de uma
me pareceu ao término da leitura, que Olhos           geração que viveu o início do golpe militar lá
vesgos de Maquiavel não é livro para leituras         em 64, ainda um menino em sua escola.
apressadas.    Fiquei algum tempo deglutindo          Adulto volta ao seu antigo ginásio, como
algumas     passagens    e     ruminando     minhas   professor e, a ditadura ainda teima, persiste
memórias. Afinal me senti, e de certa forma fui,      nos seus mais de vinte anos de existência.
contemporâneo do narrador.                            O autoritarismo molda ao seu feitio aqueles
Fernando é amigo de velha data. Estudamos             que vergam com facilidade a espinha, já os que
nas mesmas escolas públicas de Cataguases;            não se deixam dobrar são perseguidos até por
crianças, frequentávamos a igrejinha da vila,         bedéis, simplórios acólitos de um poder
conduzidos     por    nossas     mães,   fervorosas   estabelecido pelo medo. Sua escola, lá atrás,
católicas. Também fomos vizinhos e depois de          foi responsável por uma formação mais
muitos anos de andanças e mudanças, mais              humanista, incompatível com a doutrina da
minhas do que dele, novamente, voltamos a             ditadura, que se fiava o tempo todo no terror e
nos   tornar    vizinhos.      Regularmente     nos   na delação.
Os ditadores e seus títeres trataram logo de                   Além da amizade, o que torna estas linhas ainda um
reformar o ensino, parecendo que o único                       tanto quanto tendenciosas, é ter encontrado entre

objetivo era afastá-lo do livre pensamento. Uma                os personagens, um que se inspira em Antônio

das inadaptações do novo professor deriva desta                Pereira, meu velho, o que me deixou bastante feliz.

incompatibilidade entre as duas escolas.                Seu
amadurecimento       em       tempos      de       angústias
ideológicas,     violências     físicas        e    morais,
transformam sua vida em uma agonia existencial
sem fim. A censura, o estado policialesco torna sua
pequena cidade um lugar vazio, oco, os relaciona-
mentos artificializam-se, mentem uma lealdade
inexistente. Como sempre, em meio às ditaduras,
ou por medo ou por conveniência, muitos não
titubeiam em covardemente, cometer traições.              É
neste pantanoso ambiente, de uma escola onde do
diretor ao bedel campeia a delação que vai tentar
trabalhar Vicente.
Em meio a isto surge uma aluna adolescente que
transforma sua vida em uma montanha russa de
sensações e ações.     Professores vivem no fio da
navalha; adultos, vivem cercados de adolescentes
“transbordando”      hormônios,     descobrindo        seus
corpos e latejando sexualidade. Imagino não ser
nada fácil, controlar o despertar das “paixões” e
suas próprias excitações. Já Vicente, quem sabe por
ter tido Nabokov como uma das suas leituras
adolescente, deixou-se levar por esta Lolita,
querendo que se revelasse uma machadiana Capitu,                                                    José Antonio Pereira
                                                                                                       Cataguases - MG
numa fantasia que subvertesse aquele tempo de
obscuridade e frustrações, com a beleza irradiada
por aquela mulher-menina.
Fernando constrói o romance como cineasta na
moviola, faz cortes que tira o leitor de um rumo
previsível, atiçando-o a reflexões. Curtos trechos de
notícias reais vão balizando a temporalidade da
narrativa.     É um romance instigante.
Vicente Costa
Andando por Cataguases
Edição 37 do e-zine Chicos traz poesia e prosa de diversos autores

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Chicos 28 novembro de 2010
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Edição 37 do e-zine Chicos traz poesia e prosa de diversos autores

  • 1.
  • 2. Chicos N. 37 Fevereiro 2013 e-zine de literatura e ideias de Cataguases – MG Capa Um dedo de prosa Esta é a edição número 37 de 28 de fevereiro de 2013. Devemos desculpas ao Cunha de Leiradella, na última edição cometemos um erro imperdoável. Erramos o título de sua colaboração, o correto é Memorial em tons de azul, quem não leu De Gabriel Franco sobre foto de Vicente Costa retorne ao blog e dê uma olhada em nosso número 36. Um dos jornalões paulistas publicou um inédito do João Editores Emerson Teixeira Cardoso Antônio, repartimos com vocês o conto. José Antonio Pereira Apresentamos Badr Shakir Al Sayyab um poeta iraquiano. Quem estreia por aqui é o artista plástico Sebastião Nozza Colaboradores desta edição Bielli Lotti, o Slotti Antônio Jaime Trazemos aos nossos leitores Ferréz, escritor paulistano Antônio Perin que tem como matéria prima a periferia da nossa maior metrópole. Claudio Sesín Emanuel Medeiros Como defendemos o ensino da língua espanhola em nossas Fernando Abritta escolas, publicamos, em espanhol, a poesia de Claudio Sesín - Ferréz grande poeta e amigo - lá de Catamarca na Argentina. José Vecchi Ronaldo Cagiano Reaparecem também aqui Emanuel Medeiros e José Vecchi Rubens Shirassu Jr. Sebastião Nozza Bielli Lotti A edição está recheada de boa prosa e ótima poesia. Fale conosco em: cataletras.chicos@gmail.com Uma boa leitura para todos. Visite-nos em: http://chicoscataletras.blogspot.com/ 1
  • 3. Badr Shakir Al Sayyab Badr Shakir Al Sayyab nasceu em 25 de postura comunista e inspira vários de seus poemas dezembro de 1926 na aldeia de Jaykour (distrito de mais famosos. Abu Al Khasseb na província de Al Basrah) no sul do Seus poemas, A prostituta cega e Armas e crianças de Iraque. Jaykour é a paixão da vida do poeta. 1926 é 1954, revelam o poeta maduro. Em 1960 publica: A o ano em que fixam a fron-teira com a Turquia, perto canção da chuva onde apresenta poemas escritos desde da queda e divisão do Império Turco entre os aliados 1952 e representa o melhor de sua obra poética. No da Primeira Guerra. O Iraque é tutelado pelos início de 1961, viaja de Bagdá para Basra, onde seu ingleses. terceiro filho nasce, ocasião em que a doença paralisa Sua mãe morre durante o parto de uma irmã que sua perna esquerda. Em sua busca desesperada por nasce morta. O pai, casa-se novamente e deixa os uma cura começa uma longa jornada que se torna o filhos com o avô. A poesia, surge em Basra, para seu calvário até a morte: viagens ao Kuwait, Bagdá, onde mudara com sua avó materna para cursar o Londres, Paris, tratamentos modernos e hospitais, ensino médio. Transfere-se para Bagdá em 1944, curandeiros, contatos com seitas religiosas... onde entra na Faculdade e frequenta o curso de Investigando todas possibilidades e sempre por trás, Língua e Literatura Árabe. Em Bagdá, desenvolveu sua poesia, testemunhando sua luta desesperada. duas qualidades de sua personalidade, que eram Suas últimas obras: do templo rebaixado (1962) e A visíveis desde a sua infância e adolescência: sua Casa dos Escravos (1963) testemunham a sua morte ideologia de compromisso social e a postura poética. lenta, dúvidas sobre a morte, sua incerteza em relação Filia-se ao Partido Comunista do Iraque. Luta pela à vida. Deprimido e entregue ao seu destino, volta retirada das tropas inglesas do Iraque e por uma para o Iraque em 1963. Agravada sua saúde, é resposta mundial aos assentamentos maciços de transferido para o Kuwait em 1964, morrendo em 24 judeus na Palestina. Devido à sua atividade de dezembro de 1964. No dia seguinte é enterrado revolucionária é preso várias vezes até ser expulso em em Basra, no mesmo dia, publica-se sua última 1946 da Faculdade. Readmitido mais tarde muda de obra As persianas da filha do Marquês , onde plasma especialidade e em 1948 forma-se em Inglês e com intensidade assustadora seu terror, seu vazio e Literatura. Por razões políticas é obrigado a deixar o ansiedade. Agora, sua poesia é puro existencialismo. Iraque. O exílio, leva-o a pensar sua ideologia e 2
  • 4. O poeta maldito a Charles Baudelaire Você, leva à luta tua espada enferrujada, agita-a na mão quase queimando o céu pelo teu sangue inflamado e iluminado querendo rasgar o ar. Reúne-se às mulheres a uma mulher cujos lábios são de sangue sobre o gelo seu corpo enganosamente ingênuo uma víbora caminhando, sobre almofadas no leito... Não queres abrir as clarabóias para que entre a luz, para não sentir o que é vida. O Oriente alça ante teus olhos os véus, quase abraças a beleza junto ao trono de Deus, quase a vês reluzir em uma nuvem de fragrância e luz. Vês o mamilo de um seio que acende as estrelas com seu rubor ... 3
  • 5. Os efeitos que saem de uma tumba, arrasta a nuvem de fumaça, em sua sombra dorme um pobre fugitivo um príncipe cercado por jarros de bebidas e escravos, sua grandiosa morada em ruínas é uma das ilhas de coral, mar que purifica Lesbos com sal. Teu espírito o bebe do eco ao abismo como Safo herdarás um fogo nas veias, mas não abraçará a ti e teu sono eterno como quem abraça o seu espectro debruçado em uma janela. Fogo de Narciso! Tântalo e os frutos! Se diria que a indolente e lânguida África (seus caudalosos rios, os atabaques, suas densas florestas de sombras e chuvas, sua seca umidade... a lua) se envolvera com uma mulher que perdeu a honra, mamando dela veneno e chamas e sobre ela pingarás tua estranha poção ... 4
  • 6. Se diria que da nuvem de fumaça na noite te alçarás, entre um mundo que estendem o faiscar do ouro e um mundo de imaginação e pensamentos, de um muro de embriaguez, onde tua sombra aconchegara sem ferir a humanidade. Entrei pelo teu pecaminoso livro no jardim de sangue que arde com as flores, bebi o néctar de suas letras, seios de uma loba nas estepes, seu leite é fúria e sua sombra fecundidade. Submergi, nas ondas que me golpeavam atirando-me de uma márgem para outra margem. Levei do seu abismo a madrepérola do castigo Eu levo a ti. Estenda-me as mãos! Afaste as pedras e a terra! Basra, 24/03/1962 Versão de Antônio Perin 5
  • 7. Janela de Wafiqa A janela de Wafiqa na aldeia ébria, domina o espaço como a Galiléia espera caminhar, espera Jesus. Dispersa suas paisagens. Ícaro, roça o sol com penas de águia. Sente-se livre. Ícaro, pega-o, o horizonte o atira até as profundezas, à sepultura. Janela de Wafiqa, oh, árvore! Respirem na escuridão crepuscular os olhos que junto a ti esperam. Espreitam a flor da maçã, Buwayb é um hino e o vento devolve as melodias da água sobre as folhas. 6
  • 8. Wafiqa olha penalizada das profundezas do túmulo e espera: passar o murmúrio do rio a sombra que ondula qual sino a alvorada de uma festa, assoviar qual sopro nas sementes. O vento devolve as melodias da água. É a chuva. E o sol gargalha entre as folhas. És janela rindo no brilho? Ou porta que se abre na parede para fugir pelas asas da fragrância um espírito que anseia pela luz? Oh rota para ascender ao coração! Imagens de amizade e amor! Caminho que sobe ao Senhor! Se não fosse por ti não viria da aldeia ofegante. No vento um perfume pelas ondas do rio nos arrulha e nos canta. 7
  • 9. Ulisses se vai com as ondas, o vento lembra ilhas esquecidas: "Da velhice, vento, livrai-nos!" O mundo abre sua janela a partir desta janela azul torna-se uno, torna-se seus espinhos flores de perfume delicado. Uma janela como se estivesse no Líbano, Uma janela como se estivesse na Índia, sonhos de uma menina no Japão como Wafiqa sonho no sepulcro com raios verdes e trovões. A janela deWafiqa na aldeia ébria, domina o espaço como a Galileia sonha caminhar sonha com Jesus. Ardem suas paisagens. Wafiqa - Parente e companheira de brincadeiras do poeta em sua infância. Poemas de: O Templo Submergido 1962 Versão de Antônio Perin 8
  • 10. Fernando Abritta O nó górdio (recortes) entre o ato e o fato Existe entre o ato e o fato existe entre o ato e o fato ex iste entre o ato eo fat existe o Eof entre o ato e o fato Existir
  • 11. o relógio de ponto olhos arregalados que nada vêem coração dispara todos os músculos trabalham desordenados desesperado cérebro pergunta as horas soma tempo de viagem confere hora do coletivo diminui minutos do café confere roupas documentos braços se cansam dependurados corpo se choca a muitos outros com a freada ouvido tolera xingatório pernas correm pesadas mãos na alavanca E odiado estrondo do ponto batido me acorda para menos um dia de que me valem estas horas se minha filha está presa em uma escola onde aprende a ficar sozinha sem chorar se meu filho chora no ouvido de quem nem conheço se minha mulher estica na feira meu salário se o que aqui faço não consigo ter.
  • 12. na fila conversa encurta tempo perdido ritmado pelo barulho do relógio de ponto na fila conversa comenta corpo doido enquanto espera a comida na mesa conversa ajuda engolir sem sentir arroz feito sem amor
  • 13. suor derrete corpo em calor mão cola no papel. bravamente lá fora sol. olho resiste manhosamente pensamento pálpebras descem escorrega violento cérebro lápis reage ventilador pálpebras correm sopra olho ao trabalho. espirros. lá fora árvores refrescam uma rua vazia. lá fora céu azul termina em morros azuis e, certamente, a tarde vem um córrego o chefe passa quantas a brisa corre lá fora não existe. horas? refresca. por entre pedras lisas e lodosas. quantas dores? meia hora? esticar pernas quantas horas? a luz é sempre o corpo grudento a luz invariável devagar equilibra ideias. neste dia artificial. espichar braços vigilante. vinte minutos para a sua hora? quantas horas quantas horas? sorriso pálido para a liberdade? olhos vermelhos salgado de suor. olheiras.
  • 14. tirei do trabalho a emoção do dia horas vendidas da vida o cansaço e pude ver o que me dói e quem me fere. o ferrão e dente que me sangram. vivi noites e feriados e já me acostumara com minhas mãos e meu cérebro vendidos. entendi ausência de conforto e dinheiro curto e me revoltei resignado até que facilidade de aumento extra negado, me pôs de novo rugindo
  • 15. CASA GRANDE: Não gosto desta casa paredes altas belas salas não gosto me causa mal cansa faz doente lago + jardins + árvores e o peixe colorido em seu nado quadrado Oprime O peitO minha colunA. não.
  • 16. [] [ ] Quem pela senzala passa [ ] leva consigo marca [ ] que muito fala [ ] lava [ ] rala [ ] origem que não cala. [] [ ] Se na casa grande, [ ] é mudo: [ ] impossível ao tom da sala; [ ] faminto: [ ] indomáveis garfo e faca; [ ] mãos e pés desajeitam, [ ] dançam num corte, [ ] recorte na corte, [ ] incapazes. [] [ ] Se na cozinha resvala, [ ] inútil fala [ ] presença invisível [ ] pigarro e cala. [] [ ] Quem pela senzala passa [ ] traz consigo chaga [ ] por mais que faça [ ] nada apaga. [] [ ] Pra casa grande [ ] traz budum [ ] catinga [ ] desconfiança na sala. [] [ ] Quem pela senzala [ ] passa [ ] é não confiável [ ] ao povo da sala.
  • 17. Tamara Kamenszain Tamara Kamenszain nasceu em Buenos de amor y otros ensayos sobre poesía e La boca del testimonio. Aires, Argentina. É poeta e ensaísta. Seus livros foram traduzidos para o inglês, francês, Pertence, junto com Arturo Carrera e Nestor português e alemão. Perlongher, a geração de poetas dos anos setenta. É considerada uma das vozes que influenciaram as Entre seus livros de poesia estão De este lado del novas gerações de poetas Mediterráneo, Los No, La Casa Grande, Vida de living, O poema Tango Bar foi traduzido por Ronaldo Tango Bar, Solos y solas e La novela de la poesía, os livros Cagiano de ensaio El texto silencioso, La edad de la poesía, Historias
  • 18. Tango Bar (...) A simpatia dele pelo diabo é o ninho de minha antipatia. Assusta-me e aborrece-me tudo o que está mal no bom sentido da palavra. Pecado, pecado seria então seguir a ele tão longe quando jura e perjura que estamos perto. Mamãe, papai, fui com este mauzinho crioulo e na cruz de seu poncho me dei por perdida. Será possível que em minha religião sozinha atrás de um homem Eu sempre sinta frio?
  • 19. (...) Outra vez no bar das mulheres tomo o cálice do esquecimento “O tango é macho” cantam minhas amigas mas como o tango elas são musas tristes ou vêm como bonecas murchas. E a julgar por mim (tão esquecida de mim!) não sei se nós agora formamos uma orquestra de senhoritas ou se são eles os rapazes de antes os que agora tocam de ouvido nosso repertório enquanto nós antes de esgotar o copo já cantávamos mal. Tradução Ronaldo Cagiano
  • 20. Claudio Sesín Claudio Luis Sesín nasceu em 9 de junho de El libro de los poemas casuales (2008) este em edição bilíngue 1959 em Villa Dolores, Velle Viejo, cresceu e passou sua espanhol-português infância em Pomán, província de Catamarca – Argentina. Palabras Sencillas (2010). Publicou entre outros: Foi colaborador da revista Ideas para uma cultura popular e La Barbárie (1993) integrou a redação do periódico cultural El Croponopio - do El círculo de fuego (1997) Movimiento de Escritores por la Liberación – MEL. Cuaresma La hora que aquí es, no está en el tiempo. La brisa, esa mendiga de tan suaves gestos se parece a una idea ofreciendo cariño. Y al fin, es la memoria, la última armonía de una canción lejana perdiéndose en la noche de un carnaval estremecido.
  • 21. Carnavalearte Tomamos los suspiros de la noche a la hora que cumple su presencia y le ponemos luz para que encienda nuestra penetración a las tinieblas. Artistas trashumantes y traslúcidos, llegan al puerto casual de los sin rumbo. Hermosas como novias corriendo en los pasillos, ebrias hembras felices de túnicas livianas y cabelleras frescas, celebrarán las armonías y los acordes que sólo traen piel, de cuando el barro mezcla a sangre y fuego, ese argumento de eternidad y hombre.
  • 22. Furtivas y cenizas, ligeras, insolentes, acuden a esta fiesta de torbellinas almas, las mismas locas locas, de cuando loca es santo, y redimen sus vidas, ahora celebradas. Aquí los laberintos son presurosas risas y suspiros. Aquí cruzamos los umbrales de cálidas maderas, y en aguas transparentes, blanca estrella, y en los cuerpos luciérnagas, y en los labios la sed que hace encender al cielo, y en el aire ese aroma que esparce y enrojece la idea del instinto. Siempre es feliz la piel lanzada en torbellinos, que abraza las cadencias y las libera, agua marina, almendra y chocolate, en el aire, en la lengua, en los amplios momentos, en los pequeños.
  • 23. ¿Qué latitud aguarda esa dulzura turbia que precede al orgasmo? ¿Qué humo se consume al pensamiento en un fulgor de gloria sin fracasos? Signos del cielo en invisibles trazas, sangre apretada al flujo y tremolar de los sentidos, canción urbana a nombre de un buen vino. Golpeamos los cinceles en las piedras que un día rotarán al infinito. La mirada es de Dios sobre los cuerpos.
  • 24. Mirar el Mundo Nuestro otoño es capaz de enmudecer tejados, vertederos, las afueras del hombre, las extensiones puras y solemnes, en donde no podremos llegar a los secretos sin mirar los insólitos, fugaces y lejanos, cómplices de belleza del mundo prometido por las desposeídas constelaciones huérfanas. Agua en la brisa Ni quebrado, ni caído. Solo. En el atardecer, soy árbol que descansa esperando las lluvias en tierras duras y de sol violento. He vuelto de mi amor por las desgracias. No hay remordimientos, el humo es ciudadano y sin creencias. Sigo esperando ese silencio amable que sin reproches cruzaré la niebla.
  • 25. A Media Voz Sueña la noche un sol en la llanura para que el miedo tenga precipicio, y cubra con el manto de lo limpio este débil sostén de la cordura. Pero retumban furias y locuras, como un río entroncando sus crecientes, excitando las guerras de la mente por los extraños campos de la luna. Por las nieblas del mundo emocionada, el alma se despide del pasado, y florece en mi suerte, a mi costado, esta canción de sombras y de brumas. Soy el que a media muerte fue tocado y a media voz enciende la penumbra. Claudio Sesín Catamarca - AR
  • 26. Emanuel Medeiros Emanuel Medeiros Vieira nasceu em da Fundação Pedroso Horta. Redator de discursos Florianópolis, SC, em 1945. Formado em Direito parlamentares, foi membro do conselho editorial do pela UFRGS (1969), foi cineclubista, professor, jornal “Movimento”, e correspondente em SC do crítico de cinema, editor, vendedor de livros, semanário “Opinião”. É detentor de diversos jornalista e funcionário público. Ativo militante da prêmios literários nacionais. Tem 17 livros política estudantil, foi dirigente do IEPES, embrião publicados. Homem diante do mar Homem diante do mar (instância interrogativa). Precária caravela. E finita: a vida Trapiche: o homem só contempla (desembarcado). No estatuto da memória: ele se interroga, nunca mais a ação. No porto: a rapariga rosada estendeu um lenço. Limo: foram-se a juventude, o trapiche, a rapariga, o lenço. (Mátria: sou apenas um homem diante do mar.) Desterro: instante convertido em sempre. O homem desembarcado só pode viver de memória: diante do mar.
  • 27. Atlântico Imperfeitos, singraram o Atlântico, mãos ansiosas, mapeando novas terras, bússolas afetivas, acalentando sonhos distantes, peles queimadas, gosto de sal na boca (tanto mar, tanto mar), febre, malária, fibra e pranto.
  • 28. Na cadeira de balanço – depositário da memória da tribo, contemplo a caravela de madeira, pai, mãe, tio violinista, um agregado louco, penso no Atlântico, velas ao vento, astrolábios, à beira do poço do passado, que não passa nunca, imanente no presente. Mas proclamo – celebrante – “terra à vista, terra à vista”. (Alvíssaras!) Emanuel Medeiros Brasília - DF
  • 29. Antônio Perin Antônio Perin nasceu em Cataguases, onde vive e escreve. Com sua Itaobim, migrou para Cataguases, onde virou poesia, colabora e participa de nossas baiano, viveu alguns anos no Rio, morou um publicações aqui no Chicos regularmente. bom tempo em São Paulo, e voltou a residir em O silêncio de meu pai As palavras que eu preciso estão entaladas na garganta de meu pai como sementes na cal elas não brotarão não são palavras escritas nunca vou ler foram confinadas na boleia do caminhão esquecidas pelas estradas algumas, talvez, depositadas no ventre de minha mãe sua maior paixão. Seria eu uma destas palavras?
  • 30. A imortalidade do tecelão No caminho da tecelagem pedras queimavam os pés no tempo, que não sonhei. Entre anestésicos e dores vejo nas mesmas pedras arderem pés de fiandeiros rumo à mesma tecelagem. Em filas de corredores andei para os exames Na sala cirúrgica onde o escuro é todo branco vi, sem apelação um juiz de branco me condenar Neste negro mundo branco meu grito morre no silêncio o ar é puro mas é mecânico sopra de um tubo verde. Daqui te vejo no quintal pendurar minha imagem tecida no branco algodão branqueada na sanitária para o desbote final. Antônio Perin Cataguases MG
  • 31. Ronaldo Cagiano Noite em Cataguases Noite em Cataguases. Da Ponte Velha a inscrição de Virgílio batizando o metal. Fachada desbotada da Casa Rama. Ancoradouro no areeiro da Rodoviária. Flamboyants. Da torre em forma de ogiva da Matriz de Santa Rita Os olhos da escuridão denunciam Que outros pecados implodirão o confessionário. Pouca gente sem pressa, tantos homens dissimulados. A algaravia nos trailers de cachorro quente: convulsão dos estômagos. Um motociclista calunia a cidade que dorme! Calmaria, meia-noite em ponto. O trem cargueiro deflora a insípida madrugada. Cataguases sem festa dos silêncios das ausências. Das imensas crateras na alma de seu povo. Que não enxerga, nunca, homiziado nos becos solitários, A tristeza hiperbólica dos operários imunes aos barcos que deslizam sobre o Pomba. Cataguases, senzala sem promessa: das ilhas dos espíritos desertos. E da feiura caótica e trevosa das enchentes Ronaldo Cagiano São Paulo - SP
  • 32. Emerson Teixeira Cardoso Dois minicontos de mistério Boa noite estranho Abriu a porta subitamente com uma sensação tirou do bolso a lanterna e acionou o botão da de medo, pavor. Um olhar mais apurado o fez luz seguindo uma trilha em direção à lagoa distinguir de sua janela um reflexo qualquer na amarela, morada misteriosa do horrível lagoa: incrível! Onde já havia visto aquele monstro. rosto, pensou. Ato contínuo, fechou a janela. Mas que grande surpresa! Quando se A porta que já estava entreaberta fechou aproximou da lagoa não viu nada além do seu também dando duas voltas na chave. próprio rosto que dentro da água se refletia e Já dentro do quarto apanhou o machado. dentro da noite escura também refletida na Agora, decidido a desvendar aquele mistério, água, a lua.
  • 33. O cavaleiro da chuva Preparava-me para sair, quando campo de guerra. Eu levava a capa e o fatídico ouvi os tambores do tempo anunciando chuva. guarda-chuva o que me parecia o bastante para Imediatamente dei meia volta procurando encarar a fera que rugia e soltava vermelhas abrigo e armamento adequado para enfrentar o labaredas. inimigo terrível: a intempérie. Durante todo o tempo que durou a luta Armei-me de um capote, espécie de senti-me um verdadeiro cavaleiro medieval vestimenta larga e obsoleta, que além de com armadura e tudo. Levava a lança e o impermeável cobria-me até os tornozelos – nos escudo para o duelo com o dragão líquido e sapatos, providenciais galochas. Não dispensei gelado, que expelia golfadas gigantescas de nem o último acessório de meu estranho água pelas narinas aparato, portentoso guarda-chuva. A batalha foi terrível: minha lança Assim devidamente equipado lancei-me à brilhava a cada explosão dos trovões e ao aventura. Devia buscar nos ares a face do reflexo dos raios. Repito: foi uma grande terrível gigante – mas, ai de mim! O malvado peleja. O tempo parecia não ter fim, mas como não aparecia. um Cavaleiro da Ordem do Rei fui o grande Largas passadas levou-me a adentrar o vencedor e o inimigo debandou soltando prédio do cinema e ali durante toda a sessão de rugidos de dor. um filme tudo o que eu podia ver eram cortinas O céu apareceu estrelado. Olhei para o se agitando. O monstro lá fora rugindo, alto e dei um grito de vitória depois da luta rugindo. mortal que travei. Findo o evento restava-me cruel alternativa: permanecer ali no recinto ou sair para enfrentar o adversário no seu próprio Emerson Teixeira Cardoso Cataguases –MG
  • 34. João Antônio João Antônio Ferreira Filho, nascido em São no Brasil. O nome do conto é Um Dia no Cais, Paulo em 27 de janeiro de 1937, além de jornalista, é retratando o cotidiano dos trabalhadores do Porto de considerado um intérprete do submundo e um bom Santos. Ainda fez parte da equipe da revista malandro da escrita e da literatura. Sua linguagem Manchete, trabalhou no O Pasquim e outros órgãos rápida, suas frases curtas, lhe deram o título de criação de imprensa que se opunham à ditadura militar. do conto reportagem. Suas obras retratam pessoas Estranhamente, nos últimos anos da década de 60, marginalizadas, o proletariado, prostitutas e as figuras João muda radicalmente de vida. Sai do emprego, da periferia das grandes metrópoles. arrebenta seus cartões de banco, vende o carro e De origem humilde, veio de uma família de divorcia-se da mulher e passa a se vestir de forma comerciantes suburbanos de São Paulo. Teve que simples e despojada. Aparentemente influenciado pela aceitar diversos sub-empregos antes de ficar famoso literatura beat, na qual os autores viajavam e com o lançamento de seu mais lido livro de contos, relatavam suas experiências, João rumou por cidades Malagueta, Perus e Bacanaço, publicado em 1963. A obra brasileiras em 1978 e foi para Europa em 1985. Dois foi um sucesso entre os críticos e o povão, que via sua anos depois, após ganhar uma bolsa de estudos, cara descrita nas páginas do livro, mas o interessante mudou-se para a Alemanha e lá ficou até 89. Faleceu sobre esta obra é a maneira como foi feita. no Rio de Janeiro em 31 de outubro de 1996. Em 1960 o livro teve os originais queimados em um incêndio ocorrido na casa da família de João Antônio. Principais obras: Malagueta, Perus e Bacanaço (1963), O escritor e sua família perderam quase tudo, mas, Leão-de-chácara (1975), Malhação do Judas carioca (1975), crente de que precisava de dinheiro, João isolou-se Casa de Loucos (1976), Lambões de Caçarola (Trabalhadores dentro da Biblioteca Municipal Mário de Andrade e do Brasil!) (1977), Calvário e Porres do Pingente Afonso reescreveu todo o livro de cabeça. Henriques de Lima Barreto (1977), Ô Copacabana! (1978), Com o sucesso de Malagueta, Perus e Bacanaço, João Dedo-duro (1982), Meninão do caixote (coletânea) (1984), tornou-se jornalista e trabalhou no Jornal do Brasil. Abraçado ao meu rancor (1986), Zicartola e que tudo mais vá Participou da fundação de uma das revistas mais pro inferno! (1991), Guardador (1992), Um herói sem importante de sua época, a Revista Realidade, onde paradeiro (1993), Patuléia (1996), ete vezes rua (1996), publicou o conto-reportagem pioneiro do jornalismo Dama do Encantado (1996).
  • 35. A um palmo acima dos joelhos Você não brigue comigo, pequena. é dos outros e em gaiola não vive. Dizem, os E nem fique, sonsa, me encabulando com pardais também cantam. E só cantam essa sedução de olhos mansos. Eu lhe quando estão em turma. conheço, dengosa. Nada a fazer com a pardalada. Deixá-los. Que você nem era nascida. Então. Cumprem a sina que lhes é dada nas tardes e Este calor derreia a gente, é fevereiro, nas manhãs. Pardal nem anda; pula, pulula, começo de fevereiro no Rio, aguentamos mal andejo e voador, gorrião no mundo, os tenho e mal, pegajosos. E este suor. visto por aí tudo, pardal urbano, sempre, Mariuska, não fique boba. Não se ponha, inquieto, intrujão, metido, saído, mal toda ciúme, fula, por aqui, me rodeando e a lambido, bicão enfiando-se no que não é dele. medo, me palpando, esse modo inseguro de E um, Mariuska, pode viver muitos anos, agoniada. Seus olhos suplicantes saiam de aqui, alhures, em Amsterdam, na China. mim. Não queira agarrar os meus joelhos Gatunam e, aí, gatunar é o modo deles. com a boca para, depois, pousar a cabeça Nem me pergunte, de olhos, olhando para neles. eles e, após, indagando os meus olhos, para Não me pergunte com os olhos. Só estou que servem o pardal e o gato. Bem. Eles perdido em mim, criatura, olhando a linha do servem para nada e, também por isso, são horizonte. música do mundo. Nada, pequena, bobagem, é um nada. Ou é Você me dança esses seus olhos vivos, que muito. espetam e só faltam dizer. Faz pouco, lá em cima, no apartamento, você Digamos. Há de ser sempre, sabe-se lá, um fez a cena, feia. À toa, à toa. trabalho garimpeiro o de descobrir por que Abri a porta do terraço. Olhar alguma coisa uma pessoa, tantas idas e vindas após, e tudo nos varais e nas plantas, este verão tosta e passa tão depressa, acaba só. castiga, este solaço... dei com os pardais ciscando feito galinhas sequiosas ou meio *** ladrões, rápidos, numa agitação procurando Ouça. Tenho cada lembrança lá do morro e alguma aguinha caída daquela com que você nem era nascida. A vida lá no alto não reguei as flores. era ruim nada. Pulavam, precisados. Sofriam o calorão, De pequeno, tropicava em alguns pedaços vinham, gatunos, bicos abertos puxando a maus. Nada que me lembre do morro me respiração. Então, uma alegria grande me chega sem os gostos. Será difícil esquecer o entrou no peito. Eles são pequenos. E eu os gosto de fel de chá para os rins, chá de saudei: carqueja empurrado goela abaixo pelas mãos - Ô, pequenininho, você veio me visitar? de minha bisavó Júlia, apelidada Lula pela Voluntariosa, saída, ficou fera, ardida. Já lhe gente miúda, penca de bisnetos amulatados, falei, o ciúme mata um. Rói e remói: é um- mequetrefes, molecadinha impossível. Vó dois, verruma depressinha. Um-dois. Fique Lula, escura e geniosa, cabelos lisos maneira. Nenhum sofrimento inútil. Estou mamelucos, quem sabe, na mocidade, tratando com os meus fantasmas, me deixe. sensual e com certeza supersticiosa e de Você, indócil, aguarde. Coração ciumoso, arroubos imprevisíveis, acostumada atrapalha, sua. mandona. Tratava filhos, uns trezes, netos e, Ansiosa, tenha modos. depois, a bisnetaiada pela homeopatia. Os Qu’eu saiba ninguém dá jeito de domesticar doentes não tomassem café. um pardal, bicho avoado, entrão, toma o que Não brilhei, fui razoável.
  • 36. Havia o campo de malha, o de bocha e o cariocas no morro e, na empolgação deles, campinho de futebol, onde virei centro- embarcávamos, mordidos. médio. Não, corria um tempo em que não Não éramos tão urbanos. Para final, fazíamos existia meia-armador. Era centro-médio. paçoca no pilão, nossos curaus e pamonhas Chutava com os dois pés, cobria o meio de doces e não salgados como se diziam que campo, recuava ou avançava conforme o eram os do Norte… a paçoca do morro, veja andado do jogo e os mais atilados na posição, lá, levava carne pilada, o charque, o jabá. houvesse brecha, cavavam espaço e, Essa, de carne-seca, era daqui. Da ponta da pontudos, faziam gol. Eu, destro. orelha. De assim, para compensar, me treinei Batíamos o café em grão comprado nos repetido e solitário, e tanto, na perna armazéns na estrada de ferro. Tínhamos o esquerda que, na sequência, pendia para cuscuz paulista, com palmito, ovo, camarão abrir, armar jogo, lançador por aquele flanco. ou sardinha ou galinha, meio caiçara e Bem. admirado, falado. Invejado, sabíamos. Quando a luz elétrica nos veio, o morro teve Salgado, era primor, distinto do baiano, que é dois rádios por onde a vida do mundo, lá de branco e doce. E do pernambucano - outra fora, barulhava e chegava. Um, o rádio coisa. Bom mais ainda com manteiga, da enorme da venda de dona Otília e de seu salgada. Havendo manteiga-de-garrafa, se Augusto; outro, menor e simplezinho, da lambiam os beiços e se comia até ficar triste. minha tia-avó Elisa, carioca, asseada, um Fazíamos a carne-seca com mandioca cozida capricho na organização. Os dois quase desmanchando, e não frita. novidadeiros trazendo notícias, humor, E não fique aí boba, pequena. Que tínhamos radionovela, Jerônimo, o herói do sertão, forno em que fazíamos pão de milho, broa de Nhô Totico, a PRK 30, mel em chuvada de fubá, biscoito de araruta, bolos de farinha de riso, que a gente alcançava do Rio de Janeiro, trigo, assados em dia de festa. Havia Maria Joaquina Dobradiça da Porta Baixa, cabritadas no morro e Vó Lula, prevenida, portuguesa, espeloteada, casca-grossa e tão alma de quituteira, pedia aos santos nas mangada. Terminavam os números musicais, vésperas paz para esses dias. Cabritada era uma voz ajuntava: entra o disco das palmas. risco. Desabava o auditório e desabávamos no Poder, podia escorregar, destrambelhar para morro. Aqueles dois animadores foram malsucedida armando brigas, ingresias, primeiros; devo ter aprendido com eles que, desfeitas, mexidas, confusões. Fuá. Podia dar de algum jeito, é preciso rir de si mesmo. bode num forrobodó-de-cuia, rebordosa Irradiação dos jogos de futebol, paixão. Febre arrevesada, uma cabritada. Então, devagar mosqueteira, que o morro era, maioria com o andar, que o santo é de barro. O inflamada, corintiano roxo e sabia, de cor e seguro morreu de velho, mas a prudência foi salteado a escalação preta e branca, que ao enterro. Rogar aos santos, assim, era de terminava na linha de ataque: Cláudio, lei. Luisinho, Baltazar, Carbone e Mário. Ou Doce de marmelo, de goiaba, de laranja, de Souzinha, dependendo, na extrema esquerda. abóbora, de cidra, de limão, de coco, Dessa linha atacante, cada minúcia sutil e bananadas, ameixadas de ameixa amarela e muito singular, cada um de nós, molecadinha não da preta fumegavam no fogão a lenha e do morro, falaria uma semana. E, depois, Vó Lula, pontificou plena, principal. mais uma. Esclarecia. Para a cozinha era preciso mão. O que nos chegava. E vinham pela música as Ninguém se gabasse diante dela, que mãos novas de outras terras, baianas, nordestinas, cutubas tinha ela, mãos de rainha, dona, cariocas, nos fazendo imaginar, enfeitiçados, adonada, sabedora. meio aos suspiros, mordidos de curiosidade, uma porção de vidas diferentes, nossas desconhecidas e mais rurais. Havia baianos e
  • 37. José Antonio Pereira Olha eu na foto Ontem me vi numa foto de jornal. Está pouco de despeito. No final da festa dos com inveja? Estava em uma badaladíssima festa. cinquenta anos de casamento dos Bitencourt. Sem ressentimentos! Não é preconceito não. Procurando um champanhe, entrei na dispensa. Mas, gente chique é outra coisa. Olhe bem para Vi Nanete de quatro e Armando corcoveando-a a foto. Só gente bonita. Parece que a beleza é a com o desembaraço de amantes bastante maior parceira da riqueza. íntimos. Festa já varando pela madrugada. Eu lá firme. No casamento da filha dos Castro Lima, outra Presta atenção! Quem ainda está impecável? família de potentados, parecia-me que os Alinhadíssimo. Claro que é eu. Estilo herdeiros de toda a riqueza da cidade estavam despojado, sem relógio, cabelos bem aparados e presentes. Um horror! Quem não pertence ao corpo ereto. meio, está ferrado, vira mobília, é invisível. Entreouvia o diretor de um banco, tentando ser Herdeiros são terríveis. Deitam e rolam, são próximo da senhora da casa, ironizava os cruéis com os que não pertencem a sua casta. extorsivos juros cobrados. Nunca entre em uma Enquanto bebem, fazem piadas vis e grosseiras agencia bancária. Não passe nem mesmo em com seus empregados e todos os de baixo. O sua calçada. E eu continuava andando entre os Lula então? Onde já se viu? Um presidente, convidados. pobre, retirante cabeça chata e operário. Isto é Era sempre assim em recepções de famílias um absurdo! Só num país fodido como este tal tradicionais e riquíssimas, eu vestido em meu barbaridade acontece! impecável linho braspérola, engomado, lavado e Jussara, mulata bonita e atraente trabalha para a passado todos os dias. Na casa dos Bitencourt, família Castro Lima. Assediada e abusada pelo local da festa na foto, Dona Dalva não permitia patrão, é mantida no emprego sobre ameaças perfumes, era proibido. Ela, com requinte, batia dele. É constantemente humilhada e perseguida palmas compassadas, para chamar os serviçais. pela patroa. Nesta festa, Jussara e outras Tinha o topete de mandar o Armando, seu mulheres que trabalhavam no evento, sofreram o mordomo, cheirar todos os empregados para ter diabo nas mãos dos herdeiros já entupidos de certeza que sua proibição era respeitada. Botava cocaína. reparo até no aparado das unhas. Na cozinha, Como sei de tudo isto? Olhe novamente para a não sei se por ressentimento, Nanete, uma foto. Ainda não me achou? Ninguém me nota. ajudante dizia: Armando é vinte anos, mais Sei que em todo lugar é assim, sou invisível. novo que a patroa. É o bichinho de estimação Olhe bem, no canto direito da foto, ao lado do favorito dela. Cheia de veneno: Principalmente diretor do banco. Isto! Este mesmo! Por que o nas ausências do Doutor Bitencourt. Vai aí um espanto. Eu sou o garçom.
  • 38. Rubens Shirassu Jr. Ilustrador e escritor Rubens Shirassu Jr paulista Peixe (crônicas, 2004) e Muito Macho na Cozinha de Presidente Prudente é autor de entre outros de e Outras Crônicas (2010)e Novas de Macho na Cobra de Vidro (poemas,2012) Religar às Origens Cozinha e Outros Ingredientes II (Clube de (artigos e ensaios, 2011); Mais Molho e Menos Autores, 2012). Fora da hora Enquanto o bafo do mormaço bate Só sei que havia um sol escaldante e, apesar do em meu rosto, ouvi apenas o canto de um galo calor sufocante, que embaralhava meus rompendo o silêncio preguiçoso da tarde. Nem pensamentos misturando-os a um som que sei de onde viera, só sei apenas que estava passa desapercebido no turbilhão de próximo de minha casa. É apenas um galo e seu pensamentos, de pernas e veículos correndo canto que trazia um clima brejeiro, de sopro que giram a máquina registradora do mundo vida e, isso dá uma alegria e tem uma beleza de da civilização. Em meio aos recursos visuais vida simples, natural e ingênua, sem das placas e fachadas, aos múltiplos sons, a compromisso. É um momento apenas. cena se perdia.
  • 39. Será que alguém nota o galo que canta numa agosto, tivesse dançado ateu no ar. Depois, aos tarde, em plena zona norte da cidade? poucos, foi se acendendo um carmesim, de Como uma figura campestre e exótica em cigarro de palha de milho, e sob ele o mar de contraste com a selva de cimento, aço, plástico concreto espalhou o cheiro de roça. Imaginei o e antenas. Esse nosso personagem foge da calor das famílias na varanda, arrumando coreografia da sinfonia concreta, porque traz casamento e a vida alheia, do jeito de tribunal uma natureza morta em nosso horizonte sujo, do júri, prestando contas no confessionário do embaçado pela fuligem dos escapamentos e padre da paróquia, deixavam o galo, orgulhoso chaminés, talvez, seja um cantor para e soberano no terreiro e galinheiro. despertar... Por que aflora dentro de mim, uma Mas o bem-estar leve, quase suave, como se eu imagem adormecida, em sono profundo, quem tivesse, de repente, despertado de um transe sabe, anunciando um verde esperança? profundo, trouxe-me um pensamento que Eu tentava fixar o galo com os olhos do aprendi com os antigos vizinhos e coleguinhas espírito, ao jogo de intensa luz. Pode ser um de escola: os galos cantam entre às 4 ou 5 da momento feliz, e em si mesmo talvez fosse, e madrugada, na alvorada de um novo dia, aquele singelo quadro da natureza morta me sinalizando a hora do retireiro ordenhar as fez bem, mas uma fina, indefinível angústia me vacas no curral, enfim, os compromissos da vem misturada com esse fenômeno sonoro e gente do campo. Será que o desrespeito do fotográfico. homem com a natureza onde ocorreram as Devo estar saudoso de minha infância na Vila mudanças nas estações do ano, o excesso de Marina e no Parque São Judas Tadeu, quando asfalto que interferiu no escoamento da chuva, o galo cantou às 15h50. Mas deixei minha o desmatamento das florestas, a poluição dos pouca alegria para mirar com um vago sorriso rios, a migração de aves e animais à área perdido no espaço. Era um instante de graça e urbana, alterou o relógio biológico dos galos felicidade. Um momento de raro prazer sonoro. entre outras espécies da fauna? Um garoto dirá Senti a necessidade de mostrar aquele fato raro que o galo ficou desconfigurado! O sentimento às pessoas que prezo: “Escutem, o galo cantar a era de que aquele momento luminoso e poético essa hora...” Mas, o prazer daquela audição me soa como um alerta. Dentro de minha cabeça bastava. Porém, refleti que mostrar por houve um torvelinho de milhões de mostrar ou, quem sabe, para repartir aquele pensamentos misturados aos tons pretos, instante de beleza como quem reparte um doce, cinzas de tristeza e perplexidade expostos nesse como sinal de estima e de simplicidade; em quadro impressionista. sinal de comunhão ou, talvez, para disfarçar o mal-estar com o vazio da vida atual. Aquele som tão vivo era todo solto, de meus ouvidos, uma palpitação no coração. Eu queria me aproximar, aquele galináceo que anda sem rumo e seu canto, passando entre a cortina branca que realçam os objetos em cima da mesa e a parede creme. Mas, a barra do dia entre a cortina era uma vaga música dos tempos do chão de terra, a cerca de balaústre e Rubens Shirassu Junior a mornidão da rotina dos dias interrompida Presidente Prudente –SP pelas boiadas guiadas pelo tropeiro, o aroma característico de fumo de rolo parado no ar misturava a poeira amarelada que pairava no ar. Na segunda-feira de carnaval, havia nuvens leves, espalhadas em várias direções, como se durante a noite o vento seco, semelhante a
  • 40. Antônio Jaime Produtores de fitas Gente mais antiga no meio mudando-se depois para o Rio. Luxento, tipo cinematográfico chamava filme de fita, como se contratar Ângela Maria ou Carlos Galhardo para sabe. E cinema, a sala de projeção, era casa. Daí cantarem no aniversário da filha, em sua casa. que, na filial da Embrafilme em São Paulo, ouvi Quando morreu, o médico contou à filha que o gerente falando ao telefone: “A fita dos tinha uma frase tatuada no piru: Tutto per te. Trapalhões dobra em Ribeirão? Nas duas No Rio, as produtoras às vezes nem tinham casas?”. Por lei, se uma fita atingia a freqüência água de beber, já em Sampa rolavam queijos e média numa casa, reprisava na semana seguinte vinhos, por aí, depois das reuniões. Ou um café e por isso A noviça rebelde ficou 53 semanas em caprichado no Maksoud Plaza. Gostaria de ter cartaz no Cine Palácio, no Rio. Já O anunciador, conhecido lá o produtor Primo Carbonari, nome uma semaninha, no Paissandu. de mafioso, mas fiquei com Aníbal Massaini, Produtor que chamava filme de fita, só Enzo Barone, Assunção Hernandes e César conheci Mario Falaschi. Ele e seu irmão tinham Mêmolo Jr. Este, puto com o fracasso de O um hotel na Itália, onde se hospedava uma Homem do Pau Brasil, de Joaquim Pedro de família paulistana. Gostou de Brasilina, uma das Andrade, e Ato de Violência, de Eduardo moças daquela família, veio para São Paulo e Escorel, decidiu nunca mais produzir cinema, só casou-se com ela. E com a leva de italianos que comerciais de TV. vieram fazer a Vera Cruz, entrou para o cinema,
  • 41. Mas cumpriu o doloroso dever de ressarcir com Dona Lucíola (mãe de Lucy), a “Vovó a Embrafita (êpa!) por aqueles rombos. O Donalda”, porque fazendeira em Goiás, sócia do normal era rolarem a dívida, contando com um Unibanco, por aí. sucesso futuro. E nem todos tinham dinheiro Mais uma: na première de Bye Bye Brasil, vivo ou o caráter de Mêmolo. no Rian, chegou de surpresa um amigo Em geral, todo cineasta abre uma americano de Barreto. Gente até no chão, o jeito produtora, para facilitar as coisas. Daí alguns era desalojar alguém e ele escolheu uma mulher folclóricos, como um tal William Cobbett. Parece desacompanhada: “A senhora é penetra? Cadê o pseudônimo, mas era seu nome, mesmo, e convite?”. Betty Faria ouviu e acudiu: “Quê isso, cearense. Ganhou uma boa grana distribuindo Luix Carlox, é a Josefina, peça dexculpax”. aqueles filmes russos que vimos pré-64 e Ninguém menos que Josefina Jordan, ícone da produzia uns abacaxis, tentando vendê-los como sociedade carioca. Ibrahim, Zózimo e outros arte. Mesmo gente de mais prestígio, como os deitariam na sopa e o cinema tupiniquim, já tão Farias, não escapava das más línguas. Diziam sem cartaz, pois é. que Roberto ia à missa todo santo dia, pagando pecado, por viver em concubinato e, nos fins-de- semana, toda a gang se reunia em Friburgo, para a missa-mor, com a matriarca da família. Me dei bem com eles, disseram que em 30 anos de produtora ninguém entendeu melhor o que queriam dizer. Obrigado. Agora, a barretada. Deu para perceber que são muito francos e não de todo elegantes. Estive Antônio Jaime Soares “n” vezes na casa deles e, numa delas, subi de Cataguases –MG elevador com Lucy, Luiz Carlos e uma vizinha, que levava um ramo de flores. Lucy tapou o nariz: “Que cheiro horrível”. E Luiz Carlos: “Cheiro de jasmim”. E ela: “Cheiro de defunto, isso, sim”. Na cara da mulher, fiquei com vergonha por eles. Comigo, tudo bem. Só estive uma vez com Bruno, outra com Fábio e várias
  • 42. José Vecchi José Vecchi de Carvalho nasceu em Um dos autores de A Casa da Rua Alferes e Cataguases, atualmente mora na cidade de outras crônicas. Com suas crônicas e contos é Viçosa, aqui mesmo na Zona da Mata Mineira. dos colaboradores do Chicos desde suas primeiras edições. Anatomia das pernas Inesquecíveis pernas. Tão presentes em obstinado contador de histórias que meus pensamentos e visões que vez por Zemeckis fez correr por um país inteiro, outra causam-me tamanha desordem, ao ultrapassando tempos e fronteiras. ponto de eu me deixar levar por Pernas que zombaram da insensibilidade devaneios, urdindo esdrúxulas e dos preconceitos. comparações. Hoje mesmo, após o almoço, sem Dias atrás, num pequeno espaço mais nem menos, lembrei-me das pernas de tempo concedido involuntariamente inesquecíveis do Mané Garrincha: tortas, pelo descuido do chefe da seção onde desengonçadas, pareciam se chocar uma trabalho, vieram-me à memória as pernas na outra, mas com uma habilidade de Tom Hanks, digo, de Forrest Gump, o invejável.
  • 43. Os dribles desconcertantes deixavam tendões, ligamentos e meniscos, mas pela perplexos não só os adversários, mas harmonia entre as partes que provocam também, os companheiros, o treinador e em mim a impossibilidade de vê-las ou todos os torcedores presentes nos imaginá-las separadas. Separá-las seria estádios. Pernas mágicas que pareciam rasurar uma prova documental, pichar brincar com a bola, com o jogo, com as um monumento, cortar cenas de um pessoas; pareciam rir de tudo e de todos, filme, coibir a beleza. não com desprezo ou superioridade, mas Quando a dona era uma menina de com um jeito ingênuo e moleque; era um doze ou treze anos, tais pernas não me bailar ilusionista que confundia o mundo foram tão impressionantes. O músculo num piscar de olhos e arrancava suspiros vasto lateral, o reto, o bíceps da coxa, o e aplausos nas arquibancadas. gastrocnêmio e o tibial anterior não eram No entanto, essas famosas pernas suficientes para encobrir fêmures e vêm-me à tona sem o menor nexo com as rótulas, tíbias e fíbulas. Voltei a vê-las, que, de fato, me impressionaram ao porém, quando sua dona ia já com seus ponto de eu ter que despejar no vinte e cinco anos. Levei um susto inconfidente papel minhas perturbadoras enorme e tive que me conter para não sensações. Omito o nome da dona não deixar reveladas as minhas reações. por alguma razão que alguém possa dizer Por baixo de uma saia bege que ia que seja óbvia, aliás, não existe nada de pouco abaixo do quadril, passaram por óbvio na omissão de um juízo diante de mim duas belas e desconcertantes pernas, uma obra-prima. Omito porque tenho a atravessaram a rua no sentido da calçada impressão de ver essas pernas com outras em que eu me encontrava procurando um donas; e também, por alimentar a ilusão endereço que só voltei a procurar dias de guardar só para mim a deliciosa depois. Mesmo assim, ao voltar ao local, sensação que tive. Aproveitando a seção no mesmo horário de antes, procurei de das justificativas, peço desculpas aos um lado a outro da rua, buscando a visão estudiosos da anatomia humana, mas estonteante que tive dias atrás. A cor da trato aqui das pernas e das coxas sem pele, a firmeza delicada dos músculos, os separação; unidas não só pelo joelho, com contornos, as medidas... tudo sua belíssima articulação gínglima, seus desmedidamente belo e atraente.
  • 44. Pernas lisas e certas, que proporcionavam à dona um caminhar leve e fascinante, salientando a exuberância e o menear compassado das nádegas. Em mim provocaram algo como uma hipnose, com a cor num tom moreno indescritível e inigualável. Além disso, com um movimento que era uma coreografia sensual, perfeita. Confesso que perdi o fôlego e o rumo, como perco aqui as palavras para qualificar tamanha beleza. Um dia desses, tais pernas elegantemente cruzadas sob a negligência de um índigo fizeram-me ver a dona que não era. E depois daquele dia tem sido sempre assim. Procuro nas menores oportunidades e penso vê-las aqui e ali. Pernas lascivas, mágicas, ágeis que parecem me driblar; parecem rir de mim; percorrem e atravessam meus territórios, meus sonhos e insônias, enfim, dias e José Vecchi Viçosa –MG dias, deixando como rastro minhas divagações e intumescências. Mas no real, no palpável, desaparecem. Passam por mim como se eu fosse um zagueiro ineficiente. Acho que por isso, busco nas comparações, mesmo nas mais desconexas, uma forma de prendê-las. Inesquecíveis pernas. Tão presentes em meus pensamentos e visões...
  • 45. Ferréz Ferréz, nome artístico de Reginaldo Ferreira da Ferréz já publicou diversos livros, entre Silva, é um romancista, contista e poeta. Ligado a eles Fortaleza da Desilusão (1997), Capão corrente considerada literatura marginal por ser Pecado (2001), Amanhecer Esmeralda (2005) desenvolvida na periferia das grandes cidades e e Ninguém É Inocente em São Paulo (2006). É tratar de temas relacionados a este universo. fundador do 1DaSul, grupo interessado em Dotado de linguagem influenciada pela variante promover eventos e ações culturais na região do linguística usada na periferia de São Paulo, Capão Redondo, ligados ao movimento hip-hop. ‘Quem não pode falar escreve’ Nascido e criado na zona sul, quando pequeno dizia que queria ser engenheiro; o pai achava a profissão bonita, o filho mal conseguiu terminar o segundo colegial, tinha que ajudar nas despesas de casa. Namorou com a mesma menina por dois anos, mas ela não viu futuro – a casa dos pais dele, de dois cômodos, não dava pra subir laje. Somente seis meses depois de terminar o curso, Marcos conseguiu JB Neto/Estadão emprego numa contabilidade. Chão ensanguentado em bar do Campo Limpo, palco da primeira chacina do ano
  • 46. Depois de trabalhar por 23 anos como Polícia comunitária, um termo bonito, mas o empregada doméstica a tia de Marcos havia sapato estava na cabeça de Marcos, a mão comprado um carro, e graças a Marcos ia direita na água suja que descia pelo canto do deixar de pegar ônibus toda sexta para voltar calçada. do serviço, onde passava toda a semana A mãe de Marcos vendo a cena chegou perto e limpando a casa e cozinhando. Marcos seria convenceu os policiais, explicando a origem do seu motorista. Em contrapartida, pagou o carro. Marcos se levantou, a cabeça suja de curso para o sobrinho, e deixava o carro a terra, os olhares dos vizinhos. Não teve ódio, semana toda com ele. Os vizinhos nem sequer ficou revoltado. Chegou no seu comentavam que o rapaz, agora andando de barraco, olhou para a camisa toda suja, uma das social e com o carro, teria um futuro na vida, três que tinha para ir trabalhar, ajoelhou em que finalmente alguém daquela comunidade frente à estátua de Nossa Senhora Aparecida e havia vencido. agradeceu por estar vivo. Marcos parou naquela sexta-feira no Três horas depois disso, 15 homens estavam mercadinho. Sempre sorridente, sendo revistados num bar no Jardim Rosana. Os cumprimentou todos e foi comprar uma cera. policiais chegaram de repente, miraram os Deixaria o carro brilhando como a tia gostava, revólveres, nem o dono do bar escapou da para ir buscá-la. revista. Terminaram o enquadro, entraram nas Entrou no carro com o pacote, ligou na Antena viaturas e disseram: 1, sua rádio preferida, as músicas o deixavam – Boa noite, fiquem com Deus. calmo no intenso trânsito. Colocou o cinto de As conversas foram retomadas no bar, um deles segurança e viu a viatura da Polícia Militar falava sobre os ganhadores da Mega Sena, outro parar. Logo foi pego pelo colarinho e arrastado falou que ia tomar a saideira, a patroa em casa para fora do carro. Tentou falar, mas a voz do já devia estar nervosa, um que voltava do policial militar sobrepôs a sua. banheiro ria dos que haviam sido abordados, – Ladrão de carro filho da puta. dessa ele tinha escapado. – O carro é da minha tia –, tentava falar Os minutos se passaram, mais duas cervejas enquanto outro policial jogou ele atrás do foram pedidas, a conversa agora foi para o carro e pisou em sua cabeça. Marcos olhava Corinthians abalando o Japão. Mais alguns para o sapato, estilo social que nem o seu, algo minutos, a rua quieta, só as conversas no bar. pensado no novo uniforme da PM para dar Foi quando se fez a matemática perversa, 14 aspecto de menos hostilidade, como antes homens encapuzados, olhos arregalados, uma tinha a antiga farda e o coturno. cadeira cai no chão,
  • 47. a vizinha ouve barulhos, deve ser bomba de vida. A pressão pra fazer algo é grande, nem comemoração. Catorze braços atiram em sempre externa, mas o dono da padaria quem estava dentro do bar, nove são baleados, pergunta se não vamos fazer nada, a mãe de um sete morrem, a conversa acaba. O cheiro de amigo me para na rua e diz: pólvora domina todo o ambiente, o dono do – Não somos animais, não somos ratos para bar se arrasta com um ferimento na perna. morrer assim. Quando chamei meus amigos no sábado de O estudante que tem que voltar para casa após manhã para encaixotar livros e fazer a pintura 11 da noite não sabe como vai fazer, a mãe fica na ONG Interferência, não imaginávamos que acordada todos os dias com medo de o filho não horas depois estaríamos num cemitério. regressar; o cozinheiro do restaurante fino O coveiro chega perto do Evandro e diz: trabalha a noite toda, a mulher pediu para ele – Você aqui de novo, cara! É a terceira vez que dormir por lá para evitar o pior. A conversa saiu te vejo essa semana. do meio comum, um enterro cheio de gente Evandro fica sem graça, vai comprar uma igual, sofredora, onde a conversa principal é água, realmente não queria voltar ali, mais um como vamos sair de casa de hoje em diante. amigo para enterrar. Pressionar politicamente parecia ser o caminho, O muro do lado do bar onde aconteceu a mas tal deputado num atende, tal vereador tá de primeira chacina do ano estava pichado. férias, não se convive com quem toma decisões, Quem não pode falar escreve. "Unidos estão todos longe daqui, quem mora aqui sabe o venceremos as batalhas da vida". Versos do tamanho do risco, mas muitos também rapper que acabou de lançar o primeiro CD, assistiram O Pianista. depois de muitos anos de batalha, o mesmo Nunca em minha existência aqui tinha visto rapaz que tem um avô chamado Lino, uma tantas pessoas comuns revoltadas, esse não é o esposa chamada Raiane, um filho chamado mesmo País que anunciam na televisão. O que Ryan e uma mãe chamada Lilian. ninguém pensa é que, infelizmente, isso tem Um verso de esperança de um jovem que não mão dupla, porque quem sai pro crime sai mais sabia que por estar num bar sua vida estaria violento. atrelada à primeira chacina do ano. O morador de periferia hoje se sente "Nunca desista nem se sinta inferior, seja desamparado, tem sua liberdade estrangulada, forte, seja nobre, um guerreiro lutador". Letra cerceada. Sem Sesc, centro cultural ou casa de do grupo de rap do DJ Lah, também presente cultura nas favelas, a antessala de estar de todo no bar, o último lugar em que estaria com mundo é o bar.
  • 48. O cidadão comum que levanta quando é simpatizantes da Rota, a tropa de elite da PM escuro, que cuida do ensino da elite e não tem paulista) a gente tá com medo também. uma escola de qualidade para seu filho, que Eu entendo o repórter, de uma chacina para faz a comida deles, cuida de sua segurança, e outra, da leste pra sul. Olho sua mochila, calça não tem segurança onde mora, não quer morte larga, cara de cansado, na faculdade não – nem de farda nem de bombeta. falaram que ia ser assim. A segurança individual está em segundo plano A solução agora não é só a investigação, mas a perante a morte sistemática de inocentes. emergência é pela não repetição. A questão Quem vai gritar se as vítimas forem do crime? policial também é cultural, desde a abordagem Quem vai meter a cara? Foram 24 chacinas, e até o jeito que tratam a comunidade e, por se só algumas das 80 vítimas têm passagem, a consequência, são tratados. tendência é menosprezar o ocorrido, fica Quantas vidas podem ser salvas se procurarmos legitimado o ato. soluções reais, não tapa-buracos. Ajudaria se o A periferia da década de 1980 teve grandes discurso não fosse vago, se a certeza da mudanças. No caso das chacinas, o modus impunidade não fosse tão presente. Um operandi mudou. A periferia, com suas casas discurso articulado do secretário de Segurança na maioria de madeira, tinha pavor dos grupos pode ser o início, real empenho na solução das chamados de pés de pato. Hoje, associam mortes pode brecar algo que pode tomar essas ocorrências ao único representante do proporções irreversíveis. Estado presente aqui, a Polícia Militar. É Saímos do Cemitério Jesuíta, calças largas, proposital, oprimir sensação de terror, está bonés, frases das letras de rap na camisa, hoje dando certo, as mães cabisbaixas, sete somos o tema das letras, a canção será mais enterros, três da mesma rua, o filho chorando triste quando for ouvida, e quando íamos cruzar na beira do caixão, o repórter que chama a a avenida, mais um enquadro, todo mundo na gente no canto: parede. – Pô, as pessoas acusam a imprensa, mas Um ônibus para, algumas pessoas que estavam quando chego nas chacinas, vou fazer a no enterro descem, a polícia teme, o povo matéria, a primeira coisa é ser abordado. A avança, um dos rappers está sendo revistado, polícia pede meus documentos. Cara, depois um menino chega perto do policial, olha pro do que aconteceu com o (André) Caramante alto, bem nos seus olhos, o policial nota os olhos (repórter policial da Folha de S. Paulo que teve úmidos, o menino diz. que sair do País após ser ameaçado por – Acabamos de vir do enterro, vocês não respeitam nada?
  • 49. Sebastião Nozza Bielli Lotti O buraco Abre a porta envidraçada da varanda e joga a andar em torno, e a profundidade, ao usar uma interjeição de negro humor no espaço. um cabo de vassoura achado próximo ao latão. Tão indignado com o buraco! Também parece procurar coisas jogadas por Dois homens opacos, que cultivavam o alguém - todo mundo tem mania de jogar hábito de fumar de cócoras, vieram com as coisas num buraco - e, quem sabe, o possível picaretas e as pás. Cavaram o dito cujo e, após peixe imaginário na água da chuva? Até que o filosofarem ( ou falavam de coisas técnicas?) tédio do buraco o engole e ele titubeia em sua por uma tarde inteira em torno da enorme volta, felizmente, sem cair. Acordando para o cavidade, bem próxima ao latão onde os dia luminoso, sai correndo atrás de novas moradores da pequena rua depositam o lixo, emoções. sumiram Um buraco, a princípio, é apenas uma Uma semana, ele contava... Oito dias... E cavidade, mas, com o tempo, vai adquirindo nada. Do alto do seu avarandado, procurava proporções que o aproximam de um elemento entender. Toda manhã olhava o céu, tentando metafísico; improvável de se medir o tamanho. desviar a atenção daquele estorvo, mas todo É um vácuo aparente, talvez um espaço vazio buraco possui certo magnetismo e nem sempre cheio de incongruências. Ninguém caiu e é necessário botar um aviso com letras quebrou a perna, ou um veículo descuidado vermelhas; ao vê-lo pela primeira vez, o alerta resvalou por ele, enquanto buraco, contudo, “cuidado” já se fixa na mente. era um buraco repleto de iminências. A rua foi ficando mais barulhenta com os Da varanda, ele passou a falar alto para que motoristas, que se atrapalhavam. O menino os vizinhos ouvissem, da precariedade do olha o buraco como um acidente no cenário serviço público, a falta de respeito com os onde costuma brincar e passa a pesquisar sua contribuintes: “Uma vergonha!”. real dimensão: a circunferência, quando se põe
  • 50. E o buraco metafísico e possivelmente A vizinha teve dengue e precisou se perigoso, virou um buraco político. internar no hospital. Os carros, que se viam Nenhuma informação sobre a necessidade obrigados a usar parte da calçada, devido ao e o porquê da obra. As pessoas passavam e exíguo espaço nas laterais, com as precárias coçavam a orelha. tábuas escorregadias protegendo as Enquanto, da casa mais próxima, a mulher na escavações, passavam por momentos difíceis, janela olhava com desdém: além do latão de precisando contar com a ajuda dos pedestres, lixo que os gatos e os cães reviravam durante a até que um deles derrapou e acabou dentro do noite - ela ficara indignada quando ali o enorme fosso. Foi preciso apelar para o colocaram-, agora surgia mais esse elemento guincho e o motorista berrando no celular, antiestético para atrapalhar a sua cotidiana ameaçou processar a prefeitura. distração. Um dia, os homens voltaram. A A mulher que o acompanhava, com duas esperança de que agora resolveriam de vez crianças em uniformes escolares, teve uma aquela situação tornaram “os bons-dias” mais crise de nervos, ficando toda suja de lama. A afáveis. vizinha da frente trouxe água com açúcar e o Lendo o jornal na varanda, ela observava o camburão da PM parou na esquina. Os terceiro operário, que não fumava de cócoras, policiais tentaram intimidar o homem que andar até a extremidade da rua e voltar berrava. O guincho demorou a aparecer e o silenciosamente, parar para conversar com os tumulto foi geral, com a rua cheia de outros dois. Ele achou estranho porque o espectadores. pessoal do caminhão do lixo e as mulheres da Ele já não lia mais o jornal na varanda e limpeza que varriam a rua com as vassouras de evitava sair. As obras duraram quase três bambu eram terrivelmente barulhentos. meses, mas, dias antes de completar o Alguma coisa estava acontecendo... Passaram a segundo, ele arrumou a mochila e fugiu para tarde inteira assim, confabulando. Começou a as montanhas. chover e eles saíram. Choveu a noite inteira. No dia seguinte, às sete horas, voltaram e começaram a cavar dentro do barro espesso. O buraco foi crescendo lentamente por toda pequena rua sem saída, em direção ao magro rio apodrecido, onde, décadas atrás, nadava com os sobrinhos. As chuvas voltaram e se avolumaram, Sebastião Nozza deixando os moradores daquela área Bielli Lotti preocupados com a possível enchente. Os Cataguases –MG trabalhadores, de novo, se ausentaram, retornando só três dias depois, quando a estiagem parecia definitiva. Apenas os três homens, com instrumentos rudimentares. E o buraco, paulatinamente, ia se transformando numa vala que virou um canal, quando as chuvas voltaram. A lama amarela tornou a rua intransitável. Os trabalhadores, de novo, deram no pé, aguardando outra estiagem, que não ocorria.
  • 51. Ronaldo Cagiano Os novos ases de Cataguases Em recente artigo intitulado “Uma cidade de pioneiro de Humberto Mauro, responsáveis escritores”, publicado no suplemento “Fim de pela definitiva posição de Cataguases como Semana”, do jornal Valor Econômico, um dos cidade de efervescência intelectual e mais lidos pela classe empresarial do país, o inclinações vanguardistas, que acabaram por escritor conterrâneo Luiz Ruffato faz um projetar-se em outros campos, alcançando as minucioso e fiel panorama dos nossos diversas linguagens. movimentos literários, a partir da eclosão da Não é de hoje o assombro causado por esses revista Verde (1927-1929). fenômenos culturais que de época em época Sua análise ressalta a ousadia e importância da aqui pipocam, apesar de alguns períodos de chama inicial acesa pelos jovens Rosario Fusco, ostracismo, uma espécie de reafirmação Ascânio Lopes, Guilhermino Cesar, Francisco genética do DNA de uma intelligentsia que só Inácio Peixoto, Camilo Soares, Fonte-Boa, aconteceria às margens do Pomba. Nesse Oswaldo Abritta, Martins Mendes e Enrique de sentido, não foi inusitado nem hiperbólico o Resende. Ao mesmo tempo assinala a espanto que na década de 20 despertamos no convergência de outras manifestações artísticas resto Brasil, tendo levado Ribeiro Couto a uma e culturais na esteira dos ventos estéticos perplexa constatação: “Todo o Brasil está renovadores deflagrados com o cinema surpreso: existe Cataguases!”.
  • 52. E hoje a reação não poderia ser outra, pois são um trabalho aglutinador ao intercambiar tantos os nomes e as obras produzidas com autores nacionais e estrangeiros; Sônia Bonzi, qualidade de lá para cá. Não é demais registrar Antônio Jaime Soares e Washington os momentos que justificam a consciência Magalhães, cronistas de primeira. Abre-se um endossada por Ruffato de que tudo aquilo parêntesis para uma nova voz que surge nesse “parece ter se transformado num celeiro de ambiente criativo: a do ficcionista Diogo talentos”. Aquela semeadura que produziu Andrade que, embora não tenha livros colheitas de primeira linha (Lina Tâmega, publicados, vem demonstrando grande Francisco Marcelo Cabral, Henrique Silveira, as potencial em textos publicados na imprensa irmãs Maria do Carmo e Celina Ferreira, local e na internet, um talento em ascensão. Ronaldo Werneck, a família Branco (Joaquim, Em outras regiões pontificam as obras de Aquiles e P. J. Ribeiro), Fernando Cesário - outros cataguasenses: Marcos Bagno, um dos autor que nada deve aos grandes ficcionistas mais importantes lingüistas do País, nacionais, pela alta voltagem estética e pelo reconhecido internacionalmente; Marcelo compromisso ético de sua escritura -, Márcia Benini e Mauro Sérgio Fernandes (em Carrano, Plínio Filho, Sebastião Carvalho e Brasília), Delson Gonçalves Ferreira, Luiz Lecy Delfim) desaguou numa recente e Carlos Abritta, Flausina Silva e Laly Cataguases promissora geração, autores que independente (em Belo Horizonte), Tadeu Costa, José Santos da faixa etária em que começaram a produzir e Eltânia André (em São Paulo) e Fernando literatura, vêm se constituindo num novo Abritta (em Juiz de Fora). Um time sem igual. patamar na bibliografia cataguasense atual, Mais do que celebrar essa pujante realidade, é muitos deles radicados em outras cidades. necessário tornar público aos leitores e inserir Esses ases contemporâneos trazem hálito novo nos programas didáticos das escolas o estudo ao cenário de nossas letras, com destaque para desses autores e obras, não como numa reserva Marcos Vinícius Ferreira de Oliveira e de mercado para a grade didático-pedagógica, Leonardo de Paula Campos, duas vozes mas como possibilidade críticoreflexiva, para distintas e seguramente exponenciais uma compreensão dessa tradição a partir do nesses novos tempos, pela qualidade e universo criativo de cada um deles. maturidade de suas obras; José Antonio Pereira e Emerson Teixeira Cardoso, este Publicado originalmente no “Cataguases” em 09/11/2012 desde os tempos da revista ‘Trem Azul” e agora com a “Chicos Cataletras”, vêm publicando Ronaldo Cagiano São Paulo - SP poemas e textos ficcionais e críticos, realizando
  • 53. José Antonio Pereira Um olhar enviesado sobre Vicente reunimos para assistir algum filme de seu Faz algum tempo que estou querendo fantástico acervo. Livros e filmes, são algumas escrever algumas linhas sobre o último de nossas paixões e das mais antigas. romance de Fernando Cesário, mesmo porque Vicente, o personagem, faz parte de uma me pareceu ao término da leitura, que Olhos geração que viveu o início do golpe militar lá vesgos de Maquiavel não é livro para leituras em 64, ainda um menino em sua escola. apressadas. Fiquei algum tempo deglutindo Adulto volta ao seu antigo ginásio, como algumas passagens e ruminando minhas professor e, a ditadura ainda teima, persiste memórias. Afinal me senti, e de certa forma fui, nos seus mais de vinte anos de existência. contemporâneo do narrador. O autoritarismo molda ao seu feitio aqueles Fernando é amigo de velha data. Estudamos que vergam com facilidade a espinha, já os que nas mesmas escolas públicas de Cataguases; não se deixam dobrar são perseguidos até por crianças, frequentávamos a igrejinha da vila, bedéis, simplórios acólitos de um poder conduzidos por nossas mães, fervorosas estabelecido pelo medo. Sua escola, lá atrás, católicas. Também fomos vizinhos e depois de foi responsável por uma formação mais muitos anos de andanças e mudanças, mais humanista, incompatível com a doutrina da minhas do que dele, novamente, voltamos a ditadura, que se fiava o tempo todo no terror e nos tornar vizinhos. Regularmente nos na delação.
  • 54. Os ditadores e seus títeres trataram logo de Além da amizade, o que torna estas linhas ainda um reformar o ensino, parecendo que o único tanto quanto tendenciosas, é ter encontrado entre objetivo era afastá-lo do livre pensamento. Uma os personagens, um que se inspira em Antônio das inadaptações do novo professor deriva desta Pereira, meu velho, o que me deixou bastante feliz. incompatibilidade entre as duas escolas. Seu amadurecimento em tempos de angústias ideológicas, violências físicas e morais, transformam sua vida em uma agonia existencial sem fim. A censura, o estado policialesco torna sua pequena cidade um lugar vazio, oco, os relaciona- mentos artificializam-se, mentem uma lealdade inexistente. Como sempre, em meio às ditaduras, ou por medo ou por conveniência, muitos não titubeiam em covardemente, cometer traições. É neste pantanoso ambiente, de uma escola onde do diretor ao bedel campeia a delação que vai tentar trabalhar Vicente. Em meio a isto surge uma aluna adolescente que transforma sua vida em uma montanha russa de sensações e ações. Professores vivem no fio da navalha; adultos, vivem cercados de adolescentes “transbordando” hormônios, descobrindo seus corpos e latejando sexualidade. Imagino não ser nada fácil, controlar o despertar das “paixões” e suas próprias excitações. Já Vicente, quem sabe por ter tido Nabokov como uma das suas leituras adolescente, deixou-se levar por esta Lolita, querendo que se revelasse uma machadiana Capitu, José Antonio Pereira Cataguases - MG numa fantasia que subvertesse aquele tempo de obscuridade e frustrações, com a beleza irradiada por aquela mulher-menina. Fernando constrói o romance como cineasta na moviola, faz cortes que tira o leitor de um rumo previsível, atiçando-o a reflexões. Curtos trechos de notícias reais vão balizando a temporalidade da narrativa. É um romance instigante.