1) O documento discute literaturas de língua portuguesa do século XX que enfocam momentos históricos de ditaduras e opressão, comparando os romances "A Hora dos Ruminantes" de José J. Veiga e "O Dia dos Prodígios" de Lídia Jorge.
2) Ambos os romances retratam alegoricamente contextos autoritários através da representação de invasões misteriosas em pequenas cidades que geram medo e sofrimento nos moradores.
3) A análise comparativa
O que é arte. Definição de arte. História da arte.
Edvaldo A. bergamo
1. Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP ISBN: 978-85-60667-69-7
LITERATURA E AUTORITARISMO: JOSÉ J. VEIGA E LÍDIA JORGE
Edvaldo A. Bergamo – UnB
O romance de ênfase social em língua portuguesa da segunda metade do
século XX focaliza momentos históricos decisivos do período: a ditadura militar no
Brasil, a ditadura salazarista em Portugal e o ultra-colonialismo lusitano em África. A
configuração romanesca mira tais acontecimentos com o objetivo de representar o
processo de desagregação social orquestrado por regimes autoritários caracterizados
pela violência e pela repressão.
[...] o autoritarismo consiste em uma caracterização de um regime político em
que existe um controle da sociedade por parte do Estado, que manipula as
formas de participação política e restringe a possibilidade de mobilização
social; existe interesse político na cooptação dos intelectuais; a administração
pública é apresentada como um bem em si mesmo, ao servir ao interesse do
Estado; o setor militar desempenha um papel decisivo na manutenção da
ordem. Nas formas extremas, como o totalitarismo, o regime autoritário
institui um partido único e reprime com rigor manifestações de contrariedade.
(...)
O fato de o Estado agir de maneira a controlar as ações individuais, restringir
as possibilidades de mudança social, sustentar códigos e valores com os quais
a população é obrigada a pautar sua existência, e manipular a difusão de
ideologias em favor da conservação do poder das elites, estabelece uma
condição restritiva de existência. O problema da reificação, desenvolvida
dentro do capitalismo industrial, é levado a dimensões novas, agravadas pela
ameaça de destruição coletiva. (GINZBURG & UMBACH, 2000 p. 238).
No tocante a uma literatura de intervenção social, oriunda de uma
conjuntura que concerta literatura, história e política, o grande momento é a década de
1930, na qual notoriamente o empenho ideológico tomou um grande vulto nas
manifestações artísticas de língua portuguesa. O engajamento literário tornou-se um
fenômeno supranacional nos países de língua portuguesa, atuando em favor das
reivindicações sociais vigentes, através de uma perspectiva que conciliava literatura e
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vida social. Nesse sentido, é compreensível a atmosfera artístico-ideológica que
aproxima brasileiros e portugueses. O interesse pela representação das tensões sociais
em voga é a tônica dessa literatura, definida por meio de um alargamento de
perspectivas, principalmente na tentativa de retratar o quadro geral de uma sociedade
em transformação. Ao aproveitar o legado do realismo crítico proveniente do século
XIX, as literaturas de língua portuguesa reinterpretaram esse realismo sob a ótica dos
novos conflitos sociais e agravados, ainda mais, em países periféricos como Brasil e
Portugal, que sofriam com regimes autoritários severos. Autoproclamando-se militantes,
os autores lutavam pelos seus ideais utópicos, procurando afirmar literariamente suas
convicções com reflexos inclusive na reformulação do projeto de uma identidade
nacional desapegado de idealismo ingênuo. Nos textos engajados do período, percebe-se
o peso da ideologia dos escritores, uma vez que eram intelectuais conscientes de sua
missão como intérpretes da realidade observada em sentido histórico, político e social.
Dessa forma, há um imaginário político comum para enfrentar os dilemas
em voga, transformados em matéria ficcional intensamente explorada nas narrativas de
tendência social, tanto no Brasil como em Portugal, revelando um profícuo diálogo
literário entre as duas margens do Atlântico, graças à força desmistificadora desse
projeto romanesco.
A hipótese ventilada aqui é que o escopo artístico dos anos 30 do século XX
de revalorização do realismo e de aprofundamento da questão social deixou marcas que
foram aproveitadas e/ou reformuladas por tendências literárias posteriores. Na segunda
metade do século XX, certamente, o desenvolvimento cultural abriu novas fronteiras de
exploração e novas trilhas de expansão para a literatura e a arte em geral. O romance,
nessa nova conjuntura, continua sendo um dos principais gêneros literários da
atualidade, revigorado por aspectos diversos. No plano temático, aparecem com
destaque a reavaliação da História, a representação das minorias raciais e sexuais e o
enfoque nos problemas dos povos pós-coloniais. No plano formal, preponderam as
estratégias narrativas que utilizam como recursos dominantes a intertextualidade, a
auto-referencialidade e a auto-reflexividade.
Diante da diversidade vigorosa do gênero romanesco e da existência de
inúmeros problemas concernentes à realidade histórica da segunda metade do século
XX, é precipitado sugerir o esgotamento do projeto estético-ideológico de uma literatura
de ênfase social. Seria mais produtivo, em termos críticos, cogitar em um possível
desdobramento e em uma reformulação de um empreendimento artístico herdado da
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década de 1930, atendendo a demandas prementes da segunda metade do século XX,
marcada contextualmente pela continuidade da ditadura salazarista em Portugal e por
um novo ciclo ditatorial no Brasil.
Entre as literaturas de língua portuguesa, nas quais, muitas vezes, literatura e
autoritarismo caminharam obrigatoriamente juntos por força de obras que retratam uma
conjuntura politicamente tirânica e por acontecimentos marcantes que incitam a
literatura à preocupação social, o procedimento comparativo possibilita o
reconhecimento dos parâmetros estéticos e ideológicos que dão o contorno das
tendências que movimentam os vários sistemas literários, pautados pela unidade e pela
diversidade, num dinamismo demarcado pelo diálogo intertextual constante. No âmbito
dos estudos comparados de literaturas de língua portuguesa, a aproximação crítica dos
romances A hora dos ruminantes (1966), do brasileiro José J. Veiga (1915-1999), e O
dia dos prodígios (1980), da portuguesa Lídia Jorge (1946), que representam
alegoricamente contextos autoritários, pode revelar-se pertinente no tocante a obras
comprometidas com a denúncia de conjunturas opressivas, inspirada em um cenário
histórico caracterizado por ditaduras virulentas.
Ao analisar as literaturas de ênfase social em língua portuguesa no século
XX, através de uma ótica comparativa, Benjamin Abdala Júnior (1989) chegou ao
conceito de macrossistema, a partir do estabelecimento de certos parâmetros estético-
ideológicos que embasam tais literaturas. No cerne do enfoque comparativo está a
verificação da convergência/divergência de procedimentos artísticos adotados para o
tratamento do fenômeno literário, visando a uma nítida preocupação social, uma vez que
tais estratégias podem ser reconhecidas supranacionalmente através de um ângulo
crítico que entende essas literaturas conjuntamente. São modos de trabalho, cuja
demonstração analítica leva-nos a perceber que ultrapassam as variantes nacionais,
impulsionando-se o sentido de empenho político e de denúncia social dessas literaturas,
sem, contudo, esquecer as diferenças nacionais, já que a identidade/alteridade sócio-
cultural de cada nação que integra a comunidade dos países de língua portuguesa é uma
categoria importante a ser levada em consideração no discurso crítico.
É dentro dessa perspectiva dialética que analisaremos as literaturas engajadas
dos países de língua oficial portuguesa - as formas de apropriações
ideológicas dessas tendências militantes. Essa articulações, como iremos ver,
apresentam modos de trabalho supranacionais e - a par da alteridade
(individual/coletivo) - são motivadas por critérios de confluências para o
macrossistema literário, paralelo ao da língua portuguesa, constituído por
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países de grandes convergências histórico-culturais. Na tensão
macrocontextual da produção engajada em português - entre a unidade e a
diversidade de cada literatura nacional - procuraremos discutir questões
relativas a estratégias que contribuam para definir bases político-culturais
para um diálogo mais amplo entre nossos povos (ABDALA JR, 1989, p. 12).
No tocante a uma literatura de ênfase social em língua portuguesa,
especificamente da segunda metade do século XX, temos o romance A hora dos
ruminantes, de José J. Veiga, que retrata, centralmente, a situação de opressão que se
instala em um pacato lugarejo interiorano chamado Manarairema. A obra está dividida
em três partes que dizem respeito às três invasões que atormentam a vida dos moradores
da pequena cidade: “A chegada”, “O dia dos cachorros” e “O dia dos bois”. Na primeira
parte da narrativa, um grupo de homens misteriosos instala um acampamento, sem
prévio conhecimento ou permissão dos moradores, num terreno do outro lado do rio que
margeia a cidade. Tratava-se da invasão de um grupo de pessoas desconhecidas que
gradativamente interfere, manipula e altera a rotina do lugarejo. Forasteiros que
estranhamente vão afetando a vida dos moradores com ações que geram violência e
sofrimento, mas que, ao se tornarem freqüentes, são naturalizadas “maiakovskimente”
no cotidiano, apesar de algumas resistências pontuais, logo submetidas a uma nova
ordem arbitrária.
À invasão da pequena cidade pelos misteriosos “homens da tapera”,
inarredáveis durante toda a narrativa, seguem as incursões sazonais de certos grupos de
animais: cachorros e bois. Surgem e desaparecem sem qualquer explicação plausível
para os habitantes.
Na segunda parte da obra, cachorros, nada dóceis, ocupam a cidade,
afrontando os moradores. Passado o susto inicial, os cães começam a ser reverenciados
pelo povoado, numa atitude que exprime submissão e indiferença diante de uma forma
de opressão desconhecida, caracterizada por uma hostilidade silenciosa e persistente.
Tão rápido como chegaram os cachorros, também deixaram o povoado sem qualquer
explicação ou motivação.
Na terceira parte da narrativa, destaca-se a chegada inesperada de bois, que
tomam conta de todos os espaços da cidadezinha. Proporcional ao tamanho dos bovinos,
a sensação de opressão aumenta, enclausurando as pessoas em suas casas, o que instiga
o sentimento de angústia que arrebata a população do lugarejo.
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Ao final do romance, com o desaparecimento misterioso dos agentes de
opressão e sofrimento, a cidade de Manairema retoma a sua rotina, modificada e
amadurecida pelos episódios recentes de dominação inexplicável e violência gratuita.
Já no romance português O dia dos prodígios é narrado um episódio
aparentemente insólito que afeta a vida de todos os habitantes de um lugarejo, no
Algarve, denominado Vilamaninhos. Entre acontecimentos reais e imaginários, o
ambiente pacato do povoado é perturbado por um evento inusitado: o aparecimento de
uma cobra voadora, cena narrativa que funciona como uma peça-chave do relato e mote
aglutinador dos fragmentos narrativos focados em determinados habitantes da
cidadezinha, notadamente do sexo feminino. De modo geral, o destaque está no retrato
do marasmo e do despreparo de uma pequena aldeia algarvia para as alterações radicais
vindouras.
O recurso à multiplicidade de vozes em perspectiva engendra uma narrativa
configurada como um mosaico de pequenos relatos acerca da vida de personagens
oprimidas, cujos pontos de vista são valorizados no andamento do relato, no que toca à
interferência do episódio da cobra voadora no mundo apagado de indivíduos silenciados
pela violência, pela loucura, pelo preconceito, pela intolerância, pelo abandono. A cena
inusitada da cobra voadora, cuja ambigüidade do fenômeno não deixa indiferentes os
habitantes do lugarejo, é o evento que mobiliza a intriga/fábula, construída
fragmentariamente com base em seres relegados que têm suas vidas transformadas pelo
insólito acontecimento, com destaque, vale ressaltar, para o elemento feminino,
marginalizado historicamente, como agente catalisador das mudanças que abalam os
moradores de uma cidadezinha afastada dos centros de decisão política e econômica e
desconhecedora dos movimentos subterrâneos que preparavam a abrupta transformação
da ordem social e política com um golpe de estado que derrubaria uma ditadura de
muitas décadas. A grande metáfora do romance é a da eterna espera de um povo que,
ilhado em sua insignificância, já não percebe ou compreende os sinais preconizadores
de mudança, quando de fato aparecem. Ironicamente, o romance dá destaque a um
coletivo que aguarda e não reconhece os verdadeiros acontecimentos prodigiosos. A
demora por um milagre sempre desejado metamorfoseia-se em descrença e
desconfiança para uma gente que cansou de ter esperança e acredita mais numa cobra
que voa do que em movimentos revolucionários.
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Nos romances em questão, a construção das personagens e a representação
do espaço narrativo apresentam uma inegável conotação estético-ideológica que orienta
o andamento da narrativa e direciona a visão de mundo oferecida pelo relato.
Para Antonio Candido (1974), o estatuto da personagem depende tanto da
visão aristotélica do problema quanto da perspectiva semiológica, ou seja, da relação da
personagem com outros elementos composicionais do texto. A sua fisionomia humana e
psicológica não basta para explicá-la, porque é preciso considerá-la igualmente como
componente preponderante num mundo ficcional que leva em consideração fatores de
ordem artística, isto é, a personagem é um elemento integrante de uma estrutura passível
de ser descrita, concebida com técnica poética, visando à apreciação estética. Todavia, a
sua desvinculação do sentido de vida e de humanidade que carrega é desprestigiar a
carga antropomórfica que representa, sendo este aspecto o que torna possível sua
relação com a realidade externa à obra, dando oportunidade ao leitor de identificar-se
com a carga de humanismo distribuída na obra.
As personagens em A hora dos ruminantes podem ser divididas em dois
grandes grupos: opressores e oprimidos. Os homens da tapera caracterizados pela
arrogância e soberba e os moradores do lugarejo marcados pelo sofrimento causado
pelos desmandos dos estranhos estrangeiros. As personagens mais representativas nessa
condição, da referida obra, são Geminiano, Amâncio e Manuel Florência, típicos
interioranos que são misteriosamente subjugados em suas convicções morais, ao
aceitarem a submissão, mantendo-se sob o controle dos homens da tapera. Geminiano
cede e passa a prestar serviço de carroceiro aos forasteiros, Amâncio torna-se prestativo
em seu armazém e Manuel Florêncio, depois de muita resistência, também começa a
trabalhar como carpinteiro para os estranhos homens do acampamento. Apenas um
trecho da obra já é bastante ilustrativo:
Geminiano subiu vagaroso na carroça, sentou-se e ficou pensando. Os olhos
parados na garupa do Serrote nem piscavam. Minutos depois Manuel chegou
à janela para olhar o tempo, Geminiano estava na mesma posição. Vendo-o
ali sem rumo e sem ação, Manuel pensou no Geminiano antigo tão senhor de
si, correto, respeitador dos direitos alheios. Que força teria conseguido
transformar aquele homem inteiriço nesse inútil feixe de medos? Olhando
para cima, para baixo, para as casas em frente, Manuel sentiu que não estava
vendo o largo familiar mas um trecho de outra cidade, remota, inóspita,
maligna. Manairarema estaria se acabando, se perdendo para sempre? Se
estava, valeria a pena continuar vivendo ali? Não seria melhor vender a casa,
juntar as ferramentas num caixote e sair estrada fora, trabalhando de fazenda
em fazenda nos serviços que aparecessem? (VEIGA, 1993, p. 44)
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Em O dia dos prodígios, destacam-se as oprimidas personagens femininas
como agentes que, na dianteira, ativam os sinais de mudanças que interferem na vida
cotidiana de um vilarejo esquecido. As personagens com maior desenvoltura na trama
são as duas Carminhas (Carminha Rosa e Carminha Parda), Jesuína Palha, Esperança
Teresa e Branca Volante. As Carminhas estão reclusas dentro da sua própria casa para
se defenderem da hostilidade moral do vilarejo, Jesuína Palha é a anunciadora do
espetáculo miraculoso da cobra voadora e uma espécie de matriarca defensora de uma
moral rígida, Esperança Teresa é a vítima exemplar de um casamento infeliz e Branca
Volante, oprimida igualmente por um casamento brutal, desenvolve o dom da
clarividência que possibilita o exercício da auto-consciência como encorajamento à
mudança. Novamente, apenas um exemplo é suficiente:
Ainda ontem Pássaro procurava a mulher na cama, e ela vá de fazer de morta.
Então ele de levantar a mão para lhe chimpar a cara. Porque com as bestas,
um homem dá aveia e elas comem, mas se lhes der só palha acabam por
come-la e ainda por suspirar pelo dono quando lhe pressentem os passos.
Suspiram e regougam. Não guardam rancor. Às vezes dá-se-lhe na pele, e
elas apenas encolhem o lombo. Quanto muito um pinote. Voltando a dar
cevada e aveia, elas riem logo a um homem. De orelha estendida. Menos a
mula Menina, que se foi. Mas com as pessoas é diferente. Porque cada
bocadinho que lhes tires uma vez, nem mais por isso, as poderás compensar.
Embora as pessoas possam disfarçar as mágoas (JORGE, 1980, p. 107)
Em consonância com outros aspectos da narrativa, a configuração do espaço,
nos mencionados romances, nos moldes teóricos sugeridos por Osman Lins (1976),
apresenta uma incontornável conotação ideológica que indicia enclausuramento,
exclusão e opressão. Dentre os elementos constitutivos da narrativa de ficção, o espaço
ocupa posição de destaque, pois cabe a ele situar a ação narrada, bem como contribuir
para a caracterização do meio em que circula a personagem, vindo ou não a influenciá-
la. Notadamente, o espaço assume importância capital numa obra de vocação realista,
pois representa as virtualidades do contexto sócio-cultural em foco, ganhando papel
destacado no desenho narrativo dos conflitos vividos pelas personagens, cujas
idiossincrasias estão em estreita correlação com as implicações determinadas a partir do
espaço representado.
O espaço em A hora dos ruminantes caracteriza-se principalmente pela
reprodução dicotômica de dois cenários opositivos demarcados pela existência de um
rio que separa dois territórios: de um lado os homens da tapera, num acampamento
misterioso, improvisado e inacessível, de outro, os moradores do vilarejo, enclausurados
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em suas casas, praças e ruas, pois estão cerceados em sua liberdade de ir e vir pelos
estranhos estrangeiros que transformam a localidade urbana em uma espécie de prisão
domiciliar. A pequena cidade é sitiada pelos forasteiros que a transformam num
ambiente hostil, cujo clima persecutório aflige a todos do povoado. Estão todos
rendidos pela nova conjuntura de poder e quem esboça qualquer reação é punido ou
banido da “urbe sertaneja”. Vejamos:
No dia seguinte a cidade amanheceu ainda sem toucinho, mas com uma
novidade: um grande acampamento fumegando e pulsando do outro lado do
rio, coisa repentina, de se esfregar os olhos. As pessoas acordavam,
chegavam à janela para olhar o tempo antes de lavar o rosto e davam com a
cena nova (VEIGA, 1993, p. 4).
Fechadas em casa, abanando-se contra a fumaça, enervadas com os latidos, as
pessoas tapavam os ouvidos, pensavam e não conseguiam compreender
aquela inversão da ordem, a cidade entregue a cachorros e a gente encolhida
no escuro, sem saber o que aconteceria a seguir (VEIGA, 1993, p. 35).
Vivendo como prisioneiros em suas próprias casas as pessoas olhavam suas
roupas nos cabides, os sapatos debaixo das camas e suspiravam pensando se
voltaria ainda o dia de poderem usar aquilo tudo novamente (VEIGA, 1993,
p. 88).
Em O dia dos prodígios, o espaço principal é a praça da pequena cidade,
onde acontece grande parte das ações diretamente vinculadas ao episódio insólito
propulsor da narrativa, a visão/testemunho da cobra voadora, e as conseqüentes
especulações que envolvem as demais personagens acerca da veracidade e dos
improváveis desdobramentos do fato. O cenário urbano, caracterizado pelo
esquecimento e abandono a que estão submetidos seus habitantes, denota um contexto
de alienação que simboliza no plano do microcosmo um ambiente social segregado e
distanciado da realidade nacional, representando esta um macrocosmo conturbado por
uma ditadura esclerosada. A seguir os fragmentos:
Em Vilamaninhos as pessoas já não podem encarar o nascer do dia como
antes, porque suspeitam que há um ser desconhecido entre as casas. Tanto
pode estar a apodrecer dentro do poço, como a reproduzir-se em cima de uma
varanda. Ou nos escombros dos muros. Assim, quando sobem as ruas
sozinhas, batem os calcanhares, como nunca haviam batido, para afugentar o
medo. Se carregam as compras, acompanhadas, falam baixinho segredos de
orelha a orelha (JORGE, 1980, p. 37).
Na verdade, a pleno meio da estrada avançava um carro singular, porque
vinha pejado de soldados garbosos e épicos, penetrando já pelo centro de
Vilamaninhos com bandeiras e flores. E cantavam por um altifalante como se
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viessem munidos de uma poderosa orquestra. Agora já o espetáculo era tão
real e tão bonito que todos. Esquecidos desses primeiros segundos de pasmo
e confusão. Sentiram estar suspenso o toque, o canto e a audição desde há
muito. Para só ouvirem e verem aquilo que chegava em cima dum carro
aberto e blindado. Todos tinham a certeza que desde o tempo dos reis nunca
mais se vira de igual (JORGE, 1980, p. 152-153).
Assim, A hora dos ruminantes e O dia dos prodígios encenam, num
ambiente de hinterlândia, os impasses de uma ordem social sufocante que aprisiona e
cerceia a liberdade de indivíduos caracterizados pela segregação e alienação. O espaço
da pequena cidade enclausura seres marcados por uma violência, muitas vezes
simbólica, mas que alegoriza no pequeno mundo de um lugarejo distante, perdido e
esquecido no tempo, um vasto mundo que pode representar uma nação inteira oprimida
por um regime autoritário implacável.
José J. Veiga imagina uma invasão extraordinária caracterizada por
acontecimentos absurdos que transtornam o cotidiano de um povoado pacato que, em
decorrência de muito sofrimento e opressão, recupera a liberdade, depois de conhecer o
alto preço dessa perda. Já Lídia Jorge concentra-se no episódio fantástico de uma cobra
voadora que abala a monotonia de uma pequena comunidade algarvia, predispondo
pessoas, até ali acomodadas à rotina de opressão e exclusão, ao desejo de mudança,
mais interior que exterior, numa evidente correlação com o episódio histórico da
Revolução dos Cravos de 25 de abril de 1974, um acontecimento que propiciou
transformações decisivas na sociedade lusitana com desdobramentos perceptíveis ainda
na atualidade.
Como ato de resistência, a escrita dos referidos romances indiciam certos
impasses de nações sufocadas por regimes políticos truculentos. J. J. Veiga parece
insurgir contra uma nova onda autoritária que toma conta do nosso país em conluio com
um processo de modernização capitalista que atropela e massacra os despreparados para
fazer parte de uma incipiente ordem política, econômica e social dominadora. Lídia
Jorge retrata a procura desinteressada versus a euforia enganosa referente a um tempo
de mudança profunda, após uma época histórica de letargia inibidora, assinalando-se o
desencontro entre o anseio e a efetiva transformação, entre a promessa e a concretização
do gesto, de maneira a sublinhar a distância reconhecidamente enorme entre a liberdade
vislumbrada em tempo de abertura e a dificuldade de ativação dos meios eficazes de
ação transformadora.
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O romance de Veiga pertence a uma tendência da literatura brasileira
denominada por Antonio Candido como “literatura do contra”:
Contra a escrita elegante, antigo ideal castiço do País; contra a convenção
realista, baseada na verossimilhança e o seu pressuposto de uma escolha
dirigida pela convenção cultural; contra a lógica narrativa, isto é, a
concatenação graduada das partes pela técnica da dosagem dos efeitos;
finalmente contra a ordem social, sem que com isso os textos manifestem
uma posição política determinada (embora a autor possa tê-la). Talvez esteja
aí mais um traço dessa literatura recente: a negação implícita sem afirmação
explícita da ideologia (CANDIDO, 1989, p. 212).
Já o romance de Lídia Jorge faz parte de uma nova conjuntura da ficção
portuguesa pós-25 de abril, descrita assim por Carlos Reis:
Em termos mais específicos (e ainda assim inevitavelmente sintéticos) deve
dizer-se que a Revolução de 25 de abril de 1974 pôs termo a um tempo
político e cultural algo incaracterístico. Esse tempo vem a ser a etapa final e a
vários títulos agônica de um regime ditatorial, repressivo e isolacionista, com
tudo o que isso significou de limitação à livre expressão do pensamento e das
práticas artísticas e com os efeitos que em parte observamos em relação ao
Neo-realismo e a movimentos literários afins. Por outro lado, a abertura
política trouxe consigo conseqüências diversas, quase sempre constituindo
um potencial de tematização literária que a ficção muitas vezes acolheu: a
liberdade de expressão e a descolonização permitiram rever ficcionalmente os
dramas individuais e coletivos da guerra colonial; paralelamente foi tomando
corpo uma cada vez mais evidente consciência post-colonial; do mesmo
modo, o redesenho das fronteiras nacionais estimulou uma reflexão
identitária (incluindo-se nela a velha questão da relação com a Europa) a que
a literatura, naturalmente, não ficou alheia (REIS, 2005, p. 287).
Pela configuração dos contextos históricos e culturais mencionados acima,
ambos os romances em questão representam alegoricamente movimentos totalitários em
etapas opostas de instalação: o início de um tempo de obscurantismo em A hora dos
ruminantes e o vislumbre irônico de uma abertura política recente em O dia dos
prodígios. Desse modo, ao construir personagens que circulam por espaços que
conotam uma reiterada atmosfera de cerceamento, A hora dos ruminantes e O dia dos
prodígios repercutem a atmosfera de intenso autoritarismo que a literatura de ênfase
social em língua portuguesa condenou de forma recorrente, ao longo do século XX,
numa representação contundente de regimes de força que tomaram conta da conjuntura
social brasileiro e português durante boa parte da referida centúria, com especial
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atenção, no caso dos romances em tela, à ditadura reincidente no Brasil, o Golpe Militar
de 1964, e à ditadura renitente em Portugal, o regime salazarista que durou até 1974.
REFERÊNCIAS
ABDALA JR., Benjamin. Literatura, história e política. São Paulo: Ática, 1989.
CANDIDO, Antonio. A nova narrativa. A educação pela noite e outros ensaios. São
Paulo: Ática, 1987.
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GINZBURG, Jaime; UMBACH, Rosani Ketzer. Literatura e autoritarismo. In:
COSSON, Rildo (Org.). 2000 palavras: as vozes das Letras. Pelotas, RS: PPG-Letras,
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LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976.
REIS, Carlos. História crítica da literatura portuguesa. Do neo-realismo ao post-
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