Este capítulo discute o ensino de história nas décadas de 1970 e 1980 no Brasil, período da ditadura militar. O regime ditatorial controlou ideologicamente a disciplina histórica para legitimar o golpe de 1964 e formar cidadãos obedientes. A disciplina Educação Moral e Cívica foi introduzida para inculcar valores conservadores. A história ensinada enfatizava fatos políticos e valorizava os dirigentes como modelos a serem seguidos, sem estimular o pensamento crítico. Havia uma lacuna entre a hist
REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DE HISTÓRIA: DA DITADURA MILITAR AO LIVRO DIDÁTICO DA CIDADE DE CASCAVEL
1. UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ
ESPECIALIZAÇÃO EM FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO
REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DE HISTÓRIA:
DA DITADURA MILITAR AO LIVRO DIDÁTICO DA CIDADE
DE CASCAVEL
AMILTON BENEDITO PELETTI
CASCAVEL
2007
2. AMILTON BENEDITO PELETTI
REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DE HISTÓRIA:
DA DITADURA MILITAR AO LIVRO DIDÁTICO DA CIDADE
DE CASCAVEL
Monografia apresentada como requisito
parcial para obtenção do grau de Especialista
no Curso de Pós-Graduação “latu sensu”
Fundamentos da Educação, do Colegiado de
Pedagogia, Campus de Cascavel, da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná,
sob orientação do Professor Dr. Alexandre
Felipe Fiuza.
CASCAVEL
2007
3. AMILTON BENEDITO PELETTI
REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DE HISTÓRIA:
DA DITADURA MILITAR AO LIVRO DIDÁTICO DA CIDADE
DE CASCAVEL
Monografia aprovada como requisito parcial
para obtenção do grau de Especialista no
Curso de Pós-Graduação “latu sensu”
Fundamentos da Educação, do Colegiado de
Pedagogia, Campus de Cascavel, da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná,
pela seguinte banca examinadora:
_____________________________________
Prof. Dr. Alexandre Felipe Fiuza (Orientador)
_____________________________________
Profª. Drª. Geni Rosa Duarte
_____________________________________
Profª. Ms. Maria Inalva Galtter
CASCAVEL
2007
4. AGRADECIMENTOS
Em especial à minha família pela
compreensão por tantas ausências e também o
Prof. Dr. Alexandre Felipe Fiuza pela
contribuição incisiva na realização deste
trabalho.
5. RESUMO
Este trabalho monográfico aborda a questão do Ensino de História, elencando os
vários fatores ou determinações que acabam por influenciar a maneira pela qual a história é
ensinada nas escolas.
Ao elaborar este trabalho nos detemos, principalmente, em fazer um resgato histórico
do ensino de história desde a década de 1970, onde este teve uma forte influência do Estado
brasileiro com o objetivo de legitimar a ditadura militar instaurada com o golpe de 1964.
Além disso, abordamos questões atuais, como por exemplo, a relação entre o ensino
de história e o livro didático, tomando como referência parte da bibliografia referente ao
assunto e, também, analisando o livro utilizado nas escolas públicas municipais de Cascavel
para trabalhar a história local.
Portanto, refletir sobre o ensino de história pode nos ajudar a buscar novas formas de
ação na sala de aula, com o intuito de contribuir na formação de sujeitos capazes de
compreender e pensar historicamente.
6. SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 6
O ENSINO DE HISTÓRIA NAS DÉCADAS DE 1970 E 1980 ............................................. 7
ENSINO DE HISTÓRIA: ALGUNS APONTAMENTOS .................................................... 22
LIVRO DIDÁTICO E O ENSINO DE HISTÓRIA ............................................................... 30
O ENSINO DE HISTÓRIA LOCAL NO MUNICÍPIO DE CASCAVEL ............................ 38
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................. 51
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................... 53
7. 6
INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho monográfico é sistematizar algumas reflexões acerca do
ensino de história, abordando: em particular o ensino de história nas décadas de 1970 e 1980,
o ensino de história na atualidade, a relação entre o ensino de história e o livro didático e, por
fim, uma breve discussão sobre o ensino de história local no município de Cascavel.
No primeiro capítulo procuramos discutir e entender as implicações do regime
militar (1964-1985) para o ensino de história. Nesse período, destaca-se como o Estado
interferiu na história ensinada, controlando ideologicamente a formação dos jovens, o que por
sua vez também provocou reações de grupos de historiadores no sentido de romper com essa
lógica.
No segundo capítulo asseveramos sobre a necessidade de se romper com a história
factual, descritiva, ou seja, com valorização dos “grandes” homens, da biografia de heróis,
direcionando o foco da disciplina para as lutas e conflitos sociais. Desta maneira, despertando
os alunos para a importância da reflexão e da memória histórica por meio da história
ensinada, para que possam estar compreendendo e pensando historicamente.
Após esta breve análise sobre o ensino de história e dessa discussão teórica acerca do
tema, no terceiro capítulo – livro didático e o ensino de história – ressaltamos a condição de
mercadoria desse produto e as várias determinações – políticas, econômicas, ideológicas –
que fazem com que o livro didático continue sendo o material mais utilizado nas aulas de
história, bem como para a necessidade de o professor romper com isso, fazendo uso de
diversos outros materiais em suas aulas.
No quarto e último capítulo – o ensino de história local no município de Cascavel -,
nos propomos a discutir o ensino de história local e analisar o livro “Conhecendo Cascavel”
que é o livro-texto utilizado nas escolas municipais de Cascavel para trabalhar a história do
município. Neste capítulo procuramos apontar o que propõe o Currículo Básico para a Escola
Pública do Paraná no que diz respeito ao estudo do município na terceira série do Ensino
Fundamental e, além disso, refletir até que ponto o livro utilizado contribui para o
rompimento da história tradicional, tão criticada nas últimas décadas.
Por fim, destacamos que na realização deste trabalho utilizamos uma significativa
gama de autores, os quais foram citados, parafraseados ou interpretados. Esperamos que essa
reflexão possa instigar novas discussões e, conseqüentemente, novas práticas no que se refere
ao ensino de história nas escolas.
8. 7
O ENSINO DE HISTÓRIA NAS DÉCADAS DE 1970 E 1980
O regime ditatorial (1964-1985) foi um período marcado pela repressão aos
movimentos populares por meio de intervenções policiais, prisões dos líderes sindicais,
censuras, cassações de direitos políticos, exílios, torturas e a concentração de poder,
justificando o Golpe em nome de um ideal positivista de progresso, já que essa era uma das
palavras de ordem.
Com tanto autoritarismo a sociedade reagiu por meio do teatro, do cinema, da
música, do movimento estudantil, da guerrilha, do movimento sindical, entre outros. Essas
mobilizações somadas a outros fatores como a crise econômica e o desgaste dos militares no
poder culminou com o movimento denominado “Diretas Já”, sendo que em 15 de janeiro de
1985 foi eleito um presidente por meio de eleições indiretas.
O período ditatorial é abordado nesta monografia, principalmente, por meio da
análise dos objetivos da disciplina Educação Moral e Cívica, com o intuito de identificar até
que ponto o Regime Militar (1964-1985) rompeu com a história que vinha sendo ensinada.
Segundo Nadai (1992/3) “Faz-se necessário registrar sua relevância como esclarecedores
dessa temática, por denotarem o grau de confiança, de poder atribuído ao ensino de História,
embora sua nomenclatura seja retirada oficialmente dos currículos1”. Aparentemente a
disciplina de Educação Moral e Cívica representa uma ruptura com a forma da disciplina e
com os conteúdos anteriormente ensinados pela história. No entanto não é o que se constata,
pois com a ditadura militar se intensificou o controle sobre os seus conteúdos que tornaram-se
ainda mais “carregados” de forte carga ideológica, caracterizando-se por estimular a formação
de um sujeito pacífico, moralmente correto, patriota.
O controle sobre a disciplina histórica relacionou-se, sobretudo à ideologia
implantada com o golpe de 1964, quando o ensino foi colocado a serviço do
regime ditatorial que propugnava a formação de cidadãos dóceis, obedientes
e ordeiros: De um lado, ter-se-ia dado “o esvaziamento do seu sentido crítico
e contestador” e, de outro, manifestado o seu caráter de “instrumento de
veiculação e formação do espírito cívico, entendido como aquele capaz de
glorificar os feitos dos autoproclamados heróis do dia” (NADAI, 1992/3, p.
158).
1
Para completar, negou-se à História o estatuto de disciplina autônoma, chegando a desaparecer do currículo da escola
fundamental (a partir de então, chamada de primeiro grau, com oito anos de duração) com a introdução dos Estudos Sociais.
Ficou relegada à ínfima carga horária e somente obrigatória em uma única série do segundo grau (NADAI, 1992/3. pp.
157/8).
9. 8
De acordo com Rodrigues (2004), o espírito cívico imposto pelo Decreto-Lei n. 869,
de 12 de setembro de 1969, visava à inclusão de Moral e Cívica como disciplina obrigatória
nas escolas de todos os graus e modalidades dos sistemas de ensino no País. A intenção era
inserir suas finalidades em todas as atividades escolares, inclusive no que diz respeito ao
desenvolvimento dos atos cívicos, então valorizados na prática educativa. As relações entre os
valores humanos considerados superiores e a educação permitiriam que os cidadãos fossem
integrados na sociedade, dela participantes como se fossem produtos culturais, como
ilustrações no culto à nação, na identificação com a família e na dignidade do trabalho.
O propósito da inclusão da Educação Moral e Cívica seria, sinteticamente, a
incorporação dos ideais do pensamento conservador à sociedade, perpassando gerações, e isto
deveria realizar-se como o próprio saber. A finalidade desta disciplina era, na perspectiva do
regime de preparar o homem para a vida, e, sobretudo formar o cidadão para a sociedade, de
acordo com as proposições do decreto que a criou (RODRIGUES, 2004).
Para Zamboni (1998), fundamentados no Positivismo2, os programas de história
enfatizaram a história dos fatos políticos, o Estado foi valorizado como gestor e controlador
da nação e seus dirigentes eram os sujeitos que a juventude deveria ter como modelo. O
discurso histórico, além de ser enciclopédico e elaborado com a idéia de progresso, deveria
dar visibilidade à nação, que estava em processo de construção, e os seus articuladores
políticos constituiriam os sujeitos históricos. Portanto, a história como disciplina escolar era o
lugar privilegiado para se trabalhar a moral e a ética como valores universais, constituindo
una pedagogia da nação. Estes princípios condicionaram a escolha de conteúdos a serem
ensinados e as metodologias a serem trabalhadas. Destarte a história tornou-se o sinônimo da
nação e da civilização.
De acordo com Fonseca (1994, p. 11), há uma lacuna existente entre a História
discutida na universidade e aquela ensinada nas escolas na década de 1970, onde certos temas
privilegiados no meio acadêmico não eram abordados nos currículos e livros didáticos
destinados aos antigos 1° e 2° graus. Isso, segundo a autora, fazia com que pais, alunos e
professores encarassem a história apenas como o estudo do passado de heróis e grandes
homens, onde o conteúdo dessa disciplina tornava-se estranho à vida deles. Portanto, uma
história única e pronta para ser transmitida, favorecendo assim a legitimação dos dominantes.
Isso deve-se em grande parte a tradição positivista onde a História é definida como o estudo
2
A periodização usada e a abordagem do conteúdo conduzem à uma concepção de história da qual sobressai a grande
influência do positivismo. O conceito de fato histórico, a neutralidade e objetividade do historiador/professor ao tratar o
social, o papel do herói na construção da Pátria, a utilização do método positivo permearam tanto o ensino quanto a produção
histórica (NADAI, 1992/3, p. 152).
10. 9
do passado, sem conexões com o presente, mas também ao processo de desqualificação e
requalificação dos profissionais da educação sob investimento do Estado, que é o norteador da
política educacional.
Conforme Fonseca (1994, p. 27), nestes cursos, começa a ser formada a nova geração
de professores polivalentes e, neles, o principal objetivo é a descaracterização das Ciências
Humanas como campo de saberes autônomos, pois são transfiguradas como um mosaico de
conhecimentos gerais e superficiais da realidade social.
Durante a ditadura militar foi aprovada pelo Congresso Nacional uma nova Lei de
Diretrizes e Bases da Educação, Lei 5.692/713, que modificou o sistema escolar, criando três
áreas de conhecimento interdependentes: Comunicação e Expressão, Estudos Sociais e Artes
e Comunicação, e o ensino fundamental obrigatório passou de quatro para oito anos. Contudo,
conforme Zamboni (2003), o Estado atendeu as necessidades da população urbana,
aparentemente a escola se democratizou, mas não se conseguiu equilibrar o binômio
qualidade/quantidade, isto é, ter um ensino de qualidade com um maior número de alunos e
que possuíam marcantes diferenças culturais e sociais, bem como, não se conseguiu pensar na
heterogeneidade cultural e social do povo brasileiro. A escola passou a ter um novo perfil
social e cultural, foi reduzida a carga horária das disciplinas história/geografia e foram
inseridas no currículo as disciplinas de Educação Moral e Cívica (EMC) e Organização Social
e Política do Brasil (OSPB), portadoras de forte carga ideológica. Os objetivos centrais foram
a formação da “cidadania”, concebida como a formação do "bom cidadão", e da identidade
nacional pela via da análise do seu processo de formação política. Nesse período foi intensa a
propaganda imagética de caráter nacionalista, financiada por grandes empresas particulares, e
que se apresentava como se fosse de caráter oficial4. Era uma propaganda de natureza política
que apelava para o sentimento de identidade e cultura nacionais e tinha um caráter
nacionalista, desenvolvimentista e popular.
Dessa forma, o Estado5 controla ideologicamente a formação dos jovens, do
pensamento brasileiro, na medida em que não fornece elementos para análise e compreensão
da realidade, pois o professor não precisa ser alguém que pense e reflita, mas que aprenda e
transmita um ensino onde não há espaço para a crítica. Para Fonseca (1994):
3
Em 1971, por meio da Lei n. 5.692, no contexto da ditadura militar brasileira, de controle e repressão ao processo de
formação de professores e de patrulha ostensiva sobre as disciplinas que fomentassem nos estudantes idéias contestatórias ao
programa governamental, autoritariamente, História e Geografia são reunidas em uma mesma disciplina, os Estudos Sociais
(OLIVEIRA, 2006)
4
Sobre o tema ver CERRI, L. F.
5
Ver: SAES, Décio. A Evolução do Estado Brasileiro no Brasil. Uma interpretação marxista. In: República do capital –
capitalismo e processo político no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2001.
11. 10
Assim a desqualificação dos professores, sobretudo de História, no bojo do
processo de reformas, era estratégia para o poder político autoritário. É
evidente que as outras medidas também eram importantes politicamente,
mas formar um professor de acordo com as concepções do regime
significava conseguir hegemonia e legitimidade a médio e longo prazo, no
espaço educacional voltado para as massas. Desqualificar o professor de
História, ou qualificá-lo e prepará-lo para uma escola que impunha tarefas e
necessidades de submissão à maioria da sociedade brasileira, significava,
sem dúvida, fortalecer e legitimar um modelo antidemocrático e
concentrador de riquezas, além de limitar ainda mais as possibilidades de
debates mais profundos (na área) no interior das nossas escolas de 1° e 2°
graus (p. 29).
Ainda articulado a esse “projeto” de desqualificação dos professores de História, no
final da década de 60 e início da década de 70, houve o planejamento e implementação da
Educação Moral e Cívica, como já mencionado, com objetivo de controlar ideologicamente o
ensino oferecido nas escolas, esvaziando e descaracterizando o ensino de História para que
este não fosse um instrumento “ameaçador” da ordem instalada com o golpe militar de 64.
Assim, o que passou a ser o centro dos programas da disciplina de Educação Moral e Cívica
foram os conceitos de lei, heróis, pátria, nação e integração nacional:
As atividades cívicas extraclasse são instituídas legalmente dentro das
escolas com o objetivo de garantir uma maior “eficiência” da prática
educativa. Dentre as inúmeras atividades previstas em lei, os atos cívicos
tornam-se presentes no cotidiano escolar. Nestes atos as crianças e jovens
cultuavam os símbolos e os heróis nacionais, através de homenagens ao
Hino, à Bandeira, aos heróis já tradicionais e aos novos heróis e
comemorações, tais como o 150° ano da independência do Brasil e a da
conquista do tricampeonato de futebol. Esse processo passa a se confundir
com o ensino de História do Brasil, especialmente de 1ª a 4ª série,
aprofundando e renovando uma prática tradicional na escola brasileira
(FONSECA, 1994, p. 38).
Nessa perspectiva o que norteava o ensino de estudos sociais - não mais História e
Geografia -, segundo a autora acima citada, era um ensino que buscava ajustar o aluno ao
meio e não transformá-lo, viver e conviver e não subverter, assumindo deveres básicos para
com a comunidade, o Estado e a Nação. Nota-se, portanto, que a preocupação do ensino nesta
disciplina era apenas localizar e interpretar fatos não havendo espaço para a reflexão sobre a
história construída pelos homens, contribuindo assim para a consolidação do projeto
autoritário das forças políticas que detinham o poder. Para Fonseca (1994, p. 46) ao adotar
12. 11
esta concepção, o ensino de História assume a tarefa de formação cívica, impondo regras de
conduta política através do estudo de temas e conceitos que são de interesse central do Estado.
Nesse período observa-se a tentativa de legitimar a política do Estado e da classe
dominante, cerceando a liberdade de pensamento, homogeneizando os sujeitos sociais pelo
controle do ensino de história ressaltando as possibilidades do Brasil. A História aqui serve
apenas para justificar e legitimar os comportamentos do Estado, ou seja, as forças dirigentes,
tendo a escola a função básica de reprodutora da academia e dos órgãos de segurança do
Estado por meio da acumulação de informações e memorização mecânica e fragmentada
como se o econômico, o social, o cultural e o político não constituíssem a mesma realidade6.
Para Fonseca (1994) essa fragmentação é própria do modo de produção capitalista:
A fragmentação do saber encontra paralelo na fragmentação do processo
capitalista. No mundo da técnica, dos meios de comunicação de massa, as
informações fragmentadas tomam a forma de verdade e o receptor passivo
não reflete, apenas consome as informações a-históricas e não as assimila
(p. 66).
Essa fragmentação implica diretamente na formação do aluno, pois este encontrará
enormes dificuldades em analisar a realidade em sua totalidade, ou seja, em pensar as relações
entre as várias dimensões do social. Isso tem como função ocultar a luta de classes, as
relações de poder e dominação de uma classe sobre outra, a divisão social, difundindo a idéia
de harmonia social: “Veiculou-se, assim, um discurso histórico que enfatizava de um lado, a
busca do equilíbrio social, e, de outro, a contribuição harmoniosa, sem violência ou conflito,
de seus variados e diferenciados habitantes” (NADAI, 1992/3, p. 149).
O ensino de História é nesse momento um espaço privilegiado para transmitir noções
como nação, “liberdade” e culto dos heróis, entre outros, por meio da memorização excessiva,
da passividade do aluno, da periodização política e de uma abordagem factual. Assim, o
Estado uniformiza o passado excluindo da memória oficial as imagens que não lhe
interessam, legitimando o que lhe convém por meio de atividades escolares, excluindo a ação
histórica das diferentes classes que nela atuam, tornando sujeitos históricos somente aqueles
que “conduzem” a nação7. Exemplo disso é o fato de a Independência do Brasil ser reduzida
6
Para NADAI (1992/3), a periodização empregada obedeceu a uma cronologia eminentemente política e marcada por tempos
uniformes, sucessivos e regulares. Identifica-se, assim, tempo histórico à cronologia. Rupturas e descontinuidades inexistem.
7
Cabe ressaltar a ausência de imagens e discursos que expressem aspectos da vida cultural e religiosa dos negros e/ou
momentos de convivência pacífica entre senhores e escravos. Ser negro, portanto, é ser escravo e ser escravo é viver sob a
situação permanente da opressão e do castigo. O modo de vida do negro resumiu-se, portanto, à relação entre senhor e
escravo, sempre mediada pelo trabalho e pela violência (SIMAN, 2005).
13. 12
ao simples fato de constituição da Pátria brasileira; a diversidade é entendida apenas como
diferenças regionais e étnicas que formam uma unidade isenta de conflitos; as contradições
sociais são ocultadas ou reduzidas à integração nacional e as diferenças culturais são
superadas pela ação do Estado civilizador.
Dessa forma, através dos programas de ensino, dos livros didáticos, uma
única imagem de história impõe-se ao silêncio da criança frágil e pobre do
terceiro mundo. Não apenas sua voz é silenciada como sua história é
excluída, o seu tempo presente e o seu passado separados; é uma construção
“homogênea” evolutiva, logo o seu ritmo não lhe pertence. Mas trata-se de
um trabalho interpretativo, portanto uma construção e, por isso, o conteúdo
dos conhecimentos históricos transmitidos, a escolha deles depende do
profissional de História, da sua posição frente ao saber histórico, frente às
abordagens e frente ao fazer histórico (FONSECA, 1994, p. 83).
Porém, no ensino de História, e, na escola como um todo, nem tudo é determinado 8
pelo Estado e pelos seus instrumentos, como nos alerta FONSECA:
A “história oficial” consegue excluir, silenciar, ocultar os outros projetos e
ações, mas não consegue eliminá-los da memória coletiva. As instituições e
o próprio ensino de História não apenas ratificam, confirmam e impõem a
memória e os valores dominantes. É preciso considerar os limites deste
discurso historiográfico homogeneizador, do controle social exercido pelo
Estado e dos seus instrumentos, no caso, os programas de ensino. É preciso
considerar também as tensões internas vividas pelas escolas, e o fato de que
a aprendizagem a formação da consciência histórica não se dão apenas
nestas instituições, mas no conjunto social (1994, p. 70).
Antenado com a crítica à uma história positivista, triunfante, o Currículo Básico para
a Escola Pública do Paraná, distribuído em 1990 e elaborado após intensas discussões
ocorridas no final da década de 1980, também revela esta mesma crítica anterior:
Aquilo que se apresenta como a História da humanidade não é senão a
História de alguns homens, grupos ou classes. A maioria dos homens é mero
pano de fundo para a peça encenada por aqueles grandes personagens. Estes
conteúdos, longe de serem a própria história, são a cristalização de uma
determinada concepção de História[...] (PARANÁ, 1990, p. 81).
Diante dessa realidade, bem como de todo sistema educacional, tivemos na década
de 1980 uma intensa discussão sobre o ensino de história. A metodologia de ensino, a
8
Segundo SAVIANI (2003, p. 93), a educação é, sim, determinada pela sociedade, mas que essa determinação é relativa e na
forma recíproca – o que significa que o determinado também reage sobre o determinante. Conseqüentemente, a educação
também interfere sobre a sociedade, podendo contribuir para a sua própria transformação.
14. 13
concepção de história e, fundamentalmente, o livro didático foram abordados tendo em vista a
busca por mudanças. Na tentativa de contribuição a este debate, alguns pesquisadores foram
levados a compreender os motivos que condicionaram o professor a adotar uma postura
teórica baseada no processo factual e no conteúdo moralizante do livro didático, uma vez que
esta explicação concretiza um conteúdo escolar que só afirma os interesses minoritários da
sociedade, ou seja, o individualismo, a competição, a exploração, entre outros (CARROSI,
2005, p. 370).
No entanto, nos últimos anos, há um entendimento maior de que os estudos de
História que não relacionam passado/presente sejam “condenados”. Essa visão auxilia-nos a
compreender a história como sendo algo que está em constante construção/movimento, ou
seja, não é apenas um produto, mas um processo. É importante ressaltar também que, as
resistências/lutas dos profissionais da educação ganharam uma dimensão classista com o
surgimento de novos sindicatos, greves, reivindicações, não apenas em busca de melhores
salários, mas no questionamento à política educacional adotada pelo Estado e ao processo
educativo como um todo.
Essas mudanças refletiram o momento de discussão sobre as mudanças no ensino, na
proposição de uma noção de História que se opõe àquela que indicava um conhecimento
histórico acabado, deslocado das práticas sociais e da produção do conhecimento, revelando
assim a própria historicidade do momento, pois a História é repensada, abrindo o campo das
possibilidades e deixando o campo das determinações, assumindo uma postura crítica que visa
à destruição de fantasias, desvelando os conflitos de classes presentes nas práticas sociais.
Há também nos anos 80 a introdução de novos personagens, crítica do saber
tradicional, maior atenção aos movimentos sociais e à realidade vivida pelos alunos, crítica ao
discurso ideológico, moralizante e triunfalista dos livros didáticos.
Para Zamboni (2003), nessa época, a maior parte da população sul-americana estava
excluída e marginalizada do consumo dos bens socialmente produzidos, dos direitos políticos
e impossibilitada culturalmente de participar do mundo da produção. Grupos organizados
levantaram suas vozes e exigiram o direito de serem reconhecidos socialmente, o direito a um
teto, à habitação, à educação, à produção, à saúde e, sobretudo que suas identidades fossem
reconhecidas e respeitadas. Neste contexto de transição, de mudanças políticas e sociais,
aconteceu no Brasil, como em outros países da América Latina: o fim da ditadura militar, a
retomada das eleições diretas para os cargos executivos e, em 1988, uma nova Constituição
Nacional foi promulgada, ficando conhecida como a Constituição Cidadã.
15. 14
Isso teve influências também na historiografia, na produção acadêmica onde se
buscou a “incorporação” de novos temas expandindo o campo de análise da História,
ampliando os estudos sobre a classe trabalhadora possibilitando outras leituras do social, o
que permitiu, entre outras coisas, “ultrapassar” a aparência e abordar temas até então
ocultados.
Surgem com isso propostas que se preocupam com a problematização das
experiências sociais dos alunos, efetivando uma postura crítica diante do saber produzido o
que evidencia uma postura que contrasta com aquela concepção de história oficial da década
de 1970. Temos, então, uma abordagem que se preocupa com a ação dos homens como
sujeitos produtores da história.
Estudar História parece ser uma atividade que exige muito pouco: decorar
fatos, nomes e datas, aprender explicações genéricas e já empacotadas para o
consumo. Para ser um bom aluno é preciso somente “boa memória” [...] para
ser bom professor, menos ainda é necessário; “vencer a matéria” é repassar
dados e informações, muitas vezes através da simples leitura do livro
didático e de questionários que se repetem ano após ano. [...] Entendemos
que uma proposta nova para o ensino de História não pode se prender a uma
concepção tradicional, onde a História é apresentada como uma sucessão
cronológica de fatos estanques, com memorização de nomes e datas [...].
Esclarecemos que não se trata da história dos vencidos ou da História dos
vencedores, mas da História da relação de um e outro [...]. É preciso abrir a
possibilidade de outras memórias, sem contudo, substituir uma mistificação
pela outra, isto é, contar o “outro lado” da História (PARANÁ, 1990, pp.
81/2).
O currículo, como norteador desta perspectiva historiográfica, pode revelar uma
história que se quer dar vida, abordando a história dos excluídos, privilegiando as tensões
entre vencedores e vencidos, enfatizando a presença de conflitos, violência, poder e
desigualdade, aproximando-se da realidade do aluno, o que acarretará em um maior interesse
deste para com a História ensinada. Afinal, de acordo com Souza (1999, p. 312), a história do
Brasil é uma história de tensões e conflitos, e isso não pode ser escamoteado, já que a
sociedade conflituosa e problemática de hoje é herança desse passado colonialista,
escravocrata e de uma sociedade estamentária, onde poucos têm muitos privilégios e a
maioria é uma população de despossuídos.
O Currículo Básico para a Escola Pública do Paraná de 1990, inova ao apresentar
conteúdos voltados para a história local (município, região e estado), principalmente por meio
do “estudo de caso das diferentes atividades e das diferentes formas de organização dos
grupos sociais no município, ontem e hoje” reservado à 3ª série: o “estudo de caso das
16. 15
diferentes relações de trabalho e de poder no Paraná, ontem e hoje” à 4ª série; “estudo de caso
sobre a mineração e a pecuária no Paraná” à 5ª série e “estudo de caso sobre a imigração e a
formação da classe operária no estado” à 6ª série, procurando sempre enfocar a história local e
regional numa perspectiva de análise mais abrangente. Percebe-se também nesta proposta
uma preocupação com a questão do tempo e espaço, onde o local e o regional são vistos a
partir da relação entre o homem e o espaço habitado que o rodeia.
Por outro lado, para Schmidt (1999, p. 367), os PCNs, particularmente a proposta de
História, dificulta a possibilidade do educando apoderar-se do passado, tanto do ponto de vista
individual quanto coletivo, pois dissimula o discurso que o produziu, ocultando sua face
comprometida com o projeto neoliberal, o que para a autora não é nenhuma novidade ao se
tratar de documentos oficiais do Governo de Fernando Henrique Cardoso.
O historiador Ângelo Priori (1999, p. 607) nos alerta para o risco de se trabalhar com
a história local. Primeiro: O risco de trabalhar a história tradicional – positivista – a primeira
casa, o primeiro agricultor, a primeira escola, o primeiro prefeito, o primeiro padre e assim
por diante, numa sucessão de eventos, heróis, tratados, leis etc. Segundo: A falta de materiais
didáticos produzidos para esse fim, dando-se ênfase às “histórias” produzidas oficialmente,
geralmente livros e cartilhas elaboradas por historiadores ou escritores ligados à prefeitura ou
a algum órgão da sociedade local.
Segundo Sousa (1999, p. 614) pode-se afirmar que o ensino de História ainda é
realizado dando ênfase à memorização pura e simples, no papel do herói como o colaborador
do movimento histórico e numa história desconexa, desarticulada, na qual os acontecimentos
isolados, o fato pelo fato, principalmente os políticos, prevalecem em detrimento da
compreensão do processo como um todo. É necessário, portanto, que o processo ensino-
aprendizagem tenha como objetivo a compreensão e apreensão do movimento da história,
pois a realidade não é estática, homogênea, harmônica, única, pelo contrário, ela é em sua
totalidade dinâmica, contraditória e conflituosa, por isso o concreto é dialético e esse
movimento é percebido pelos avanços e recuos dos anseios sociais e por meio dos embates
sociais.
Analisando as diferentes propostas formuladas na década de 1980, Fonseca (1994)
salienta que, a História coloca-se como um campo de possibilidades, de diferentes caminhos,
de lutas e resistências, permitindo o rompimento com modelos estreitos que reduzem ou
limitam a problematização do social:
17. 16
Recusando tais paradigmas determinados e unitários como instrumentos de
análise, os autores visam ultrapassar a visão eurocêntrica e a lógica do
progresso que permeiam de ponta a ponta a nossa historiografia. Eles
propõem resgatar a heterogeneidade das experiências convivendo com o
indefinido, o indeterminado, dando inteligibilidade à diversidade não a partir
de paradigmas instituídos e sim da ação concreta dos sujeitos históricos
“apreendida como o fazer de uma cultura” (FONSECA, 1994, p. 94).
A crítica, que falamos, é contra a História factual, heróica, mecanicista, linear e
etapista, propondo em vez disso, uma História onde o homem seja o agente. Segundo Fonseca
(1994, p. 96), a crítica a esta concepção tradicional de história fundamenta-se na teoria
marxista de História, pelo fato de os homens, suas idéias, representações e valores serem
condicionados pelo modo de produção de sua vida material e por um determinado
desenvolvimento das forças produtivas.
Dessa forma não se descarta totalmente as datas, o que há é um enfoque diferente em
relação às mesmas, ressaltando o papel da ação coletiva, a compreensão dos objetivos desses
movimentos, as relações entre os fatos e a atualidade, fazendo, portanto, reflexões acerca das
mesmas e não apenas comemorando-as, o que permite um maior entendimento das
contradições da constituição histórica do capitalismo. Procura-se dar voz aos excluídos,
introduzindo no centro das reflexões, ações e sujeitos que até então eram excluídos da história
ensinada, por meio do enfrentamento dessa problemática. Segundo Silva apud Fonseca:
Aquilo que a história oficial pós-1964 e particularmente pós-69 procurava
silenciar era toda e qualquer concepção socialmente crítica de história,
especialmente, como a marxista [...] é ilusão sempre nutrida pelos
vencedores ou dominadores aquela de pensar que conseguirão apropriar-se
por inteiro da memória dos vencidos ou silenciá-la totalmente [...] (1994, p.
115).
A historiografia brasileira é repensada, a História Social começa a ter papel
importante nesse processo, elaborando novas questões, explorando novas fontes,
possibilitando uma ampliação do “território” a ser pesquisado, fazendo com que,
principalmente, na década de 1980, ocorresse a penetração no âmbito da universidade das
vozes que por um longo tempo haviam sido silenciadas pela História.
O desenrolar das lutas políticas nos anos 70 coloca para os historiadores
novas necessidades de questionamento da produção historiográfica e do
lugar ocupado por esta produção. Põem-se em questão as premissas do saber
histórico, os temas e os problemas. Passam a ser discutidas e redefinidas
diversas abordagens a partir de uma crítica ao campo da história tradicional,
18. 17
única e globalizante. E, como parte desse processo, passamos a viver a
expansão do campo da história, através da busca incessante de outros temas
e abordagens até então silenciadas na historiografia brasileira (FONSECA,
1994, p. 116).
Ressalta-se, também, o papel da universidade como instituição formadora dos
professores e como produtora e divulgadora do conhecimento histórico, o que demonstra que
há uma divisão do trabalho intelectual, pois a uns cabe o papel de produzi-lo e, a outros, o de
transmiti-los, tornando-se o livro didático um instrumento que assume, muitas vezes, a forma
de currículo e a forma do saber em sala de aula, sendo adotado em grande escala dada a sua
facilidade de operacionalização. Assim:
A ação destes especialistas revela o nível das relações entre o trabalho
especializado em História nas universidades e o ensino fundamental, uma
relação vertical, na qual o ensino fundamental estava submetido às propostas
advindas dos setores intelectuais, situados nas universidades, detentoras da
ciência, vinculadas às esferas burocráticas do poder estatal e às empresas
editoriais. As experiências alternativas realizadas por professores de 1° e 2°
graus não ultrapassavam os limites da própria escola, ou muitas vezes, da
sala de aula, pois o conhecimento a ser ensinado já estava previamente
pensado e organizado para o professor, não havendo espaço para
explicitação dessas experiências (FONSECA, 1994, pp. 120-1).
Ao mesmo tempo em que se busca uma renovação no ensino de História no sentido
de “aproximá-la” dos alunos, percebe-se uma contradição, pois o saber aparece como algo
externo à escola, produzido cientificamente em outro local, na universidade – academia – e no
mercado editorial. Assim, corre-se o risco de se consagrar uma História descolada do social,
ou seja, excludente, onde há uma simplificação do conhecimento a ser transmitido na escola,
sendo possível controlar aquilo que será ensinado reforçando apenas um único discurso,
eliminando o confronto, as divergências, os debates e as discussões, tornando a escola um
espaço para a difusão de conhecimentos simplificados e unitários impondo uma determinada
memória em detrimento de outra. Na medida em que o Estado adota esses programas controla
os antagonismos de classe evitando a explicitação dos conflitos, contribuindo dessa forma
para que o processo de produção e acumulação capitalista não seja analisado, desvelado.
É importante ressaltar que todos os esforços no sentido de renovação do ensino de
História, provocaram avanços na busca por tornar este um espaço para uma ampliação do
campo da História ensinada, onde os professores incorporam diversos materiais, embora o
livro didático ainda continue hegemônico. Esta mudança tem como objetivo evitar a exclusão
de sujeitos e ações históricas, combatendo a História única e globalizante que privilegia os
19. 18
mitos e heróis nacionais, enfatizando a História como uma construção, resgatando o passado
por meio de problemáticas do presente, utilizando diferentes linguagens, voltando-se para um
debate crítico tentando colocarem-se como sujeitos deste processo.
Hoje, um dos desafios do professor de história é explicitar aos alunos a razão de se
estudar história, ou seja, mostrar qual a importância do passado. Para tanto, é importante que
por meio dessa disciplina, os alunos possam identificar e refletir sobre as relações entre a
sociedade atual e o conhecimento histórico, contribuindo para a superação de uma visão onde
o que importa é apenas o momento presente, ou seja, ao estudar as sociedades passadas o
aluno poderá compreender o tempo presente com o objetivo de transformar a realidade,
percebendo-se desse modo como sujeito histórico. O ensino de História contribui, portanto,
para libertar o indivíduo do imobilismo, do tempo presente9, ou seja, não explicar o presente a
partir de si mesmo, considerando a dialética da História.
Para Said apud Oriá (2002, p. 128) a invocação do passado constitui uma das
estratégias mais comuns nas interpretações do presente. O que inspira tais apelos não é apenas
a divergência quanto ao que ocorreu no passado e o que teria sido esse passado, mas também
a incerteza se o passado é de fato passado, morto e enterrado, ou se persiste, mesmo que
talvez sob outras formas.
Ricardo Oriá (2002), ao tratar do patrimônio histórico, diz que se preservaram as
igrejas barrocas, os fortes militares, as casas-grandes e os sobrados coloniais. No entanto, as
senzalas, os quilombos, os cortiços e vilas operárias foram “esquecidos”. Para ele:
Essa política de preservação [...] objetivava passar aos habitantes do país a
idéia de uma memória unívoca e de um passado homogêneo e de uma
História sem conflitos e contradições sociais. A concepção predominante era
a de se forjar uma identidade nacional única para o país, excluindo as
diferenças e a pluralidade étnico-cultural de nossa formação histórica
(ORIÁ, 2002, p. 131).
No entanto, os bens culturais de um país não são apenas os que tradicionalmente
foram dignos de preservação, ou seja, aqueles produzidos e definidos pelos vencedores de
uma determinada época, mas sim todas as memórias da ação humana. A política de
preservação patrimonial privilegiou a ação dos heróis nacionais, em detrimento de outros
9
É um absurdo, segundo muitos livros de História, o ouro das Minas Gerais ou de Cuiabá ter passado das mãos dos
portugueses ineptos para os ingleses. Entretanto, como considerar normal que o ouro da Serra Pelada possa servir para
enriquecer empresas privadas e grupos estrangeiros sem gerar nenhuma riqueza para a população brasileira?
(BITTENCOURT, 2002, p. 18)
20. 19
sujeitos históricos, evidenciando assim uma forma de dominação e legitimação dos grupos
dominantes, a qual exclui da memória histórica os “vencidos”.
Ainda de acordo com Oriá (2002), isso começou a mudar a partir dos anos 80 quando
se passou a resgatar os excluídos da história e exemplo disso foi o tombamento das áreas dos
Palmares e do Arraial de Canudos.
Constatam-se também as dificuldades que os professores encontram para trabalhar
com a disciplina, devido à falta de material, a formação generalista e que pelas circunstâncias
de trabalho em que estão inseridos não transpõem para sua prática as discussões da
historiografia por desconhecer ou mesmo por não ter acesso a esta produção. Assim, limita-se
seu trabalho a exposição do conteúdo dos livros didáticos, trabalhando-a como mais uma
disciplina a ser cumprida e avaliada de forma técnica, sem estabelecer relações com o
cotidiano da criança. Geralmente, o conteúdo de História trabalhada por muitas escolas é
basicamente constituído de datas comemorativas ou fatos estanques, o que dificulta pensar a
História como um processo dinâmico de leitura e compreensão da sociedade em que vivem.
Propõe-se então a extrapolação do livro didático e a utilização de diferentes linguagens na
história como: músicas, poesias, textos literários, histórias em quadrinhos, fotografias,
imagens produzidas pelos viajantes, pinturas e obras de arte, assim como recursos dos meios
atuais: jornais, revistas, vídeos, etc.
Outro ponto que merece atenção é o fato de muitos professores, ao criticarem o
ensino tradicional, abandonaram-no substituindo a história tradicional por nada, ou seja,
passaram a ensinar história de uma maneira superficial pensando ser suficiente falar do
cotidiano dos alunos. Isso se reveste de uma importância maior quando pensamos a escola
pública como instituição onde se deve garantir o acesso ao saber elaborado para as camadas
sociais exploradas e excluídas, que não têm outros meios para se apropriar desse
conhecimento.
O retorno da História enquanto disciplina autônoma na década de 1980 ocorreu por
meio de conflitos onde os professores desejavam participar da elaboração das propostas
curriculares, não aceitando assim as diretrizes impostas pelo poder, abrindo possibilidades
para que o currículo fosse resultado das discussões travadas entre o Governo, os professores e
a universidade. Paralelamente, ocorreu um crescimento do público escolar, inclusive com o
acesso de alunos da classe trabalhadora, diferenciando-se assim de outros momentos da
história da educação brasileira. Conforme escreve Bittencourt (2002):
21. 20
Grupos sociais oriundos das classes trabalhadoras começaram a ocupar os
bancos das escolas que, até então, haviam sido pensadas e organizadas para
setores privilegiados ou da classe média ascendente. A entrada de alunos de
diversas idades e experiências, portadores de diferentes culturas e vivências,
em crise de identidade pela chegada improvisada e forçada a centros
urbanos, dentro de um processo migratório do campo para a cidade e entre
estados – principalmente do Nordeste para o Sul -, colocou em xeque a
estrutura escolar e o conhecimento que ela tradicionalmente vinha
produzindo e transmitindo (pp. 13-4).
No entanto, Kátia Abud (2002) nos alerta que:
Os textos oficiais são produzidos considerando-se uma escola ideal, como
situação de trabalho e como local de recursos humanos. Eles não relativizam
a realidade e trabalham com a ausência de rupturas e resistências. As
dificuldades e obstáculos presentes no cotidiano das escolas estão ausentes
dos textos. Os currículos e programas das escolas públicas, sob qualquer
forma que se apresentem (guias, propostas, parâmetros), são produzidos por
órgãos oficiais, que os deixam marcados com suas tintas, por mais que os
documentos pretendam representar o conjunto dos professores e os
“interesses dos alunos” (p. 29).
Para Segal apud Bittencourt (2002, p. 20), é importante distinguir os objetivos da
História ensinada nos níveis fundamental e médio daqueles pretendidos nos cursos superiores.
Estes últimos visam formar profissionais, no caso historiadores ou professores de História,
enquanto que para os outros níveis de ensino, a História deve contribuir para a formação do
indivíduo comum, que enfrenta um cotidiano contraditório, de violência, desemprego, greves,
congestionamentos, que recebe informações simultâneas de acontecimentos internacionais,
que deve escolher seus representantes para ocupar os vários cargos da política
institucionalizada. Este indivíduo que vive o presente deve, pelo ensino de História, ter
condições de refletir sobre tais acontecimentos, localizá-los em um tempo conjuntural e
estrutural, estabelecer relações entre os diversos fatos de ordem política, econômica e cultural.
Portanto, o conhecimento histórico escolar não pode ser entendido como se fosse
meramente uma transposição do saber acadêmico para a sala de aula, já que esse deve levar
em consideração um método no processo de transposição, onde a problematização permita
identificar as contradições da sociedade apontando para outras possibilidades, pois:
O ensino de História pode possibilitar ao aluno “reconhecer a existência da
história crítica e da história interiorizada” e “a viver conscientemente as
especificidades de cada uma delas”. O estudo de sociedades de outros
tempos e lugares pode possibilitar a constituição da própria identidade
coletiva na qual o cidadão comum está inserido, à medida que introduz o
22. 21
conhecimento sobre a dimensão do “outro”, de uma “outra sociedade”,
“outros valores e mitos”, de diferentes momentos históricos. Identidade e
diferença se complementam para a compreensão do que é ser cidadão e suas
reais possibilidades de ação política e de autonomia intelectual no mundo da
globalização, em sua capacidade de manter e gerar diferenças econômicas,
sociais e culturais como as do nosso país (BITTENCOURT, 2002, p. 27).
Dizer que os alunos são sujeitos da história ou agentes de transformação da realidade
significa entender que estas transformações não ocorrem por vontade individual, que ser
sujeito histórico é ter compreensão de que o indivíduo não é o único responsável pelas
mudanças, que ele não é apenas sujeito da história, mas é também produto da história.
Portanto, desvelar/desmistificar a realidade presente por meio do estudo da História,
compreendendo que é a luta coletiva de movimentos sociais que permitiu e/ou permite
conquistas ao longo da história.
Para Abud (2002, p. 38), referindo-se as décadas de 1930 e 1940, afirma que naquele
período já se almejava encontrar também uma unidade étnica, no caso a branca, para o povo
brasileiro, tentando barrar a miscigenação que nos tornaria inferiores dado a maciça presença
do negro, num processo de branqueamento. Enfatizava-se, contudo, a influência que os
africanos e índios teriam exercido sobre nossa formação cultural, isto é, na língua, na culinária
e nas “superstições”, como os livros chamavam as religiões de origem africana.
No entanto, rediscute-se hoje, ou melhor, elaboram-se nas instituições do poder
central, parâmetros curriculares nacionais e conteúdos mínimos para todo o país. Estamos
assistindo a uma retomada da centralização da educação que alija da discussão os seus
principais sujeitos: alunos e professores novamente vistos como objetos incapacitados de
construir sua história e de fazer, em cada momento de sua vida escolar, seu próprio saber.
No entanto, Janotti (2002, p. 48), nos alerta que o repúdio à História Política
tradicional deveu-se à sua concentração no estudo do Estado-nação, dos comportamentos
individuais dos grandes personagens, dos eventos circunstanciais e das situações conjunturais
efêmeras. Estes acontecimentos eram organizados sob um racionalismo redutor das
descontinuidades e das contradições. Dessa forma, a História Política passou a ser vista como
retrato da ideologia dominante e ocultadora da verdadeira realidade. Contribui para a crítica a
essa História a força da explicação marxista da História que enfatizava a importância das
estruturas econômico-sociais, bem como o papel da luta de classes como instâncias das
verdades mais profundas.
No que se refere ao professor de História, Schimidt (2002) nos alerta para a imagem
ambígua que marca este profissional, pois ora é visto como sacerdote, ora como profissional
23. 22
da ciência, parteiro da nação, da revolução, militante, porta-voz do passado, oscilando entre a
transmissão de conhecimentos e a produção de saberes. No entanto, a autora afirma que a aula
de História deve ser um momento onde o professor possa oferecer aos alunos as condições
para a apropriação do conhecimento histórico existente para que este possa sentir-se como
participante da “construção” da História, tornando a sala de aula não apenas um local onde se
transmite informações, mas um local onde haja uma relação significativa entre teoria e prática
e que o aluno seja capaz de articulá-las, pensá-las e refleti-las.
Para tanto é necessário que se trabalhe a compreensão e explicação histórica para
desnaturalizar o passado, sendo importante a articulação entre a problematização, a
construção de conceitos, o contexto temporal-espacial e a exploração de documentos
históricos, levando-se em consideração muito mais que as determinações causais, para que os
alunos possam compreender as rupturas e permanências, as continuidades e descontinuidades,
e, também, a construção, a historicidade dos conceitos e a contextualização temporal
permitindo ao aluno a possibilidade de analisar, interpretar e comparar fatos históricos, indo
além de um exercício puramente descritivo.
ENSINO DE HISTÓRIA: ALGUNS APONTAMENTOS
Segundo Bittencourt (2004, pp. 198-9), a crítica fundamental e que tem sido repetida
inúmeras vezes por historiadores, especialmente os que se dedicam ao ensino, é a de que a
história do Brasil tem sido ensinada visando construir a idéia de um passado único e
homogêneo, sem atentar para os diferentes setores sociais e étnicos que compõem a sociedade
brasileira10. Constatam muitas dessas críticas que a idéia de um povo homogêneo com um
passado único vem por intermédio da difusão de que somos um povo caracterizado pela
democracia racial11. A teoria da democracia racial, é preciso salientar, foi estimulada para
fundamentar uma homogeneização cultural e omitir as diferenças e desigualdades sociais.
Serviu, ainda, para fortalecer a idéia de uma história nacional caracterizada pela ausência de
conflitos. Em sua face mais perversa, essa mesma teoria serviu para dissimular as
desigualdades sociais e econômicas, e para justificar a situação de miséria de grande parte da
10
Veiculou-se, assim, um discurso histórico que enfatizava de um lado, a busca do equilíbrio social, e, de outro, a
contribuição harmoniosa, sem violência ou conflito, de seus variados e diferenciados habitantes (e grupos sociais) para a
construção de uma sociedade democrática e sem preconceitos de qualquer tipo (NADAI, 1992/3).
11
Todos os movimentos históricos que implicaram a expansão da dominação colonial portuguesa e a implantação de uma
unidade cultural fundamentada na civilização européia eram apresentados de uma forma altamente positiva pelos programas e
textos didáticos, que deram alto valor e grandiosidade à obra de bandeirantes que teriam estendido o território muito além da
linha de Tordesilhas (ABUD, 2002, p. 40).
24. 23
população: um povo mestiço, que carrega os males de uma fusão de grupos selvagens
indolentes (índios que não queriam ser escravos e se rebelaram contra esse trabalho tão digno
para a grandeza da Pátria) e de negros africanos submissos e sem vontade própria, sem
desejos de vencer na vida! A preguiça e a indolência, frutos dessa mestiçagem democrática
eram, ou ainda são, as “responsáveis” pela pobreza da maioria da população.
A ausência de grupos indígenas ou de escravos e seus descendentes, assim como
trabalhadores em geral na história ensinada, são decorrentes de uma visão política e
ideológica, mas, é preciso lembrar, referendada por uma concepção de história. Entre nós, tem
prevalecido a idéia de que esses grupos populacionais não possuem história e, nessa
perspectiva, se torna difícil compreender, ainda hoje, que a história deles faz parte da história
do Brasil. É possível aceitar, apenas, que eles tiveram influências, ou seja, deram algumas
contribuições para a vida cultural, como hábitos alimentares, para a música, ou em eventos
esportivos, principalmente o futebol, um dos esportes de identificação da nacionalidade (ainda
presente em produções didáticas e incorporadas pela tradição escolar).
Trata-se, portanto, de um conhecimento escolar organizado para a formação das
elites encarregadas de dirigir a nação e seria ingenuidade e anacrônico imaginar que tais elites
estivessem interessadas em incluir, em seus projetos políticos, a participação de camadas
populares, como ex-escravos, trabalhadores rurais e urbanos. A idéia educacional mantinha o
pressuposto de que a educação secundária e a superior eram reservadas para uma fração da
população, os mais bem dotados economicamente, e esse grupo iluminado tinha a missão de
governar o país e conduzir as massas. Para Fiuza (1995):
Esse problema se torna mais grave no ensino fundamental e médio, pois o
ensino de História reproduz a ideologia da classe dominante através de uma
“metodologia” em que é cobrada do aluno a sua capacidade de memorizar
datas e fatos, simplesmente reproduzindo idéias e conceitos pré-
estabelecidos, com intuito, ainda, de formar um exército de mão-de-obra
barata e reprodutora da ideologia dominante (p. 128).
Assim, para superar essa visão é necessário um referencial sólido que seja
introduzido e que sensibilize as reflexões de professores e aqueles que os formam,
esfacelando mitos que mascaram os problemas sociais, os preconceitos, as discriminações,
aflorando assim, as diferenças e contradições da sociedade de classes.
Para Bittencourt (2004, pp. 201-2) outro aspecto a ser destacado no ensino de
história diz respeito às dimensões espacial e temporal, pois os estudos de história do Brasil
25. 24
devem contemplar a história local e regional articulada à nacional e ao internacional. No
entanto, isso requer uma compreensão sobre micro-história12 e seus fundamentos, pois a
história local deve necessariamente estar incluída nos estudos de História, não que se deva
partir do mais próximo para o mais distante, mas de maneira que esta seja problematizada a
cada momento de estudo.
Para Proença (1999, p. 29), a historiografia escolar (programas e manuais) tem
contribuído para a construção de uma identidade. Disso é exemplo o conjunto de heróis13
propostos aos nossos alunos, conquistadores, reis, militares, imperadores e de todos os que
contribuíram para impor o nosso país pela força das armas ou do domínio colonialista. Assim
a História tida como “oficial” continua a escrever-se do ponto de vista dos vencedores, não só
dos que venceram pela força das armas, mas em todos os domínios da vida: econômico,
político, social e cultural. É urgente que se conte também a história dos vencidos, dos
dominados, que a história do descobridor se contraponha a história do descoberto, que na lista
de heróis dos manuais escolares se incluam os nomes dos que contribuíram para o progresso
da arte, do pensamento, da cultura, da paz e do entendimento entre os povos. Não se trata de
esconder a história, mas de selecionar, com a consciência que toda opção encerra14.
Ao se discutir o ensino de história, é importante ressaltar que um dos maiores desafios
é proporcionar aos alunos as ferramentas necessárias para que gradativamente possam
compreender que a história não é algo dado, pronto e acabado, mas perceber que ela é um
processo e um produto da ação humana e, assim, pensar/refletir historicamente sobre o
passado, ou seja:
Compreender que a História não é dada quer, misteriosamente, por manuais
ou testemunhas neutrais, mas que é provisória. Mas a tarefa não pode parar
aí: os estudantes precisam de uma ferramenta intelectual que lhes permita
distinguir entre diferentes tipos de interpretações históricas. Os estudantes
podem então reconhecer que explicações e narrativas requerem justificações
mais complexas do que afirmações factuais isoladas (LEE apud OLIVEIRA,
2006).
15
Ver DOSSE, François. A História em migalhas: dos Annales à Nova História. Bauru, SP: EDUSC, 2003.
13
A República, desde o início, tratou de cuidar da constituição da galeria de heróis nacionais, pela instituição tanto dos
feriados e festas cívicas quanto pela seleção dos personagens a serem cultuados (NADAI, 1992/3).
14
“O corte que é dado na realidade histórica e na Ciência Histórica já é, pela sua natureza, arbitrário, e imbuído de certa
intencionalidade, interesses e ideologias de quem o faz. O professor, o historiador, o aluno, o livro didático, a produção
científica não são neutros. Não há neutralidade na História, no Conhecimento e na educação”. Para o autor essa seleção deve
levar em conta conteúdos de história que: “só tem importância e sentido se passar fundamentalmente pela significação que
possa ter para o aluno, como algo relacionado com o seu mundo social, com os seus interesses [...]. Chamamos conteúdos
significativos aqueles que vinculem direto ou indiretamente o entendimento do aluno e de sua vida: o ser trabalhador ou dono
dos meios de produção, o ser cearense, o ser morador de uma favela ou um bairro rico [...]” (SOUSA, 1999, p. 617).
26. 25
O processo de ensino-aprendizagem da história15 pode ser norteado pela
compreensão da história social como movimento dos homens, vinculada com as relações
sociais de cada época. Assim, para Marx; Engels (1986, p 27-28), tal como os indivíduos
manifestam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, portanto, com sua produção,
tanto com o que produzem, como com o modo como produzem.
Assim, a teoria materialista16 entende as relações sociais em sua totalidade
contraditória. Portanto, para ensinar história, é preciso ter conhecimento da mesma, ou
melhor, compreendê-la como sendo materialmente construída pelo trabalho do conjunto da
humanidade. Caso isso não aconteça, a história ensinada estará fadada a ser apresentada de
maneira fragmentada não estabelecendo ligações com o vivido e o passado historicamente
construído, recebendo unicamente um valor quantitativo, sem fornecer aos alunos elementos
que possam auxiliá-los na compreensão da realidade. A história, pelo contrário, deve
contribuir para o entendimento do momento histórico em que estamos inseridos, é
“transformar” a história em história contemporânea.
Segundo Dutra (2005, p. 792) as crianças podem pensar historicamente, não sendo
preciso esperar que adquiram capacidade de abstração para serem introduzidas nesse modo de
pensar, acreditando, como Vygotsky, que uma “boa” instrução é aquela que se antecipa às
capacidades reais das crianças, apostando em suas potencialidades.
Para Schmidt; Garcia (2005), a consciência histórica funciona como um "modo
específico de orientação" nas situações reais da vida presente, tendo como função específica
ajudar-nos a compreender a realidade passada para compreender a realidade presente. Assim,
a construção da consciência histórica exige conteúdos que permitam o desenvolvimento de
uma argumentação histórica crítica, de uma contra narrativa, na medida em que tais conteúdos
buscam a mobilização, não de todo o passado, mas de experiências específicas do passado
relacionadas a sua própria experiência. A partir do seu presente e de sua experiência, alunos e
professores se apropriam da história como uma ferramenta com a qual podem romper, destruir
e decifrar a linearidade de determinadas narrativas históricas, fazendo com que ausente o seu
poder como fonte de orientação para o presente.
15
A História como disciplina autônoma surgiu no século XIX, na França.
16
Por meio da teoria materialista histórica, nosso referencial de análise, entende-se que o homem, na busca pela vida, produz
sua própria história, e que, para compreendê-la, é preciso investigar as situações reais que a conduz a construí-la. Nesta
dimensão o processo da história é reconhecido como aquele formado a partir de lutas e conflitos. Portanto, existe significativa
diferença entre uma postura docente, que concebe a história dos homens a partir do movimento real da luta pela vida, da
postura em que os homens na história são meros figurantes. (CARROSI, 2005, p. 371)
27. 26
Um dos caminhos metodológicos propostos por Zamboni apud Moreira (2005, p.
883), é de que as transformações, as descontinuidades e continuidades históricas quando
compreendidas pelos alunos, lhes proporcionem alterações em suas formas cognitivas, em
suas maneiras de pensar e de refletir sobre a vida social e histórica e sobre os mecanismos que
organizam as relações sociais. Zamboni (2005), afirma, ainda, que as modificações cognitivas
do aluno, quanto ao modo de perceber a dinâmica social, irão interferir em suas relações
pessoais e sociais e em seus compromissos e afetividade, tanto no espaço escolar, como fora
dele, considerando-se, ainda, a possibilidade de tal prática estender-se até as gerações futuras.
Portanto, não é unicamente saber datar um determinado acontecimento que vai fazer
o aluno compreender esse mesmo acontecimento, não é dominar noções temporais que fará
com que os alunos possam analisar e refletir sobre as transformações sociais, pois isso se dará
por meio da análise reflexiva sobre a totalidade social. É preciso, então, que se vá além de
simplesmente medir tempo e espaço, é preciso chegar ao conhecimento. Torna-se
fundamental, assim, repensar a noção de tempo, pois a noção de tempo histórico não pode se
confundir com a noção de tempo cronológico. De acordo com Cabrini (1994):
O conhecimento histórico procura ver, conforme já colocado, as mudanças
por que passam ou passaram as diferentes sociedades humanas; eis por que
se diz que o tempo é a dimensão de análise da história. Nada permanece
igual e é através do tempo que se percebem as mudanças. Contudo, a
construção de uma explicação histórica supõe uma forma de periodização
que vá além da cronologia. Ao se tentar recuperar uma realidade, sempre
haverá uma periodização que surgirá junto com a própria explicação, pois
dela é parte integrante e que não se exprimirá através da subordinação do
processo a medidas cronológicas (pp. 37-8).
Para Bittencourt (2004), o ensino de história do Brasil está associado, inegavelmente,
à constituição da identidade nacional17. Nacionalismo patriótico onde cultos a heróis
nacionais e festas cívicas são alguns dos valores que, na escola, se integram ao ensino da
História do Brasil ou, ao menos, de certa História do Brasil. E contra essa história patriótica,
existe uma série de críticas que buscam desmascarar seu caráter dogmático e muito distante
de um conhecimento sobre o país e seu povo. Conforme Holanda apud Bittencourt (2004):
Para estudar o passado de um povo, de uma instituição, de uma classe, não
basta aceitar ao pé da letra tudo quanto nos deixou a simples tradição escrita.
É preciso fazer falar a multidão imensa dos figurantes mudos que enchem o
17
Historicamente, o ensino de história foi marcado desde o século XIX pelo ideário das nacionalidades (ZAMBONI, 2003).
28. 27
panorama da história e são muitas vezes mais interessantes e mais
importantes do que os outros, os que apenas escrevem a história (p. 185).
Dessa forma, a história escolar tem como objetivo o entendimento das sociedades,
suas organizações, em suas rupturas e permanências ao longo do tempo, fazendo emergir
assim o homem político, o agente de transformação, entendendo-o não somente como um ser
individual, mas como um sujeito coletivo. Devemos, portanto, nos opor a um ensino de
história que negue ou omita as diferenças sociais, culturais e econômicas, posicionando-nos
de maneira crítica sobre a história que difunde um passado único e homogêneo, pois isso
evidencia o cuidado do poder instituído em valorizar um passado harmonioso.
Faz-se necessário, portanto, romper com esse ensino de história, “herança” da década
de 1970, baseado na memorização, por meio de perguntas e respostas, buscar a
desmistificação de verdades imutáveis onde o conhecimento está pronto e acabado. Para
tanto, é importante ter claro quais são nossas concepções sobre o processo ensino-
aprendizagem, pois são elas que dimensionarão nossos objetivos e a forma como viabilizá-los,
quais conteúdos serão tratados e quais atividades serão desenvolvidas. Isso porque, muitas
vezes, o conteúdo ensinado aos alunos aborda uma determinada história já cristalizada e que
nada tem a ver com a realidade18 vivida por eles. Em outras palavras, a história ensinada
precisa ter sentido, ou seja, ter a ver com o presente, com a realidade que os alunos conhecem
mais de perto. Isso significa romper com a visão de história acabada, única e verdadeira, onde
o conteúdo é distante dos alunos, não exigindo que repensem, que façam uma reflexão acerca
do que estão aprendendo. Conforme Cabrini (1994):
Essa história, que exclui a realidade do aluno, que despreza qualquer
experiência da história por ele vivida, impossibilita-o de chegar a uma
interrogação sobre sua própria historicidade, sobre a dimensão histórica de
sua realidade individual, de sua família, de sua classe, de seu país, de seu
tempo... Essa história torna “natural” o fato de o aluno não se ver como um
agente histórico, torna-o incapaz de colocar questões ou de perceber os
conhecimentos que, a partir de suas experiências individuais, possam ser
base de discussão em sala de aula. É famoso divórcio entre a escola e a vida
e que expressa a grande despolitização do ensino. O comprometimento com
a estrutura autoritária abafante da sociedade que perpassa toda a escola se
manifesta na relação entre saber e poder; isso faz com que o aluno parta do
pressuposto de que o que deve ser ensinado é o que a escola procura ensinar
e o impede de pensar qualquer outra alternativa de conteúdo (p. 22).
18
Ver KLEIN (2002).
29. 28
Para isso ressalta-se a importância do professor como sendo aquele que domina o
processo pelo qual se dá a produção do conhecimento, que se relaciona de maneira crítica
com o saber histórico já produzido pela humanidade. Em outras palavras, o professor de
história não precisa saber tudo o que aconteceu com a humanidade, mas é necessário que
saiba como a história é produzida conseguindo ter uma visão crítica19 do trabalho histórico
existente. Assim poderá, o professor, fazer com que os alunos produzam uma reflexão de
natureza histórica, fazendo um exercício de reflexão, que encaminhará os alunos para outras
reflexões que não, necessariamente, na escola, já que isso é fundamental para a vida deles,
pois são indivíduos históricos.
Outro fator importante é romper com a história descritiva onde se descreve a história
em um processo evolutivo passando a idéia de um progresso crescente, valorizando “grandes”
homens – heróis – fazendo da história uma biografia, onde se exclui as lutas e conflitos
sociais, quando muito apresentam uma visão maniqueísta de história onde de um lado está o
herói e de outro o vilão. Segundo Cabrini (1994):
O ensino dessa biografia nacional é cheio de estereótipos, mitos e
preconceitos. É a história conservadora do branco vencedor, em sua
democracia racial. A evolução é mostrada sem lutas de grupos sociais,
incruenta, tanto na conquista do território, quanto na independência ou
abolição... Há um maniqueísmo entre vilões e heróis, justificando-se todas as
dificuldades e problemas inicialmente pelo colonialismo, depois pelo
imperialismo, os quais forma ou devem ser vencidos pelo herói – Nação
brasileira -, e essa nação aparece como uma entidade abstrata desprovida de
articulações concretas entre seus diversos grupos e lutando para crescer em
oposição ao resto do mundo (pp. 24-5).
Para romper com isso tem grande contribuição o entendimento da realidade em sua
totalidade20, ou seja, entendê-la nos seus diferentes níveis: político, econômico, cultural e
social, não privilegiar um em detrimento dos outros, mas entendê-los nas suas relações e
interdependências, isto é, não valorizar, hierarquizar um e apenas apresentar umas pinceladas
dos demais. Essa é uma visão que fragmenta a história e supervaloriza o político em
detrimento dos outros, ou então, apresenta uma explicação que enfatiza o econômico,
produzindo uma explicação histórica onde este é o elemento determinante21. Há, portanto, a
necessidade de uma noção de totalidade do social.
19
Ser crítica significa, levar os alunos a compreenderem o que são, a perceberem que História é mudança, transformação; a
perceberem que, se existem fatores que permanecem, devemos entender porque permanecem, explicar as razões dessa
permanência (PARANÁ, 1990, p. 83).
20
Ver CURY (1989).
21
Ver: ENGELS, F. Carta a E. Block. In: MARX, K & ENGELS, F. Obras Escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, s/d. Vol. 3.
30. 29
Para Cabrini (1994, pp. 33-4), é essencial que se estude a história enquanto resultado
das ações dos homens, procurando explicar as relações entre diferentes classes sociais. Essas
relações estão em permanente movimento, e, são essencialmente dinâmicas e contraditórias.
Produzir história, para nós, é procurar captar, recuperar essas relações que se estabelecem
entre as classes sociais no desenvolvimento de suas atividades, nos mais diferentes tempos e
espaços. Em decorrência disso, necessitamos de um tipo de procedimento adequado aos
fenômenos históricos que estão sempre em movimento e que evidenciam manifestações
contraditórias. Uma vez que a história estuda as transformações sociais, seu objeto de estudo é
sempre uma determinada sociedade, em determinado momento, sempre pensada como um
todo, embora nem sempre analisada in totum. Essa é sempre pensada em suas transformações
permanentes, ou seja, em processo. É importante que se faça com que o objeto de estudo
apareça em todas as suas mediações e contradições; é importante que se tente reconstruir sua
razão de ser a partir de sua própria natureza, fazendo emergir toda a trama de relações sociais
que o constitui. É essa a noção de totalidade que nos parece significativa e com a qual
sugerimos que se trabalhe; estamos profundamente marcados por tudo o que nela está contido.
Levantar a problemática vivenciada pelos diferentes sujeitos significa dar-lhes voz, confrontar
suas propostas, fazer emergir suas contradições.
É, portanto, contra a história que oculta as diferenças e as contradições sociais que
temos que nos posicionar, isso significa, longe de assumirmos uma postura de neutralidade,
trazer à tona agentes sociais, fatos e aspectos que permitirão desmontar essa história a serviço
da dominação que conta a história do seu jeito, selecionando aquilo que deve ser dito e quais
agentes sociais devem ser lembrados e quais agentes ou fatos devem ser ocultados da
memória social.
Assim, ao se estudar a transformação de uma sociedade, é fundamental procurar
resgatar as ações das diferentes classes sociais que atuaram nela, pois quando uma sociedade é
pensada em sua totalidade é possível explicar porque seu processo permitiu que uma
possibilidade fosse concretizada e não outra, destruindo a idéia de determinismo. Fica
evidente, com isso, que a recuperação de uma realidade social em sua totalidade é possível em
qualquer nível de produção de conhecimento, utilizando-se de diferentes documentos.
Embora haja inúmeros documentos de que o professor possa se valer ao trabalhar a
história na sala de aula, o que se observa é que o livro didático, em vez de ser apenas um
material de apoio, ainda continua exercendo papel central e em muitos casos ele é o único
material/documento utilizado nas aulas. Devido a essa centralidade exercida pelo livro
didático nas aulas de história, dedicaremos o próximo capítulo a esse tema na tentativa de
31. 30
compreendermos melhor quais interesses estão relacionados a utilização do livro didático de
história em sala de aula.
LIVRO DIDÁTICO E O ENSINO DE HISTÓRIA
Ao abordarmos a questão do livro didático faz-se necessário, em primeiro lugar,
levar em conta a condição de mercadoria deste produto, que contém tanto elementos da sua
materialidade, ou seja, das leis de mercado, como também do seu uso, portanto, da Educação.
A análise do manual escolar de História e de disciplinas correlatas é hoje
uma das linhas de pesquisas que tem muitos seguidores no país. Do texto de
Estudos Sociais evolui-se para o de História, identificando suas mazelas, os
interesses explícitos ou aparentes, as ausências e presenças constantes,
analisando-se, assim, a qualidade de seu texto e desvendando, sobretudo os
compromissos e as vinculações do discurso histórico na escola, destronando,
de uma vez por todas, a concepção da neutralidade da escola e da
imparcialidade/objetividade do historiador (NADAI, 1992/3, p. 150).
No campo da Educação, entender o livro didático na sua completitude justifica-se,
principalmente, em função do papel que este adquire no contexto escolar, pois os livros
didáticos estabelecem grande parte das condições materiais para o ensino e a aprendizagem
nas salas de aula.
O livro didático tem sido, no dia a dia das escolas, especialmente, em
conseqüência das precárias condições de trabalho impostas ao professor, um
instrumento quase definidor do mesmo. Controlar o livro didático tem
representado controlar o próprio currículo (SAPELLI, 2005, p. 7).
Além disso, a postura do Banco Mundial de valorizar investimentos na aquisição de
livros ocorre, de acordo com Torres apud Sapelli (2005), principalmente pelo fato de os textos
escolares – “na maioria dos países em desenvolvimento” – constituírem-se em si mesmos o
currículo efetivo e, também, por tratar-se de um insumo de baixo custo e alta incidência sobre
a qualidade da educação e o rendimento escolar.
Em países como o Brasil, nos quais as condições precárias da educação fazem com
que ele acabe determinando conteúdos e decidindo estratégias de ensino, diz-se ainda que o
livro didático é instrumento importante de ensino e aprendizagem formal que, apesar de não
ser o único, pode ser decisivo para a qualidade do aprendizado resultante das atividades
escolares. Consideramos que são três as instâncias fundamentais nesse processo: a área
32. 31
comercial das grandes editoras; o Estado, especificamente as políticas públicas para o livro
didático22 e a escola (CASSIANO, 2004).
Para Bittencourt (2004), o livro didático tem despertado interesse de muitos
pesquisadores nas últimas décadas. Depois de ter sido desconsiderado por bibliógrafos,
educadores e intelectuais de vários setores, entendido como produção menor enquanto
produto cultural, o livro didático começou a ser analisado sob várias perspectivas, destacando-
se os aspectos educativos e seu papel na configuração da escola contemporânea. O livro
didático é um objeto cultural contraditório que gera intensas polêmicas e críticas de muitos
setores, mas tem sido sempre considerado como um instrumento fundamental no processo de
escolarização. O livro didático provoca debates no interior da escola, entre educadores, alunos
e suas famílias, assim como em encontros acadêmicos, em artigos de jornais, envolvendo
autores, editores, autoridades políticas, intelectuais de diversas procedências. As discussões
em torno do livro estão vinculadas ainda à sua importância econômica para um vasto setor
ligado à produção de livros e também ao papel do Estado como agente de controle e como
consumidor dessa produção. No caso brasileiro, os investimentos realizados pelas políticas
públicas nos últimos anos transformaram o Programa Nacional de Livro Didático (PNLD) no
maior programa de livro didático do mundo.
É, portanto, por meio de pesquisas e reflexões sobre o livro didático que podemos
identificar a importância e as relações contraditórias desse instrumento de comunicação, de
produção e transmissão de conhecimento, integrante da "tradição escolar". Para Bittencourt
(2004), o livro didático assume ou pode assumir funções diferentes, dependendo das
condições, do lugar e do momento em que é produzido e utilizado nas diferentes situações
escolares. Por ser um objeto de "múltiplas facetas", o livro didático é pesquisado enquanto
produto cultural; como mercadoria ligada ao mundo editorial e dentro da lógica de mercado
capitalista; como suporte de conhecimentos e de métodos de ensino das diversas disciplinas e
matérias escolares; e, ainda, como veículo de valores, ideológicos ou culturais.
As análises de caráter ideológico iniciaram-se na década de 1960, época em que se
privilegia a denúncia do caráter ideológico dos textos e do conteúdo dos livros escolares. Esta
abordagem ocupava e ainda ocupa um lugar de destaque nas pesquisas nacionais onde o
enfoque sobre as ideologias subjacentes aos manuais ainda permanece. No entanto, nos
22
No Brasil, as políticas públicas para o livro didático são representadas pelo PNLD (Programa Nacional do Livro Didático).
Este programa foi criado em 1985, tendo como objetivo a aquisição e distribuição universal e gratuita de livros didáticos para
os alunos da rede pública do ensino fundamental, sendo que a política de planejamento, compra, avaliação e distribuição do
livro escolar é centralizada no governo federal. Realiza-se por meio do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação), autarquia federal vinculada ao MEC (Ministério da Educação) e responsável pela captação de recursos para o
financiamento de programas voltados ao ensino fundamental.
33. 32
últimos anos houve mudanças de abordagens, pois foram ganhando destaque análises
acrescidas de outras temáticas, como por exemplo, relações entre as políticas públicas e a
produção didática, evidenciando o papel do Estado na normatização e no controle da
produção.
A partir dos anos 1980, muitos dos problemas relacionados ao conteúdo ou ao
processo de produção e uso do livro didático por professores e alunos passaram a ser
analisados em uma perspectiva histórica, constituindo-se tais análises em uma das vertentes
mais importantes desse campo de investigação. Os objetivos centrais de tais análises são o de
situar o processo de mudanças e permanências do livro didático – tanto como objeto cultural
fabricado quanto pelo seu conteúdo e práticas pedagógicas –, considerando sua inserção hoje,
quando se introduzem, em escala crescente, novas tecnologias educacionais, as quais chegam
a colocar em xeque a própria permanência do livro como suporte preferencial de comunicação
de saberes escolares (BITTENCOURT, 2004).
Percebemos que o livro didático tem contribuído para a formação de uma identidade
nacional na escola, com a sacralização de certos acontecimentos históricos e personagens
tanto por meio das narrativas dos textos didáticos como por meio das ilustrações. Exemplo
disso são as pinturas ou ilustrações representando: Tiradentes, D. Pedro I, Princesa Isabel,
Independência do Brasil, a primeira missa, a Batalha de Guararapes, pintadas por artistas que
receberam todo o apoio do governo imperial, como Pedro Américo, Vítor Meireles,
considerados pintores oficiais da Monarquia.
Portanto, a formação de uma identidade nacional e do conceito de nação é um
processo ideológico que na escola passa necessariamente pela conservação de uma memória
nacional e pela formação de uma consciência política. As propostas educacionais do Estado
não discutem no processo educativo que a formação da identidade nacional e da nação são
construções sociais em que o povo é sujeito (ZAMBONI, 2003).
Para tanto, o Estado impulsionou a indústria cultural, sendo que, no caso do ensino,
houve uma adoção em massa de livros didáticos, assumindo, em muitos casos, reiteramos, a
forma de currículo.
O livro didático torna-se uma das mercadorias mais vendidas no campo da
indústria editorial. Daí a preocupação do Estado e das editoras em publicar
os livros que estivessem em perfeita sintonia com os programas curriculares
de História, Geografia e demais disciplinas. Uma outra novidade, visando à
aceitação maior do livro didático, foi o lançamento dos manuais dos
professores, pela Editora Ática, em meados dos anos 60. Estes manuais,
além de trazerem a resolução de todos os exercícios propostos, forneciam (e
34. 33
alguns ainda o fazem) os planejamentos anuais e bimestrais prontos para o
professor (FONSECA, 1994, p. 139).
A grande produção editorial no Brasil, principalmente de livros didáticos, não
significou a democratização do saber, pelo contrário, o consumo em massa de livros didáticos
de História, não contribuiu para a compreensão crítica da História entre os alunos, pois este
material tornou-se um “veículo” de difusão de uma história que reproduzia a memória oficial,
por sua vez excludente.
O projeto de simplificação no nível de difusão implica tornar definitiva,
institucionalizada e legitimada pela sociedade a memória de um projeto de
poder vitorioso. Não é por outro motivo que a história do livro didático é,
basicamente, a História Política Institucional. “Os grandes fatos que
marcaram a vida da sociedade” são consumidos e consagrados como a
História. Entretanto, estas representações transmitidas simplificadamente
trazem consigo a marca da exclusão. O processo de excluir inicia-se no
social, onde “alguns atos” são escolhidos e “outros” não, de acordo com os
critérios políticos. Na academia o trabalho do historiador pode tanto excluir,
como recuperar, resgatar excluídos. Através do livro didático, os excluídos
não aparecem. Perdem o direito à história (VESENTINI apud FONSECA,
1994, p. 142).
A indústria cultural tornou-se um dos agentes que definem qual história ensinar e
como ensiná-la na escola, contribuindo para um ensino descolado do social ou um ensino
comprometido com outras experiências históricas.
Os livros didáticos não são apenas instrumentos pedagógicos: são também produtos
de grupos sociais que procuram, por intermédio deles, perpetuar suas identidades, seus
valores, suas tradições, suas culturas (CHOPPIN apud BITTENCOURT, 2002, p. 69). Ainda
para a mesma autora o livro didático tem sido objeto de avaliações contraditórias, pois
existem professores que os abominam culpando-os pelo fracasso escolar e outros que se calam
diante dos livros e o vêem como um auxílio positivo nas aulas. No entanto, para a autora, o
livro didático continua sendo o referencial dos professores. Diz, ainda, que é preciso entender
o livro como uma mercadoria e que como tal está subordinado a lógica do mercado, pois para
ela:
O livro didático é, antes de tudo, uma mercadoria, um produto do mundo da
edição que obedece à evolução das técnicas de fabricação e comercialização
pertencentes à lógica do mercado. Como mercadoria ele sofre interferências
variadas em seu processo de fabricação e comercialização. Em sua
construção interferem vários personagens, iniciando pela figura do editor,
passando pelo autor e pelos técnicos especializados dos processos gráficos,
35. 34
como programadores visuais, ilustradores. É importante destacar que o livro
didático como objeto da indústria cultural impõe uma forma de leitura
organizada por profissionais e não exatamente pelo autor. (BITTENCOURT,
2002, p. 71).
O livro didático é um sistematizador de determinadas propostas, diz não apenas o
que fazer, mas como fazer, realizando uma transposição didática do saber acadêmico para o
saber escolar, selecionando textos, ilustrações e conceitos, torna-se, portanto, um instrumento
pedagógico (BITTENCOURT, 2002, p. 73). Entretanto, para a mesma autora, o livro didático é
limitado e condicionado por razões econômicas, ideológicas e técnicas. A linguagem que
produz deve ser acessível ao público infantil ou juvenil e isso tem conduzido a simplificações
que limitam sua ação na formação intelectual mais autônoma dos alunos. Autores e editores
ao simplificarem questões complexas impedem que os textos dos livros provoquem reflexões
ou possíveis discordâncias por parte dos leitores. Sua tendência é de ser um objeto
padronizado, com pouco espaço para textos originais, condicionando formatos e linguagens,
com interferências múltiplas em seu processo de elaboração associadas à lógica da
mercantilização e das formas de consumo. A História Política que predominou no ensino de
História até recentemente foi responsável pela configuração nestes livros de uma galeria de
personagens da vida administrativa do país. Houve o cuidado de se pesquisar os possíveis
retratos de personagens que ficaram famosos posteriormente, para serem apresentados aos
jovens estudantes. É o caso, por exemplo, de Tomé de Souza e de Pedro Álvares Cabral. O
“descobridor” e o primeiro “chefe político” ou “governador-geral”, ou seja, biografar chefes
políticos fazendo uma galeria de pessoas ilustres. Nessa perspectiva, o conhecimento histórico
de outras sociedades definiu uma memória utilizada para rememorar e glorificar o passado de
grupos dominantes. Para desmistificar isso é necessário a introdução de outros elementos
históricos e, também, mostrar que essa visão é uma construção histórica e que constitui
apenas uma parte da realidade passada que foi criada.
Para Bittencourt (2002), há que se ressaltar a importância de se considerar o livro
como um documento, de ser analisado como um objeto produzido em determinado momento
histórico, e passível de incorporar investigações históricas. Outro fator importante é o papel
do professor no sentido de mediar uma reflexão sobre as imagens que são postas diante dos
olhos dos alunos por meio do livro didático, compreendendo que aquelas imagens
representam algo, tem um sentido, um significado.
Para Araújo (1999), o livro didático é um instrumento essencial nas aulas de história
e, por isso mesmo, considerado hoje por muitos estudiosos como sendo um dos problemas