O documento discute como o conceito de um "terceiro milênio" único não faz mais sentido em um mundo de múltiplos mundos altamente conectados. A idéia de que o mundo se tornaria uma "aldeia global" única também não se sustenta, já que estamos testemunhando o surgimento de "miríades de aldeias globais". Grandes verdades do século 20 como "pensar globalmente e agir localmente" precisam ser revisadas à luz da multiplicidade de mundos que existem.
1. Capítulo 6 | O terceiro milênio já começou?
AUGUSTO DE FRANCO
Vida humana e convivência social nos novos
mundos altamente conectados do terceiro milênio
1
3. 6
O terceiro milênio já começou?
À velocidade da luz não existe futuro previsível...
Não há, literalmente, futuro possível.
Você já está ali, no momento que chama de situação.
É por isso que em nossa época não existem objetivos...
Para onde vamos? Estamos todos vestidos e sem ter aonde ir.
Marshall McLuhan em palestra na Universidade York, em Toronto (1979)
Quem me dera
Ao menos uma vez
Explicar o que ninguém
Consegue entender
Que o que aconteceu
Ainda está por vir
E o futuro não é mais
Como era antigamente.
Renato Russo na canção Índios (1986)
O futuro como teleologia universal,
como esperança igual para todos, morreu.
E a decomposição não pode ressuscitá-lo.
Em seu lugar, temos uma multiplicidade de futuros sintéticos,
construídos por cada comunidade real para si e à sua medida.
David de Ugarte em Los futuros que vienen (2010)
3
4. Para o mundo único broadcast que remanesce o terceiro milênio
ainda não começou. Grandes “verdades” do final século 20 não foram
ainda revistas, conquanto não faltem evidências de seu
envelhecimento. Três exemplos eloqüentes:
O mundo virou uma aldeia global? Não. Está virando miríades
de aldeias globais.
Pensar globalmente e agir localmente? Não. Pensar e agir
glocalmente!
Sustentabilidade é resguardar recursos para as futuras
gerações? Não. É aprender a fluir com o curso...
Mundo. Tempo. A ilusão do mundo único é a ilusão do tempo único. Se os
mundos são vários, o tempo de cada mundo é diferente. Por certo, o
broadcasting sintoniza, ou melhor, uniformiza. Mas não iguala, em cada
mundo, o ritmo da fluição que transforma futuro em passado.
Se freqüentemente temos a impressão de que o terceiro milênio ainda não
começou – já que as promessas de uma Nova Era que foram a ele
associadas não se realizaram – surge a pergunta: quando então ele vai
começar? Ora, levando-se em conta a existência de vários mundos, a
pergunta não tem sentido. Quando? – em um multiverso – sempre quer
dizer: para quem?
Um ano antes da sua morte, em palestra na Universidade York, em Toronto,
McLuhan (1979) disse que “à velocidade da luz não existe futuro previsível”.
E foi além: “Não há, literalmente, futuro possível. Você já está ali, no
momento que chama de situação. É por isso que em nossa época não
existem objetivos... Para onde vamos? Estamos todos vestidos e sem ter
aonde ir” (1). Talvez McLuhan tenha antevisto ou pressentido a interação
em tempo real ou sem distância nos novos mundos-fluzz quando apontou a
4
5. “velocidade da luz” como fator que impossibilita o futuro. Mas a questão
não é que não exista futuro possível e sim que não é mais possível, nos
novos mundos altamente conectados que estão emergindo, um mesmo
futuro.
Não há um futuro universal porque não há um universo em termos sociais,
como acreditaram as narrativas iluministas. Como observou David de
Ugarte (2010), com a desconstituição “dos sujeitos com os quais se
compunha a narração histórica: as classes, as nações, os grupos de
interesse, o marco do mercado... morre esse futuro que se pretendia ‘o’
futuro” (2). Mas a questão é que todas essas narrativas pressupunham um
mesmo mundo e tentavam explicar a constituição dos sujeitos em função de
expectativas imaginadas a partir dessa abstração totalizante em que
acreditavam.
Dependendo do mundo em que se convive, “o que aconteceu [em alguns
mundos] ainda está por vir” em outros e para quem já vive no multiverso
dos Highly Connected Worlds “o futuro não é mais como era antigamente”,
como cantou Renato Russo (1986) (3). Com o estilhaçamento do mundo
único, o futuro também se esporaliza.
Não há mais uma saída (aliás, quando houve, não foi propriamente uma
saída senão uma permanência, um confinamento em um mundo, para
manter esse mundo contra os outros mundos possíveis). As tentativas de
transformar o mundo herdeiras do iluminismo universalista eram tentativas
contra-multiversalistas de mudá-lo para mantê-lo (como mundo único) ou
então para substituí-lo por outro mundo (também único).
Um outro mundo é possível – bradam os militantes anti-globalização que
continuam habitando o século passado. Mas um outro mundo não é mais
possível. E, se fosse, não seria desejável. Outros mundos – isto sim, no
plural – são possíveis. A saída é a entrada em outros mundos. É a libertação
deste mundo único no qual você foi aprisionado. É a sua desistência de
procurar um líder para lhe arrebanhar e guiar nessa caminhada: você (esse
complexo ser social que é a sua pessoa) é a saída, ou melhor, a porta de
entrada para outros mundos.
Para quem já entrou no terceiro milênio soam anacrônicas boa parte das
verdades consideradas progressistas e politicamente corretas do século
passado, voltadas à mudar o mundo (quer dizer, a preservar o mundo
único), como – para citar apenas algumas como exemplo – a de que o
mundo ia virar uma aldeia global, a de que era preciso pensar globalmente
para agir localmente, a de que sustentabilidade era resguardar ou poupar
5
6. recursos para as futuras gerações. A despeito dos generalizados consensos
que se formaram em torno dessas idéias, elas são, todas, regressivas – isto
é: contra-fluzz – posto que nascidas do pavor da imprevisibilidade da
interação.
6
7. Miríades de aldeias globais
Não é que haja uma rede cobrindo o mundo. É que mundos são redes
Tom Wolfe (2003), na introdução da coletânea de palestras e entrevistas de
Marshall McLuhan, publicadas postumamente no volume intitulado
Undestanding me, escreveu sobre a euforia, que “beirava o espiritual”, dos
visionários do ciberespaço no Vale do Silício dos anos 90: “eles diziam a
todo mundo no Vale que o que estavam fazendo era muito mais do que
desenvolver computadores e criar um novo meio de comunicação
maravilhoso, a Internet. Muito mais. A Força estava com eles. Estavam
tecendo sobre a Terra uma rede inconsútil que tornaria insignificantes todas
as fronteiras nacionais e divisões raciais, transformando literalmente a
natureza da besta humana”. Esses visionários foram inspirados, segundo
Wolfe, “por um literato canadense que morreu quinze anos antes que a
Internet viesse a existir. Seu nome, desconhecido fora do Canadá até a
publicação do livro Para entender os meios de comunicação, em 1964, era
Marshall McLuhan” (4).
McLuhan ficou famoso pela previsão de que “o mundo estava se tornando
rapidamente uma ‘aldeia global’ como resultado da difusão da rede
inconsútil da televisão por toda a Terra” (5). No entanto, Wolfe teve argúcia
suficiente para perceber que havia uma visão espiritual de futuro por trás
das suas predições. A nova era anunciada – na qual todos estariam,
segundo o próprio McLuhan, “irrevogavelmente envolvidos uns com os
outros e seriam responsáveis uns pelos outros” – era algo mais sublime do
que uma simples utopia secular. Segundo McLuhan, “o conceito cristão de
corpo místico, de todos os homens como membros do corpo de Cristo – isto
se torna tecnologicamente um fato sob as condições eletrônicas” (6).
Wolfe identifica aí a influência decisiva de Teilhard de Chardin sobre
McLuhan. Embora tenha falecido em 1955, antes mesmo da difusão da
televisão por todo mundo e quando os computadores ainda eram
paquidermes enjaulados em grandes centros de pesquisas e mega-
empresas, Chardin (1955) percebeu que a tecnologia estava criando um
“sistema nervoso para a humanidade, uma membrana única, organizada,
inteiriça sobre a Terra”, uma “estupenda máquina pensante” (7). Teilhard
de Chardin escreveu que “a era da civilização terminou e a da civilização
unificada está começando” (8) Essa membrana inteiriça (que Chardin
chamava de noosfera) – conclui Tom Wolfe – era, naturalmente, a ‘rede
7
8. inconsútil’ de McLuhan. E essa ‘civilização unificada’ era a sua ‘aldeia
global’.
Interessantíssima a sacada da membrana envolvendo a Terra (mais pelo
paralelo com uma membrana). Recentemente Don Tapscott (2006) encarou
a Internet como uma pele que cobre o planeta (9). Mas há um problema
com a idéia de que essa membrana seria “inteiriça”. Sim, todo problema foi
a idéia de alguma coisa “unificada” – termo que Chardin não só afirmou
como quis enfatizar. A unificação – se é que a palavra seria adequada – não
é unitária, porém fractal. Pois o mundo não virou, não está virando, nem
vai virar uma aldeia global, mas miríades de aldeias globais.
A emergência da sociedade-rede vem acompanhada de um processo de
globalização do local e, simultaneamente, de localização do global. O futuro
mundo das redes distribuídas – se vier – não será, como previa McLuhan,
uma aldeia global, senão miríades de aldeias globais. A aldeia global
midiática (e “molar”), de Marshall McLuhan, sugere o mundo virando um
local. A sociedade-rede (“molecular”) – percebida por Levy, Guéhenno,
Castells e vários outros — sugere cada local virando o mundo, fractalmente.
Não o local separado, por certo, mas o local conectado que tende a virar o
mundo todo, desde que a conexão local-global passou a ser uma
possibilidade (10).
Em outras palavras: o mundo das redes distribuídas não vem como um
mundo único. Não é que haja uma rede (ou várias redes) cobrindo o
mundo. É que mundos são redes.
A idéia de um mundo único – ao contrário do que vaticinaram à farta os
prosélitos da Nova Era e continuam propagando militantes ambientalistas e
espiritualistas – é regressiva. Para que haja um mundo único em termos
sociais é necessário centralizar a rede (mantendo instâncias centralizadas
de difusão um-para-muitos). Para que haja um mundo único em termos
políticos também é necessário centralizar a rede (construindo
monstruosidades como um Estado planetário ou um governo mundial). Para
que haja um mundo único em termos de consciência unificada (noosféricos
como queria Chardin), seria preciso admitir a existência de algum ente
sobrehumano, seja um deus ou uma consciência coletiva (que fosse capaz
de ser consciente de si mesma e, neste caso, não seria humana).
Um superorganismo coletivo está nascendo, sim, mas trata-se de um
superorganismo humano – um simbionte social –, não de um organismo
superhumano. Sua inteligência se compõe por emergência, a partir da
interação e não pode ser instalada em qualquer mainframe. É uma
8
9. inteligência tipicamente humana e não extra-humana, de um deus, de um
alienígena, de uma máquina ou da Matrix. Se esse superorganismo for
capaz de algo como uma consciência, também se tratará de uma
consciência humana composta por emergência e não de uma
superconsciência, de um olho que tudo vê e se vê ou sabe que está vendo.
Nem o velho deus hebraico (segundo a interpretação mais arguta do
esoterismo judaico) possuía tal consciência, de vez que foi levado a criar o
mundo para poder se ver no espelho da sua criação.
O modelo é autoregulacional. Assim como não há uma instância
centralizada de regulação da biosfera, assim também não pode haver uma
instância centralizada de regulação de uma sociosfera, até porque não pode
existir apenas uma sociosfera. As conexões P2P (quando o “P” significa
“pessoa”) que compõem as sociosferas não centralizam; pelo contrário,
distribuem.
Os visionários do ciberespaço, herdeiros do sonho mcluhiano da aldeia
global (segundo Tom Wolfe), acreditando que a Força estava com eles,
usaram-na para construir seus mainframes: seus programas e produtos
proprietários, suas caixas-pretas para trancar – esconder dos outros em vez
de compartilhar – os algoritmos que inventavam, seus bunkers
organizativos e suas fortunas pessoais.
Todavia, há uma diferença entre o que fizeram Vinton Cerf e Robert Kahn
(1975) com o Protocolo TCP/IP, Tim Berners-Lee e Robert Cailliau (1990)
com a World Wide Web, Linus Torvalds (1991) e a multidão com o Linux e
Rob McColl (1995) e a multidão com o Apache, e o que fizeram Bill Gates e
Paul Allen com a Microsoft (1975) e o Windows (1985), Steve Jobs e Steve
Wozniak com a Apple (1976) e o Mac OS (1984), Larry Page e Sergey Brin
(e Eric Shmidt) (1998) com o Google, Mark Zuckerberg e Dustin Moskovitz
(2004) com o Facebook e Evan Willians e Biz Stone (e Jack Dorsey) (2006)
com o Twitter. Estamos verificando agora em que medida eles estavam no
contra-fluzz ou com-fluzz, o curso que não pode ser aprisionado por
qualquer mainframe.
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10. Pensar e agir glocalmente
Não pode haver um pensar global: seriam pensares, e eles seriam tantos
quantos os locais onde foram pensados
Think Global, Act Global. A frase “pensar globalmente, agir localmente” já
foi atribuída ou reivindicada – de 1915 a 1989 – por mais de dez pessoas,
desde a urbanista Patrick Geddes, passando pelo microbiologista René
Dubos, pelo teólogo Jacques Ellul e pelo futurologista Buckminster Fuller,
até chegar a Harlan Cleveland.
Tanta disputa pela fórmula ou tanta vontade de atribuir ou reivindicar a sua
paternidade, revela, é óbvio, uma concordância generalizada com a síntese
que ela pretende representar. Mas revela também uma compreensão
pouco-fluzz do mundo. Não há uma esfera global que, uma vez percebida
por inteiro ou entendida em sua totalidade, forneça elementos para orientar
a ação local.
Ninguém percebe ou entende alguma coisa fora de um local e se este local
puder se conectar a outros locais, ele então já é global (um local que foi
globalizado). Na verdade, global é uma abstração para indicar a
possibilidade de conexão com outros locais, não uma instância autônoma
concreta. Se estivermos usando a expressão global para falar da Terra,
então estamos falando de um local (o planeta: um global que só existirá
concretamente se for localizado).
Do ponto de vista da rede social, local é um cluster, não uma porção do
planeta físico. Desse ponto de vista, o local não está dado de antemão, mas
é constituído pela interação dos que o reconhecem como um local. Um local
em interação com outros locais é uma realidade glocal, que se constitui
quando a globalização do local encontra a localização do global. Essa é
apenas outra maneira de falar da conexão local-global, ou seja, da
interação entre diversos locais.
Os muitos mundos interagentes são realidades glocais. Se estão brotando,
como vimos, inumeráveis interworlds, então se trata de pensar e agir
glocalmente, não de pensar globalmente e agir localmente (ou vice-versa).
Em suma, não pode haver um pensar global: seriam pensares, e eles
seriam tantos quantos os locais onde foram pensados. Se for, entretanto,
resultado da interação com os outros locais, todo pensar será glocal e toda
ação também será glocal.
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11. Não, não é a mesma coisa. Não é um jogo de palavras. Não pode haver um
pensar global – nem no sentido da percepção de uma esfera inteiriça ou
unificada (como queria Teilhard de Chardin) ou da percepção da aldeia
global (como queria Marshall McLuhan), nem mesmo no sentido de uma
percepção totalizante ou holística – porque isso pressupõe uma apreensão
por cima ou por fora da interação. A aldeia global de McLuhan será local,
está claro, mas nunca um único e mesmo local (pois local já pressupõe
muitos locais, cada qual – aí sim – único; do contrário desconstitui-se o
próprio conceito de local). Quem a perceber estará expressando a
percepção do emaranhado de conexões no qual está envolvido. Como os
emaranhados são diversos, cada percepção será também diversa. Teremos
tantas aldeias globais quanto os mundos a partir dos quais elas são vistas
como resultado de configurações particulares de interação. Ou seja,
teremos miríades de aldeias globais.
Não é a toa que a visão de McLuhan beire o espiritual (como percebeu
indiretamente Tom Wolfe) ou esteja na fronteira entre ciência e religião,
como a visão de Chardin. A rigor ela pressupõe um ser capaz de exercer a
supervisão de todas as interações, alguém, portanto, não-humano; ou algo
como uma consciência coletiva que conseguisse apreender a totalidade,
uma superconsciência ou uma consciência do que há de comum a todas as
consciências. Mas se existisse um deus ex-machina quem teria acesso a
ele: os sacerdotes? E se existisse uma consciência coletiva com
características de uma Unimatrix One, quem conseguiria vê-la e receber
seus “comunicados”: os borgs?
Há aqui uma confusão de conceitos, um deslizamento epistemológico para o
qual contribuiu o ambientalismo – essa espécie de religião laica de nossos
dias – ao apelar para ações locais que teriam o condão de salvar o planeta
(supostamente ‘o’ global). Como se existissem diretivas globais a ser
materializadas por diversas implementações locais. Mas quem emitiria tais
diretivas, já que ninguém vive no global? Os representantes dos locais?
Ora, mas neste caso sua percepção ou seu entendimento só poderiam ter
surgido nos diversos locais em que eles vivem e convivem e, portanto,
seriam locais (não globais). Além disso, como e por quem seriam escolhidos
tais representantes? Nunca surgiram respostas aceitáveis para essas
perguntas.
Por outro lado, o que seria o planeta? A geosfera e a biosfera? E as
socioesferas? A pergunta sobre as socioesferas (no plural) é relevante, pois
a combinação de expressões locais de vida e convivência social – por mais
numerosas que fossem – não poderia gerar nem ‘o’, nem ‘um’, global. No
limite teríamos, no início da segunda década deste século, sete bilhões de
11
12. expressões locais, que poderiam se combinar de trilhões de maneiras
diferentes; na verdade tais combinações seriam, por assim dizer,
praticamente inumeráveis.
Sim, mundos são redes. Senão o que seriam? A população do planeta? Mas
população é um dado estatístico, um número. A soma dos indivíduos da
espécie biológica homo não significa nada em termos humanos. E não se
pode somar pessoas.
12
13. Aprender a fluir com o curso
A idéia de salvar alguma coisa, arquivá-la (como quem estoca recursos)
para prorrogar a sua durabilidade, é uma idéia contra-fluzz
O ambientalismo – ainda preso às subculturas do platonismo que
pontificaram no século 20 – difundiu uma idéia de sustentabilidade segundo
a qual o uso dos recursos naturais deve suprir as necessidades da geração
presente sem afetar a possibilidade das gerações futuras de suprir as suas.
O crédito por tal definição – que apareceu no Relatório Brundtland (1987) –
ainda é muito disputado, se bem que sua autoria seja geralmente atribuída
ao ecologista Lester Brown. O significativo é que ela foi aceita como um
consenso universal e foi tomada, axiomaticamente, como uma verdade
evidente por si mesma, passando a idéia – pouco-fluzz - de que a
sustentabilidade é uma espécie de poupança: tratar-se-ia, para efeitos
práticos, de resguardar recursos para as futuras gerações.
O ambientalismo reduziu assim a sustentabilidade à sua dimensão
ambiental, o que – até certo ponto – é explicável: foi observando os
sistemas vivos (organismos, partes de organismos e ecossistemas) que
percebemos um padrão de autoregulação e adaptação às mudanças, uma
capacidade desses sistemas de mudar de acordo com a mudança das
circunstâncias conservando, porém, a sua organização interna.
Mas em vez de se concentrar no padrão e tentar descobrir como reinventá-
lo em nossas atividades humanas e organizações sociais, o ambientalismo
imaginou que tudo se arranjaria a partir da compreensão do funcionamento
dos ecossistemas. Não seria então o aprendizado coletivo, resultante da
experimentação de novas formas de organização e convivência com as
diferenças humanas, como resposta aos desafios de conservar a adaptação
a um ambiente que muda continuamente – ou seja: o aprender a fluir com
o curso –, que tornaria nossas sociedades mais sustentáveis e sim uma
consciência que surgiria pelo conhecimento da natureza e se imporia como
novo padrão ético universal. Eis um novo platonismo que, como qualquer
platonismo, despreza a política, ou seja, a interação entre os humanos ou
as redes sociais.
No entanto, a mais forte evidência que temos sobre a sustentabilidade –
proveniente, aliás, da observação sistemática dos sistemas vivos – é a de
que tudo que é sustentável tem o padrão de rede (11). Ou seja, a de que só
13
14. sistemas dinâmicos complexos que adquiriram características adaptativas –
apresentando a estrutura de rede distribuída – podem ser sustentáveis.
Se foi observando os ecossistemas que logramos captar as características
de um sistema sustentável, isso não deveria ter levado a uma visão
reducionista da questão, que disseminou uma crença segundo a qual o que
está em risco é apenas a vida como realidade biológica e tentando dirigir
todas as nossas iniciativas de sustentabilidade para, supostamente, “salvar
o planeta”.
Sobre isso, a pergunta fundamental foi feita recentemente por Humberto
Maturana (2010) e seus colaboradores: o que queremos mesmo sustentar
(do latim sustentare: defender, favorecer, apoiar, conservar, cuidar) (12)?
A vida (em termos biológicos) é de suprema importância, é a única
realidade realmente sustentável que conhecemos, mas ela já vem se
arranjando há uns quatro bilhões de anos sem a nossa, digamos,
inestimável ajuda. Seria preciso ver então o que mais queremos sustentar,
de preferência aquilo que de fato depende de nós.
Ocorre que, por meio do que chamamos de social, estamos construindo
mundos humanos, que têm como base o mundo natural, mas que não são
conseqüências do mundo natural. A tentativa humana de humanizar o
mundo ou, para usar uma expressão poética, de humanizar a “alma do
mundo” por meio do social, é uma espécie de “segunda criação”. Para quem
pensa assim, a vida (o simbionte natural) é um valor principal, mas não o
único: certos padrões de convivência social, além da vida (biológica) ―
como a cooperação ampliada socialmente ou a vida em comunidade, as
redes voluntárias de interação em prol da invenção de futuros comuns ou
compartilhados e a democracia na base da sociedade e no cotidiano das
pessoas ― também constituem valores inegociáveis, quer dizer, valores que
não podem ser trocados pelo primeiro. De nada adiantaria, desse ponto de
vista, trocar a livre convivência pela sobrevivência sob um império milenar
de “seres superiores” (como o IV Reich, por exemplo).
Surpreendentemente, aquilo que devemos preservar é, justamente, o que
pode nos preservar como sociedade tipicamente humana. Cooperação,
voluntariado, redes e democracia (em suma, tudo o que produz, relaciona-
se ou constitui o que foi chamado de capital social) são os elementos da
nova criação humana ― e humanizante ― do mundo (o simbionte social),
que lograram se configurar como padrões de convivência social e que vale
realmente a pena preservar. E são esses os elementos que podem garantir
14
15. a sustentabilidade das sociedades humanas e das organizações que as
compõem (13).
Eis a razão pela qual a sustentabilidade das sociedades humanas não pode
ser alcançada apenas com a adoção de princípios ecológicos (como querem
os defensores ambientalistas ou ecologistas da sustentabilidade, ainda
afeitos a uma visão pré-fluzz de que existe algo como uma consciência
capaz de mudar comportamentos), porque, no caso das sociedades, trata-
se de outros mundos (humano-sociais) que têm como base o mundo
natural, mas que não são conseqüências dele.
A idéia de salvar alguma coisa, arquivá-la (como quem estoca recursos)
para prorrogar sua durabilidade (outra confusão ao definir sustentabilidade,
que foi muito comum no velho mundo fracamente conectado) é uma idéia
contra-fluzz. Sustentabilidade não é durar para sempre. Nada dura para
sempre. E a espécie humana também não durará. Ao que tudo indica
desaparecerá bem antes da biosfera (pelo menos a biosfera deste planeta,
a única que conhecemos por enquanto). Mas a própria biosfera (da Terra e,
se houver, de outros lugares do universo) também desaparecerá. O sol
deixará de ser uma estrela amarela em 5 bilhões de anos (com 4 bilhões de
anos a nossa biosfera já esgotou quase a metade do seu tempo de vida). A
Via Láctea está em rota de colisão com a galáxia de Andrômeda, a 125
quilômetros por segundo e o desastre ocorrerá nos próximos 10 bilhões de
anos. Este universo, surgido no Big Bang, será extinto no Big Crunch ou
virará um cemitério gelado se sua expansão não for revertida.
Enquanto isso, nem mesmo a vida, nem a convivência social, permanecerão
como são – ou desaparecerão prematuramente! Mas poderão ser
sustentáveis na medida em que aprenderem a fluir com o curso, quer dizer,
a mudar em congruência dinâmica e recíproca com a mudança das
circunstâncias. Sim, sustentável não é o que permanece como é (ou está),
mas o que muda continuamente para continuar sendo (o que pode vir-a-
ser).
Se um ente ou processo durar (como é), certamente não será sustentável.
Se não aceitar a morte, se buscar uma maneira de se esquivar do fluxo
transformador da vida, nada poderá ser sustentável. Se não aceitar o fluxo
transformador da convivência social nenhum dos mundos que co-criamos
poderá ser sustentável.
Tais mundos sociais que constituímos quando vivemos a nossa convivência
não serão sustentáveis na medida em que quisermos permanecer no “lado
de fora” do abismo. Esse horror ao caos que caracteriza todas as
15
17. O terceiro milênio já começou? | 6
(1) MCLUHAN, Marshall (1979). “O homem e os meios de comunicação” in
McLUHAN, Stephanie & STAINES, David (2003). McLuhan por McLuhan
(Understandig me). Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
(2) Cf. UGARTE, David (2010). Los futuros que vienen. Madrid: Grupo Cooperativo
de las Índias, 2010. “Descomposición es descomposición también, y sobre todo, de
los sujetos con los que se componía la narración histórica: las clases, las naciones,
los grupos de interés, el marco de mercado… con ellos muere ese futuro que se
pretendía el futuro y que es precisamente aquel por el que los universalistas se
afanan. Ese futuro universal es hoy un enfermo crónico en fase terminal. Nacido en
el siglo XVIII, tuvo su crisis adolescente con el Romanticismo, su madurez con el
progresismo decimonónico y su primera crisis grave con los genocidios cometidos
por el estado alemán durante la Segunda Guerra Mundial”.
(3) RUSSO, Renato (1986). “Índios” in Dois: Emi, 1986.
(4) WOLFE, Tom (2003). “Introdução” in McLUHAN, Stephanie & STAINES, David
(2003): Op. cit.
(5) MCLUHAN, Marshall apud WOLFE: Ed. cit.
(6) Idem.
(7) CHARDIN, Teilhard (1955). O fenômeno humano. São Paulo: Cultrix, 1989.
(8) CHARDIN: Op. cit.
(9) TAPSCOTT, Don e WILLIAMS, Anthony (2006). Wikinomics: como a colaboração
pode mudar o seu negócio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.
(10) FRANCO, Augusto (2003). A revolução do local: globalização, glocalização,
localização. Brasília/São Paulo: AED/Cultura, 2003.
(11) Cf. FRANCO, Augusto (2008). Tudo que é sustentável tem o padrão de rede:
sustentabilidade empresarial e responsabilidade corporativa no século 21. Curitiba:
Escola-de-Redes, 2008.
(12) Comunicação pessoal ao autor feita por alunos do curso Biologia-Cultural
ministrado pela Escola Matriztica de Santiago em 2010.
(13) FRANCO, Augusto (2008). Tudo que é sustentável tem o padrão de rede: ed.
cit.
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