1. Em um período histórico no qual o socialismo é posto em questão, em
termos de cultura comercializada de massas e de marketing, é deveras
importante invocar a figura de um revolucionário como Trotsky. Depois dos
livros de Isaac Deutscher, não existem mistérios a desvendar. Além disso, o
próprio Trotsky cuidou de sua biografia, em obras que se voltavam para a sua
vida, a Revolução Russa - na qual teve participação decisiva - e a trajetória de
suas lutas pós-revolucionárias, inclusive os desdobramentos da fundação e
evolução da IV Internacional.
Dois temas devem ser ressaltados como ponto de partida. O primeiro
refere-se à sua condição de Intelectual brilhante e de revolucionário ardente.
Um grande orador e agitador, era também das figuras mais cultas e refinadas
quanto à erudição literária e ao saber filosófico do movimento revolucionário. O
outro relaciona-se com algo típico. Os revolucionários russos romperam com
suas origens sociais: seu desencaixamento era total. Não mantinham liames
com a ordem social existente, seja a que prevalecia na Rússia, seja a que
sustentava o esplendor da Europa. Marxistas experientes estavam convictos de
que a revolução deveria assumir proporções supranacionais e defendiam com
ardor o internacionalismo proletário. Por isso, combatiam de forma implacável a
autocracia czarista e todas as acomodações com a democracia burguesa que
tivessem por objetivo a "melhoria" das classes e da sociedade de classes. O
apoio dado em 1905 e posteriormente à revolução burguesa continha o teor de
um recurso tático.
Trotsky ficou famoso pela previsão, feita de modo independente também
por Lênin, do curso da revolução. Em sua formulação sobre o desenvolvimento
desigual e combinado estabeleceu que, em sociedades atrasadas, as classes
trabalhadoras e destituídas podiam acelerar o processo histórico,
desempenhando as tarefas negligenciadas ou repelidas pelas classes
proprietárias. Em consequência, cabia-lhes desencavar processos históricos
latentes à ordem existente, infundir-lhes maior velocidade e encetar a criação
de uma sociedade nova. Repunha o conceito de "revolução permanente", de
Marx e Engels, em uma perspectiva simultaneamente teórica e prática, indo ao
fundo dos dinamismos coletivos das classes despossuídas na impulsão e na
fusão dialética de reforma e revolução sociais.
Ele foi um dos gigantes do desencadeamento e da condução da
Revolução Russa. Incansável, Imaginativo e Inventor de Inovações
Imprevistas, revelou-se um gênio político e militar. Dirigiu o exército vermelho
em suas mais difíceis e retumbantes vitórias. Empenhou-se em múltiplas
tarefas complexas, como o tratado de Brest-Litovsky com os alemães, e
encargos que exerceu depois de ultrapassado o "socialismo de guerra". Tido
como um homem vaidoso, no entanto reconheceu em Lênin o único
estrategista da revolução. Sua monumental obra sobre a Revolução Russa não
se apresenta como um pedestal de suas atividades heroicas. Representa a
tentativa de um participante, situado em uma posição ímpar, de reconstituir os
diversos momentos cruciais da revolução, articulá-los em uma totalidade e
interpretá-los segundo a ótica marxista, isto é, revolucionária. Em seguida,
tornou-se um dos críticos dos "desvios burocráticos", Identificados por Lênin, e
um oponente implacável das deformações da revolução (a qual, não obstante,
2. defendeu com vigor, mesmo no exílio e em confronto de vida e morte com
Stalin).
O que pensaria Trotsky hoje, diante dos artifícios e traições intrínsecos
ao debate sobre o "fim do socialismo" e a "morte do marxismo"? Ele, que
apontou precocemente a necessidade de uma revolução política corretiva,
seria certamente muito duro na condenação de um "revisionismo" cego e
destrutivo, que não busca a renovação do socialismo revolucionário, mas a sua
transformação em joguete de uma guerra ideológica suja. Não deixaria de
assinalar que há uma colheita desastrosa de erros acumulados, que poderiam
ter sido evitados se a herança de Marx e Engels e o exemplo de Lênin
tivessem sido postos em prática.
Mas ele seria Implacável com os "fariseus", que se proclamam
socialistas ou ex-marxistas, mas cerram fileiras com as correntes Intelectuais
da moda, a partir dos centros de produção cultural e de propaganda das
nações capitalistas centrais. A democracia que nasce do marxismo nada tem a
ver com a democracia plutocrática e militarista, que combina promessas com
repressão (no dizer de Miliband). Elas se alternam e se anulam, dentro de um
sistema capitalista de poder que comporta regularmente manifestações
assustadoras de fascismo potencial. Trotsky converteria sua caneta em uma
desmascarando os defensores inconseqüentes de social-democratismo que
destina à periferia (e aos pobres "absolutos" ou "relativos" de seus próprios
povos) a "mudança social conservadora". Ou seja, a mudança que reproduz a
ordem existente e proscreve as alternativa radicais à civilização sem barbárie.