Edição no 23 do jornal Boca do Inferno traz:
1) Textos de alunos de letras da Universidade de Zagreb, na Croácia, sobre literatura e cultura lusófona.
2) Semana de avaliação do curso de letras da UFPR para discutir o currículo e destinos do curso.
3) Dossiê com trabalhos acadêmicos e contos literários de alunos croatas sobre autores e temas lusófonos.
1. EDIÇÃO Nº23 ANO 11– JULHO DE 2010
Desta vez resolvemos fazer diferente. e reunidos em um dossiê, dividido em
Não que sejamos vaidosos, mas estas duas partes, por causa do espaço. Nele
BOCA DO INFERNO páginas que estão em tuas mãos, caro
leitor, são parte de um Senhor Jornal,
ou melhor, é o Senhor Boca do Inferno,
vocês encontrarão Literatura, Língua e
Cultura dos países de Língua Portuguesa
sob a perspectiva daqueles nossos
um periódico de naipe, como dizem por colegas de curso lá do leste europeu, o
aí. Bem, esta introdução nada modesta que é um privilégio, afinal estudamos
é para dizer que nossas edições estão sempre a cultura alheia mas pouco
ficando cada vez mais aprimoradas, com vemos da nossa cultura sob outros
textos científicos, de criação literária e, pontos de vista que não o nosso(p.10).
principalmente, participação ativa da
Na seção Arte & Manha, bem, lá vocês
comunidade acadêmica.
vão ver. Oito autores colaboraram, com
As páginas do Boca, neste número 23, mini-contos, contos, poemas, enfim...
vêm com recheio internacional. Textos Isso demonstra a democracia que a
de alunos de Letras da Universidade de gestão prometeu quando era chapa, não
Zagreb, da Croácia, foram selecionados é mesmo?
Nesta edição
Editorial 2
Bons dias! (ou não) 2
Enquanto isso, na Croácia... 2
Boquejando
Tréplica sem Réplica 3
Boca aberto? Boca aberta!
Semana de Avaliação do Curso de Letras 4
A Aleatoriedade do Saber 4
Abrindo a boca: Letras ufpr
Letras UFPR: quem poderá nos defender? 5
Dossiê croácia
O papel da infância na obra de Luandino Vieira e L. B. Honwana 9
Graus de vocábulos de obscenidade nas cantigas trovadorescas 11
Diferenças entre cantigas de escárnio e cantigas de mal dizer 12
O causo do lobisomem e três bruxas 15
resenha
Marguerite Duras – O Amante 17
sub-realidade
So did Mine 18
Arte & manha
T. e G. 19
Diatribe – Encômio do Café 20
Ela era Maria 21
Sobre Cólera & Maçãs 21
Nome 22
Coisas Sem Nome 23
Momento 23
finalmentes
Expediente 24
Jornal do Centro Acadêmico de Letras da Universidade Federal do Paraná
2. 2
Bons dias! (ou não)
“Quizas, quizas, quizas...”, diria Osvaldo Farrés para a situação
em que estamos cá nos últimos andares do velho Dom Pedro I. Com
os mais recentes (e constantes) palpites do governo federal sobre o
currículo do curso, nos vemos numa barafunda sem tamanho, seja
em opiniões a respeito das alterações introduzidas pelas autoridades,
seja pela dificuldade em nos encaixarmos nesta nova ordem. Quem
tem que dançar conforme a música, como sempre, somos nós, que
temos que escolher entre aceitar e aceitar. Contudo, mesmo com
algumas imposições, nós temos o direito—e o dever—de dar nossos
pitacos para o ajuste da coisa toda. E isto deve acontecer em breve,
na Semana de Avaliação Acadêmica do curso. Mas, antes, para que
os colegas possam ter noção do que pode ser feito (ou pelo menos o
que deveria), nós trazemos à mesa um histórico sobre este assunto e
também sobre outras discussões que estiveram (e ainda estão, mesmo
que não oficialmente) na boca do povo e da pova.
Bem, esperamos que, com as devidas precauções tomadas e
medidas avaliadas, tenhamos em breve um bom resultado na
negociação de acordos para resolução dos abacaxis que temos em
mãos. Nós, Centro Acadêmico de Letras, manteremos a posição de
defesa dos direitos discentes, que é nosso carro-chefe, ainda que
nossas opiniões divirjam de uns e outros. Afinal, não precisamos de
EDITORIAL
mentores para saber o que queremos, não é? (p. 5)
Enquanto isso, na Croácia...
... as Letras Lusófonas ganham espaço. Na edição anterior, o Boca
publicou matéria do Professor Paulo Soethe (DELEM) sobre o pacto
de cooperação entre a UFPR e a Universidade de Zagreb (Croácia).
Segundo o artigo, após visitas de professores da área de Letras,
especialmente de Língua Portuguesa à UFPR, intensificaram-se as
negociações para que um acordo entre lá e cá fosse efetuado, o que
ocorreu em fins de 2007. Em seguida, no Leitorado de Língua e
Literatura Portuguesa em Zagreb, passou a ministrar aulas o professor
José Luiz Foureaux de Sousa, da Federal de Ouro Preto (UFOP).
Em contato com o Boca, através do próprio Professor Paulo, o
professor Foureaux e a professora Majda Bojic, que também esteve
na UFPR (em 2008), em atividades que visavam o desenvolvimento
da cooperação, enviaram para publicação os resultados de trabalhos
de discentes croatas. Nós resolvemos publicar como um dossiê,
que contém artigos e textos de criação literária daqueles alunos.
Importante ressaltar que os trabalhos são, aos olhos do Conselho
Editorial deste jornal, muito bem redigidos, em se tratando de
textos em língua estrangeira (caso do Português para os croatas).
A esta parceria deixamos o registro de agradecimento pelo
trabalho realizado pelos responsáveis da UFPR pelo convênio,
Professor Paulo Soethe e Professora Patrícia Cardozo, assim como
para os professores de Zagreb, que colaboram para o sucesso desta
iniciativa, enriquecedora para nós tanto quanto para a Universidade
croata. Para vocês verem como nossa língua mãe ganhou prestígio
nestas terras de além-mar...
BOCA DO INFERNO N°23
3. 3
Tréplica sem réplica
A crítica à ultima edição foi, ainda que no acompanhamento e aprendizagem
velada, ferrenha. O artigo da quarta página, durante a graduação, por exemplo. Daí a
aquele sobre o CELIN, rendeu pano para baixa quantidade de estagiários.
a manga. Discussões e apertões à parte, 03. Demanda de línguas estrangeiras:
conseguimos fazer algum movimento nesta em algumas áreas, não há oferta da
já cansada e cansativa calmaria, entre aspas, Universidade para atuação, como em
em que nos encontramos. Em reunião com hebraico, chinês e iorubá, por exemplo,
a Direção do CELIN, ouvimos o que tinha a por isso há contratação de associados
dizer o destinatário das nossas críticas, que (pelo Ceilin) que não são da UFPR, por
considerou algumas de nossas posições como vezes nem de Letras.
“inverdades”, conforme palavras que ouvimos.
04. “Capacitação em formação de professores”:
Explicamos agora então que as inverdades este curso não serve para dar certificação
eram verdades sim, mas para aqueles que equivalente à licenciatura, mas sim para
não tinham conhecimento da real situação e capacitar o pleiteante à vaga de professor,
dos mecanismos daquele Centro e também de maneira que este obtenha os requisitos
de outras entidades próximas a ele. Portanto, mínimos para a prática de ensino dentro
agora que recebemos as devidas explicações de uma escola de línguas como o CELIN.
por parte da direção do órgão alvo de nosso Esta capacitação é dada a qualquer
artigo-quase-denúncia, podemos dizer que pessoa que tenha conhecimento de língua
algumas de nossas verdades eram aquelas que estrangeira, inclusive alunos de letras.
tem alguém que só conhece um lado da moeda.
BOQUEJANDO
05. O CELIN não é uma escola de aplicação
Naquela ocasião, o nosso interesse era garantir porque a instituição que tem este caráter
o direito de uma parte (bem grande, diga-se) visa outra forma de atuação, não voltada à
dos alunos deste curso, o que consideramos comunidade, mas sim à pratica de ensino
uma boa razão para reclamar e criticar. e aplicação de metodologias do curso
Com esta nossa reivindicação, o CELIN de licenciatura. O Centro de Línguas na
tomou parte e procurou, com todo direito, UFPR é na verdade um órgão voltado para
responder ao nosso artigo, para esclarecer a Extensão, isto é, ao público externo/
as nossas dúvidas e botar os pingos nos ii, comunidade, o que o incompatibiliza com
ainda que não oficialmente, isto é, através a postura de centro de aplicação/prática
deste jornal. Importante citar que o Conselho de ensino de LEM para graduandos.
Editorial ficou, como sempre o fez, aberto para Outras questões foram discutidas, mas apenas
publicação de resposta. Ainda sim, a Direção para esclarecer estes cinco pontos principais.
não teve interesse em fazer isso. Diante disso, nos resta apenas a resignação.
Na reunião com os representantes daquele Como dissemos antes, imaginávamos que
Centro, convocada pelos próprios, obtivemos era esta unidade uma escola de aplicação dos
respostas aos questionamentos do referido ensinamentos que recebemos. Segundo o
artigo. Estas respostas, salvo engano, são as próprio CELIN, não é. O pedido então, apesar
que seguem, resumidamente: destes fatos, que deitaram por terra nossas
crenças sobre o objetivo primordial daquele
01. Licenciatura para entrar no CELIN: no
Centro, é que os alunos procurem fazer o curso
mercado de trabalho, o profissional de
de capacitação citado acima, porque ele é o
língua estrangeira não precisa de fato ser
acesso ao CELIN para quem deseja aprimorar a
licenciado. Isto vale também para aquele
prática de ensino de LEM em escolas de línguas
que pleiteia vaga de docente/estagiário no
ou mesmo iniciar a carreira no magistério.
CELIN.
02. Estágios: os alunos das licenciaturas, Informações sobre as datas e períodos em
em sua maioria, não se interessam em que a capacitação é ofertada estão disponíveis,
procurar estágio no CELIN. Além disso, quando das inscrições, no sítio do CELIN:
alguns daqueles que têm interesse são http://www.celin.ufpr.br. Neste sítio, vocês,
os que ainda não estão preparados para interessados, também encontrarão uma
a docência ou não têm capacidade para descrição das características do Centro e das
isso, como os que acumulam fracassos atividades acadêmicas a que ele se propõe.
BOCA DO INFERNO N°23
4. 4
Semana de Avaliação do Curso de Letras
Marcio Guimarães, coordenador do curso de Letras
A Coordenação do Curso e o Centro Alunos e professores compartilham a mesma
Acadêmico estão promovendo, nos próximos posição sobre os destinos do Curso? É possível
dias 24, 25 e 26 de agosto, a Semana de haver discussão, ou vamos nos fechar em blocos
Avaliação do Curso de Letras. Esse evento está monolíticos de opinião?
previsto no Projeto Político-Pedagógico do
A idéia geral desta primeira edição da
Curso para coincidir com a Semana de Letras.
Semana de Avaliação é a de convidar pessoas
Porém, devido a certos desdobramentos da
de dentro e de fora do Curso para apresentar
discussão em torno do Projeto REUNI de
propostas para serem discutidas pela nossa
Letras, a gestão passada na Coordenação do
comunidade. Para quem está chegando agora,
Curso, bem como esta gestão, entenderam que
é o momento de conhecer melhor o Projeto
era melhor não encaminhar certos assuntos
Político-Pedagógico do Curso de Letras
durante a Semana, que foi tomando um caráter
(inclusive, fomos cobrados com relação a isso
de encontro acadêmico.
no último processo de avaliação).
No entanto, temos muita coisa a conversar. A
Para os alunos, a Semana de Avaliação conta
BOCA ABERTO? BOCA ABERTA!
Coordenação tem detectado pontos de insatisfação
como atividade formativa, com um total de
com o Currículo 2007. A Comunidade das Letras,
12 horas, pela manhã, e 12 horas, pela noite. A
além disso, está em compasso de espera com
Programação Geral será divulgada tão logo os
relação aos destinos do Curso. Haverá cisão?
acertos referentes aos convidados sejam feitos.
A Aleatoriedade do Saber
Carta do Leitor, Lélio
Você deve estar se perguntando “que diz que Deus não quis que os homens se
patacoada é essa aqui?” Afinal, este é um jornal comunicassem e colocou um idioma em cada
de letras, não de artes, não é? Bem, acontece cidadão que ajudava na construção da torre.
que estas imagens são bem apropriadas para o Transportando essa ideia para um contexto
que quero lhes dizer. Esta aí ao lado é a “Nave conhecido, nós vemos agora que estão tentando
dos Loucos”, de Hieronymus Bosch (1450- colocar as áreas do conhecimento mais e mais
1516). O que podemos perceber é distantes uma da outra, até mesmo
que até mesmo lá no Renascimento aquelas que são muito próximas.
vemos que não é só o bonito que É como se o conhecimento se
prevalece, mesmo nas artes. Na compartimentasse em caixinhas e
cena do quadro, pessoas loucas nada de uma caixinha pudesse ser
estão à deriva no mar, dentro de colocado em outra. Entenderam?
um barco. Era assim que os nossos Bem, são coisas que nem a nossa
antepassados europeus faziam com vã filosofia pode explicar. E eu
aqueles que não eram considerados ouvi dizer que daqui a pouco até
dignos de viver entre os “normais”. os médicos vão sair da faculdade
E nós vemos esta situação se repetir sabendo só aquilo que lhe interessa,
até hoje, em vários contextos e o resto é “só se ele quiser”. Com
ambientes, não é verdade minha essa ninguém contava, não?
gente? E não estamos falando só Então, se vocês também ficaram
de loucos, hein? Já a segunda, um absurdados, é
afresco que representa a Torre melhor começar
de Babel, aquela da historinha bíblica que a pensar em colocar as
explica a origem dos idiomas do mundo. Pois garrinhas para fora, porque
é, esta imagem representa uma coisa bem vai ter cachorro grande
moderninha, que anda espreitando a vida fazendo o que puder para
universitária de uma maneira generalizada, a que isso aconteça. Aí,
divisão do conhecimento. Enquanto a bíblia meus pequenos, quem vai
dançar...
BOCA DO INFERNO N°23
5. 5
rEuNI Letras: quem poderá nos defender?
rEuNI, o governo
e a revolução educacional quer remediar), continuaram não sanados e
novos problemas surgiram, deixando as coisas,
Em 2007, o governo federal criou o que não estavam tão boas, de mal a pior.
Programa de Apoio a Planos de Reestruturação
e Expansão das Universidades Federais, o E vocês se perguntam: o que eu tenho
REUNI. As metas do Programa eram, entre com isso? Têm tudo! A nova política que o
outras, a expansão no número de estudantes das REUNI queria implantar nas universidades
universidades existentes, a criação e ampliação era de inovação, transformação e inclusão. A
de instituições de ensino superior federais, proposta é louvável. Entretanto, como a gestão
além da melhoria na qualidade do ensino e do programa é por resultados, o governo se
pesquisa e na formação dos estudantes de interessa muito mais na quantidade do que
ensino superior no país. Apesar das excelentes na qualidade, porque o que vemos é mais e
propostas e intenções, este mesmo governo mais pessoas entrando na universidade, se
ABRINDO A BOCA: LETRAS UFPR
pecou em algumas ações, como o plano de metas amontoando em salas de aula com estrutura
incabível e passível de não ser concretizado precária (diga-se: até agora na UFPR não vimos
de acordo com a expectativa. E, para nossa o número de salas de aula e de laboratórios
surpresa, adivinhem o que aconteceu? aumentar significativamente). O acesso ao
ensino superior aumentou sim, como vemos nas
Segundo o relatório do primeiro ano do
estatísticas (mais de mil vagas só na UFPR desde
REUNI, 53 das 54 universidades federais
2008), mas sem ter onde botar essas pessoas,
aderiram ao programa. A “aderência”
o fim é mais que conhecido: definhamento da
generalizada se deveu, muito provavelmente,
estrutura existente, que não é das melhores; e a
na pia crença dos senhores reitores daquelas
inevitável perda da qualidade no ensino, pois o
53 instituições que o governo iria cumprir com
todo o contrato que fez, cheio de floreios e professor se vê obrigado a ministrar aulas para
filigranas, contemplando alunos, professores, muito mais aluno do que costumava ter em
infra-estrutura adequada. Não precisamos sala. É como se a Gênesis bíblica se repetisse;
dizer o que foi cumprido do acordo, não é? enquanto Deus disse: “Faça-se a Luz!”, o
REUNI diz “Façam-se as vagas!”, mas acontece
Na UFPR, os estudantes fizeram piquete, que as vagas precisam de complemento. E este
ocuparam a Reitoria, tentaram até a exaustão complemento é essencial para a manutenção
a não entrada no Programa; os professores da qualidade do ensino, até mesmo das vagas
expuseram as deficiências do projeto, as “feitas”. Os responsáveis por esta mudança
possíveis (depois comprovadas) falhas; deveriam, antes de qualquer reforma drástica,
tudo em vão. O REUNI foi implementado rever todo o sistema educacional. Este sim é o
sem nenhum estudo mais profundo das causador da dificuldade em entrar no ensino
consequências da reestruturação nem do superior. Se aqueles senhores continuarem a
interesse da comunidade acadêmica, afinal não descobrir um santo para cobrir outro, quem
era voluntária a participação... Hoje temos uma vai sair prejudicado será sempre o estudante.
pilha de coisas a resolver, como a exigência de Para resolver a disparidade entre ensino básico
90% de diplomação (dentro do tempo previsto),
e superior, é preciso que uma reforma venha
que deixa coordenadores de curso loucos atrás
pela base e não de cima para baixo, como é a
de planos de trabalho para evitar o sumiço de
proposta do REUNI.
alunos; a falta de infraestrutura para os novos
cursos e para os que tiveram número de vagas
aumentado; a morosidade nos processos para
Letras no reuni
conclusão de obras, compras, enfim... Por causa
destas falhas, a metade das metas foi por água Depois da adesão da UFPR ao REUNI, a
abaixo; os problemas, alguns muito anteriores Reitoria precisava estabelecer quem seriam os
ao REUNI (como a evasão, que é problema “escolhidos” ou os “voluntários” para testar o
antigo das federais do país e que o Programa novo tratamento de choque governamental
BOCA DO INFERNO N°23
6. 6
para o ensino. Arquitetura, Engenharia todos os aspectos, teria sido veementemente
Elétrica, História, Letras, dentre outros, são rejeita por aqueles do DELIN. Segundo os
cursos que tiveram o dedo daquele programa. professores do DELIN, a proposta foi sim
Dos professores, podemos dizer que nem rejeitada, mas com base em cálculos feitos pelo
todos concordavam, mas como já dissemos, departamento; cálculos estes que provavam
não era um voluntariado... Em Letras, uma que um leve aumento no número de vagas nas
reivindicação foi resolvida: duas habilitações línguas estrangeiras, causaria, a longo prazo,
novas, em Japonês e Polonês. Ainda teve um um crescimento excessivo nas turmas comuns
adendo às habilitações em Francês e Italiano. a todas as habilitações (linguísticas, línguas
Em suma, as alterações produzidas pelo REUNI, portuguesas, literaturas clássicas e brasileiras),
tanto em Letras como em outros cursos, como crescimento esse que nossas salas de aula
História, por exemplo, não estão sendo tão não comportariam e que seria impossível de
bem sucedidas quanto o esperado, por falta de administrar com o número atual de professores
recursos materiais, profissionais e pedagógicos, no departamento. No DELEM, ouvimos a queixa
assim como falta de um planejamento bem constante de que os alunos de habilitações
realizado que previna possíveis problemas que duplas e até mesmo das simples são pouco
venham a surgir (e que de fato surgiram). “expostos” (não convivem ou não conhecem)
aos professores das línguas estrangeiras e por
ABRINDO A BOCA: LETRAS UFPR
A crise instalada: consequência estes teriam menos contato com
o que se passa? aqueles; enquanto que os professores do DELIN
desfrutam do contato com todos os alunos do
Nós do Centro Acadêmico decidimos ouvir curso. Mas, quando se ministra uma disciplina
alguns professores do curso, de ambos os para 70, 80, 90 ou até 100 alunos, que tipo de
departamentos, DLLCV (DELIN) e DELEM, influência ou contato pode se ter? O que nos
para tentarmos entender como aconteceu todo foi dito então pelos professores do DELEM com
o processo de inclusão de Letras no REUNI e quem conversamos, é que a partir da dificuldade
qual poderia vir a ser o destino de nosso curso, de diálogo e impossibilidade de discussão do
que hoje trabalha com dois projetos político- currículo atual, decidiu-se criar novo currículo
pedagógicos (PPP) diferentes, coisa que não com outra proposta que correspondesse àquilo
deveria ou poderia ocorrer em um “mesmo” que o DELEM acredita ser necessário e que não
curso de graduação. Todas as conversas existe atualmente. No currículo atual a exposição
tiveram teores distintos, mas alguns relatos dos alunos às línguas estrangeiras seria muito
semelhantes com relação a como se deu todo pequena, considerando que podemos iniciar o
o processo de discussão para a criação destas curso sem conhecimento algum da língua. Logo,
duas novas habilitações (que alguns professores precisaríamos de muito mais tempo de exposição
declaram ser na verdade dois novos cursos, já à língua e prática desta em sala de aula. O novo
que trabalham com um PPP completamente curso seria então fortemente focado no trabalho
diferente daquele que foi estabelecido em detalhado com a língua estrangeira; literaturas
2007). Não tínhamos, nas entrevistas, o objetivo e teoria da literatura aplicadas a obras da língua
de relembrar o desgaste de todo esse processo, estrangeira e a formação de professores. Desta
mas sim entender posicionamentos pessoais forma, haveria mais vagas para todas as línguas
daqueles que participaram de tudo isso (pelo estrangeiras modernas, liberdade para realizar
menos daqueles com quem conversamos). um trabalhado com mais qualidade e condições
de formar um professor com muito mais
conhecimento da língua.
Mudanças, mudanças...
DELEM x DELIN?
Tudo teria começado então com uma proposta Não foi bem assim...
do DELEM de repensar o atual curso de Letras,
rediscutir o currículo 2007, remodelar o modo Propostas foram feitas pelo DELEM e,
de funcionamento do curso e, claro, aumentar uma após outra, rejeitadas pelo DELIN.
as vagas de algumas das línguas estrangeiras Este considerava seus motivos relevantes,
e a carga horária destinada a todas. Segundo enquanto aquele os considerava egoístas. A
alguns professores do DELEM, a proposta, em partir daí, como a possibilidade de conversa
BOCA DO INFERNO N°23
7. 7
foi diminuindo cada vez mais, as propostas de que vemos hoje, muito menos a possibilidade
criação das habilitações de Japonês e Polonês de qualificação mais profunda na área (no caso
foram desenvolvidas e arranjadas sem a a língua e sua respectiva literatura) em que o
participação do colegiado de Letras, ainda que aluno vai atuar.
o colegiado fosse um órgão de consulta. Foram
Resumindo, o aluno poderia cursar essas
parar na Pró-Reitoria de Graduação, depois
disciplinas se quisesse, sem a imposição que
de passar pela direção do Setor de Ciências
há no currículo atual (2007). O que o DELEM
Humanas, Letras e Artes, que considerou
chamaria de imposição, o DELIN diria ser a
prudente não opinar em um assunto que era
formação básica, que inclui a “teoria” que,
de sua competência. Os PPPs de ambas as
quando conhecida, pode ser aplicada a qualquer
habilitações foram elaborados sem qualquer
língua estrangeira estudada, mesmo que fora
participação do DELIN e a bagunça estava feita!
do ambiente acadêmico.
Aquilo que, em princípio, segundo professores
do DELEM, deveria ser uma rediscussão do
curso vigente e que evoluiu para a criação de
Alunos: escolha ou imposição?
um novo curso, que mais tarde englobaria
Assim, chegamos ao fim das conversas
todas as habilitações em línguas estrangeiras
com a sensação de que o interesse ali era, em
(menos a área de Alemão, sobre o que falaremos
ABRINDO A BOCA: LETRAS UFPR
primeiro lugar, um lugar ao sol, isto é, cada
em breve), deixando então no formato atual
representante das áreas do conhecimento
apenas as habilitações de português, grego e
que Letras abrange puxou o peixe para a sua
latim, acabou permanecendo dentro do curso
brasa, ou a brasa para seu peixe, qualquer que
de Letras por exigência daquele Colegiado. Já
seja a ordem. Neste caso, não importa muito
o que ouvimos dos professores do DELIN é que
que pensamos nós, mas sim o que é melhor
as novas habilitações deveriam permanecer
para cada qual. Os alunos, que já têm a dura
dentro do curso de Letras desde que seguissem
tarefa de escolher no vestibular por Letras,
o padrão já existente nas outras habilitações, o
Química ou Aquicultura, teriam que decidir
que não ocorreu, já que o PPP é completamente
se querem Letras isso, letras aquilo, letras
distinto e não conta com a participação do
aquele outro, sem opção de mudar, a não ser
DELIN. No entanto, aquele PPP foi aprovado
fazendo o vestibular de novo. E mais: havendo
pelo Colegiado, ainda que quase 50% dos votos
uma divisão, ouvimos que os cursos ficariam
foram abstenções.
mais simples, mais fáceis de administrar e os
Enquanto o Departamento de Lingüística, alunos ainda poderiam circular entre ambos
Letras Clássicas e Vernáculas questiona a os cursos, também ampliando sua formação. É
criação de um curso que teria como foco mais que sabido que não seria essa facilidade
maior ou exclusivo a formação de professores toda como vemos agora, pois seriam cursos
de língua estrangeira, sem o enfoque dado e colegiados diferentes e, por consequência,
atualmente na abordagem teórica, professores surgiria a velha e desdentada burocracia para
do Departamento de Letras Estrangeiras tudo mastigar com a gengiva. Teríamos que
Modernas alegam que a divisão entre nos submeter ao mesmo moroso processo de
pragmática e teoria seria um ledo engano e matrícula ao qual já nos submetemos quando
que na verdade este novo curso priorizaria escolhemos disciplinas de Filosofia, História
esta abordagem pragmática desde o início ou Comunicação Social. Também não teríamos
da graduação, permitindo ao aluno conhecer o maravilhoso leque de possibilidades que
a teoria e ao mesmo tempo a prática, o que temos (único nesta Universidade, o que deixa
possibilitaria a ele delinear sua trajetória o NAA muito insatisfeito), que nos deixa
acadêmica de graduação sem a obrigatoriedade escolher, entre as quase sessenta opções, sem a
de disciplinas em áreas como Lingüística, menor cerimônia para largar Licenciatura por
Estudos Clássicos e Teoria da Literatura (esta Bacharelado, ou Francês por Grego, etc...
última seria, no currículo atual, ministrada
“muito abstratamente”). Estas disciplinas, Órfãos da discórdia
num contexto geral, fariam do currículo apenas
uma grande colcha de retalhos, sem direção A área de Alemão foi a única do DELEM que
específica para cada uma das habilitações, preferiu (e ainda prefere, até onde sabemos)
modalidades e ênfases, conforme a disposição permanecer dentro do que hoje é o curso de
BOCA DO INFERNO N°23
8. 8
Letras. De acordo com o que vimos em reuniões especialização, que tem como consequência
departamentais, e seguindo a mesma linha de a compartimentalização o conhecimento, o
pensamento que nós, a área também acredita que é tão produtivo quanto o modelo fordista
que mais importante do que a formação de de trabalho, e que é contrária ao próprio
professores seria a formação de formadores, pensamento do REUNI e da Universidade, que
com aperfeiçoamento de língua e literatura defende a amenização das estruturas rígidas
brasileiras juntamente com o aprendizado da de ensino existentes e defende novas práticas
língua estrangeira, partindo do princípio de e metodologias, como o projeto político-
que somos brasileiros (ou decidimos estudar pedagógico da UFPR Litoral, citado como
no Brasil, no caso do intercambistas), portanto inovador até mesmo no relatório de 2008 do
é imprescindível esta formação básica da REUNI/UFPR.
cultura nacional.
Outros professores também têm opinião “O que será que será?”
diversa do fundamentalismo que está em
voga. Mas, no caso deles, a intenção é também As questões que ficam agora, para as quais
mudar, apenas ajustando o curso que existe, de ainda não temos solução para o caso Letras
modo que todos saiam satisfeitos. O curso teria UFPR, são estas: Como será tudo isso? Criar-
ABRINDO A BOCA: LETRAS UFPR
uma nova configuração, com redistribuição se-á um único departamento com a área de
da carga horária entre todas as áreas. Este Alemão e o DELIN? Haverá reestruturação
grupo de professores acredita na unidade do que existe atualmente? E no novo curso,
do curso como ele é configurado hoje, mas haverá realmente mão-de-obra suficiente
acredita que é preciso haver mudança, como a para realizar o trabalho? Seria interessante
implementação das disciplinas espelho entre deixar para o aluno, ao prestar vestibular,
os cinco departamentos do curso (proposta a responsabilidade de decidir de antemão o
do DELEM para diminuir o excesso de alunos tipo de formação que deseja e então optar por
em sala, que não vingou antes, mas pode vir um dos dois cursos? E por que precisaríamos
a ser uma solução interessante). Revisão da dividir em dois um curso que já é tão elaborado
disposição das disciplinas na grade, discussão e plural, que permite ao aluno um trânsito livre
do sistema de pré-requisitos e co-requisitos e uma formação tão abrangente e híbrida?
(um dos fatores de retenção, segundo avaliação
geral da Universidade, feita pela PROGRAD). Nosso objetivo em expor toda esta história é,
Estes professores deveriam ser ouvidos para sem dúvida, reabrir o baú velho em que foram
que suas idéias ganhassem espaço. encerradas, ainda que temporariamente, as
pendências que ficaram de 2007, do REUNI,
das propostas para Letras e, como parte
previsão “astrológica” interessada que somos, descobrir quem
efetivamente quer o quê. Temos consciência de
Dentro de toda essa imensa discussão há que é mexer em um vespeiro, mas, como dizia
muitas dúvidas. Se acontecer de a decisão, o avô de um professor nosso, “diga a verdade e
depois de alguma atitude tomada pelas partes faça o que você diz”. É por isso que acreditamos
interessadas, ser favorável à separação, para ser de extrema importância a participação
que finalmente cada lado possa seguir a linha de todos, alunos e professores, na Semana
que acredita ser melhor, para que se acabe Acadêmica de Avaliação. Também queremos
(utopicamente falando) com o “mal-estar” propor um plebiscito, com voto secreto, para
(eufemicamente falando) atual ou talvez para que tenhamos um dado quantitativo em que
simplesmente evitar uma nova discussão nos fundamentar para tomar uma posição ou
precisaremos pensar em muitos pontos a outra. Para podermos decidir a vida de tantos
esclarecer, entre eles a situação da área de estudantes que hoje estão na educação básica
Alemão, que tem o direito de permanecer no e estarão aqui mais tarde, sem que eles sequer
curso atual e que merece ter parte no diálogo saibam disso, além da nossa própria, afinal
com o DELIN; o direito que os alunos têm poderemos estar lá, nas cátedras de Letras
(até agora assegurado) de escolher livremente desta Universidade, quando este assunto se
entre as opções de que o curso dispõe; a não resolver.
BOCA DO INFERNO N°23
9. 9
O papel da infância na obra de
Luandino Vieira e L. B. Honwana
Katarina Bralić1
Introdução verificarmos se as três definições deste termo
no contexto das obras de escritores angolanos
de fato coincidem com o modo como este tema
Neste pequeno trabalho vamos tentar
é tratado por Honwana, é preciso explicarmos
analisar como é que o motivo da infância vem
brevemente do que é que se trata este seu conto.
elaborado nos contos «As mãos dos pretos»
O herói da história, um menino, aprende um
de L. B. Honwana e «Estória da galinha e do
dia com seu professor que as palmas das mãos
ovo» de Luandino Vieira. Vamos tentar provar
dos negros são mais claras do que o resto do
que este elemento não serve para estes dois
corpo. Intrigado por este fato, o menino tenta
escritores africanos somente para dar uma
resolver o «mistério» perguntando aos adultos
visão do mundo infantil e tão diferente da visão
por que isto é assim, e as explicações dadas por
dos adultos, mas também para exprimir uma
eles variam bastante, sendo muitas delas em
crítica social. Como vamos ver em adiante, a
alguns aspetos racistas.
infância no contexto das obras mencionadas
é uma esfera bastante ampla que nos deixa A infância no conto de Honwana é o período
espaço para interpretações as mais variadas em que o menino observa o mundo que o
deste elemento. rodeia, descobrindo nele fatos e fenômenos que
DOSSIÊ CROÁCIA
algumas vezes não pode explicar (neste caso, o
problema das mãos dos negros), usando noções
O papel de infância na obra de L.
limitadas que possui do mundo e pedindo
B. Honwana e Luandino Vieira aos adultos para o ajudarem a compreender
aquilo que o confunde. Neste sentido podemos
No seu livro «Estudos sobre literaturas das dizer que, de fato, a infância é um lugar de
nações africanas de língua portuguesa» Alfredo aprendizagem do mundo real, em que o menino,
Margarido afirma que a infância é um tema imerso na realidade material, tenta decifrar
comum a muitos escritores angolanos e que enigmas que surgem frente aos seus olhos e que
este elemento (i.e. a infância), no contexto da aos adultos podem parecer banais. O interesse
literatura angolana, pode ser definido como: do menino branco pela problemática das mãos
A. lugar de aprendizagem do mundo real, dos negros, revela-nos a diferença crucial entre
mas também do mundo dos mortos e dos as crianças e os adultos. Aos adultos, alienados
espíritos; da natureza e do mundo no seu sentido mais
amplo e ligados às trivialidades que compõem
B. altura que desconhece diferenças raciais; a sua vida quotidiana, nunca lhes viria à mente
questionar algo, à primeira vista tão banal e
C. período em que se passa para o mundo dos tão pouco importante, como é o caso da cor
adultos, em que a pessoa vem a conhecer das palmas das mãos de outra raça. Mas ao
as diferenças raciais, que existem na menino, cuja curiosidade e imaginação ainda
sociedade2. não estão embotadas pelos problemas de vida
e banalidades do quotidiano, tudo parece
Estas três definições podem ser, com muito
interessante, tudo anima o seu desejo de
sucesso, aplicadas no estudo da maneira
conhecer aquilo que o cerca. Por isso, talvez
como a infância é apresentada no conto «As
seja possível afirmar que o mundo de infância
mãos dos pretos» do escritor moçambicano
no conto de Honwana não é apenas o lugar
L. B. Honwana. Para entendermos melhor
de aprendizagem, mas também um período
o significado da infância neste conto e para
de desejo de conhecer o mundo e curiosidade
infinitos, porque tudo o que constitui o mundo é
1 Aluna de graduação do curso de Língua e novo e desconhecido ao pequeno observador.
Literatura Portuguesa, Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas,Universidade de Zagreb. A infância é, como podemos concluir
partindo do parágrafo anterior, um período
2 Veja-se Margarido 1980: 360.
que desconhece muitos fatos e fenômenos
BOCA DO INFERNO N°23
10. 10
que constituem o universo. Mas é importante dos adultos, que confirma a validade da terceira
destacar que aquilo que a infância também definição de Margarido no contexto do conto
ignora são questões socias, uma das quais é, por nós estudado.
sem dúvida, a das diferenças raciais. Lendo
muito atentamente o conto de Honwana,
podemos dizer que essa problemática também II
é elaborada em sua pequena obra. Algumas
das explicações dos adultos relacionadas Baseados no conto «Estória da galinha
ao problema que intriga o menino, contêm e do ovo» de Luandino Vieira vamos tentar
elementos racistas – os negros são comparados formular três definições da infância no contexto
com bichos do mato, somente capazes de desta sua obra:
apanhar o algodão branco de Virgínia; a Dona
D. um período em que as crianças estão mais
Dores afirma que as suas mãos são mais claras
ligadas à natureza;
que o resto do corpo para não sujarem a
comida que fazem para seus patrões, enquanto E. apologia de ingenuidade, benevolência e
o Senhor Padre diz que «até os pretos eram não-depravação de crianças que graças a
melhores do que nós»1 . Esta equiparação estas características conseguem resolver
dos negros aos animais, o motivo de sujidade os problemas, que os adultos são incapazes
associado à cor da sua pele, a afirmação de eles de resolver;
serem aptos somente para o trabalho manual e F. o símbolo de um mundo novo que
o menosprezo com que todas estas personagens profetiza o estabelecimento de uma nova
falam dessa raça são elementos óbvios de época socio-histórica.
DOSSIÊ CROÁCIA
discriminação que o menino, na sua inocência
e ingenuidade, não é capaz de detectar. Ele Para termos menos dificuldades em
recebe todas as explicações (discriminatórias argumentar as nossas teses, vamos contar
e não discriminatórias) da mesma maneira, brevemente o enredo do conto. A Zeca zangou-
não fazendo caso aos elementos racistas e se com a Bina, mulher grávida, por sua galinha
recontando-as simplesmente aos leitores, que ter posto ovo no quintal da outra. Nem velha
testemunha a falta total da consciência das Babeca, respeitada por todos pela sua suposta
diferenças raciais nele. sabedoria, nem o comerciante Sô Zé, nem o dono
de cubatas Sô Vitalino, nem o ex-seminarista
A nossa última tese está indiretamente Azulinho, nem o notário Sô Lemos, perito
ligada à terceira definição de infância de em resolver altercações entre pessoas, nem o
Alfredo Margarido, segundo a qual neste sargento acham solução para esta disputa. O
período se passa para o mundo dos adultos, problema só é resolvido por dois meninos, o
em que a pessoa vem a conhecer diferenças Xico e o Beto, que sabem se comunicar com os
raciais. Ainda que neste conto não seja descrita animais, quando o Beto começa a cantar para
esta transição do protagonista para o período a galinha Cabíri, imitando o galo e salvando-a
adulto da sua vida, é preciso destacar que as do sargento.
explicações sobre o problema que o intriga,
dadas pelas pessoas que o rodeiam, exercem A capacidade dos meninos em imitar a língua
uma influência importantíssima na formação animal indica sua ligação à natureza, a sua
da sua mundividência, ao mesmo tempo imersão na realidade material que os rodeia e um
instruindo-o no sentido de como é que funciona entendimento profundo dos fatos e fenômenos
a sociedade. Dito em outras palavras, através pelos quais esta realidade é constituída. Esta
das histórias que os adultos narram para característica das crianças pode ser observada
esclarecerem o problema das mãos dos negros, em antagonismo com a alienação dos adultos em
o menino apreende (inconscientemente!) relação à natureza, bem evidente na negligência
a hierarquia social, a relação entre a classe com a galinha, no desejo de todas as personagens
dominante e o estrato reprimido, ou seja, as mencionadas buscarem tirar uma vantagem
diferenças raciais estabelecidas pela sociedade. material dessa zanga, e no comportamento
Levando este fato em consideração, podemos trocista da velha Babeca para com os dois
deduzir que este conto problematiza a fase meninos ao saber que eles falam com os animais.
inicial da transição do menino para o universo Esse dualismo entre a imersão das crianças na
realidade material e a alienação dos adultos para
com essa mesma realidade, exprimidas aqui
1 Honwana 1972: 111.
BOCA DO INFERNO N°23
11. 11
através da relação com a natureza, aproximam Afinal, a nossa terceira tese atribui à infância
o conto de Luandino Vieira da obra de L. B. uma dimensão sociohistórica, segundo a qual
Honwana, «As mãos dos pretos», em que, como este período da vida humana simboliza uma
já destacamos, uma das diferenças mais notáveis nova geração que vai eliminar o existente
entre crianças e adultos consiste no interesse sistema sociopolítico, já anacrônico e incapaz
das primeiras no mundo que os rodeia e na de funcionar no futuro. O fato de terem os
indiferença dos adultos em relação à realidade meninos resolvido o conflito dos adultos
material. simboliza a vitória da nova geração sobre um
sistema anacrônico, sendo a incapacidade
Como já dissemos, quase todas as
dos adultos de encontrar uma solução
personagens que intervêm no conflito das duas
satisfatória a expressão do anacronismo e
mulheres querem tirar vantagem, levando
do mau funcionamento da ordem existente.
a galinha ou o ovo por engano, que, de certo
Colocando estes elementos no contexto da
modo evidencia a sua esperteza ou a propensão
história angolana, podemos reparar que a
para cuidar, em primeiro lugar, dos próprios
nova geração (os meninos) representa os
interesses. Vários protagonistas do conto
lutadores anticolonialistas, enquanto o sistema
são marcados por vícios diferentes – a Bina
anacrônico, representado no conto pelos
alimentava a galinha de outrem com milho
adultos, corresponde à sociedade colonial.
para se aproveitar dela, o Sô Vitalino é um
velho depravado que gosta de incomodar uma
inquilina da sua cubata, não perdendo tempo Bibliografia
para tocá-la ou tentar seduzi-la quando o seu Honwana, Luís Bernardo. Nós matámos o Cão-
marido não está lá, a mulher do Sô Lemos é Tinhoso. Porto: 1972, Edições Afrontamento.
DOSSIÊ CROÁCIA
prostituta que engana o seu esposo com vários Laranjeira, Pires. Literaturas africanas de
homens, enquanto o Azulinho é um vaidoso expressão africana. Lisboa: 1995, Universidade
representante do estrato social assimilado. Os Aberta.
únicos privados de qualquer vício, os únicos Margarido, Alfredo. Estudos sobre literaturas
que cuidam da galinha, querendo-a proteger e das nações africanas de língua portuguesa.
salvar, não tentando aproveitar-se da situação, Lisboa: 1980, A Regra do Jogo, Edições, Lda.
são dois meninos, que graças a sua bondade, Vieira, Luandino. Luuanda. Lisboa: 2004,
inocência e altruísmo resolveram o problema. Caminho.
Graus de vocábulos de
obscenidade nas cantigas trovadorescas
Dejan Rilak
O objetivo deste curto trabalho é mostrar frade dizen escaralhado, que, satirizando um
pelos exemplos que o vocabulário de obscenidade frade cuja paróquia o acreditava um homem
nas cantigas trovadorescas, nomeadamente santo e casto, revelando na continuação que
nas cantigas de escárnio e maldizer, não é por este, portanto, tinha muitas amantes, abunda
definição vulgar, obsceno ou pornográfico. em palavras vulgares, como caralho, foder,
Parafraseando as palavras da Carolina Michaelis, arreitar. A posição especial está reservada
não nos dedicaremos (só) aos palavrões, mas para as palavras escaralhado e encaralhado.
ao “nome que as coisas levam na linguagem Esta invenção lexical poderia se traduzir
empregada“1, e veremos que é mais exato diretamente como castrado e impotente no que
falar do “vocabulário de obscenidade“ do que diz respeito à palavra escaralhado, enquanto
do “vocabulário obsceno“. Baseando-se no encaralhado remete ao tamanho do pénis do
vocabulário de três cantigas, faremos a divisão clérigo. Indiretamente apresenta-se um aspeto
da obscenidade em três grupos. antagonista do par casto/luxurioso. Porém, se
bem que se trate já de duas palavras obscenas,
Começaremos pelo exemplo mais óbvio da
não podemos falar de uma obscenidade sem
obscenidade, cantiga de Fernando Esquío A un
atingindo o aspeto metafórico da cantiga. O
que é obsceno, afinal, não são as palavras
1
Robert. obscenas, mas a situação à qual estas palavras
BOCA DO INFERNO N°23
12. 12
se referem, isto é, a postura hipócrita do interessante na cantiga foi a palavra bem
frade. Chamaremos este tipo de obscenidade (ben). Vejamos os versos seguintes: Abadessa,
“obscenidade direta” – é a situação obscena oí dizer / que erades mui sabedor de todo ben
mostrada pelas palavras obscenas. / (...) / que havedes bon sén de foder e de todo
ben1. Como afirma Regina Michelli, o início
Segundo tipo de obscenidade seria
da cantiga poderia levar o leitor a pensar em
“obscenidade indireta” onde o autor não usa
suas qualidades morais, em sua bondade.
as palavras obscenas, mas é a situação que é
Portanto, “o eu - lírico revela, gradativamente,
obscena. Notaremos aqui a cantiga de Joán
as verdadeiras habilidades de tal religiosa”2,
Airas Don Beeito, home duro que conta a
assinalando uma outra possibilidade da leitura
história de um homem cuja mulher o traiu
da palavra bem, como sinónimo de foder.
entrando num ato sexual com o tal Dom Beito.
Diferetemente do vocabulário da cantiga de
Diferentemente de Esquío, Airas não usa
Airas, onde também tínhamos palavras não-
palavras vulgares, mas é pelas palavras digamos
vulgares tomadas como vulgares, a palavra
“normais” que ele consegue criar o ambiente
bem na cantiga de Cotón não releva de repente
da vulgaridade. A descrição do Dom Beito
o seu sentido obsceno.
como homem duro refere-se indiretamente ao
pénis dele, no sintagma beijar pelo obscuro é Para concluir confirmaremos o objetivo
o sentido da obscuridade que nos revela que do nosso trabalho que foi mostrar como o
se trata de algo “proíbido”, enquanto os versos vocabulário apresentando a obscenidade não
beijar pelo furado, beijar pela fendedura e tem que ser por definição obsceno ou vulgar.
beijar polo buraco a mia senhor descrevem o Vimos um exemplo onde isto é o caso, um outro
ato sexual, utilisando as metáforas para o órgão onde o ambiente é vulgar, mas as palavras não
DOSSIÊ CROÁCIA
sexual feminino. o são, e último onde as palavras que significam,
no seu primeiro sentido, uma oposição forte
Finalmente, chegamos a “obscenidade
à obscenidade, acabam por ser o sinónimo
escondida”, onde o leitor não pode facilmente
daquilo a que se opõem.
reconhecer que atrás as palavras usadas se
encontra o mundo da obscenidade. Pegamos no
Bibliografia:
exemplo a cantiga Abadessa, oí dizer de Afonso
Eanes de Cotón na qual um noivo em sua noite Michelli, R. “O emprego polissêmico da
de núpcias procura uma abadessa para lhe palavra bem nas cantigas trovadorescas”. In:
Revista Philologus, Rio de Janeiro, ano 6 (18),
ensinar a arte de amor, porque é notório que
pp. 88 – 99
a abadessa é a profunda conhecedora do sexo.
Mesmo que nesta cantiga também haja palavras Robert, L. “A Obscenidade em Cantigas
Trovadorescas”. Universidade Federal de Espírito
vulgares, o que nos pareceu especialmente
Santo, Vitória, 2005.
Diferenças entre cantigas de escárnio
e cantigas de mal dizer
Ana Kaniški
Baseando-se no medieval texto teórico obsceno, a diferença maior entre as cantigas
Arte de Trovar e em vários exemplos das satíricas é o equívoco, criado através do uso das
cantigas de escárnio e cantigas de mal dizer, palavras do significado ambíguo –que é uma
o objetivo deste pequeno papel é demonstrar característica não inerente às cantigas de mal
as diferenças principais entre as cantigas de dizer, nos quais o nome da pessoa satirizada e
género satírico da poesia trovadoresca galego- o vocabulário obsceno aparece como regra.
portuguesa, que, infelizmente, não captaram
Na prosa teórica Poética Fragmentária ou
o interesse dos críticos dessa posesia que se
Arte de Trovar, ou seja, no único texto teórico
preoucupavam priariamente com a poesia
amorosa. O objetivo do papel, também, é
mostrar que, além das diferenças secundárias, 1 Abadessa, ouvi dizer / que é um grande sabedor de
todo o bem / (...) / que tem um bom conhecimento de
as de exclusão do nome da pessoa satirizada
foder e de todo o bem/ (Minha atualização).
(frequente, mas não sempre) e do vocabulário
2 Michelli
BOCA DO INFERNO N°23
13. 13
conservado sobre a poesia tovadoresca, com ligeiramente; e estas palavras chamam os
a qual começa o Cancioneiro da Biblioteca clerigos equivocatio.”4, enquanto as cantigas
Nacional de Lisboa, o autor anónimo de pouco de mal dizer são: “[...] aquela[s] que fazem
conhecimento da lírica trovadoresca1 distingue os trobadores ... descubretamente. E[m] elas
três géneros da poesia trovadoresca galego- entram palavras que querem dizer mal e non
portuguesa: as cantigas de amor e cantigas de aver outro entendimento senom aquel que
amigo que pertencem à poesia amorosa, e as querem dizer chãamente.”5
cantigas de escárnio e mal dizer que pertencem
Baseando-se na definição dada no Arte de
à poesia satírica. Neste tratado, embora
Trovar, amplificamos as diferenças entre as
incompleto porque lhe faltam as primeiras
cantigas satíricas: nas cantigas de mal dizer
páginas2, o autor determina as diferenças
o tovador bem eloquente, transformando-se
principais das cantigas da poesia satírica.
num crítico da sociedade medieval sem papas
Os trovadores galego-portugueses e os críticos na língua, primariamente descobre o nome
da poesia trovadoresca acreditavam que a maior da pessoa satirizada e usa o léxico obsceno,
diferença entre as duas cantigas é que nas cantigas enquanto o trovador das cantigas de escárnio,
de mal dizer o trovador sempre descobre o nome tendo omitido e o nome e o vocabulário lascivo,
da pessoa satirizada, enquanto o trovador da critica a pessoa satirizada usando o equívoco,
cantiga de mal dizer o omite, e ademais, usa o que exige a inteligência do leitor para descubrir,
léxico obsceno. É um pressuposto que se mostrou através das várias palavras com o significado
errado. Apesar de essa hipótese teroreticamente ambíguo, o verdadeiro significado da cantiga
ser bem postulada, na práctica não funcionava. de escárnio – o satírico. Quer dizer, o equívoco
Se analisarmos uma cantiga de escárnio Maria possibilita as duas leituras da cantiga: uma
DOSSIÊ CROÁCIA
Peres, a nossa cruzada, escrita por Pero da Ponte literal e outra metafórica.
[B 1642 / V 1176], veremos que, apesar de esse
Se agora, tendo em consideração as
escudeiro e segrel da provável origem galega3
diferenças principais entre as duas cantigas
declarar o nome da pessoa satirizada, nesse caso
satíricas, voltarmos para antes mencionada
da mulher chamada Maria Peres, essa cantiga é
cantiga de Pero da Ponte, veremos que a
uma cantiga de escárnio! Como é que isso seja
leitura da cantiga à letra é seguinte: Maria
possíviel? A resposta à essa pergunta, bem como
Peres, a famosa cantadora e bailarina,
a definição entre as duas cantigas satíricas, é
regressa da peregrinação à Terra Santa,
proposta no tratado Arte de Trovar.
cheia de indulgências, mas deixa-as roubar,
Segundo a definição do autor anónimo, porque perdeu o loquete da maeta onde as
que foi reproduzida pelas Gonçalves e Ramos decidiu guardar depois de ter percibido que
[1983], as cantigas de escárnio são: “[...] as indulgências foram mal ganhas. Usando o
aquelas que os trobadores fazem querendo duplo sentido da palavra maeta, que significa
dizer mal d’algue[m] em elas, e dizem-lho literalmente mala ou baú, o trovador construíu
per palavras cubertas que ajam dous o equívoco e tornou possível a leitura metafórica
entedimentos para lhe-lo non entenderem... da maeta como palavra obscena para designar
o sexo da mulher6, como é trovado no quatro
e quinto verso da segunda estrofe: ca, pois o
1 Sanlúcar de Barrameda, La literatura medieval cadead’én foi perder, / sempr’a maeta andou
galego-portuguesa: La lírica, caracterización general,
géneros y autores. La prosa. Tipologia., 2003.. O artigo é
descadeada. Escolhemos essa cantiga para
disposto em: http://html.rincondelvago.com/literatura- mostrar que existem várias cantigas de escárnio
medieval-gallego-portuguesa.html. Compare-se: José- onde os trovadores nomeam diretamente a
Martinho Montero Santalha, Guiseppe Tavani, Arte de pessoa satirizada e que a definição teórica,
Trovar do Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa: proposta no Arte de Trovar, na práctica não é
Introdução, edição crítica e fac-símile, em: Revista galega
de filoloxía. A análise crítica é disposta em: http://ruc.
delimitada estritamente.
udc.es/dspace/bitstream/2183/2600/1/RGF-4-rec-3-
definitivo.pdf. 4 Elsa Gonçalves, Maria Ana Ramos, Textos literários:
A lírica galego-portuguesa (Textos escolhidos)., Lisboa:
2 Sanlúcar de Barrameda, 2003.
Editorial Comunicação, 1988, pg.: 23.
3 Para infomrações adicionais sobre a vida e
5 Elsa Gonçalves, Maria Ana Ramos, 1983, pg.: 23.
actividade prolífera do trovador galego Pero de Ponte
veja-se: http://www.astormentas.com/din/biografia. 6 Elsa Gonçalves, Maria Ana Ramos, 1983, pg.: 190-
asp?autor=P%EAro+da+Ponte. 192.
BOCA DO INFERNO N°23
14. 14
Resta-nos mostrar a veracidade das diferenças 68] ao seu contemporâneo, ao jogral galego
entre duas cantigas satíricas. Numa das suas Afonso Eanes do Cotom2. Nessa cantiga o
conhecidas cantigas satíricas, intitulada [B 1467 Rei Sábio ataca um outro contemporâneo, já
/ V 1077], o trovador galego Joán Airas não só mencionado escudeiro e segrel Pero da Ponte
omite o vocabulário obsceno, mas já no primeiro por ter roubado várias cantigas do Cotom,
verso da primeira estrofe, em vez de nomear a sobre que o Rei Sábio trova explicitamente na
pessoa satirizada, neste caso uma mulher, ele primeira estrofe: Pero da Pont’ha feito gran
diz: Üa dona, non digu’eu qual. A leitura dessa pecado / de seus cantares, que el foi furtar /
cantiga à letra indica que Joán Aires trova sobre a Cotón, que, quanto el lazerado / houve gran
uma mulher que queria ir à igreja, para assistir tempo, el x’os quer lograr, / e doutros muitos
à missa e sermão, mas desistiu de ir porque foi que non sei contar, / por que hoj’anda vistido e
impedida pelo corvo. Tomando em consideração honrado. Ademais, o segrel Pero da Ponte está
que a palavra corvo tem o sentido ambíguo de acusado de ter morto o jogral Cotom.
homem1, a leitura figurátiva dessa cantiga implica
que a mulher desistiu de ir à igreja porque, Notamos que as principais características
simplesmente, estva deitada com um homem. das cantigas de mal dizer, que já destacámos,
Portanto, a cantiga de Joán Airas é uma cantiga são nomeação direta da pessoa satirizada, o uso
de escárnio. frequente do vocabulário baixo calão, que não
é o caso na cantiga do Rei Sábio. Os trovadores
Afinal, analisaremos uma cantiga de mal sempre omitiam o uso do equívoco porque o
dizer. Dom Afonso, o rei de Castela e Leon, alvo principal das cantigas de mal dizer é a
dedicou uma cantiga de mal dizer [B 485 / V crítica ou escárnio direto da pessoa satirizada.
DOSSIÊ CROÁCIA
pero da ponte [B 1642 / V 1176] Joán Airas [B 1467 / V 1077]
María Pérez, a nossa cruzada, Ũa dona, non digu’eu qual,
quando veo da terra d’Ultramar, non aguirou hogano mal:
assí veo de pardón carregada polas oitavas de Natal
que se non podía con el emerger; ía por sa missa oír,
e houv’un corvo carnaçal,
mais furtan-lho, cada u vai maer, e non quis da casa saír.
e do perdón ja non lhi ficou nada.
A dona, mui de coraçón,
E o perdón é cousa mui preçada oíra sa missa, entón,
e que se devía muit’a guardar; e foi por oír o sarmón,
mais ela non ha maeta ferrada e vedes que lho foi partir:
en que o guarde, nen a pod’haver, houve sig’un corv’a carón,
ca, pois o cadead’én foi perder, e non quis da casa sair.
sempr’a maeta andou descadeada.
A dona disse: «Que será?»
Tal maeta como será guardada, E i o clerigu’está ja
pois rapazes albergan no logar, revestid’e maldizer-mi-á,
que non haja seer mui trastornada? se me na igreja non vir.
Ca, o logar u eles han poder, E diss’o corvo: quá, aca,
non ha pardón que s’i possa asconder, e non quis da casa saír.
assí saben trastornar a pousada!
Nunca taes agoiros vi,
E outra cousa vos quero dizer: des aquel día que nací;
atal pardón ben se dev’a perder, com’aquest’ano houv’aquí;
ca muito foi cousa mal gaanhada. e ela quis provar de s’ir,
e houv’un corvo sobre si,
e non quis da casa saír.
1 “Não se trata de uma ave agoireira que a impedia
do seu dever religioso, foi um ser humano, que se lhe pos
a caron (ao lado dela, na cama)”. Veja-se: M. Rodrigues
Lapa, Cantigas d’escarnho e mal dizer dos cancioneiros
medievais galego-portugueses. Madrid: Editorial Galaxia,
2ª edição, 1970. Também, esse livro pode servir como
fonte das informações adicionais sobre a vida e produção 2 Veja-se: Francisco da Silveira Bueno, Formação
lírica desse trovador galego. Disposto em: http://books. histórica da Língua Portuguesa: O lirismo. Disposto
google.pt/books?id=eICwkkcJkZMC&printsec=frontcov em: http://www.sibila.com.br/index.php/formacao-
er&hl=hr#v=onepage&q=&f=false. historica-da-lingua-portuguesa.
BOCA DO INFERNO N°23
15. 15
Dom Afonso, rei de Castela e Bibliografia:
Leom [B 485 / V 68] Barrameda, Sanlúcar de. La literatura medieval
galego-portuguesa: La lírica, caracterización
general, géneros y autores. La prosa. Tipologia.,
Pero da Pont’ha feito gran pecado 2003.. Acessível em: http://html.rincondelvago.
de seus cantares, que el foi furtar com/literatura-medieval-gallego-portuguesa.html
a Cotón, que, quanto el lazerado
Barros, José D. Assunção. Uma cadeia
houve gran tempo, el x’os quer lograr,
de cantigas de escárnio: uma análise sobre a
e doutros muitos que non sei contar,
poesiasatírica ibérica do século XIII e suas
por que hoj’anda vistido e honrado.
tensões sociais. em: Terra roxa e outras terras:
revista dos estudos literários. Disposto em:
E por én foi Cotón mal día nado,
pois Pero da Ponte herda seu trobar; Bueno: Francisco da Silveira. Formação
e mui máis lhi valera que trobado histórica da Língua Portuguesa: O lirismo.
nunca houvess’el, assí Deus m’ampar, Disposto em: http://www.sibila.com.br/index.
pois que se de quant’el foi lazerar php/formacao-historica-da-lingua-portuguesa
serve Don Pedro e non lhi dá én grado. Gonçalves, Elsa; Ramos, Maria Ana. Textos
literários: A lírica galego-portuguesa (Textos
E con dereito seer enforcado escolhidos)., Lisboa: Editorial Comunicação, 1988
deve Don Pedro, porque foi filhar http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/
a Cotón, pois-lo houve soterrado, vol6/vol6_2.pdf
seus cantares, e non quis ende dar Lapa, M. Rodrigues. Cantigas d’escarnho e
ũu soldo pera sa alma quitar mal dizer dos cancioneiros medievais galego-
DOSSIÊ CROÁCIA
sequer do que lhi havía emprestado. portugueses. Madrid: Editorial Galaxia, 2ª
edição, 1970. Disposto em: http://books.google.
E por end’é gran traedor provado, pt/books?id=eICwkkcJkZMC&printsec=frontco
de que se ja nunca pode salvar, ver&hl=hr#v=onepage&q=&f=false
come quen a seu amigo jurado,
Santalha, José-Martinho Montero. Guiseppe
bevendo con ele, o foi matar:
Tavani, Arte de Trovar do Cancioneiro da
todo polos cantares del levar,
Biblioteca Nacional de Lisboa: Introdução,
con os quaes hoj’anda arrufado.
edição crítica e fac-símile, em: Revista galega
de filoloxía. Disposto em: http://ruc.udc.es/
E pois non ha quen no por én retar
dspace/bitstream/2183/2600/1/RGF-4-rec-3-
queira, seerá oimais por min retado.
definitivo.pdf.
O causo do lobisomem e três bruxas
Ana Kaniški
Numa yamí quando a iaé cheia, erguida lobisomem e sua auá, ainda desconhecida a elas.
altamente no céu aberto, iluminava um espaço A mais velha comentou:
dentro da mata profunda e densa de vegetação, - Oi, bruxas, sabiam que o nosso lobisomem
precisamente, numa clareira bastante ampla se casou?
e rodeada pelos altos amapás de ramos tibas
- Não! Em sério? – As bruxas responderam
que ondulavam gentilmente com a brisa fria,
unânime ao ouvirem isto. A bruxa mais velha
numa reunião de pessoas e bichos mitológicos,
continuou:
habitantes dessa mata prolífera, três bruxas
velhas, que chegaram primeiras, comentavam - Sim! Agora é um abá de família.
o resto de seus colegas que iam chegando na Provavelmente agora, com as restrições da sua
esperança de novamente verem os velhos amigos auá mula-sem-cabeça, durante a airequecê
e trocarem as experiências de mundo de além. cheia ele não pode lamber as auás, nem velhas
Vestidas de manto preto e reunidas em redor da e menos jovens. Imagina a raiva e ciúme da sua
caldeia em que se preparava a poção, as bruxas, auá! - Constatou a bruxa mais velha. Ao ouvir a
às quais não escapa nenhum acontecimento e mais velha bruxa dizer que a auá de lobisomem
novidade do mundo mitológico, estavam perante é a mula-sem-cabeca, a bruxa mais jovem, que
uma dúvida: o que é que aconteceu com o notório não quer dizer a mais linda, interveio:
BOCA DO INFERNO N°23
16. 16
- Eu sabia! Então, é verdade? A sua auá é - A Dália, – continuou a bruxa mais velha
a mula-sem-cabeça? Eu ouvi Saci-Pererê dizer – ao perceber que o seu marido descobriu o
que, antes de se casar com o lobisomem, a sua seu segredo, transformou-se numa mula-sem-
auá tinha estado namorada pelo seu pai. Que cabeça e saiu galopando em direção à mata,
horror! Por isso foi transformada em mula- nunca mais retornando para a corte real. Por
sem-cabeça. O que é que tu ouviste sobre essa isso eu disse que o lobisomem, durante a
auá, Joaninha? Chama-se Tabita, não é? – As airequecê cheia ele não pode lamber as auás,
duas bruxas ficaram estupefatas. Isso não nem velhas e menos jovens. Quer dizer, o
foi que eles sabiam da auá do lobisomem. A cadáver, que a Dália comia, era o da criança
Joaninha acrescentou: feminina e agora, por isso, depois de ter sido
- Não fales tolices, menina! Senão nunca castigada e transformada numa mula-sem-
serias tão sapiente como nos duas. Ainda tens cabeça, ela sente a raiva e ciúme quando o
muito para apreender! nosso lobisomem lambe as auás. Desde aqui
essa proibição. – Concluiu a bruxa mais velha.
- Sim, sim! Ouça o que ela disse! E a auá do
lobisomem chama-se Dália, e não Tabita. – As três bruxas, envolvidas numa discussão
Interrompeu a bruxa mais velha. A Joaninha veemente sobre os recém-casados e a sua
de repente continuou: vida, nem notaram que, ao fundo da clareira
- O que tu disseste não era a razão que verde, onde as pessoas bailavam e os bichos
a Dália foi transformada numa mula sem a mitológicos estavam a jogar com as suas crias,
cabeça e que solta fogo pelo pescoço. Ademais, de repente, pela „porta“ feita de duas amapás
Iara disse que ela costumava correr pelas matas grandes, com dignidade e orgulho entrou o
e campos, assustando as pessoas e animais de lobisomem acompanhado pela sua auá Dália.
DOSSIÊ CROÁCIA
mundo de além. Mas, isso é uma bobagem! O À maravilha das pessoas e bichos mitológicos,
que passou na verdade foi que a Dália perdeu a Dália era uma auá formosa com a cabeça
a sua virgindade antes de se casar com o no seu pescoço e não à mula sem cabeça. Por
nosso lobisomem. – A bruxa mais velha com causa da estupefacção, as três bruxas ficaram
veemência respondeu: sem palavras. Ao mesmo tempo, depois de
- Joaninha, tu realmente pensas que foi isto ter cumprimentado o lobisomem e a Dália, o
mesmo que aconteceu? membiro da bruxa mais velha, também um
feiticeiro, mas ele, bem feito e de bem postura,
- Sim. Ontem conversava com Boi Tatá. Ele
ao lado das três bruxas, era tipo de abá pelo
disse-me isto. Sabes que ele à yamí vê tudo. –
qual todas as auás e meninas da floresta se
Atreveu-se dizer a Joaninha, por causa de que
apaixonavam, ia-se aproximando à bruxa
a bruxa mais velha se zangou.
mais velha. Por sorte, ele ouviu uma parte da
- Essa é boa! Boi Tatá não sabe nada. Ouça discussão das três bruxas. Furioso, ele diz:
bem! A Dália era uma rainha. Ela costumava ir
secretamente ao cemitério no período da yamí. - Mãe, ainda estás a disseminar as bisbilhotices?
O rei, o seu marido...- A bruxa mais jovem Quando é que vais apreender? Jé te disse! Tu e o
interrompeu: resto das bruxas são as mexeriqueiras piores que
existem nesse mundo mitológico! Lembras-te
- Como o seu marido? O lobisomem é o
que passou com o Saci-Pererê? Todo o mundo
seu marido! Espera! Ela tem dois maridos? –
pensava que o Cairós estava aqui para visitar
Estranhada, a bruxa mais velha continuou:
a nossa comunidade pequena. E por que eles
- Não, ela não tem dois maridos. Deixa- pensavam isso? Porque não sabiam que tu,
me continuar, ok? – Disse a bruxa mais infelizmente, confundiste o Saci-Pererê com
velha e continuou com a sua história sobre o o semideus grego. Pobre Saci-Pererê! Não
lobisomem. faltou muito para que ele enlouquecesse. - Um
- Agora, onde estava? Ah, sim... O rei, o seu minutinho depois ouviu-se a voz fraca da bruxa
marido, numa yamí, resolveu segui-la para mais velha:
ver o que se estava a acontecer. Ao chegar ao
cemitério, deparou-se com a esposa comendo - Eu juraria que a auá do lobisomem
o cadáver de uma criança. Assustado, o rei era a mula-sem-cabeça! Não sei como poderia
soltou um grito horrível. equivocar? – Agora vocês não têm nada para
dizer? – Perguntou a bruxa mais velha as
- E que se passou? – Curiosamente
outras com a voz mais alta. Elas responderam:
perguntou a Joaninha.
BOCA DO INFERNO N°23