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Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP                              ISBN: 978-85-60667-69-7



      LITERATURA E AUTORITARISMO: JOSÉ J. VEIGA E LÍDIA JORGE




                                                                       Edvaldo A. Bergamo – UnB




             O romance de ênfase social em língua portuguesa da segunda metade do
  século XX focaliza momentos históricos decisivos do período: a ditadura militar no
  Brasil, a ditadura salazarista em Portugal e o ultra-colonialismo lusitano em África. A
  configuração romanesca mira tais acontecimentos com o objetivo de representar o
  processo de desagregação social orquestrado por regimes autoritários caracterizados
  pela violência e pela repressão.



                          [...] o autoritarismo consiste em uma caracterização de um regime político em
                          que existe um controle da sociedade por parte do Estado, que manipula as
                          formas de participação política e restringe a possibilidade de mobilização
                          social; existe interesse político na cooptação dos intelectuais; a administração
                          pública é apresentada como um bem em si mesmo, ao servir ao interesse do
                          Estado; o setor militar desempenha um papel decisivo na manutenção da
                          ordem. Nas formas extremas, como o totalitarismo, o regime autoritário
                          institui um partido único e reprime com rigor manifestações de contrariedade.

                          (...)

                          O fato de o Estado agir de maneira a controlar as ações individuais, restringir
                          as possibilidades de mudança social, sustentar códigos e valores com os quais
                          a população é obrigada a pautar sua existência, e manipular a difusão de
                          ideologias em favor da conservação do poder das elites, estabelece uma
                          condição restritiva de existência. O problema da reificação, desenvolvida
                          dentro do capitalismo industrial, é levado a dimensões novas, agravadas pela
                          ameaça de destruição coletiva. (GINZBURG & UMBACH, 2000 p. 238).




              No tocante a uma literatura de intervenção social, oriunda de uma
  conjuntura que concerta literatura, história e política, o grande momento é a década de
  1930, na qual notoriamente o empenho ideológico tomou um grande vulto nas
  manifestações artísticas de língua portuguesa. O engajamento literário tornou-se um
  fenômeno supranacional nos países de língua portuguesa, atuando em favor das
  reivindicações sociais vigentes, através de uma perspectiva que conciliava literatura e




                                                                                                         373
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  vida social. Nesse sentido, é compreensível a atmosfera artístico-ideológica que
  aproxima brasileiros e portugueses. O interesse pela representação das tensões sociais
  em voga é a tônica dessa literatura, definida por meio de um alargamento de
  perspectivas, principalmente na tentativa de retratar o quadro geral de uma sociedade
  em transformação. Ao aproveitar o legado do realismo crítico proveniente do século
  XIX, as literaturas de língua portuguesa reinterpretaram esse realismo sob a ótica dos
  novos conflitos sociais e agravados, ainda mais, em países periféricos como Brasil e
  Portugal, que sofriam com regimes autoritários severos. Autoproclamando-se militantes,
  os autores lutavam pelos seus ideais utópicos, procurando afirmar literariamente suas
  convicções com reflexos inclusive na reformulação do projeto de uma identidade
  nacional desapegado de idealismo ingênuo. Nos textos engajados do período, percebe-se
  o peso da ideologia dos escritores, uma vez que eram intelectuais conscientes de sua
  missão como intérpretes da realidade observada em sentido histórico, político e social.
              Dessa forma, há um imaginário político comum para enfrentar os dilemas
  em voga, transformados em matéria ficcional intensamente explorada nas narrativas de
  tendência social, tanto no Brasil como em Portugal, revelando um profícuo diálogo
  literário entre as duas margens do Atlântico, graças à força desmistificadora desse
  projeto romanesco.
             A hipótese ventilada aqui é que o escopo artístico dos anos 30 do século XX
  de revalorização do realismo e de aprofundamento da questão social deixou marcas que
  foram aproveitadas e/ou reformuladas por tendências literárias posteriores. Na segunda
  metade do século XX, certamente, o desenvolvimento cultural abriu novas fronteiras de
  exploração e novas trilhas de expansão para a literatura e a arte em geral. O romance,
  nessa nova conjuntura, continua sendo um dos principais gêneros literários da
  atualidade, revigorado por aspectos diversos. No plano temático, aparecem com
  destaque a reavaliação da História, a representação das minorias raciais e sexuais e o
  enfoque nos problemas dos povos pós-coloniais. No plano formal, preponderam as
  estratégias narrativas que utilizam como recursos dominantes a intertextualidade, a
  auto-referencialidade e a auto-reflexividade.
             Diante da diversidade vigorosa do gênero romanesco e da existência de
  inúmeros problemas concernentes à realidade histórica da segunda metade do século
  XX, é precipitado sugerir o esgotamento do projeto estético-ideológico de uma literatura
  de ênfase social. Seria mais produtivo, em termos críticos, cogitar em um possível
  desdobramento e em uma reformulação de um empreendimento artístico herdado da



                                                                                            374
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  década de 1930, atendendo a demandas prementes da segunda metade do século XX,
  marcada contextualmente pela continuidade da ditadura salazarista em Portugal e por
  um novo ciclo ditatorial no Brasil.
               Entre as literaturas de língua portuguesa, nas quais, muitas vezes, literatura e
  autoritarismo caminharam obrigatoriamente juntos por força de obras que retratam uma
  conjuntura politicamente tirânica e por acontecimentos marcantes que incitam a
  literatura   à   preocupação     social,   o    procedimento        comparativo       possibilita    o
  reconhecimento dos parâmetros estéticos e ideológicos que dão o contorno das
  tendências que movimentam os vários sistemas literários, pautados pela unidade e pela
  diversidade, num dinamismo demarcado pelo diálogo intertextual constante. No âmbito
  dos estudos comparados de literaturas de língua portuguesa, a aproximação crítica dos
  romances A hora dos ruminantes (1966), do brasileiro José J. Veiga (1915-1999), e O
  dia dos prodígios (1980), da portuguesa Lídia Jorge (1946), que representam
  alegoricamente contextos autoritários, pode revelar-se pertinente no tocante a obras
  comprometidas com a denúncia de conjunturas opressivas, inspirada em um cenário
  histórico caracterizado por ditaduras virulentas.
               Ao analisar as literaturas de ênfase social em língua portuguesa no século
  XX, através de uma ótica comparativa, Benjamin Abdala Júnior (1989) chegou ao
  conceito de macrossistema, a partir do estabelecimento de certos parâmetros estético-
  ideológicos que embasam tais literaturas. No cerne do enfoque comparativo está a
  verificação da convergência/divergência de procedimentos artísticos adotados para o
  tratamento do fenômeno literário, visando a uma nítida preocupação social, uma vez que
  tais estratégias podem ser reconhecidas supranacionalmente através de um ângulo
  crítico que entende essas literaturas conjuntamente. São modos de trabalho, cuja
  demonstração analítica leva-nos a perceber que ultrapassam as variantes nacionais,
  impulsionando-se o sentido de empenho político e de denúncia social dessas literaturas,
  sem, contudo, esquecer as diferenças nacionais, já que a identidade/alteridade sócio-
  cultural de cada nação que integra a comunidade dos países de língua portuguesa é uma
  categoria importante a ser levada em consideração no discurso crítico.


                           É dentro dessa perspectiva dialética que analisaremos as literaturas engajadas
                           dos países de língua oficial portuguesa - as formas de apropriações
                           ideológicas dessas tendências militantes. Essa articulações, como iremos ver,
                           apresentam modos de trabalho supranacionais e - a par da alteridade
                           (individual/coletivo) - são motivadas por critérios de confluências para o
                           macrossistema literário, paralelo ao da língua portuguesa, constituído por




                                                                                                        375
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                         países de grandes convergências histórico-culturais. Na tensão
                         macrocontextual da produção engajada em português - entre a unidade e a
                         diversidade de cada literatura nacional - procuraremos discutir questões
                         relativas a estratégias que contribuam para definir bases político-culturais
                         para um diálogo mais amplo entre nossos povos (ABDALA JR, 1989, p. 12).




             No tocante a uma literatura de ênfase social em língua portuguesa,
  especificamente da segunda metade do século XX, temos o romance A hora dos
  ruminantes, de José J. Veiga, que retrata, centralmente, a situação de opressão que se
  instala em um pacato lugarejo interiorano chamado Manarairema. A obra está dividida
  em três partes que dizem respeito às três invasões que atormentam a vida dos moradores
  da pequena cidade: “A chegada”, “O dia dos cachorros” e “O dia dos bois”. Na primeira
  parte da narrativa, um grupo de homens misteriosos instala um acampamento, sem
  prévio conhecimento ou permissão dos moradores, num terreno do outro lado do rio que
  margeia a cidade. Tratava-se da invasão de um grupo de pessoas desconhecidas que
  gradativamente interfere, manipula e altera a rotina do lugarejo. Forasteiros que
  estranhamente vão afetando a vida dos moradores com ações que geram violência e
  sofrimento, mas que, ao se tornarem freqüentes, são naturalizadas “maiakovskimente”
  no cotidiano, apesar de algumas resistências pontuais, logo submetidas a uma nova
  ordem arbitrária.
             À invasão da pequena cidade pelos misteriosos “homens da tapera”,
  inarredáveis durante toda a narrativa, seguem as incursões sazonais de certos grupos de
  animais: cachorros e bois. Surgem e desaparecem sem qualquer explicação plausível
  para os habitantes.
             Na segunda parte da obra, cachorros, nada dóceis, ocupam a cidade,
  afrontando os moradores. Passado o susto inicial, os cães começam a ser reverenciados
  pelo povoado, numa atitude que exprime submissão e indiferença diante de uma forma
  de opressão desconhecida, caracterizada por uma hostilidade silenciosa e persistente.
  Tão rápido como chegaram os cachorros, também deixaram o povoado sem qualquer
  explicação ou motivação.
             Na terceira parte da narrativa, destaca-se a chegada inesperada de bois, que
  tomam conta de todos os espaços da cidadezinha. Proporcional ao tamanho dos bovinos,
  a sensação de opressão aumenta, enclausurando as pessoas em suas casas, o que instiga
  o sentimento de angústia que arrebata a população do lugarejo.




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               Ao final do romance, com o desaparecimento misterioso dos agentes de
  opressão e sofrimento, a cidade de Manairema retoma a sua rotina, modificada e
  amadurecida pelos episódios recentes de dominação inexplicável e violência gratuita.
               Já no romance português O dia dos prodígios é narrado um episódio
  aparentemente insólito que afeta a vida de todos os habitantes de um lugarejo, no
  Algarve, denominado Vilamaninhos. Entre acontecimentos reais e imaginários, o
  ambiente pacato do povoado é perturbado por um evento inusitado: o aparecimento de
  uma cobra voadora, cena narrativa que funciona como uma peça-chave do relato e mote
  aglutinador dos fragmentos narrativos focados em determinados habitantes da
  cidadezinha, notadamente do sexo feminino. De modo geral, o destaque está no retrato
  do marasmo e do despreparo de uma pequena aldeia algarvia para as alterações radicais
  vindouras.
               O recurso à multiplicidade de vozes em perspectiva engendra uma narrativa
  configurada como um mosaico de pequenos relatos acerca da vida de personagens
  oprimidas, cujos pontos de vista são valorizados no andamento do relato, no que toca à
  interferência do episódio da cobra voadora no mundo apagado de indivíduos silenciados
  pela violência, pela loucura, pelo preconceito, pela intolerância, pelo abandono. A cena
  inusitada da cobra voadora, cuja ambigüidade do fenômeno não deixa indiferentes os
  habitantes do lugarejo, é o evento que mobiliza a intriga/fábula, construída
  fragmentariamente com base em seres relegados que têm suas vidas transformadas pelo
  insólito acontecimento, com destaque, vale ressaltar, para o elemento feminino,
  marginalizado historicamente, como agente catalisador das mudanças que abalam os
  moradores de uma cidadezinha afastada dos centros de decisão política e econômica e
  desconhecedora dos movimentos subterrâneos que preparavam a abrupta transformação
  da ordem social e política com um golpe de estado que derrubaria uma ditadura de
  muitas décadas. A grande metáfora do romance é a da eterna espera de um povo que,
  ilhado em sua insignificância, já não percebe ou compreende os sinais preconizadores
  de mudança, quando de fato aparecem. Ironicamente, o romance dá destaque a um
  coletivo que aguarda e não reconhece os verdadeiros acontecimentos prodigiosos. A
  demora por um milagre sempre desejado metamorfoseia-se em descrença e
  desconfiança para uma gente que cansou de ter esperança e acredita mais numa cobra
  que voa do que em movimentos revolucionários.




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             Nos romances em questão, a construção das personagens e a representação
  do espaço narrativo apresentam uma inegável conotação estético-ideológica que orienta
  o andamento da narrativa e direciona a visão de mundo oferecida pelo relato.
             Para Antonio Candido (1974), o estatuto da personagem depende tanto da
  visão aristotélica do problema quanto da perspectiva semiológica, ou seja, da relação da
  personagem com outros elementos composicionais do texto. A sua fisionomia humana e
  psicológica não basta para explicá-la, porque é preciso considerá-la igualmente como
  componente preponderante num mundo ficcional que leva em consideração fatores de
  ordem artística, isto é, a personagem é um elemento integrante de uma estrutura passível
  de ser descrita, concebida com técnica poética, visando à apreciação estética. Todavia, a
  sua desvinculação do sentido de vida e de humanidade que carrega é desprestigiar a
  carga antropomórfica que representa, sendo este aspecto o que torna possível sua
  relação com a realidade externa à obra, dando oportunidade ao leitor de identificar-se
  com a carga de humanismo distribuída na obra.
             As personagens em A hora dos ruminantes podem ser divididas em dois
  grandes grupos: opressores e oprimidos. Os homens da tapera caracterizados pela
  arrogância e soberba e os moradores do lugarejo marcados pelo sofrimento causado
  pelos desmandos dos estranhos estrangeiros. As personagens mais representativas nessa
  condição, da referida obra, são Geminiano, Amâncio e Manuel Florência, típicos
  interioranos que são misteriosamente subjugados em suas convicções morais, ao
  aceitarem a submissão, mantendo-se sob o controle dos homens da tapera. Geminiano
  cede e passa a prestar serviço de carroceiro aos forasteiros, Amâncio torna-se prestativo
  em seu armazém e Manuel Florêncio, depois de muita resistência, também começa a
  trabalhar como carpinteiro para os estranhos homens do acampamento. Apenas um
  trecho da obra já é bastante ilustrativo:


                          Geminiano subiu vagaroso na carroça, sentou-se e ficou pensando. Os olhos
                          parados na garupa do Serrote nem piscavam. Minutos depois Manuel chegou
                          à janela para olhar o tempo, Geminiano estava na mesma posição. Vendo-o
                          ali sem rumo e sem ação, Manuel pensou no Geminiano antigo tão senhor de
                          si, correto, respeitador dos direitos alheios. Que força teria conseguido
                          transformar aquele homem inteiriço nesse inútil feixe de medos? Olhando
                          para cima, para baixo, para as casas em frente, Manuel sentiu que não estava
                          vendo o largo familiar mas um trecho de outra cidade, remota, inóspita,
                          maligna. Manairarema estaria se acabando, se perdendo para sempre? Se
                          estava, valeria a pena continuar vivendo ali? Não seria melhor vender a casa,
                          juntar as ferramentas num caixote e sair estrada fora, trabalhando de fazenda
                          em fazenda nos serviços que aparecessem? (VEIGA, 1993, p. 44)




                                                                                                      378
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             Em O dia dos prodígios, destacam-se as oprimidas personagens femininas
  como agentes que, na dianteira, ativam os sinais de mudanças que interferem na vida
  cotidiana de um vilarejo esquecido. As personagens com maior desenvoltura na trama
  são as duas Carminhas (Carminha Rosa e Carminha Parda), Jesuína Palha, Esperança
  Teresa e Branca Volante. As Carminhas estão reclusas dentro da sua própria casa para
  se defenderem da hostilidade moral do vilarejo, Jesuína Palha é a anunciadora do
  espetáculo miraculoso da cobra voadora e uma espécie de matriarca defensora de uma
  moral rígida, Esperança Teresa é a vítima exemplar de um casamento infeliz e Branca
  Volante, oprimida igualmente por um casamento brutal, desenvolve o dom da
  clarividência que possibilita o exercício da auto-consciência como encorajamento à
  mudança. Novamente, apenas um exemplo é suficiente:


                         Ainda ontem Pássaro procurava a mulher na cama, e ela vá de fazer de morta.
                         Então ele de levantar a mão para lhe chimpar a cara. Porque com as bestas,
                         um homem dá aveia e elas comem, mas se lhes der só palha acabam por
                         come-la e ainda por suspirar pelo dono quando lhe pressentem os passos.
                         Suspiram e regougam. Não guardam rancor. Às vezes dá-se-lhe na pele, e
                         elas apenas encolhem o lombo. Quanto muito um pinote. Voltando a dar
                         cevada e aveia, elas riem logo a um homem. De orelha estendida. Menos a
                         mula Menina, que se foi. Mas com as pessoas é diferente. Porque cada
                         bocadinho que lhes tires uma vez, nem mais por isso, as poderás compensar.
                         Embora as pessoas possam disfarçar as mágoas (JORGE, 1980, p. 107)


             Em consonância com outros aspectos da narrativa, a configuração do espaço,
  nos mencionados romances, nos moldes teóricos sugeridos por Osman Lins (1976),
  apresenta uma incontornável conotação ideológica que indicia enclausuramento,
  exclusão e opressão. Dentre os elementos constitutivos da narrativa de ficção, o espaço
  ocupa posição de destaque, pois cabe a ele situar a ação narrada, bem como contribuir
  para a caracterização do meio em que circula a personagem, vindo ou não a influenciá-
  la. Notadamente, o espaço assume importância capital numa obra de vocação realista,
  pois representa as virtualidades do contexto sócio-cultural em foco, ganhando papel
  destacado no desenho narrativo dos conflitos vividos pelas personagens, cujas
  idiossincrasias estão em estreita correlação com as implicações determinadas a partir do
  espaço representado.
             O espaço em A hora dos ruminantes caracteriza-se principalmente pela
  reprodução dicotômica de dois cenários opositivos demarcados pela existência de um
  rio que separa dois territórios: de um lado os homens da tapera, num acampamento
  misterioso, improvisado e inacessível, de outro, os moradores do vilarejo, enclausurados



                                                                                                   379
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  em suas casas, praças e ruas, pois estão cerceados em sua liberdade de ir e vir pelos
  estranhos estrangeiros que transformam a localidade urbana em uma espécie de prisão
  domiciliar. A pequena cidade é sitiada pelos forasteiros que a transformam num
  ambiente hostil, cujo clima persecutório aflige a todos do povoado. Estão todos
  rendidos pela nova conjuntura de poder e quem esboça qualquer reação é punido ou
  banido da “urbe sertaneja”. Vejamos:


                         No dia seguinte a cidade amanheceu ainda sem toucinho, mas com uma
                         novidade: um grande acampamento fumegando e pulsando do outro lado do
                         rio, coisa repentina, de se esfregar os olhos. As pessoas acordavam,
                         chegavam à janela para olhar o tempo antes de lavar o rosto e davam com a
                         cena nova (VEIGA, 1993, p. 4).

                         Fechadas em casa, abanando-se contra a fumaça, enervadas com os latidos, as
                         pessoas tapavam os ouvidos, pensavam e não conseguiam compreender
                         aquela inversão da ordem, a cidade entregue a cachorros e a gente encolhida
                         no escuro, sem saber o que aconteceria a seguir (VEIGA, 1993, p. 35).

                         Vivendo como prisioneiros em suas próprias casas as pessoas olhavam suas
                         roupas nos cabides, os sapatos debaixo das camas e suspiravam pensando se
                         voltaria ainda o dia de poderem usar aquilo tudo novamente (VEIGA, 1993,
                         p. 88).




             Em O dia dos prodígios, o espaço principal é a praça da pequena cidade,
  onde acontece grande parte das ações diretamente vinculadas ao episódio insólito
  propulsor da narrativa, a visão/testemunho da cobra voadora, e as conseqüentes
  especulações que envolvem as demais personagens acerca da veracidade e dos
  improváveis desdobramentos do fato. O cenário urbano, caracterizado pelo
  esquecimento e abandono a que estão submetidos seus habitantes, denota um contexto
  de alienação que simboliza no plano do microcosmo um ambiente social segregado e
  distanciado da realidade nacional, representando esta um macrocosmo conturbado por
  uma ditadura esclerosada. A seguir os fragmentos:


                         Em Vilamaninhos as pessoas já não podem encarar o nascer do dia como
                         antes, porque suspeitam que há um ser desconhecido entre as casas. Tanto
                         pode estar a apodrecer dentro do poço, como a reproduzir-se em cima de uma
                         varanda. Ou nos escombros dos muros. Assim, quando sobem as ruas
                         sozinhas, batem os calcanhares, como nunca haviam batido, para afugentar o
                         medo. Se carregam as compras, acompanhadas, falam baixinho segredos de
                         orelha a orelha (JORGE, 1980, p. 37).


                         Na verdade, a pleno meio da estrada avançava um carro singular, porque
                         vinha pejado de soldados garbosos e épicos, penetrando já pelo centro de
                         Vilamaninhos com bandeiras e flores. E cantavam por um altifalante como se



                                                                                                   380
Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP                         ISBN: 978-85-60667-69-7



                         viessem munidos de uma poderosa orquestra. Agora já o espetáculo era tão
                         real e tão bonito que todos. Esquecidos desses primeiros segundos de pasmo
                         e confusão. Sentiram estar suspenso o toque, o canto e a audição desde há
                         muito. Para só ouvirem e verem aquilo que chegava em cima dum carro
                         aberto e blindado. Todos tinham a certeza que desde o tempo dos reis nunca
                         mais se vira de igual (JORGE, 1980, p. 152-153).




             Assim, A hora dos ruminantes e O dia dos prodígios encenam, num
  ambiente de hinterlândia, os impasses de uma ordem social sufocante que aprisiona e
  cerceia a liberdade de indivíduos caracterizados pela segregação e alienação. O espaço
  da pequena cidade enclausura seres marcados por uma violência, muitas vezes
  simbólica, mas que alegoriza no pequeno mundo de um lugarejo distante, perdido e
  esquecido no tempo, um vasto mundo que pode representar uma nação inteira oprimida
  por um regime autoritário implacável.
             José J. Veiga imagina uma invasão extraordinária caracterizada por
  acontecimentos absurdos que transtornam o cotidiano de um povoado pacato que, em
  decorrência de muito sofrimento e opressão, recupera a liberdade, depois de conhecer o
  alto preço dessa perda. Já Lídia Jorge concentra-se no episódio fantástico de uma cobra
  voadora que abala a monotonia de uma pequena comunidade algarvia, predispondo
  pessoas, até ali acomodadas à rotina de opressão e exclusão, ao desejo de mudança,
  mais interior que exterior, numa evidente correlação com o episódio histórico da
  Revolução dos Cravos de 25 de abril de 1974, um acontecimento que propiciou
  transformações decisivas na sociedade lusitana com desdobramentos perceptíveis ainda
  na atualidade.
             Como ato de resistência, a escrita dos referidos romances indiciam certos
  impasses de nações sufocadas por regimes políticos truculentos. J. J. Veiga parece
  insurgir contra uma nova onda autoritária que toma conta do nosso país em conluio com
  um processo de modernização capitalista que atropela e massacra os despreparados para
  fazer parte de uma incipiente ordem política, econômica e social dominadora. Lídia
  Jorge retrata a procura desinteressada versus a euforia enganosa referente a um tempo
  de mudança profunda, após uma época histórica de letargia inibidora, assinalando-se o
  desencontro entre o anseio e a efetiva transformação, entre a promessa e a concretização
  do gesto, de maneira a sublinhar a distância reconhecidamente enorme entre a liberdade
  vislumbrada em tempo de abertura e a dificuldade de ativação dos meios eficazes de
  ação transformadora.




                                                                                                  381
Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP                             ISBN: 978-85-60667-69-7



             O romance de Veiga pertence a uma tendência da literatura brasileira
  denominada por Antonio Candido como “literatura do contra”:


                         Contra a escrita elegante, antigo ideal castiço do País; contra a convenção
                         realista, baseada na verossimilhança e o seu pressuposto de uma escolha
                         dirigida pela convenção cultural; contra a lógica narrativa, isto é, a
                         concatenação graduada das partes pela técnica da dosagem dos efeitos;
                         finalmente contra a ordem social, sem que com isso os textos manifestem
                         uma posição política determinada (embora a autor possa tê-la). Talvez esteja
                         aí mais um traço dessa literatura recente: a negação implícita sem afirmação
                         explícita da ideologia (CANDIDO, 1989, p. 212).




             Já o romance de Lídia Jorge faz parte de uma nova conjuntura da ficção
  portuguesa pós-25 de abril, descrita assim por Carlos Reis:


                         Em termos mais específicos (e ainda assim inevitavelmente sintéticos) deve
                         dizer-se que a Revolução de 25 de abril de 1974 pôs termo a um tempo
                         político e cultural algo incaracterístico. Esse tempo vem a ser a etapa final e a
                         vários títulos agônica de um regime ditatorial, repressivo e isolacionista, com
                         tudo o que isso significou de limitação à livre expressão do pensamento e das
                         práticas artísticas e com os efeitos que em parte observamos em relação ao
                         Neo-realismo e a movimentos literários afins. Por outro lado, a abertura
                         política trouxe consigo conseqüências diversas, quase sempre constituindo
                         um potencial de tematização literária que a ficção muitas vezes acolheu: a
                         liberdade de expressão e a descolonização permitiram rever ficcionalmente os
                         dramas individuais e coletivos da guerra colonial; paralelamente foi tomando
                         corpo uma cada vez mais evidente consciência post-colonial; do mesmo
                         modo, o redesenho das fronteiras nacionais estimulou uma reflexão
                         identitária (incluindo-se nela a velha questão da relação com a Europa) a que
                         a literatura, naturalmente, não ficou alheia (REIS, 2005, p. 287).



             Pela configuração dos contextos históricos e culturais mencionados acima,
  ambos os romances em questão representam alegoricamente movimentos totalitários em
  etapas opostas de instalação: o início de um tempo de obscurantismo em A hora dos
  ruminantes e o vislumbre irônico de uma abertura política recente em O dia dos
  prodígios. Desse modo, ao construir personagens que circulam por espaços que
  conotam uma reiterada atmosfera de cerceamento, A hora dos ruminantes e O dia dos
  prodígios repercutem a atmosfera de intenso autoritarismo que a literatura de ênfase
  social em língua portuguesa condenou de forma recorrente, ao longo do século XX,
  numa representação contundente de regimes de força que tomaram conta da conjuntura
  social brasileiro e português durante boa parte da referida centúria, com especial




                                                                                                         382
Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP                    ISBN: 978-85-60667-69-7



  atenção, no caso dos romances em tela, à ditadura reincidente no Brasil, o Golpe Militar
  de 1964, e à ditadura renitente em Portugal, o regime salazarista que durou até 1974.




                                     REFERÊNCIAS


  ABDALA JR., Benjamin. Literatura, história e política. São Paulo: Ática, 1989.

  CANDIDO, Antonio. A nova narrativa. A educação pela noite e outros ensaios. São
  Paulo: Ática, 1987.

  _____ e outros. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1974.

  GINZBURG, Jaime; UMBACH, Rosani Ketzer. Literatura e autoritarismo. In:
  COSSON, Rildo (Org.). 2000 palavras: as vozes das Letras. Pelotas, RS: PPG-Letras,
  UFPel, 2000.

  JORGE, Lídia. O dia dos prodígios. Lisboa: Europa-América, 1980.

  LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976.

  REIS, Carlos. História crítica da literatura portuguesa. Do neo-realismo ao post-
  modernismo. Lisboa: Verbo, 2005. Vol. IX.

  VEIGA, José J. A hora dos ruminantes. 28 ed, Rio de Janeiro: Bertrand, 1993.




                                                                                          383

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Edvaldo A. bergamo

  • 1. Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP ISBN: 978-85-60667-69-7 LITERATURA E AUTORITARISMO: JOSÉ J. VEIGA E LÍDIA JORGE Edvaldo A. Bergamo – UnB O romance de ênfase social em língua portuguesa da segunda metade do século XX focaliza momentos históricos decisivos do período: a ditadura militar no Brasil, a ditadura salazarista em Portugal e o ultra-colonialismo lusitano em África. A configuração romanesca mira tais acontecimentos com o objetivo de representar o processo de desagregação social orquestrado por regimes autoritários caracterizados pela violência e pela repressão. [...] o autoritarismo consiste em uma caracterização de um regime político em que existe um controle da sociedade por parte do Estado, que manipula as formas de participação política e restringe a possibilidade de mobilização social; existe interesse político na cooptação dos intelectuais; a administração pública é apresentada como um bem em si mesmo, ao servir ao interesse do Estado; o setor militar desempenha um papel decisivo na manutenção da ordem. Nas formas extremas, como o totalitarismo, o regime autoritário institui um partido único e reprime com rigor manifestações de contrariedade. (...) O fato de o Estado agir de maneira a controlar as ações individuais, restringir as possibilidades de mudança social, sustentar códigos e valores com os quais a população é obrigada a pautar sua existência, e manipular a difusão de ideologias em favor da conservação do poder das elites, estabelece uma condição restritiva de existência. O problema da reificação, desenvolvida dentro do capitalismo industrial, é levado a dimensões novas, agravadas pela ameaça de destruição coletiva. (GINZBURG & UMBACH, 2000 p. 238). No tocante a uma literatura de intervenção social, oriunda de uma conjuntura que concerta literatura, história e política, o grande momento é a década de 1930, na qual notoriamente o empenho ideológico tomou um grande vulto nas manifestações artísticas de língua portuguesa. O engajamento literário tornou-se um fenômeno supranacional nos países de língua portuguesa, atuando em favor das reivindicações sociais vigentes, através de uma perspectiva que conciliava literatura e 373
  • 2. Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP ISBN: 978-85-60667-69-7 vida social. Nesse sentido, é compreensível a atmosfera artístico-ideológica que aproxima brasileiros e portugueses. O interesse pela representação das tensões sociais em voga é a tônica dessa literatura, definida por meio de um alargamento de perspectivas, principalmente na tentativa de retratar o quadro geral de uma sociedade em transformação. Ao aproveitar o legado do realismo crítico proveniente do século XIX, as literaturas de língua portuguesa reinterpretaram esse realismo sob a ótica dos novos conflitos sociais e agravados, ainda mais, em países periféricos como Brasil e Portugal, que sofriam com regimes autoritários severos. Autoproclamando-se militantes, os autores lutavam pelos seus ideais utópicos, procurando afirmar literariamente suas convicções com reflexos inclusive na reformulação do projeto de uma identidade nacional desapegado de idealismo ingênuo. Nos textos engajados do período, percebe-se o peso da ideologia dos escritores, uma vez que eram intelectuais conscientes de sua missão como intérpretes da realidade observada em sentido histórico, político e social. Dessa forma, há um imaginário político comum para enfrentar os dilemas em voga, transformados em matéria ficcional intensamente explorada nas narrativas de tendência social, tanto no Brasil como em Portugal, revelando um profícuo diálogo literário entre as duas margens do Atlântico, graças à força desmistificadora desse projeto romanesco. A hipótese ventilada aqui é que o escopo artístico dos anos 30 do século XX de revalorização do realismo e de aprofundamento da questão social deixou marcas que foram aproveitadas e/ou reformuladas por tendências literárias posteriores. Na segunda metade do século XX, certamente, o desenvolvimento cultural abriu novas fronteiras de exploração e novas trilhas de expansão para a literatura e a arte em geral. O romance, nessa nova conjuntura, continua sendo um dos principais gêneros literários da atualidade, revigorado por aspectos diversos. No plano temático, aparecem com destaque a reavaliação da História, a representação das minorias raciais e sexuais e o enfoque nos problemas dos povos pós-coloniais. No plano formal, preponderam as estratégias narrativas que utilizam como recursos dominantes a intertextualidade, a auto-referencialidade e a auto-reflexividade. Diante da diversidade vigorosa do gênero romanesco e da existência de inúmeros problemas concernentes à realidade histórica da segunda metade do século XX, é precipitado sugerir o esgotamento do projeto estético-ideológico de uma literatura de ênfase social. Seria mais produtivo, em termos críticos, cogitar em um possível desdobramento e em uma reformulação de um empreendimento artístico herdado da 374
  • 3. Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP ISBN: 978-85-60667-69-7 década de 1930, atendendo a demandas prementes da segunda metade do século XX, marcada contextualmente pela continuidade da ditadura salazarista em Portugal e por um novo ciclo ditatorial no Brasil. Entre as literaturas de língua portuguesa, nas quais, muitas vezes, literatura e autoritarismo caminharam obrigatoriamente juntos por força de obras que retratam uma conjuntura politicamente tirânica e por acontecimentos marcantes que incitam a literatura à preocupação social, o procedimento comparativo possibilita o reconhecimento dos parâmetros estéticos e ideológicos que dão o contorno das tendências que movimentam os vários sistemas literários, pautados pela unidade e pela diversidade, num dinamismo demarcado pelo diálogo intertextual constante. No âmbito dos estudos comparados de literaturas de língua portuguesa, a aproximação crítica dos romances A hora dos ruminantes (1966), do brasileiro José J. Veiga (1915-1999), e O dia dos prodígios (1980), da portuguesa Lídia Jorge (1946), que representam alegoricamente contextos autoritários, pode revelar-se pertinente no tocante a obras comprometidas com a denúncia de conjunturas opressivas, inspirada em um cenário histórico caracterizado por ditaduras virulentas. Ao analisar as literaturas de ênfase social em língua portuguesa no século XX, através de uma ótica comparativa, Benjamin Abdala Júnior (1989) chegou ao conceito de macrossistema, a partir do estabelecimento de certos parâmetros estético- ideológicos que embasam tais literaturas. No cerne do enfoque comparativo está a verificação da convergência/divergência de procedimentos artísticos adotados para o tratamento do fenômeno literário, visando a uma nítida preocupação social, uma vez que tais estratégias podem ser reconhecidas supranacionalmente através de um ângulo crítico que entende essas literaturas conjuntamente. São modos de trabalho, cuja demonstração analítica leva-nos a perceber que ultrapassam as variantes nacionais, impulsionando-se o sentido de empenho político e de denúncia social dessas literaturas, sem, contudo, esquecer as diferenças nacionais, já que a identidade/alteridade sócio- cultural de cada nação que integra a comunidade dos países de língua portuguesa é uma categoria importante a ser levada em consideração no discurso crítico. É dentro dessa perspectiva dialética que analisaremos as literaturas engajadas dos países de língua oficial portuguesa - as formas de apropriações ideológicas dessas tendências militantes. Essa articulações, como iremos ver, apresentam modos de trabalho supranacionais e - a par da alteridade (individual/coletivo) - são motivadas por critérios de confluências para o macrossistema literário, paralelo ao da língua portuguesa, constituído por 375
  • 4. Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP ISBN: 978-85-60667-69-7 países de grandes convergências histórico-culturais. Na tensão macrocontextual da produção engajada em português - entre a unidade e a diversidade de cada literatura nacional - procuraremos discutir questões relativas a estratégias que contribuam para definir bases político-culturais para um diálogo mais amplo entre nossos povos (ABDALA JR, 1989, p. 12). No tocante a uma literatura de ênfase social em língua portuguesa, especificamente da segunda metade do século XX, temos o romance A hora dos ruminantes, de José J. Veiga, que retrata, centralmente, a situação de opressão que se instala em um pacato lugarejo interiorano chamado Manarairema. A obra está dividida em três partes que dizem respeito às três invasões que atormentam a vida dos moradores da pequena cidade: “A chegada”, “O dia dos cachorros” e “O dia dos bois”. Na primeira parte da narrativa, um grupo de homens misteriosos instala um acampamento, sem prévio conhecimento ou permissão dos moradores, num terreno do outro lado do rio que margeia a cidade. Tratava-se da invasão de um grupo de pessoas desconhecidas que gradativamente interfere, manipula e altera a rotina do lugarejo. Forasteiros que estranhamente vão afetando a vida dos moradores com ações que geram violência e sofrimento, mas que, ao se tornarem freqüentes, são naturalizadas “maiakovskimente” no cotidiano, apesar de algumas resistências pontuais, logo submetidas a uma nova ordem arbitrária. À invasão da pequena cidade pelos misteriosos “homens da tapera”, inarredáveis durante toda a narrativa, seguem as incursões sazonais de certos grupos de animais: cachorros e bois. Surgem e desaparecem sem qualquer explicação plausível para os habitantes. Na segunda parte da obra, cachorros, nada dóceis, ocupam a cidade, afrontando os moradores. Passado o susto inicial, os cães começam a ser reverenciados pelo povoado, numa atitude que exprime submissão e indiferença diante de uma forma de opressão desconhecida, caracterizada por uma hostilidade silenciosa e persistente. Tão rápido como chegaram os cachorros, também deixaram o povoado sem qualquer explicação ou motivação. Na terceira parte da narrativa, destaca-se a chegada inesperada de bois, que tomam conta de todos os espaços da cidadezinha. Proporcional ao tamanho dos bovinos, a sensação de opressão aumenta, enclausurando as pessoas em suas casas, o que instiga o sentimento de angústia que arrebata a população do lugarejo. 376
  • 5. Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP ISBN: 978-85-60667-69-7 Ao final do romance, com o desaparecimento misterioso dos agentes de opressão e sofrimento, a cidade de Manairema retoma a sua rotina, modificada e amadurecida pelos episódios recentes de dominação inexplicável e violência gratuita. Já no romance português O dia dos prodígios é narrado um episódio aparentemente insólito que afeta a vida de todos os habitantes de um lugarejo, no Algarve, denominado Vilamaninhos. Entre acontecimentos reais e imaginários, o ambiente pacato do povoado é perturbado por um evento inusitado: o aparecimento de uma cobra voadora, cena narrativa que funciona como uma peça-chave do relato e mote aglutinador dos fragmentos narrativos focados em determinados habitantes da cidadezinha, notadamente do sexo feminino. De modo geral, o destaque está no retrato do marasmo e do despreparo de uma pequena aldeia algarvia para as alterações radicais vindouras. O recurso à multiplicidade de vozes em perspectiva engendra uma narrativa configurada como um mosaico de pequenos relatos acerca da vida de personagens oprimidas, cujos pontos de vista são valorizados no andamento do relato, no que toca à interferência do episódio da cobra voadora no mundo apagado de indivíduos silenciados pela violência, pela loucura, pelo preconceito, pela intolerância, pelo abandono. A cena inusitada da cobra voadora, cuja ambigüidade do fenômeno não deixa indiferentes os habitantes do lugarejo, é o evento que mobiliza a intriga/fábula, construída fragmentariamente com base em seres relegados que têm suas vidas transformadas pelo insólito acontecimento, com destaque, vale ressaltar, para o elemento feminino, marginalizado historicamente, como agente catalisador das mudanças que abalam os moradores de uma cidadezinha afastada dos centros de decisão política e econômica e desconhecedora dos movimentos subterrâneos que preparavam a abrupta transformação da ordem social e política com um golpe de estado que derrubaria uma ditadura de muitas décadas. A grande metáfora do romance é a da eterna espera de um povo que, ilhado em sua insignificância, já não percebe ou compreende os sinais preconizadores de mudança, quando de fato aparecem. Ironicamente, o romance dá destaque a um coletivo que aguarda e não reconhece os verdadeiros acontecimentos prodigiosos. A demora por um milagre sempre desejado metamorfoseia-se em descrença e desconfiança para uma gente que cansou de ter esperança e acredita mais numa cobra que voa do que em movimentos revolucionários. 377
  • 6. Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP ISBN: 978-85-60667-69-7 Nos romances em questão, a construção das personagens e a representação do espaço narrativo apresentam uma inegável conotação estético-ideológica que orienta o andamento da narrativa e direciona a visão de mundo oferecida pelo relato. Para Antonio Candido (1974), o estatuto da personagem depende tanto da visão aristotélica do problema quanto da perspectiva semiológica, ou seja, da relação da personagem com outros elementos composicionais do texto. A sua fisionomia humana e psicológica não basta para explicá-la, porque é preciso considerá-la igualmente como componente preponderante num mundo ficcional que leva em consideração fatores de ordem artística, isto é, a personagem é um elemento integrante de uma estrutura passível de ser descrita, concebida com técnica poética, visando à apreciação estética. Todavia, a sua desvinculação do sentido de vida e de humanidade que carrega é desprestigiar a carga antropomórfica que representa, sendo este aspecto o que torna possível sua relação com a realidade externa à obra, dando oportunidade ao leitor de identificar-se com a carga de humanismo distribuída na obra. As personagens em A hora dos ruminantes podem ser divididas em dois grandes grupos: opressores e oprimidos. Os homens da tapera caracterizados pela arrogância e soberba e os moradores do lugarejo marcados pelo sofrimento causado pelos desmandos dos estranhos estrangeiros. As personagens mais representativas nessa condição, da referida obra, são Geminiano, Amâncio e Manuel Florência, típicos interioranos que são misteriosamente subjugados em suas convicções morais, ao aceitarem a submissão, mantendo-se sob o controle dos homens da tapera. Geminiano cede e passa a prestar serviço de carroceiro aos forasteiros, Amâncio torna-se prestativo em seu armazém e Manuel Florêncio, depois de muita resistência, também começa a trabalhar como carpinteiro para os estranhos homens do acampamento. Apenas um trecho da obra já é bastante ilustrativo: Geminiano subiu vagaroso na carroça, sentou-se e ficou pensando. Os olhos parados na garupa do Serrote nem piscavam. Minutos depois Manuel chegou à janela para olhar o tempo, Geminiano estava na mesma posição. Vendo-o ali sem rumo e sem ação, Manuel pensou no Geminiano antigo tão senhor de si, correto, respeitador dos direitos alheios. Que força teria conseguido transformar aquele homem inteiriço nesse inútil feixe de medos? Olhando para cima, para baixo, para as casas em frente, Manuel sentiu que não estava vendo o largo familiar mas um trecho de outra cidade, remota, inóspita, maligna. Manairarema estaria se acabando, se perdendo para sempre? Se estava, valeria a pena continuar vivendo ali? Não seria melhor vender a casa, juntar as ferramentas num caixote e sair estrada fora, trabalhando de fazenda em fazenda nos serviços que aparecessem? (VEIGA, 1993, p. 44) 378
  • 7. Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP ISBN: 978-85-60667-69-7 Em O dia dos prodígios, destacam-se as oprimidas personagens femininas como agentes que, na dianteira, ativam os sinais de mudanças que interferem na vida cotidiana de um vilarejo esquecido. As personagens com maior desenvoltura na trama são as duas Carminhas (Carminha Rosa e Carminha Parda), Jesuína Palha, Esperança Teresa e Branca Volante. As Carminhas estão reclusas dentro da sua própria casa para se defenderem da hostilidade moral do vilarejo, Jesuína Palha é a anunciadora do espetáculo miraculoso da cobra voadora e uma espécie de matriarca defensora de uma moral rígida, Esperança Teresa é a vítima exemplar de um casamento infeliz e Branca Volante, oprimida igualmente por um casamento brutal, desenvolve o dom da clarividência que possibilita o exercício da auto-consciência como encorajamento à mudança. Novamente, apenas um exemplo é suficiente: Ainda ontem Pássaro procurava a mulher na cama, e ela vá de fazer de morta. Então ele de levantar a mão para lhe chimpar a cara. Porque com as bestas, um homem dá aveia e elas comem, mas se lhes der só palha acabam por come-la e ainda por suspirar pelo dono quando lhe pressentem os passos. Suspiram e regougam. Não guardam rancor. Às vezes dá-se-lhe na pele, e elas apenas encolhem o lombo. Quanto muito um pinote. Voltando a dar cevada e aveia, elas riem logo a um homem. De orelha estendida. Menos a mula Menina, que se foi. Mas com as pessoas é diferente. Porque cada bocadinho que lhes tires uma vez, nem mais por isso, as poderás compensar. Embora as pessoas possam disfarçar as mágoas (JORGE, 1980, p. 107) Em consonância com outros aspectos da narrativa, a configuração do espaço, nos mencionados romances, nos moldes teóricos sugeridos por Osman Lins (1976), apresenta uma incontornável conotação ideológica que indicia enclausuramento, exclusão e opressão. Dentre os elementos constitutivos da narrativa de ficção, o espaço ocupa posição de destaque, pois cabe a ele situar a ação narrada, bem como contribuir para a caracterização do meio em que circula a personagem, vindo ou não a influenciá- la. Notadamente, o espaço assume importância capital numa obra de vocação realista, pois representa as virtualidades do contexto sócio-cultural em foco, ganhando papel destacado no desenho narrativo dos conflitos vividos pelas personagens, cujas idiossincrasias estão em estreita correlação com as implicações determinadas a partir do espaço representado. O espaço em A hora dos ruminantes caracteriza-se principalmente pela reprodução dicotômica de dois cenários opositivos demarcados pela existência de um rio que separa dois territórios: de um lado os homens da tapera, num acampamento misterioso, improvisado e inacessível, de outro, os moradores do vilarejo, enclausurados 379
  • 8. Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP ISBN: 978-85-60667-69-7 em suas casas, praças e ruas, pois estão cerceados em sua liberdade de ir e vir pelos estranhos estrangeiros que transformam a localidade urbana em uma espécie de prisão domiciliar. A pequena cidade é sitiada pelos forasteiros que a transformam num ambiente hostil, cujo clima persecutório aflige a todos do povoado. Estão todos rendidos pela nova conjuntura de poder e quem esboça qualquer reação é punido ou banido da “urbe sertaneja”. Vejamos: No dia seguinte a cidade amanheceu ainda sem toucinho, mas com uma novidade: um grande acampamento fumegando e pulsando do outro lado do rio, coisa repentina, de se esfregar os olhos. As pessoas acordavam, chegavam à janela para olhar o tempo antes de lavar o rosto e davam com a cena nova (VEIGA, 1993, p. 4). Fechadas em casa, abanando-se contra a fumaça, enervadas com os latidos, as pessoas tapavam os ouvidos, pensavam e não conseguiam compreender aquela inversão da ordem, a cidade entregue a cachorros e a gente encolhida no escuro, sem saber o que aconteceria a seguir (VEIGA, 1993, p. 35). Vivendo como prisioneiros em suas próprias casas as pessoas olhavam suas roupas nos cabides, os sapatos debaixo das camas e suspiravam pensando se voltaria ainda o dia de poderem usar aquilo tudo novamente (VEIGA, 1993, p. 88). Em O dia dos prodígios, o espaço principal é a praça da pequena cidade, onde acontece grande parte das ações diretamente vinculadas ao episódio insólito propulsor da narrativa, a visão/testemunho da cobra voadora, e as conseqüentes especulações que envolvem as demais personagens acerca da veracidade e dos improváveis desdobramentos do fato. O cenário urbano, caracterizado pelo esquecimento e abandono a que estão submetidos seus habitantes, denota um contexto de alienação que simboliza no plano do microcosmo um ambiente social segregado e distanciado da realidade nacional, representando esta um macrocosmo conturbado por uma ditadura esclerosada. A seguir os fragmentos: Em Vilamaninhos as pessoas já não podem encarar o nascer do dia como antes, porque suspeitam que há um ser desconhecido entre as casas. Tanto pode estar a apodrecer dentro do poço, como a reproduzir-se em cima de uma varanda. Ou nos escombros dos muros. Assim, quando sobem as ruas sozinhas, batem os calcanhares, como nunca haviam batido, para afugentar o medo. Se carregam as compras, acompanhadas, falam baixinho segredos de orelha a orelha (JORGE, 1980, p. 37). Na verdade, a pleno meio da estrada avançava um carro singular, porque vinha pejado de soldados garbosos e épicos, penetrando já pelo centro de Vilamaninhos com bandeiras e flores. E cantavam por um altifalante como se 380
  • 9. Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP ISBN: 978-85-60667-69-7 viessem munidos de uma poderosa orquestra. Agora já o espetáculo era tão real e tão bonito que todos. Esquecidos desses primeiros segundos de pasmo e confusão. Sentiram estar suspenso o toque, o canto e a audição desde há muito. Para só ouvirem e verem aquilo que chegava em cima dum carro aberto e blindado. Todos tinham a certeza que desde o tempo dos reis nunca mais se vira de igual (JORGE, 1980, p. 152-153). Assim, A hora dos ruminantes e O dia dos prodígios encenam, num ambiente de hinterlândia, os impasses de uma ordem social sufocante que aprisiona e cerceia a liberdade de indivíduos caracterizados pela segregação e alienação. O espaço da pequena cidade enclausura seres marcados por uma violência, muitas vezes simbólica, mas que alegoriza no pequeno mundo de um lugarejo distante, perdido e esquecido no tempo, um vasto mundo que pode representar uma nação inteira oprimida por um regime autoritário implacável. José J. Veiga imagina uma invasão extraordinária caracterizada por acontecimentos absurdos que transtornam o cotidiano de um povoado pacato que, em decorrência de muito sofrimento e opressão, recupera a liberdade, depois de conhecer o alto preço dessa perda. Já Lídia Jorge concentra-se no episódio fantástico de uma cobra voadora que abala a monotonia de uma pequena comunidade algarvia, predispondo pessoas, até ali acomodadas à rotina de opressão e exclusão, ao desejo de mudança, mais interior que exterior, numa evidente correlação com o episódio histórico da Revolução dos Cravos de 25 de abril de 1974, um acontecimento que propiciou transformações decisivas na sociedade lusitana com desdobramentos perceptíveis ainda na atualidade. Como ato de resistência, a escrita dos referidos romances indiciam certos impasses de nações sufocadas por regimes políticos truculentos. J. J. Veiga parece insurgir contra uma nova onda autoritária que toma conta do nosso país em conluio com um processo de modernização capitalista que atropela e massacra os despreparados para fazer parte de uma incipiente ordem política, econômica e social dominadora. Lídia Jorge retrata a procura desinteressada versus a euforia enganosa referente a um tempo de mudança profunda, após uma época histórica de letargia inibidora, assinalando-se o desencontro entre o anseio e a efetiva transformação, entre a promessa e a concretização do gesto, de maneira a sublinhar a distância reconhecidamente enorme entre a liberdade vislumbrada em tempo de abertura e a dificuldade de ativação dos meios eficazes de ação transformadora. 381
  • 10. Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP ISBN: 978-85-60667-69-7 O romance de Veiga pertence a uma tendência da literatura brasileira denominada por Antonio Candido como “literatura do contra”: Contra a escrita elegante, antigo ideal castiço do País; contra a convenção realista, baseada na verossimilhança e o seu pressuposto de uma escolha dirigida pela convenção cultural; contra a lógica narrativa, isto é, a concatenação graduada das partes pela técnica da dosagem dos efeitos; finalmente contra a ordem social, sem que com isso os textos manifestem uma posição política determinada (embora a autor possa tê-la). Talvez esteja aí mais um traço dessa literatura recente: a negação implícita sem afirmação explícita da ideologia (CANDIDO, 1989, p. 212). Já o romance de Lídia Jorge faz parte de uma nova conjuntura da ficção portuguesa pós-25 de abril, descrita assim por Carlos Reis: Em termos mais específicos (e ainda assim inevitavelmente sintéticos) deve dizer-se que a Revolução de 25 de abril de 1974 pôs termo a um tempo político e cultural algo incaracterístico. Esse tempo vem a ser a etapa final e a vários títulos agônica de um regime ditatorial, repressivo e isolacionista, com tudo o que isso significou de limitação à livre expressão do pensamento e das práticas artísticas e com os efeitos que em parte observamos em relação ao Neo-realismo e a movimentos literários afins. Por outro lado, a abertura política trouxe consigo conseqüências diversas, quase sempre constituindo um potencial de tematização literária que a ficção muitas vezes acolheu: a liberdade de expressão e a descolonização permitiram rever ficcionalmente os dramas individuais e coletivos da guerra colonial; paralelamente foi tomando corpo uma cada vez mais evidente consciência post-colonial; do mesmo modo, o redesenho das fronteiras nacionais estimulou uma reflexão identitária (incluindo-se nela a velha questão da relação com a Europa) a que a literatura, naturalmente, não ficou alheia (REIS, 2005, p. 287). Pela configuração dos contextos históricos e culturais mencionados acima, ambos os romances em questão representam alegoricamente movimentos totalitários em etapas opostas de instalação: o início de um tempo de obscurantismo em A hora dos ruminantes e o vislumbre irônico de uma abertura política recente em O dia dos prodígios. Desse modo, ao construir personagens que circulam por espaços que conotam uma reiterada atmosfera de cerceamento, A hora dos ruminantes e O dia dos prodígios repercutem a atmosfera de intenso autoritarismo que a literatura de ênfase social em língua portuguesa condenou de forma recorrente, ao longo do século XX, numa representação contundente de regimes de força que tomaram conta da conjuntura social brasileiro e português durante boa parte da referida centúria, com especial 382
  • 11. Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP ISBN: 978-85-60667-69-7 atenção, no caso dos romances em tela, à ditadura reincidente no Brasil, o Golpe Militar de 1964, e à ditadura renitente em Portugal, o regime salazarista que durou até 1974. REFERÊNCIAS ABDALA JR., Benjamin. Literatura, história e política. São Paulo: Ática, 1989. CANDIDO, Antonio. A nova narrativa. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987. _____ e outros. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1974. GINZBURG, Jaime; UMBACH, Rosani Ketzer. Literatura e autoritarismo. In: COSSON, Rildo (Org.). 2000 palavras: as vozes das Letras. Pelotas, RS: PPG-Letras, UFPel, 2000. JORGE, Lídia. O dia dos prodígios. Lisboa: Europa-América, 1980. LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976. REIS, Carlos. História crítica da literatura portuguesa. Do neo-realismo ao post- modernismo. Lisboa: Verbo, 2005. Vol. IX. VEIGA, José J. A hora dos ruminantes. 28 ed, Rio de Janeiro: Bertrand, 1993. 383