1. NÃO-ESCOLAS
A livre-aprendizagem
na sociedade-em-rede
AUGUSTO DE FRANCO
em interação com Nilton Lessa
2011
FASCINANTE! Escolas, igrejas, partidos, Estados, empresas
hierárquicas: construímos tais instituições – que continuam
reproduzindo o velho mundo; sim, são elas que fazem isso – como
artifícios para escapar da interação, para ficar do “lado de fora” do
abismo, para nos proteger do caos...
As escolas (e o ensino) tentam nos proteger da experiência da livre
aprendizagem. As igrejas (e as religiões) tentam nos proteger da
experiência de deus. Os partidos (e as corporações) tentam nos
proteger das experiências da política (pública) feitas pelas pessoas no
seu cotidiano. Os Estados tentam nos proteger das experiências
glocais (de localismo cosmopolita). E as empresas (hierárquicas)
tentam nos proteger da experiência de empreender.
Por isso que escolas são igrejas, igrejas são partidos, partidos são
corporações que geram Estados, que também são corporações, que
viram religiões, que reproduzem igrejas, que se comportam como
partidos... Porque, no fundo, é tudo a mesma coisa: artifícios para
proteger as pessoas da experiência de fluzz (*). (Não é a toa que
todas essas instituições hierárquicas exigem “monogamia” dos que
querem manter capturados, como se dissessem: “- Você é meu! Nada
de transar com estranhos”).
1
2. Uma vez desconstituídos tais arranjos feitos para conter, contorcer e
aprisionar fluxos, disciplinando a interação, uma vez corrompidos os
scripts dos programas verticalizadores que rodam nessas máquinas
(e que, na verdade, as constituem), o velho mundo único se esboroa.
Isso está acontecendo. Não-escolas, não-igrejas, não-partidos, não-
Estados-nações e não-empresas-hierárquicas começam a florescer.
Com tal florescimento, a estrutura e a dinâmica das sociosferas estão
sendo radicalmente alteradas neste momento, mas não por
formidáveis revoluções épicas e grandes reformas conduzidas por
extraordinários líderes heroicos, senão por pequenas experiências,
singelas, líricas, vividas por pessoas comuns! Aquelas mesmas
experiências de interação das quais fomos poupados. É como se tudo
tivesse sido feito para que não experimentássemos padrões de
interação diferentes dos que deveriam ser replicados. Mas nós
começamos a experimentar. E “aqui estamos – como escreveu Hakim
Bey (1984) em Caos – engatinhando pelas frestas entre as paredes
da Igreja, do Estado, da Escola e da Empresa, todos os monólitos
paranoicos”.
Neste texto vamos examinar o ensino e a escola para contemplar as
possibilidades da livre-aprendizagem na sociedade-em-rede (**).
A emergência da livre-aprendizagem
Não é novidade para ninguém que, no mundo atual, qualquer pessoa
que saiba ler e escrever e tenha acesso à Internet pode aprender
muito mais do que podia há dez anos. Sim, isso é fato. Uma criança
com noções rudimentares de um ou dois idiomas falados por grandes
contingentes populacionais (como o inglês ou o espanhol, por
exemplo), já é capaz de aprender muito mais – e com mais
velocidade – do que um jovem com o dobro da sua idade que, há dez
anos, estivesse matriculado em uma instituição de ensino altamente
conceituada. Diz-se agora que, se souber ler (e interpretar o que
leu), escrever, aplicar conhecimentos básicos de matemática na
solução de problemas cotidianos e... banda larga, qualquer um vai
sozinho.
A novidade é que isso não depende, nem apenas, nem
principalmente, da tecnologia stricto sensu e sim de novos padrões
de organização social que estão se configurando na
contemporaneidade. Uma sociedade em rede está emergindo e,
progressivamente, tornando obsoletos as instituições e os processos
2
3. hierárquicos da velha sociedade de massa, inclusive as instituições e
processos educacionais. Novas tecnologias de informação e
comunicação – que permitem a interação horizontal ou entre pares
(pessoa-com-pessoa) em tempo real – estão acelerando esse
processo. Mas novas tecnologias sociais, tão ou mais importantes do
que essas (chamadas TICs), também estão contribuindo para mudar
radicalmente as condições de vida e convivência social neste dealbar
do século 21.
Tudo isso vai mudar, em parte já está mudando, a maneira como
executamos as nossas atividades empresariais, governamentais e
sociais. Vai mudar a maneira como nos organizamos para produzir e
comercializar, governar e legislar e conviver com as outras pessoas
na sociedade. E – como não poderia deixar de ser – isso também está
mudando a forma como aprendemos.
O problema é que as instituições e os processos educativos que foram
pensados para um tipo de sociedade que está deixando de existir (à
medida que emerge uma nova sociedade cuja morfologia e dinâmica
já são, em grande parte, as de uma rede distribuída) ainda
remanescem e continuam aplicando seus velhos métodos. Em que
pese o papel fundamental que cumpriram nos últimos séculos, essas
instituições e processos já começam hoje a ser obstáculos à
criatividade e à inovação.
O que tivemos, pelo menos nos dois últimos séculos, foi, em grande
parte, uma educação massiva e repetitiva, voltada para enquadrar as
pessoas em um tipo insustentável de sociedade (instalando nas suas
mentes programas maliciosos, elaborados para infundir noções de
ordem, hierarquia, disciplina e obediência) e para adestrar a força de
trabalho, para que os indivíduos pudessem reproduzir habilidades
requeridas pelos velhos processos produtivos e administrativos e
executar rotinas determinadas.
Agora estamos, porém, vivendo a transição para outra época, para
uma nova era da informação e do conhecimento, na qual as
capacidades exigidas são outras também. Nesta nova sociedade do
conhecimento, o que se requer é que as pessoas sejam capazes de
criar e de inovar, mudando continuamente os processos de produção
e de gestão para descobrir maneiras melhores de fazer e organizar as
coisas.
E isso elas só conseguirão na medida em que tiverem autonomia para
aprender o que quiserem, da forma como quiserem e quando
quiserem e para se relacionar produtivamente com outras pessoas de
3
4. sua escolha, gerando cada vez mais conhecimento – o principal bem,
conquanto intangível, deste novo mundo que já está se configurando.
Faz-se necessário, pois, libertar o processo educativo das amarras
que tentam normatizá-lo de cima para baixo, em instituições
organizadas igualmente de cima para baixo, hierarquizadas,
burocratizadas e fechadas, desenhadas para guardar em caixinhas o
suposto conhecimento a ser transferido, de uma maneira pré-
determinada, para indivíduos que preencherem determinadas
condições (e, não raro, à revelia do que eles próprios desejariam de
fato aprender). Ora, já se viu que o conhecimento é uma relação
social e não um objeto que possa ser estocado, transportado,
transferido ou transfundido de um emissor para um receptor. O
processo de geração e compartilhamento do conhecimento ocorre na
sociedade e torna-se cada vez mais difícil, custoso e improdutivo
quando tentamos parti-lo em pedaços para arquivá-lo nos escaninhos
de uma organização separada da sociedade por paredes opacas e
impermeáveis.
O que de tão importante se descobriu nos últimos anos é que, em
última instância, quem é educadora é a sociedade, a cidade, a
localidade onde as pessoas vivem e se relacionam. Na verdade, foi
uma redescoberta democrática: Péricles, no século 5 a. E. C., já havia
percebido este papel educador da polis enquanto comunidade política,
quando declarou – segundo Tucídides – na oração fúnebre proferida
no final do primeiro ano da guerra do Peloponeso, “que a cidade
inteira é a escola da Grécia e creio que qualquer ateniense pode
formar uma personalidade completa nos mais distintos
aspectos,dotada da maior flexibilidade e, ao mesmo tempo, de
encanto pessoal”.
Portanto, sistemas educativos devem ser, sempre, sistemas sócio-
educativos configurados em localidades, em sócio-territorialidades,
quer dizer, em redes sociais que se conformam como comunidades
compartilhando agendas de aprendizagem.
Aprendizagem, não ensino
As escolas foram urdidas para nos proteger da experiência da livre
aprendizagem
- PSIU! CALE A BOCA. Comporte-se! Pare de conversar. Pare de
perguntar. Em vez de conversação, silêncio. A quem é inferior
4
5. (ignorante) cabe apenas ouvir o superior (aquele que sabe). Isto foi,
é e sempre será escola: um artifício para proteger os alunos da
experiência de fluzz.
Sim, escolas não são comunidades de aprendizagem. São burocracias
do ensinamento. Não são redes distribuídas de pessoas voltadas à
busca e ao compartilhamento do conhecimento. São hierarquias
sacerdotais cujo principal objetivo é ordenar indivíduos capazes de
reproduzir atitudes de disciplina e obediência. Não são ambientes
favoráveis à emergência de dinâmicas interativas, mas à imposição
de relações intransitivas. Estruturas centralizadas, baseadas na
separação de corpos: docente (hierarquia-ensinante) x discente
(massa-ensinada).
A arquitetura traduz o conceito. Na chamada educação formal,
escolas são construções que aprisionam crianças e jovens em salas
fechadas, obrigados a sentar enfileirados, como gado confinado ou
frangos de granja; pior: nas “salas de aula” ficam alguns – a maioria
– olhando para a nuca dos outros. São campos de concentração e
adestramento, onde o aluno tem de saltar obstáculos, vencer as
provas. São prisões temporárias em que se tem de cumprir a pena,
pagar a dívida. Não é por acaso que a maior recompensa na escola é
passar de ano. Ano após ano. Até sair. - Ufa! Livre afinal.
Por que construímos tal aberração?
Fomos levados a acreditar que o ensino era o antecedente da
aprendizagem. Em termos lógicos formais: ensino => aprendizagem;
donde, formalmente: não-aprendizagem => não-ensino. Mas ao que
tudo indica o ensino surgiu – como instituição – de certo modo,
contra a aprendizagem. E não-ensino, dependendo das
circunstâncias, pode até aumentar as possibilidades de
aprendizagem. O que é sempre um perigo para alguma estrutura de
poder.
Onde começou o ensino? Qual é a origem do professor? Ora, ensino é
ensinamento. Mas ensinamento é, originalmente, (reprodução de)
estamento (ou da configuração recorrente de um cluster enquistado
na rede social). Alguém tem alguma coisa que precisa transmitir a
outros. Precisa mesmo? Por quê? Alguém conduz (um conteúdo
determinado, funcional para a reprodução de uma estrutura e suas
funcionalidades). E alguém recebe tal conteúdo (tornando-se apto a
reproduzir tal estrutura e tais funcionalidades). Eis a tradição!
Os primeiros professores – parece evidente – foram os sacerdotes. A
primeira escola já era uma burocracia sacerdotal do conhecimento
5
6. (uma estrutura hierárquica voltada ao ensinamento). Isso significa
que só há ensinamento se houver hierarquia (uma burocracia do
conhecimento).
Sim, todo corpus sacerdotal é docente. A tradição é tão forte que há
até bem pouco a doutrina oficial católica romana (e ela não é a única)
ainda dividia a igreja em docente (ensinante: os hierarcas) e discente
(ensinada: os leigos). E as escolas, que também se estruturaram, em
certo sentido, como igrejas (mesmo as laicas), consolidaram sua
estrutura com base na separação de corpos entre docentes e
discentes.
O que se ensina é um ensinamento. Quando você ensina, há sempre
um ensinamento. Mas quando você aprende há apenas um
aprendizado, não há um “aprendizamento”, quer dizer, um conteúdo
pré-determinado do aprendizado. O que se aprende é o quê? Ah! Não
se sabe. Pode ser qualquer coisa. Não está predeterminado.
Eis a diferença! Eis o ponto! A aprendizagem é sempre uma invenção.
A ensinagem é uma reprodução. Mas como escreveu o poeta Manoel
de Barros (1986) no Livro sobre Nada: “Tudo que não invento é falso”
(1).
O professor como transmissor de ensinamento e a escola como
aparato separado (sagrado na linguagem sumeriana) surgiram,
inegavelmente, como instrumentos de reprodução de programas
centralizadores (verticalizadores) que foram instalados para
verticalizar (centralizar) a rede-mãe.
As escolas foram urdidas para nos proteger da experiência da livre
aprendizagem. Toda verdadeira aprendizagem é livre. E toda livre
aprendizagem é desensino. Aprender sem ser ensinado é subversivo.
É um perigo para a reprodução das formas institucionalizadas de
gestão das hierarquias de todo tipo.
Por isso o reconhecimento do conhecimento é, até hoje, um
reconhecimento não do conhecimento-aprendido, mas do
conhecimento-ensinado, dos graus alcançados por alguém no
processo de ordenação a que foi submetido.
Mas como tuitou Pierre Lévy (2010), as universidades não têm mais o
monopólio da distribuição do conhecimento; restou-lhes tentar reter
em suas mãos o monopólio da distribuição do diploma.
6
7. Autodidatismo, não heterodidatismo
Eu busco o conhecimento que me interessa do meu próprio jeito
NA TRANSIÇÃO DA SOCIEDADE HIERÁRQUICA para a sociedade em
rede estamos condenados a nos tornar buscadores cada vez mais
autônomos. É assim que transitaremos do heterodidatismo para o
autodidatismo: quando pudermos dizer: eu busco o conhecimento
que me interessa do meu próprio jeito.
Aprender a aprender é a condição fundamental para a livre
aprendizagem humana em uma sociedade inteligente. É ensejar
oportunidades aos educandos de se tornarem educadores de si
mesmos (aprendendo a andar com as próprias pernas ao se
libertarem das muletas do heterodidatismo). O educando-buscador
será um educador não-ensinante. Porque será um aprendente (2).
Nos Highly Connected Worlds, todos seremos, em alguma medida,
autodidatas. Um autodidata é alguém que aprendeu a aprender. Uma
criança, ou mesmo uma pessoa adulta ou idosa, navegando, lendo e
publicando na web, é, fundamentalmente, um autodidata.
Todo aprendizado depende da capacidade de estabelecer conexões e
reconhecer padrões. Cada vez mais será cada vez menos necessário
que alguém ensine isso. Quando as possibilidades de conexão
aumentam, também aumentam as possibilidades de reconhecer
padrões (porque aumenta a frequência com que, conhecendo uma
diversidade cada vez maior de padrões, nos deparamos com
homologias entre eles); quer dizer que, a partir de certo grau de
conectividade, o heterodidatismo não será necessário.
Nos dias de hoje, uma criança com acesso à Internet já é capaz de
aprender muito mais – e com mais velocidade – do que um jovem
com o dobro da sua idade que, há dez anos, estivesse matriculado
em uma instituição de ensino altamente conceituada. Se souber ler (e
interpretar o que leu), escrever, aplicar conhecimentos básicos de
lógica e matemática na solução de problemas cotidianos e... banda
larga, qualquer um vai sozinho. Ora, isso é terrível para os que
querem adestrar as pessoas com o propósito de fazê-las executar
certos papéis predeterminados. Isso é um horror para os que querem
formar o caráter dos outros e inculcar seus valores nos filhos alheios.
Colecionadores de diplomas e títulos acadêmicos não terão muitas
vantagens em uma sociedade inteligente. Suas vantagens proveem
da idéia de que a sociedade é burra (e eles, portanto – que compõem
7
8. a burocracia sacerdotal do conhecimento – são os inteligentes). Para
se destacar dos demais – quando o desejável seria que se
aproximassem deles – os “sábios” precisam que a sociedade continue
burra.
Nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio quem
organiza o conhecimento é a busca. Mas os caras ainda insistem em
querer organizar o conhecimento para você (isto é o hetero-
didatismo).
Toda organização do conhecimento para os outros corresponde a
necessidades de alguma instituição hierárquica e está sintonizada
com seus mecanismos de comando-e-controle. Toda organização do
conhecimento de cima para baixo procura controlar e direcionar o
acesso à informação por algum meio. Os organizadores do
conhecimento para os outros ainda entendem conhecimento como
“informação interpretada”. Interpretada, é claro, do ponto de vista de
seus possíveis impactos sobre a estrutura e a dinâmica das
organizações hierárquicas de que fazem parte. Pretendem, assim,
induzir comportamentos adequados à reprodução da estrutura e da
dinâmica dessas organizações hierárquicas. Por meio da urdidura de
sistemas de gestão do conhecimento – desde os velhos currículos
escolares aos modernos knowledge management systems, por
exemplo – querem codificar, disseminar e direcionar a apropriação de
conhecimentos para formar agentes de manutenção e reprodução de
determinado padrão organizacional.
Mas já vivemos em um momento em que não se pode mais trancar o
conhecimento – esse bem intangível que, se for aprisionado
(estocado, protegido, separado), decresce e perde valor e,
inversamente, se for compartilhado (submetido à polinização ou à
fertilização cruzada com outros conhecimentos) cresce, gera novos
conhecimentos e aumenta de valor (e é isto, precisamente, o que se
chama de inovação). E estamos nos aproximando velozmente de uma
época em que será cada vez menos necessária uma infraestrutura
hard instalada para produzir conhecimento (e inclusive outros
produtos tangíveis, como estão mostrando as experiências nascentes
de peer production ou crowdsourcing).
Novos ambientes interativos surgidos com a Internet já estão
mostrando também a improdutividade (ou a inutilidade mesmo) de
classificar o conhecimento a partir de esquema classificatório
construído de antemão. Por exemplo, nos primeiros tempos do Gmail
havia a recomendação: não classifique, busque! Hoje continua lá,
literalmente: “O foco do Google é a pesquisa, e o Gmail não é
exceção: você não precisa perder tempo classificando seu e-mail,
8
9. apenas procure uma mensagem quando precisar e a encontraremos
para você”.
É claro que as buscas atuais (na Internet, por exemplo) ainda são
feitas em mecanismos fechados que não permitem que o usuário
redefina ou modifique os algoritmos de acordo com suas percepções
e necessidades. Mas a tendência é que a busca seja cada vez mais
programável e cada vez mais semântica (3).
A busca semântica substituirá boa parte dos esforços feitos até agora
para “organizar” o conhecimento. Mas é o perfil da busca – bottom up
– que vai dizer qual o conhecimento que é relevante e não a decisão
de um centro de comando-e-controle que queira dizer às pessoas –
top down – o que elas devem conhecer.
Todos esses esforços por manter padrões verticais de um tipo de
sociedade que já está fenecendo vão ser implacavelmente punidos
pelas estruturas e pelas dinâmicas horizontais emergentes das novas
sociosferas que estão florescendo. Nesses mundos altamente
conectados toda a gestão de organizações (inclusive a gestão do
conhecimento) é regulada por meio de outros processos em rede.
O autodidata é um buscador, mas quem busca é a pessoa. A pessoa é
o indivíduo conectado e que, portanto, não se constitui apenas como
um íon social vagando em um meio gelatinoso e exibindo
orgulhosamente suas características distintivas e sim também como
um entroncamento de fluxos, uma identidade que se forma a partir
da interação com outros indivíduos. A pessoa como continuum de
experiências intransferíveis e, ao mesmo tempo, como série de
relacionamentos, aprende por estar imersa (conectada) em um
ambiente educativo entendido como ambiente de aprendizagem.
Headhunters inteligentes não estão mais se impressionando tanto
com a coleção de diplomas apresentados por um candidato a ocupar
uma vaga em uma instituição qualquer. Querem saber o que a
pessoa está fazendo. Querem saber o que ela pode ser a partir do
que pretende (do seu projeto de futuro) e não o que ela é como
continuidade do que foi (da repetição do seu passado). Está certo:
como se diz, o passado “já era”. O novo posto pretendido não será
ocupado no passado e sim no futuro. Então o que é necessário avaliar
é a linha de atuação ou de pensamento que está sendo seguida pelo
candidato.
Em breve, as avaliações de aprendizagem serão feitas diretamente
pelos interessados em se associar ou em contratar (lato sensu) uma
pessoa. Redes de especialistas de uma área ou setor continuarão
9
10. avaliando os especialistas da sua área ou setor. Mas essa avaliação
será cada vez horizontal. E, além disso, pessoas avaliarão outras
pessoas a partir do exame das suas expressões de vida e
conhecimento, pois que tudo isso estará disponível, será de domínio
público e não ficará mais guardado por uma corporação que tem
autorização exclusiva para acessar e licença oficial para interpretar
tais dados.
Cada pessoa poderá ter, por exemplo, a sua própria wikipedia. Ao
invés de aceitar apenas as oblíquas interpretações doutas,
passaremos a verificar diretamente a wikipedia de cada um – o
arquivo-vivo que contém as definições dos termos habituais, os
pontos de vista, as referências, os trabalhos e as conclusões sobre os
assuntos da sua esfera de conhecimento e de atuação. Quem gostar
do que viu, que contrate ou se associe ao autor daquela wikipedia.
Ponto final.
Alterdidatismo, não heterodidatismo
“Eu guardo o meu conhecimento nos meus amigos”
DE CERTO PONTO DE VISTA, nos Highly Connected Worlds qualquer
um vai sozinho, desde que tenha aprendido o fundamental. O
fundamental, como vimos, é aprender a aprender. O fundamental não
pode estar baseado na transferência de conteúdos temáticos
secundários e sim na disponibilização de ferramentas de auto-
aprendizagem e de comum-aprendizagem. Os que se metem a
organizar processos educativos para os outros deveriam começar
perguntando o que é necessário para que uma pessoa e uma
comunidade possam fazer o seu próprio itinerário de aprendizagem.
Do ponto de vista do aprendizado – do sujeito aprendente e não do
objeto ensinado –, três condições caracterizam a inteligência
tipicamente humana (quer dizer, sintonizada com o emocionar
humano): estabelecer conexões; reconhecer padrões; e linguagear e
conversar (no sentido que Humberto Maturana confere a essas
noções) (4).
A partir daí estamos falando de humanos (e é necessário fazer essa
ressalva porquanto máquinas também podem aprender) e podemos
então listar as ferramentas de autoaprendizagem ou “alfabetizações”
(em um sentido ampliado): a alfabetização propriamente dita, na
língua natal (ler e escrever e interpretar o que leu); e as outras
10
11. “alfabetizações”, como, por exemplo, em uma segunda língua da
globalização (pelo menos ler, em inglês ou espanhol); matemática
(dominar as operações matemáticas elementares e aplicar esses
conhecimentos básicos na vida cotidiana); lógica (aprender a
argumentar e identificar erros lógicos em argumentos simples);
digital (navegar e publicar na Internet e operar as ferramentas
digitais de inserção, articulação e animação de redes).
Estes – ao que parece – são os requisitos e as ferramentas
contemporâneas da inclusão educacional. Quem dispõe deles pode
caminhar sozinho; ou seja, de posse de tais instrumentos, cada um,
em função de suas opções pessoais, pode traçar seus próprios
itinerários de formação e compartilhá-los com suas redes de
aprendizagem. Esses são os requisitos para o autodidatismo.
No entanto, de outro ponto de vista – o do alterdidatismo – a rigor,
ninguém pode continuar caminhando sozinho. Aprender a aprender
está intimamente relacionado a aprender a interagir em rede. Mesmo
que a escola básica se dedicasse precipuamente a isso, mesmo assim
não se poderia abrir mão da educação em casa (a primeira rede
social na qual o ser humano se conecta), nem da educação
comunitária (a expansão dessa rede, envolvendo os vizinhos, os
amigos e conhecidos mais próximos).
O aprender a conviver (com o meio natural e com o meio social)
talvez requeira outras “alfabetizações”: por exemplo, a alfabetização
em sustentabilidade (incluindo alfabetização ecológica e alfabetização
para o empreendedorismo e para o desenvolvimento humano e social
sustentável local ou comunitário); e a alfabetização democrática (em
um sentido deweyano do termo: para a vida comunitária e para as
formas de relacionamento que ensejam a regulação social
emergente; i. e., as redes sociais distribuídas). Mas essas
“alfabetizações” não são temas curriculares ou disciplinas. São drives
capazes de gerar agendas compartilhadas de aprendizagem.
Não é por acaso que a educação para a sustentabilidade, quer dizer,
para a vida (em um sentido ampliado, envolvendo os ecossistemas,
inclusive o ecossistema planetário) e para convivência social, não
compareçam nos currículos escolares. Elas não são propriamente
objetos de ensino e sim de aprendizagem-na-ação compartilhada.
Ninguém é capaz de aprender essas coisas apenas tomando aulas ou
lendo textos. É necessário vivê-las, experimentá-las, ou melhor,
convivê-las (e é por isso que são drives geradores de agendas
compartilhadas de aprendizagem).
É compartilhando essas agendas de aprendizagem que o educador se
11
12. torna um educando (um aprendente da interação educadora). Nesse
aprender-fazendo esvai-se a distinção entre professor e aluno: todos
passam a ser agentes comunitários de educação.
Portanto, quando se diz (do ponto de vista do autodidatismo) que
qualquer um vai sozinho, e quando se diz (do ponto de vista do
alterdidatismo) que, a rigor, ninguém pode caminhar sozinho, está-se
dizendo a mesma coisa: que o heterodidatismo no qual se baseiam os
sistemas de ensino é uma muleta que deve ser abandonada.
Na transição da sociedade hierárquica para a sociedade em rede
estamos condenados a nos tornar polinizadores cada vez mais
interdependentes. É assim que transitaremos do heterodidatismo
para o alterdidatismo: quando pudermos dizer: eu guardo o meu
conhecimento nos meus amigos.
A escola que já se prefigura no final desse trajeto é uma não-escola.
A escola é a rede. Nela, todos seremos alterdidatas. Um alterdidata é
alguém que aprendeu a conviver com o meio natural e com o meio
social em que vive.
Aprender a conviver com o meio natural e com o meio social é
ensejar oportunidades aos educadores de se tornaram educandos da
interação comunitária na nova sociedade em rede (desaprendendo
ensinagem ao se libertarem das muletas do heterodidatismo). O
educador-polinizador será alguém que desaprendeu a ensinar. Porque
será um aprendente.
Dominar a leitura e a escrita, saber calcular e resolver problemas, ter
condições de compreender e atuar em seu entorno social, ter
habilidade para analisar fatos e situações e ter capacidade de acessar
informações e de trabalhar em grupo, são geralmente apresentados
como objetivos do processo educacional básico. No entanto, para
além, muito além, de tudo isso, os novos ambientes educativos em
uma sociedade-rede tendem a valorizar outras competências ou
habilidades, como a de identificar homologias entre configurações
recorrentes de interação que caracterizam clusters (e,
consequentemente, reconhecer potenciais sinergias e aproveitar
oportunidades de simbiose), saber não apenas acessar, mas produzir
e disseminar informações e conseguir não somente trabalhar em
grupo, mas fazer amigos e viver e atuar em comunidade.
De certo modo, tudo o que parece realmente necessário para a
convivência ou a vida em rede, como a educação para a democracia,
a educação para o empreendedorismo e para o desenvolvimento ou a
sustentabilidade, não comparece nos currículos das escolas. Não pode
12
13. ser por acaso. Isso talvez corrobore a constatação de que a escola é
uma das instituições que mais resistem ao surgimento da sociedade-
rede.
Por quê? Ora, porque embora se declarem instituições laicas, as
escolas são, no fundo, igrejas; ou seja, ordens hierárquicas
(sacerdotais) que decidem o que as pessoas devem (saber)
reproduzir. Graus de aprendizagem (na verdade, de ensino) são
ordenações: medem a sua capacidade de replicar uma determinada
ordem. Não é por acaso que a educação a distância encontrou
fortíssima resistência na academia. Pelos mesmos motivos, processos
e programas educacionais extraescolares são duramente combatidos
pelas corporações de professores, que argumentam – sem se darem
conta de que, com isso, estão apenas revelando seu caráter
sacerdotal – que não se pode deixar a educação nas mãos de leigos...
No entanto, neste momento estão sendo elaboradas e testadas
metodologias compatíveis com processos de inteligência coletiva
(“learn from your neighbours” - Steve Johnson; “I store my
knowledge in my friends” - Karen Stephenson) baseadas na idéia de
cidade educadora reconceitualizada como cidade-rede de
comunidades que aprendem. Novas práticas estão surgindo a partir
de experiências voltadas ao estímulo ao autodidatismo, adaptadas às
novas formas de interação educativa extraescolares, como o
homeschooling e, sobretudo, communityschooling, porém na linha do
unschooling. Novas teorias da aprendizagem, como o conectivismo,
estão tentando mostrar como as redes sociais devem constituir o
padrão de organização das novas comunidades de aprendizagem
capazes de disseminar e empregar ferramentas de autoaprendizagem
e de comum-aprendizagem (5).
Não-escolas: a escola é a rede
Nós produzimos nosso conhecimento comunitariamente (em rede)
NOS HIGHLY CONNECTED WORLDS a educação não pode ser mais
nada disso que andaram falando nos últimos quatro séculos do
mundo único. Simplesmente porque não haverá ‘a’ educação.
O conceito de educação – ao contrário do que parece – é um conceito
totalizante e regressivo. Não é a toa que tenha surgido juntamente
com o conceito de sociedade. Não pode existir ‘a’ educação, assim
como não pode existir ‘a’ sociedade. Não há uma educação e sim uma
13
14. diversidade de processos de aprendizagem. Não há uma sociedade e
sim uma diversidade de sociosferas.
O consenso que se generalizou sobre ‘a’ educação é paralisante. A
crença de que a educação vai resolver todos os problemas está tão
generalizada que as pessoas sequer percebem que, se isso fosse
verdade, países como a Bulgária ou Cuba seriam considerados
desenvolvidos.
Quando os processos de aprendizagem forem libertados – ou quando
a geração de sociosferas (uma espécie de “lei do ventre livre” social)
for libertada: no fundo é a mesma coisa! – a educação na sociedade
terminará.
A escola que já se prefigura no final desse trajeto é uma não-escola.
A escola é a rede. Nela, todos seremos autodidatas e alterdidatas:
quando pudermos dizer: nós produzimos nosso conhecimento
comunitariamente (em rede).
Um autodidata-alterdidata é alguém que aprendeu a aprender-
convivendo. Como buscadores e polinizadores, não seremos
ensinados nem ensinadores. Porque todos seremos aprendentes.
Sociosferas em que as redes são as escolas serão aquelas
“sociedades desescolarizadas”, como queria o visionário Ivan Illich
(6). A sociedade sem escola de Illich poderia ser renomeada como a
sociedade-escola, desde que ficasse claro que se trata da sociedade-
rede; ou seja, estamos falando das comunidades educadoras que se
formam na sociedade-rede.
Nesse sentido, não são os aparatos educativos hierárquicos,
enquistados na sociedade, que educam basicamente: na medida em
que a sociedade de massa vai dando lugar à sociedade em rede, são
as próprias sociosferas (glocais) que educam, por meio das
comunidades (clusters) que necessariamente se formam em seu seio.
Comunidades educadoras são, antes de qualquer coisa, comunidades
de aprendizagem, quer dizer, comunidades-que-aprendem. Isso vale
para tudo, não apenas para as escolas como aparatos da educação
formal. Também virarão não-escolas os centros de pesquisa e
investigação, as sociedades filosóficas e os grupos criativos que
usinam novas ideias e inauguram novas maneiras de pensar (a escola
na sua acepção de think tank ou escola de pensamento).
14
15. Matar a escola = matar o Buda
Quando o mestre está preparado, o discípulo desaparece
É DIFÍCIL ENTENDER A NATUREZA de uma não-escola. No mundo
único as pessoas buscavam um sistema produtor de respostas
capazes de fazer sentido global para elas. Eram atraídas por religiões,
igrejas e seitas (religiosas e laicas), sociedades filosóficas e escolas
de pensamento (mesmo aquelas que, baseadas na conversação, se
intitulavam comunidades). Elas forneciam a proteção contra a
pergunta-disruptiva por meio de uma meta-explicação coerente, a
segurança de uma grande narrativa totalizante ou de esquemas
explicativos gerais que permitiam que alguém se identificasse e
comungasse com outros que palmilhavam o mesmo caminho e
tivesse, assim, uma justificativa ética para se fechar à interação com
o outro-imprevisível. Mas tudo isso é escola!
É muito difícil não construir um esquema organizador para as
conversas mantidas por qualquer grupo. Mas a tarefa em uma não-
escola não é criar uma espécie de wikipedia, nem mesmo uma
contextopedia, com os significados que foram sendo construídos via
consenso-administrado a partir do debate ou da conversação. Não há
significados gerais universais. Não há significados sempre válidos
para os mesmos contextos (inclusive porque, a rigor, nunca se
repetem "mesmos contextos"). Há significâncias atribuídas por
sujeitos em interação e válidas para os momentos de interação em
que tais sujeitos estão envolvidos. São significados-fluzz, que mudam
continuamente com o fluxo e o máximo que podemos fazer é mapear
as relações entre esses significados mutantes. Sim, reconheçamos
que não é fácil para nós aceitar o presente, não é fácil resistir à
tentação de arquivar o passado em caixinhas, sobretudo se as
plataformas que utilizamos são p-based (baseadas em participação) e
não i-based (baseadas em interação).
Mas já não se trata mais de sistematizar conteúdos ou de interpretar
e sintetizar respostas cognatas ou convergentes. Trata-se agora
apenas de linkar para facilitar a busca. Quem organiza o
conhecimento é a busca. Quem produz (novo) conhecimento (como
relação sempre inédita, não como conteúdo arquivável) não é a
gestão, mas a interação.
Na configuração de novos ambientes interativos de produção de
conhecimento não deve haver "progresso", no sentido de constituição
de um corpo coerente, que vai se tornando cada vez mais redondo e
polido (até que a epistemologia consiga espelhar a ontologia). Não se
15
16. trata de construir um códex, uma doutrina, um ensinamento, uma
teoria explicativa de tudo, uma nova plataforma de visão de mundo.
Isso é o que diferencia as novas escolas-não-escolas dos mundos
altamente conectados, de uma escola, quer dizer, de uma igreja (7).
Sim, as escolas como centros de pensamento também são igrejas.
Elas surgem quando criamos programas de separação entre os de
dentro e os de fora a partir de um conteúdo, de uma mensagem, de
uma doutrina, de um conjunto de ideias que alguns compartilham e
outros não. Se fizermos isso, erigiremos uma escola; quer dizer, uma
igreja.
Se você junta os que compartilham qualquer corpo de ideias (mesmo
que sejam ideias tão heterodoxas e libertárias como estas que estão
sendo expostas aqui e agora) e, a partir daí, constrói um coletivo,
você está fazendo uma escola. Não importa o que você pense,
valorize, fale ou pregue: você ensina, quer dizer, escorre por um
sulco já cavado pelo ensinamento!
Há uma coerência interna e há completude em boa parte das escolas
de pensamento que floresceram nos milênios passados. É como um
mundo que foi construído (e ninguém se engane: há sabedoria nesse
mundo; a questão é que sabedoria não pode ser um critério aceitável
para validar sistemas hierárquicos). E ocorre que existem múltiplos
mundos. Se você exige que uma pessoa viva na coerência do mundo
que você construiu como condição para se deixar alterar por essa
pessoa (ou seja, interagir com ela), então você não está realmente
aberto à interação (com o outro-imprevisível): você quer participação
dos outros no seu espaço, o que é uma forma de exigir (sem
aparentemente fazer qualquer exigência formal) que os outros vivam
na mesma coerência em que você vive. Mas essa é a definição de
seita, de escola.
Não é um problema de comunicação, de adaptar a linguagem ou
adotar uma postura tática para se fazer entender pelos "de fora".
Nada disso. O problema aqui é a rede (ou melhor, a falta dela)
Esse comportamento em geral não é intencionalmente constituído e
reproduzido. Ele é uma decorrência do padrão de organização
adotado. Faça uma rede aberta de conversações e ele se esfuma; ou
seja, a escola desaparece para surgir em seu lugar uma rede de livre
aprendizagem. Assim como desaparecerá o codex, o corpo
doutrinário referencial único: ou seja, o legado fundante da escola de
pensamento desaparecerá para dar lugar a miríades de construções
conceituais por ele inspiradas.
16
17. O problema é que toda ereção de um sistema implica uma armadilha.
Você fica rodando dentro dele. E para dialogar com as pessoas que
vivem nele, você também precisa também rodar dentro dele. A
palavra "rodar", aqui, é empregada no sentido contemporâneo de
"rodar um programa" (software). Sim, porque o sistema sobre o qual
falamos, é um programa de atribuições de significados e, mais do que
isso, de construção dos processos particulares pelos quais se atribui
significados. Para interagir com quem está dentro do sistema você
precisa se plugar e "carregar" o programa (em você). Ao carregar o
programa, você carrega também sua linguagem (script) e, além
disso, seu linguageado e, às vezes, até mesmo seu gestual.
Pode-se retrucar que isso ocorre, em maior ou menor medida, com
qualquer construção conceitual que apresente os critérios
epistemológicos de coerência interna e completude. É verdade. Mas
quando o sistema valida seus argumentos internamente, estando os
critérios de validação tão implicados no que se quer validar e vice-
versa (ou seja, estando a epistemologia tão fundida à ontologia), a
verificabilidade fica subordinada (sub-ordenada) pela explicação auto-
referente. É por isso que, em ciência, não se pode abrir mão do
critério da verificabilidade, que deve ter o mesmo status
epistemológico dos critérios da coerência interna e da completude (as
quais, sozinhas, não bastam). Assim, os resultados de uma
explicação devem sempre poder ser verificados por sujeitos que
adotam outros esquemas explicativos.
Um bom exemplo de escola de pensamento é a escola freudiana nos
seus primórdios. Uma pessoa deve poder verificar os efeitos do que a
explicação freudiana atribui a determinado complexo sem ter que
adotar a explicação freudiana. Se sou obrigado a me tornar freudiano
para perceber os fenômenos psíquicos que poderiam ocorrer com
quaisquer seres humanos independentemente da explicação
freudiana (e da existência de Freud), então estou preso a um sistema
incapaz de interagir com outras explicações (externas às
circularidades freudianas). E corro o risco de recair no dogmatismo
dos primeiros freudianos: uma pessoa deve poder contestar a
existência de um complexo sem ser acusada de estar fazendo isso
justamente por estar possuída por tal complexo. Em alguma medida,
isso ocorre com todos os sistemas autorreferentes, sobretudo na sua
"primeira-infância".
Eric Raymond (2001), no Hacker Howto (8) aconselhava o estudo do
Zen aos hackers, sem dúvida um formidável software de
desconstituição de certezas, compartilháveis por uma ou várias
comunidades. Talvez seja o caso, porém, de voltar ao Tao, para limar
as aderências doutrinárias que o Zen adquiriu: ao se fundir ao
17
18. budismo foram introduzidos conteúdos... Sim, continua sendo o Zen,
mas só depois de você matar o Buda.
Qualquer comunidade de pensamento precisa matar o seu fundador
(que é, inclusive, a melhor forma de amá-lo). Quando esse fundador
é uma pessoa, precisa se livrar das aderências de um modo-de-
argumentar, de uma autêntica maneira particular de pensar, falar e
escrever que fazia sentido para aquele ser humano unique que a
fundou. E o passo seguinte dessa ação de amar tão profundamente o
fundador ao ponto de matá-lo é não constituir um grupo proprietário
em torno de suas ideias, de abrir mão de erigir um corpo docente
(uma escola) a partir de um corpo teórico para propagar um
ensinamento que possa ser diferencialmente ministrado por
"representantes autorizados", ainda que tudo isso seja – o que será
pior – chancelado pelo próprio fundador. Isso é uma condição de
contorno opaca quando precisamos de membranas.
Não afirmamos que se deva matar o fundador apenas no sentido de
matar a sua imagem idealizada e introjetada, tal como alguns
interpretam o lema killing the buddha (como disse a pessoa-zen Lin
Chi: “Se o Buda cruzar seu caminho, mate-o”). Trata-se de
desabilitar um programa verticalizador que roda na rede gerando
instituições que congelam fluxos. Trata-se de 'matar a escola' (no
caso, constituída sobre um legado de pensamento transformado em
ensinamento).
Não tem nada a ver com querer ver morto algum fundador por achar
que ele já está caduco ou ultrapassado. É o contrário. Quando se diz
"matar o Buda" isso significa uma admiração suprema pelo Buda,
como prefiguração do Buda que está-em-devir em cada um de nós e
que só vai despertar quando o Buda que está fora desaparecer como
referência (externa porém introjetada em uma espécie de falsa
conniunctio). Mas, particularmente, no contexto desta discussão,
significa matar a escola como ordenação do ensinamento abrindo
possibilidades de formação de múltiplas comunidades de
aprendizagem para além do círculo restrito dos que se matriculam em
um curso ou seguem um programa privando da convivência de um
grupo determinado.
Ocorre que com a acelerada emergência, agora, dos Highly
Connected Worlds, vida humana e convivência social tendem a se
aproximar a ponto de revelar ou deixar entrever um superorganismo
humano. Isso nos obriga a mudar nossas interpretações. E é um
choque para as chamadas tradições espirituais (todas estas são
artifícios para administrar espiritualidades conformes ao mundo
patriarcal e não por acaso são baseadas nas escolhas do indivíduo,
18
19. são ministradas por escolas - burocracias sacerdotais do ensinamento
- e mantêm a relação mestre-discípulo). Agora será preciso mostrar
que quando o mestre está preparado, o discípulo desaparece e,
portanto, chegar à condição de mestre é chegar à condição do
aprendente: aquele que matou o mestre não apenas quando matou a
imagem idealizada do mestre dentro de si (introjetada), mas quando
matou a escola. E tudo isso para quê? Ora, para que o Buda morto
não renasça nas mãos dos que o mataram.
Em outras palavras, não há como construir a base ideológica (ou de
mundivisão) para uma grande narrativa em uma época em que não
cabem mais os esquemas totalizantes de apreensão do mundo e de
interação com o mundo. Não é mais possível a existência de uma
(única) matriz ética para a humanidade. Em uma época em as redes
cobrem o planeta como uma pele e em que, por um processo fractal,
uma pluralidade de mentes globais está surgindo, não se trata mais
de forjar um grupo para usinar um modelo e espalhá-lo e sim de
surfar nas ondas interativas que estão fertilizando os diversos
modelos que emergem de uma diversidade de comunidades de
prática, de aprendizagem e de projeto que estão brotando e
submetendo seus programas à esse tipo de polinização complexa.
Essa visão é chave para não irmos parar de volta em algum lugar do
passado: o processo é fractal! Não é possível salvar o mundo de uma
vez: só é possível salvá-lo um instante de cada vez... (9) Mesmo
porque não existe mais um mundo: os mundos já são – e serão, cada
vez mais – múltiplos.
Sim, não estamos mais na época do anúncio de uma nova proposta
que, se abraçada por muitos no seu refletir-agir, vai supostamente
salvar o planeta (harmonizar biosfera com antroposfera), redimir a
humanidade ou nos levar para um porvir radiante. Não sabemos qual
é o futuro. Sobretudo porque esse futuro (um futuro), felizmente,
morreu. Não podemos pretender levar ninguém para lugar algum. A
época em que vivemos é a época da desistência (10). A hora que
vivemos é, portanto, a hora de abrir mão dessas pretensões de
conduzir povos, orientar nações, mobilizar pessoas em torno de um
objetivo comum para transformar a sociedade (e ‘a’ sociedade, como
vimos, é uma abstração regressiva).
Fomos contaminados por um padrão transformacional de mudança e
queremos então transformar a sociedade. Mas... transformar para
chegar aonde? E transformar o quê? E transformar em quê? E
transformar por quê?
Atravessados por essa pulsão transformacionista, legiões de
militantes que continuam habitando os séculos passados vivem
19
20. querendo fazer mudanças (que eles não podem, honestamente, saber
quais são) em nome de uma causa. Mas é inútil. As mudanças em
sistemas complexos (e as sociedades humanas são sistemas
complexos) ocorrem, em boa parte, espontaneamente (se
entendermos por isso que ocorrem em virtude de fluições que não
alcançamos compreender e determinar). Estamos lidando com uma
ordem de fenômenos que não podemos manejar (e é bom para a
liberdade – para a livre aprendizagem humana – que não possamos
fazer isso). A livre aprendizagem humana só pode ocorrer em redes
de aprendizagem, quando nos libertarmos das escolas.
Se quisermos uma rede de aprendizagem – i. e., uma não-escola –
não podemos constituir um grupo que saia pelo mundo propagando
um legado baseado nas ideias de algum fundador. Para ser uma rede,
o legado tem que ser open, para poder ser desenvolvido, alterado,
modificado, sem necessidade de ordenação ou chancela. Para poder
ser rede a membrana deve deixar entrar e sair outros conteúdos
dentro do escopo estabelecido (posto que se será uma rede
voluntariamente construída haverá um escopo delimitado e algumas
regras ou acordos de convivência, mas isso nada tem a ver com a
adesão a um conteúdo substantivo). Sempre sem exigências, é claro.
Mas sabendo que sem interagir com o outro imprevisível, com aquele
que não planejamos interagir, não pode haver rede (social
distribuída).
Em suma, uma escola deve ser uma não-escola para ser rede. Não
basta fluir na sintonia interna dos que acolhem o outro que
reconhecem como desejoso de conservar o que querem conservar, do
lugar onde estão, desde que esse conservar seja referente a um
compartilhar um determinado conteúdo. Dizendo a mesma coisa de
outra forma, não é o desejo (dos sujeitos) de conservar determinado
corpo teórico, nem mesmo o desejo de conservar um modo de
convivência explicitável e explicável (pelos sujeitos) que constitui a
comunidade humana (ou a rede). A rede acontece quando você
interage. Tudo que podemos fazer para ensejar a interação é evitar a
produção artificial de escassez (é mais um não-fazer). Não adianta
sistematizar conteúdos e esperar que, sintonizando-se com tais
conteúdos, as pessoas passarão a conviver em rede. Isso ainda está
no terreno do proselitismo (uma dimensão de ensino, de propagação
de ensinamento, não de aprendizagem). As regras ou acordos de
convivência estabelecidos por uma rede voluntariamente construída
não são o mesmo que a adesão a um conteúdo substantivo (e,
portanto, ninguém pode ser expulso de uma não-escola por estar em
desacordo ou dessintonia com um conteúdo e ninguém terá como
condição para ser admitido estar de acordo com tal conteúdo, como
20
21. fazem as religiões, as seitas iniciáticas e as escolas de pensamento,
inclusive as escolas budistas que aconselham matar o Buda).
Ensinadores são mantenedores do velho mundo
Os primeiros ensinadores – os sacerdotes – ensinavam para
reproduzir (ou multiplicar os agentes capazes de manter) seu próprio
estamento
ENSINADORES SÃO OS QUE COMPÕEM a burocracia privatizadora do
conhecimento: aquela casta sacerdotal que constitui as escolas e
academias.
Os ensinadores surgiram naquela noite dos tempos que o matemático
Ralph Abraham (1992) chamou de “precedente sumeriano” (11).
É surpreendente constatar, como fizeram Joseph Campbell, Samuel
Noah Kramer e outros renomados sumeriologistas, que os elementos
centrais da nossa cultura, dita civilizada, compareciam em uma
espécie de modelo ou protótipo ensaiado em complexos do tipo
cidade-templo-Estado como Eridu, Nippur, Uruk, Kish, Acad, Lagash,
Ur, Larsa e Babilônia. Esse modelo já estava em pleno
funcionamento, segundo interpretações de relatos que não puderam
ser contestadas, a partir do quarto milênio. Em particular a obra de
Kramer (1956): “A história começa na Suméria”, revela as raízes
sumerianas do atual padrão civilizatório (12).
Joseph Campbell (1959), em “As Máscaras de Deus”, redigiu uma
espécie de termo de referência para esta investigação (13):
“Um importante desenvolvimento, repleto de significado e
promessas para a história da humanidade nas civilizações por
vir, ocorreu... [por volta] (de 4.000 a. C.), quando algumas
aldeias camponesas começaram a assumir o tamanho e a
função de cidades mercantis e houve uma expansão da área
cultural... pelas planícies lodosas da Mesopotâmia ribeirinha.
Esse é o período em que a misteriosa raça dos sumérios
apareceu pela primeira vez em cena, para estabelecer-se nos
terrenos das planícies tórridas do delta do Tigre e do Eufrates,
que se tornariam em breve as cidades reais de Ur, Kish,
Lagash, Eridu, Sipar, Shuruppak, Nipur e Erech... E então, de
súbito... surge naquela pequena região lodosa suméria – como
se as flores de suas minúsculas cidades subitamente vicejassem
21
22. – toda a síndrome cultural que a partir de então constituiu a
unidade germinal de todas as civilizações avançadas do mundo.
E não podemos atribuir esse evento a qualquer conquista da
mentalidade de simples camponeses. Tampouco foi a
conseqüência mecânica de um mero acúmulo de artefatos
materiais, economicamente determinados. Foi a criação factual
e claramente consciente (isto pode ser afirmado com total
certeza) da mente e ciência de uma nova ordem de
humanidade que jamais havia surgido na história da espécie
humana: o profissional de tempo integral, iniciado e
estritamente arregimentado, sacerdote de templo”.
Respeitados estudiosos confessam até hoje sua perplexidade diante
da constelação desse ‘precedente sumeriano’ (para insistir na feliz
expressão do matemático Ralph Abraham) (14). É o caso, por
exemplo, da antropóloga e assirióloga Gwendolyn Leick, que leciona
em Richmond (Londres). No seu “Mesopotâmia: a invenção da
cidade” (2001), ela declara que “muito se tem escrito sobre o
“súbito” aparecimento dos sumérios na Mesopotâmia e suas possíveis
origens... [mas] a questão da origem dos sumérios continua
aguardando solução, e tudo o que podemos dizer é que, no início do
Primeiro Dinástico, sua língua foi escolhida para ser vertida em
escrita. Talvez os sumérios se tivessem tornado politicamente
dominantes e exercido o controle dos centros de formação de
escribas nas primeiras cidades” (15).
Essa casta ou estamento – composta pela burocracia sacerdotal que
administrava as nascentes cidades-templo-Estado sumerianas –
configurou o primeiro padrão de transmissão de ensinamento.
Ensinavam como um imperativo para reproduzir seu próprio
ensinamento; quer dizer, ensinavam para reproduzir (ou multiplicar
os agentes capazes de manter) seu próprio estamento.
Por quê? Ora, porque o livre aprendizado na rede social de então não
seria capaz de cumprir tal função, que nada tinha a ver com sua
sobrevivência ou com sua convivência. Não se tem notícia de escola,
ensino ou professores em sociedades de parceria. Quando a rede
social foi subitamente centralizada pela configuração particular que se
constelou com o surgimento do complexo cidade-templo-Estado, os
programas verticalizadores que começaram a rodar nessa rede eram
replicados em outras regiões do espaço e do tempo pela transmissão-
recepção de seus códigos – e já havia programas elaborados, como
os que os sumérios denominavam ‘me’ (16) – aos membros do
mesmo grupo social.
22
23. Ou seja: já havia um ensinamento (secreto, por certo, acessível
somente aos membros do estamento). Já havia ensinantes (os
primeiros professores, membros da casta sacerdotal) e ensinados (os
futuros administradores em formação).
Essa hipótese é fortalecida pela investigação das origens da
Kabbalah. O símbolo central desse sistema de sabedoria – a chamada
“Árvore da Vida” – foi, sem dúvida, herdado do simbolismo templário
do complexo Templo-Estado sumeriano, o qual deve ter passado ao
judaísmo posterior por intermédio da Golah – a organização dos
cativos (sequestrados nas elites de Jerusalém) na Babilônia sob o
reinado de Nabucodonozor e seu sucessor.
Não se sabe a origem da 'árvore da vida', mas ela aparece nas
imagens da tamareira gravadas nas mais antigas tabuinhas
sumerianas encontradas pelos escavadores. E aparece também – com
o mesmo esquema, que depois foi transmitido pela tradição
(cabalística) – na forma de uma nave, ladeada por dois seres alados
(com cabeças de águia). Uma nave – talvez como as naves dos
templos, até hoje – que não sai do lugar, mas por meio da qual se
pode “viajar” para os céus caso se tenha acesso ao “combustível”
adequado: ao “fruto da vida” e à “água da vida”...
O mesmo schema básico da árvore da vida, representada em vários
mundos que se interceptam (os da emanação, da criação, da
formação e do produzir) compõe o que foi chamado de “Escada de
Jacó”, uma escada pela qual os mensageiros – ou as mensagens –
podem subir e descer estabelecendo os fluxos entre o céu e a terra.
Isto é anisotropia: o céu, é claro, fica em cima; a transmissão, é
claro, é top down. E o esquema é mais centralizado que distribuído
(17).
Essa ideologia de raiz babilônica (suméria) que, quase dois milênios
depois, foi se chamar de Kabbalah (cabala), na Idade Média européia,
fez uma operação tremenda de “engenharia memética” no símbolo
original, ressignificando a árvore da vida como uma “árvore do
conhecimento”, quer dizer, tomando a vida pelo conhecimento da
vida e do que com ela foi feito... Isso significa obstruir o acesso à
vida, facultando-o somente aos que possuem o conhecimento (aquilo
que a cabala chamou de “ensinamento” e que é transmitido então em
uma cadeia, tida por ininterrupta, que começa com o
arquimensageiro Raziel, passa para Enoc – o escriba, não por acaso –
e daí para os patriarcas e para os sacerdotes). Kabbalah vai designar,
então, essa tradição sacerdotal: condução (transmissão-recepção) do
ensinamento original por parte daqueles que são capazes de
23
24. reproduzir esse mesmo padrão de ordem sagrada, isto é, separada
do vulgo, do profano, daquele que não foi ordenado.
Isso tudo não somente fez, mas faz ainda, parte de uma experiência
fundante de verticalização do mundo, que prossegue enquanto a
tradição permanece ou se refunda toda vez que o meme é replicado.
Do ponto de vista da memegonia, aqui pode estar a origem da
relação mestre-discípulo ou professor-aluno.
Não foi a toa que uma mente arguta como a de Harold Bloom (1975)
– ecoando, aliás, o que dizia o erudito Gershom Scholem – percebeu
que Kabbalah era uma ideologia de professores. Na origem de tudo
está... uma Instrução: “o Ein-Sof instrui a Si mesmo através da
concentração... Deus ensina a Si mesmo o Seu próprio Nome, e,
dessa forma, começa a criação” (18).
Nessa memegonia, Deus é o primeiro professor e o ato de ensinar
está na raiz do ato de criar o mundo. O conhecimento (via
ensinamento) – e não a existência e a vida – é o objetivo: a origem e
o alvo. Deus cria o mundo para se conhecer. Mas para se conhecer
ele ensina, não aprende. Logo, seus “delegados”, ou intermediários
(os sacerdotes), também ensinam. Todo corpus sacerdotal é docente.
É por isso que há uma enorme dificuldade de conciliar visões próprias
de sistemas tradicionais de sabedoria com a visão-fluzz das redes de
aprendizagem. A tradição - dita espiritual - com raras exceções
(como o Tao, mas não o taoismo; como o Zen - esse formidável
sistema de desconstituição de certezas -, mas não o budismo) em
geral replicou atitudes míticas, sacerdotais, hierárquicas e
autocráticas. Maturana levantou a hipótese da "brecha" (na
civilização patriarcal e guerreira) para mostrar como pôde ter surgido
a democracia (19). Mas, na verdade, não foi só a democracia que
penetrou pela "brecha": vertentes utópicas, proféticas, autônomas e
democráticas floresceram ao longo da história e continuam
florescendo - intermitentemente - toda vez que comunidades
conseguem estabelecer uma interface para conversar com a rede-
mãe (20). Essas duas vertentes permaneceram e ainda permanecem
em permanente tensão.
O professor como transmissor de ensinamento e a escola como
aparato separado (sagrado na linguagem sumeriana) surgiram,
inegavelmente, como instrumentos de reprodução de programas
centralizadores que foram instalados para verticalizar a rede-mãe.
De certo modo, os deuses do panteão patriarcal e guerreiro foram os
primeiros programas meméticos centralizadores (21). O tardio IHVH
24
25. bíblico – ensinador – encarna uma rotina desses programas (e é
representado por uma das sefirot – um evento – na 'árvore da vida'
ressignificada, no mundo da emanação).
Como os deuses do panteão patriarcal e guerreiro da Mesopotâmia do
período Uruk (c. 4000-3200) – período sucedido, logo em seguida,
não por acaso, pela escrita (no Primeiro Dinástico I: c. 3000-2750) –
foram criados à imagem e semelhança dos homens que começaram a
se organizar segundo padrões hierárquicos, tudo isso é muito
relevante para entendermos que a transmissão do ensinamento já foi
fundada, de certo modo, em contraposição ao livre aprendizado
humano na rede social muito menos centralizada (ou até, quem sabe,
distribuída) dos períodos pré-históricos anteriores (desde, pelo
menos, o Neolítico). Para essas sociedades de dominação, nada de
aprender (inventar). Era preciso ensinar (para replicar). E por isso
ensinadores são mantenedores do velho mundo.
Mestres e gurus
Todos são mestres uns dos outros enquanto se polinizam
mutuamente
HÁ TAMBÉM OS QUE – por fora dos sistemas formais de ensino –
ainda se intitulam (ou são por alguém intitulados de) mestres ou
gurus. Alguns são ordenados para tanto, quer dizer, têm reconhecida,
sempre por uma organização hierárquica, sua capacidade de
reproduzir uma determinada ordem top down. E querem então
imprimi-lo, emprenhá-lo, ou seja, enxertar suas ideias-implante em
você, para que você se torne também um transmissor desse “vírus”.
É claro que existem outras interpretações do papel do mestre. Osho,
por exemplo, tentando explicar a correta intolerância de Krishnamurti
com os que se anunciam ou eram anunciados como mestres ou gurus
coloca outra perspectiva ao dizer que “um mestre não o ensina, ele
simplesmente torna o seu ser disponível para você e espera que você
também faça o mesmo”. E aí vem a justificativa: “A menos que
algum raio do além entre em seu ser, a menos que você prove algo
do transcendental, até mesmo o desejo de ser liberado não aparecerá
em você. Um mestre não lhe dá a liberação, ele cria um desejo
apaixonado pela liberação”. A justificativa é que “será muito difícil,
quase impossível, fazer isso por conta própria” (22).
25
26. Mas quem disse que isso teria que ser feito “por contra própria”? Ao
tentar justificar sua crítica a Krishnamurti, Osho enveredou por um
viés psicológico individual. Ele não teria se curado do trauma de ter
sido “educado por pessoas muito autoritárias... professores, talvez,
mas não mestres”. Então Osho afirma que tudo isso “foi demais [para
Krishnamurti] e ele não pode esquecê-los e não pôde perdoá-los”
(23). No fundo, tudo isso soa mais como uma tentativa de salvar
uma função pretérita, resgatar um papel arcaico que, em alguma
época, funcionou de fato assim como ele, Osho, diz, porém em
mundos de baixa conectividade social.
Na medida em que vida humana e convivência social se aproximam
(nos mundos altamente conectados) somos obrigados a mudar
nossas interpretações. Isso entra em choque com as tradições
espirituais que diziam que quando o discípulo está preparado o
mestre aparece. De certo modo é justo o contrário: o discípulo
desaparece quando desaparece a escola (quer dizer o ensinamento) e
com ele vai-se também o mestre.
Isso – para alguns – é um escândalo. Nos Highly Connected Worlds
quem lhe reconhece é o simbionte social, se você se sintonizar
suficientemente com a rede-mãe. Não é um representante da
tradição, não é um membro de uma casta sacerdotal ou de alguma
hierarquia docente, nem mesmo um indivíduo que despertou antes de
você – a não ser que essa pessoa (uma pessoa) seja a porta para que
você possa entrar em outros mundos. Mas neste caso essa pessoa –
eis o ponto! – pode ser qualquer pessoa que esteja conectada a esses
mundos onde você quer entrar.
Se alguém pudesse recuar antes (e o que seria antes?) daquela noite
dos tempos em que a rede-mãe começou a rodar programas
verticalizadores e pudesse dizer como uma comunidade conseguia
entrar em sintonia com o simbionte natural (que talvez se
confundisse – em sociedades de parceria, pré-patriarcais, quem sabe
em algum momento do Neolítico – com a rede-mãe: síntese
simbolizada na figura da grande mãe ou da deusa), talvez pudesse
nos sugerir algum processo para reinventarmos tal sintonia com o
simbionte social (o superorganismo humano). Mas, fosse qual fosse,
sua resposta seria enxame (múltiplos caminhos em efervescência) e
não indivíduo no caminho em busca da unidade perdida ou da sua
origem celeste.
Não vale fazer recuar a noite dos tempos em que surgiram os
sistemas míticos-sacerdotais-hierárquicos-autocráticos para colocá-
los na origem de tudo com o fito de transformar a origem terrestre do
humano em uma origem celeste. Essa operação ideológica, urdida
26
27. por esses mesmos sistemas, legitima o mestre como um veículo, um
emissário, um representante da suposta origem celeste (ainda
quando existam mestres que reneguem tudo isso).
No enxame você já é um mestre, todos são mestres uns dos outros
enquanto não apenas buscam, mas se polinizam mutuamente e isso
quer dizer que não existe um, não existe aquele mestre.
Notas e referências
(*) A palavra ‘fluzz’ nasceu de uma conversa informal do autor, no início de
2010, com Marcelo Estraviz, sobre o Buzz do Google. O autor observava
que Buzz não captava adequadamente o fluxo da conversação,
argumentando que era necessário criar outro tipo de plataforma (i-based e
não p-based, quer dizer, baseada em interação, não em participação).
Marcelo Estraviz respondeu com a interjeição ‘fluzz’, na ocasião mais como
uma brincadeira, para tentar traduzir a idéia de Buzz+fluxo. Ulteriormente a
idéia foi desenvolvida no livro Fluzz: vida humana e convivência social nos
novos mundos altamente conectados do terceiro milênio (2011) e passou a
não ter muito a ver com o programa mal-sucedido do Google. Fluzz (o fluxo
interativo) é um conceito complexo, sintético, que talvez possa ser captado
pela seguinte passagem: “Tudo que flui é fluzz. Tudo que fluzz flui. Fluzz é
o fluxo, que não pode ser aprisionado por qualquer mainframe. Porque fluzz
é do metabolismo da rede. Ah!, sim, redes são fluições. Fluzz evoca o curso
constante que não se expressa e que não pode ser sondado, nem sequer
pronunciado do “lado de fora” do abismo: onde habitamos. No “lado de
dentro” do abismo não há espaço nem tempo, ou melhor, há apenas o
espaço-tempo dos fluxos. É de lá que aquilo (aquele) que flui sem cessar
faz brotar todos os mundos... Em outras palavras, não existe uma mesma
realidade para todos: são muitos os mundos. Tudo depende das fluições em
que cada um se move, dos emaranhamentos que se tramam, das
configurações de interação que se constelam e se desfazem,
intermitentemente”.
(**) Este texto foi originalmente escrito em 2010 e publicado em 2011
como capítulo 7 do livro Fluzz: vida humana e convivência social nos novos
mundos altamente conectados do terceiro milênio. São Paulo: Escola de
Redes, 2011.
(1) BARROS, Manoel (1986). Livro sobre Nada in Poesia Completa. São
Paulo: Leya, 2010.
(2) O termo ‘aprendente’, conquanto seja uma tentativa de escapar de
categorias mais problemáticas como docente/discente, educando/educador,
27
28. mestre/aprendiz, que introduzem relações dicotômicas e não expressam
adequadamente relações sociais envolvidas em aprendizagem, também não
é muito adequado. São sempre pessoas aprendendo na interação. Essas
observações forem feitas por Nilton Lessa, à quarta versão do texto
“Buscadores e Polinizadores”. Cf. FRANCO, Augusto (2010). Buscadores &
Polinizadores. Slideshare [2.865 views em 23/01/2011]
<http://www.slideshare.net/augustodefranco/buscadores-polinizadores-4a-
verso>
(3) Cf. Observações de Nilton Lessa à FRANCO, Augusto (2010). Buscadores
& Polinizadores: ed. cit.
(4) Cf. FRANCO, Augusto (2001). Uma teoria da cooperação baseada em
Maturana. Aminoácidos 4. Brasília: AED, 2002.
(5) Cf. e. g., a Biblioteca do Conectivismo da Escola-de-Redes:
<http://escoladeredes.ning.com/group/bibliotecadoconectivismo>
(6) ILLICH, Ivan (1970). Sociedade sem escolas. Petrópolis: Vozes, 1985.
(Na verdade o título dessa tradução, para ser fiel ao original, deveria ser
“Desescolarizando a sociedade”)
(7) Este parágrafo e vários dos seguintes da mesma seção (“Mata a escola
= matar o Buda”) foram elaborados originalmente durante uma polêmica
conversação, ocorrida entre 27 de abril e 24 de maio de 2010, na Escola-
de-Redes, com Ignácio Munõz Cristi e outros interlocutores sobre “redes
sociais entendidas como redes fechadas de conversações no espaço social”.
Para conhecer a íntegra da discussão acesse:
<http://escoladeredes.ning.com/group/biologiacultural/forum/topics/redes-
sociais-entendidas-como>
(8) RAYMOND, Eric (2001). How To Become A Hacker. Disponível em:
<http://www.catb.org/~esr/faqs/hacker-howto.html>
(9) BRABO, Paulo (2007). “Microsalvamentos: como salvar o mundo um
instante de cada vez” in <http://www.baciadasalmas.com>
(10) Cf. as conversações do grupo da Escola-de-Redes intitulado “A
desistência como ativismo”:
<http://escoladeredes.ning.com/group/desista>
(11) ABRAHAM, Ralph (1992) in ABRAHAM, Ralph, McKENNA, Terence &
SHELDRAKE, Rupert (1992). Caos, criatividade e retorno do sagrado:
triálogos nas fronteiras do Ocidente, São Paulo: Cultrix, 1994.
28
29. (12) KRAMER, Samuel (1956). A história começa na Suméria. Lisboa:
Europa-América, 1977.
(13) CAMPBELL, Joseph (1959): As máscaras de Deus (Volume I). São
Paulo: Palas Athena, 1998.
(14) ABRAHAM. Ralph, McKENNA, Terence & SHELDRAKE, Rupert (1992).
Caos, criatividade e o retorno do sagrado: triálogos nas fronteiras do
Ocidente. São Paulo: Cultrix, 1994.
(15) LEICK, Gwendolyn (2001): Mesopotâmia: a invenção da cidade. Rio de
Janeiro: Imago, 2003.
(16) Os ‘me’ continuam sendo um enigma para os historiadores. A
antropóloga e assirióloga Gwendolyn Leick (2001), no seu livro
“Mesopotâmia: a invenção da cidade” (ed. cit.), escreve: “Eridu, como a
manifestação primária do Apsu, também era considerada o lugar do
conhecimento, a fonte da sabedoria, sob o controle de Enki. Numerosas
narrativas foram elaboradas em torno desse conceito. Eridu, como
respositório de decretos divinos é descrita em uma narrativa suméria
chamada “Enki e Inanna”. Enki, escondido no Apsu, está na posse de todos
os ‘me’, termo sumeriano que abrange todas aquelas instituições, leis,
formas de comportamento social, emoções e símbolos de carga que, em sua
totalidade, eram vistos como indispensáveis ao funcionamento regular do
mundo. Esses ‘me’ pertenciam a Eridu e a Enki. Entretanto, Inanna, deusa
da cidade de Uruque, deseja obter os ‘me’ para si própria e levá-los para
Uruque. Com esse fim, ela desfralda velas para chegar a Eridu de barco,
sempre o caminho mais fácil para ir de uma cidade da Mesopotâmia a outra.
Enki toma conhecimento da chegada de Inanna e preocupa-se com as
intenções dela. Instrui o seu vizir para a receber com todas as honras e
preparar um banquete, no qual ambas as deidades bebem muita cerveja.
Enki não tarda em adormecer, deixando o caminho livre para Inanna
carregar os preciosos ‘me’ em seu barco, um por um, e zarpar. Quando Enki
desperta da ébria sonolência e dá-se conta do que aconteceu, procura usar
sua magia em uma tentativa de recuperar os ‘me’. Inanna consegue
rechaçar os demônios perseguidores e chegar sã e salva a Uruque. O
desfecho da história não é claro, pois nenhuma das versões existentes do
texto está suficientemente preservada, mas parece que uma terceira
deidade logra a reconciliação entre Inanna e Enki. Esta é, obviamente, uma
típica história de Uruque, concentrando-se nas deusas locais e em seu
poder superior. Ao libertar os ‘me’ das profundezas do Apsu, Inanna podia
não só ampliar seus próprios poderes, mas também fazer valer os seus
decretos entre os humanos. A lista dos ‘me’ inclui a realiza, as funções
sacerdotais, os ofícios e a música, assim como as relações sexuais, a
prostituição, a velhice, a justiça, a paz, o silêncio, a calúnia, o perjúrio, as
artes dos escribas e a inteligência, entre muitos outros”.
Muitos anos antes, o famoso sumeriologista Samuel Noah Kramer (1956),
em From the Tablets of Sumer (ed. cit.) já havia observado:
29
30. “Finalmente chegamos aos ‘me’, as leis divinas, normas e regras que,
segundo os filósofos sumérios, governam o universo desde os dias da sua
criação e o mantêm em funcionamento. Neste domínio possuímos
considerável documentação direta, particularmente em relação ao ‘me’ que
governam o homem e a sua cultura. Um dos antigos poetas sumérios, ao
compor ou redigir um dos seus mitos, julgou que vinha a propósito dar uma
lista dos ‘me’ relacionados com a cultura. Divide a civilização, segundo o
conhecimento que dela tinha, em uma centena de elementos. No estado
atual do texto são apenas inteligíveis cerca de sessenta e alguns são
palavras mutiladas que, sem contexto explicativo, apenas nos dão uma
vaga idéia do seu real sentido. Mas ainda subsistem os suficientes para nos
mostrar o caráter e a importância da primeira tentativa registrada de
análise da cultura, que resultou em uma lista considerável de o que é hoje
geralmente designado por “elementos e complexos culturais”. Estes
compõem-se de várias instituições, certas funções de hierarquia sacerdotal,
instrumentos de culto, comportamentos intelectuais e afetivos e diferentes
crenças e dogmas. Eis a lista das partes mais inteligíveis e seguindo a
própria ordem escolhida pelo antigo escritor sumério: 1 – Soberania; 2 –
Divindade; 3 - A sublime e permanente coroa; 4 - O trono real; 5 - O
sublime cetro; 6 - As insígnias reais; 7 - O sublime santuário; 8 - O
pastoreio; 9 - A realeza; 10 - A durável senhoria; 11 - A “divina senhora”
(dignidade sacerdotal); 12 – O ishib (dignidade sacerdotal); 13 – O lumah
(dignidade sacerdotal); 14 – O gutug (dignidade sacerdotal)…” [A lista
segue até o número 67].
Essas “fórmulas divinas” (os ‘me’) reforçam a idéia da existência de uma
espécie de protótipo. Os ‘me’ parecem ser códigos replicativos para criar e
reproduzir um determinado tipo de civilização (ou padrão societário). A
existência material ou ideal dos ‘me’ como conhecimentos armazenáveis em
objetos que podiam ser transportados, evidencia que os sumérios não
apenas desenvolveram historicamente o que chamamos de civilização. Eles
também sistematizaram teoricamente um modelo dessa civilização para ser
replicado em outros locais.
Mas o mais relevante é a ordem em que aparecem tais “elementos
culturais”. Os seres humanos e suas características próprias e qualidades
distintivas só vão surgir lá pelo quadragésimo lugar. O schema é mítico,
sacerdotal, hierárquico e autocrático. Aliás, pode-se dizer que essas
“fórmulas divinas” são fórmulas da autocracia em “estado puro”.
E havia um ensinamento organizado sobre tudo isso. Pois bem. Tal
ensinamento a ser replicado foi o motivo de haver um ensino. Para mais
informações pode-se ler os textos indicados por LEICK (2001) e por
KRAMER (1956). Ou pode-se tentar decifrar o material disponível:
Inana and Enki: cuneiform source translation at ETCSL (The Electronic Text
Corpus of Sumerian Literature, University of Oxford, England) in ETCSL
translation:
<http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/cgi-bin/etcsl.cgi?text=t.1.3.1#>
30
31. Cf. ainda: “What are ‘me’ anyway?” in Sumerian Mythology FAQ:
<http://home.comcast.net/~chris.s/sumer-faq.html#A1.5>
(17) Existem outras maneiras não verticais de representar essa árvore das
Sefirot. Cf. o blogpost “Sobre Kabbalah e redes: um abstruso paralelo
heurístico”:
<http://escoladeredes.ning.com/profiles/blogs/sobre-kabbalah-e-redes-
um>
(18) BLOOM, Harold (1975). Cabala e crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
(19) MATURANA, Humberto & VERDEN-ZÖLLER, Gerda (1993). Amor y
Juego: fundamentos olvidados de lo humano – desde el Patriarcado a la
Democracia. Santiago: Editorial Instituto de Terapia Cognitiva, 1997.
(Existe tradução brasileira: Amar e brincar: fundamentos esquecidos do
humano. São Paulo: Palas Athena, 2004).
(20) FRANCO, Augusto (2008). Escola de Redes: Novas visões sobre a
sociedade, o desenvolvimento, a internet, a política e o mundo glocalizado.
Curitiba: Escola-de-Redes, 2008.
(21) FRANCO, Augusto (2008): O Olho de Hórus. Disponível em
<http://escoladeredes.ning.com/profiles/blogs/o-olho-de-horus>
(22) OSHO (Bhagwan Shree Rajneesh) (1978). A revolução: conversas
sobre Kabir. São Paulo: Academia de Inteligência, 2008.
(23) Idem.
31