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Antônio Cícero


                   GUARDAR
  Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
      Em um cofre não se guarda coisa alguma.
           Em cofre perde-se a coisa à vista.
   Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
 Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
          isto é, estar por ela ou ser por ela.
    Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
             Do que um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
       por isso se declara e declama um poema:
                     Para guardá-lo:
   Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
      Guarde o que quer que guarda um poema:
               Por isso o lance do poema:
        Por guardar-se o que se quer guardar.
Antônio Cícero


                INVERNO
           No dia em que fui mais feliz
                  eu vi um avião
       se espelhar no seu olhar até sumir
               de lá pra cá não sei
           caminho ao longo do canal
         faço longas cartas pra ninguém
     e o inverno no Leblon é quase glacial.
       Há algo que jamais se esclareceu:
        onde foi exatamente que larguei
naquele dia mesmo o leão que sempre cavalguei?
                Lá mesmo esqueci
                   que o destino
                sempre me quis só
  no deserto sem saudades, sem remorsos, só
    sem amarras, barco embriagado ao mar
             Não sei o que em mim
               só quer me lembrar
                 que um dia o céu
   reuniu-se à terra um instante por nós dois
     pouco antes do ocidente se assombrar
                                      (a Suzana Morais)
Antônio Cícero


        CANÇÃO DA ALMA CAIADA
                         Aprendi desde criança
                        Que é melhor me calar
                      E dançar conforme a dança
                          Do que jamais ousar
                        Mas às vezes pressinto
                     Que não me enquadro na lei:
                        Minto sobre o que sinto
                       E esqueço tudo o que sei.
                         Só comigo ouso lutar,
                        Sem me poder vencer:
                          Tento afogar no mar
                     O fogo em que quero arder.
                         De dia caio minh'alma
                        Só à noite caio em mim
                        por isso me falta calma
                         e vivo inquieto assim.



 Esta é a primeira letra que Marina musicou, feita por Cícero nos USA, "Canção da
Alma Caiada". Maria Bethânia chegou a gravar a música em 77, mas foi censurada.
Anos depois, Zizi Possi fez nova gravação.
Embora Marina já tenha cantado essa canção em shows, nunca gravou-a em disco.
Antônio Cícero



         FALAR E DIZER
                                        a Wally Salomão


Não é possível que portentos não tenham ocorrido
      Ou visões ominosas e graves profecias
                   Quando nasci.
              Então nasce o chamado
Herdeiro das superfícies e das profundezas então
                  Desponta o sol
      E não estremunha aterrado o mundo?
              Assim à idade da razão
       Vazei os olhos cegos dos arúspices e,
      Fazendo rasos seus templos devolutos,
     Desde então eu designo no universo vão
          As coisas e as palavras plenas.
                         Só
                     Com elas
    Recôndito e radiante ao sopro dos tempos
                    Falo e digo
                   Dito e decoro
 O caos arreganhado a receber-me incontinente.
Antônio Cícero

          ÁGUA PERRIER
              Não quero mudar você
            nem mostrar novos mundos
pois eu, meu amor, acho graça até mesmo em clichês.
              Adoro esse olhar blasé
           que não só já viu quase tudo
  mas acha tudo tão dejà vu mesmo antes de ver.
                   Só proponho
                alimentar seu tédio.
      Para tanto, exponho a minha admiração.
    Você em troca cede o seu olhar sem sonhos
              à minha contemplação:
               Adoro, sei lá por que,
                    esse olhar
                   meio escudo
 que em vez de meu álcool forte pede água Perrier.
Antônio Cícero


        ALGUNS VERSOS
 As letras brancas de alguns versos me espreitam
     em pé no fundo azul de uma tela atrás

       da qual luz natural adentra a janela

    por onde ao levantar quase nada o olhar
       vejo o sol aberto amarelar as folhas

       da acácia em alvoroço: Marcelo está

        para chegar. E de repente, de fora
       do presente, pareço apenas lembrar

     disso tudo como de algo que não há de

      retornar jamais e em lágrimas exulto
        de sentir falta justamente da tarde

que me banha e escorre rumo ao mar sem margens
       de cujo fundo veio para ser mundo

     e se acendeu feito um fósforo, e é tarde.

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Antonio Cicero - Guardar

  • 1. Antônio Cícero GUARDAR Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em um cofre não se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista. Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado. Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela. Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro Do que um pássaro sem vôos. Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se declara e declama um poema: Para guardá-lo: Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda: Guarde o que quer que guarda um poema: Por isso o lance do poema: Por guardar-se o que se quer guardar.
  • 2. Antônio Cícero INVERNO No dia em que fui mais feliz eu vi um avião se espelhar no seu olhar até sumir de lá pra cá não sei caminho ao longo do canal faço longas cartas pra ninguém e o inverno no Leblon é quase glacial. Há algo que jamais se esclareceu: onde foi exatamente que larguei naquele dia mesmo o leão que sempre cavalguei? Lá mesmo esqueci que o destino sempre me quis só no deserto sem saudades, sem remorsos, só sem amarras, barco embriagado ao mar Não sei o que em mim só quer me lembrar que um dia o céu reuniu-se à terra um instante por nós dois pouco antes do ocidente se assombrar (a Suzana Morais)
  • 3. Antônio Cícero CANÇÃO DA ALMA CAIADA Aprendi desde criança Que é melhor me calar E dançar conforme a dança Do que jamais ousar Mas às vezes pressinto Que não me enquadro na lei: Minto sobre o que sinto E esqueço tudo o que sei. Só comigo ouso lutar, Sem me poder vencer: Tento afogar no mar O fogo em que quero arder. De dia caio minh'alma Só à noite caio em mim por isso me falta calma e vivo inquieto assim. Esta é a primeira letra que Marina musicou, feita por Cícero nos USA, "Canção da Alma Caiada". Maria Bethânia chegou a gravar a música em 77, mas foi censurada. Anos depois, Zizi Possi fez nova gravação. Embora Marina já tenha cantado essa canção em shows, nunca gravou-a em disco.
  • 4. Antônio Cícero FALAR E DIZER a Wally Salomão Não é possível que portentos não tenham ocorrido Ou visões ominosas e graves profecias Quando nasci. Então nasce o chamado Herdeiro das superfícies e das profundezas então Desponta o sol E não estremunha aterrado o mundo? Assim à idade da razão Vazei os olhos cegos dos arúspices e, Fazendo rasos seus templos devolutos, Desde então eu designo no universo vão As coisas e as palavras plenas. Só Com elas Recôndito e radiante ao sopro dos tempos Falo e digo Dito e decoro O caos arreganhado a receber-me incontinente.
  • 5. Antônio Cícero ÁGUA PERRIER Não quero mudar você nem mostrar novos mundos pois eu, meu amor, acho graça até mesmo em clichês. Adoro esse olhar blasé que não só já viu quase tudo mas acha tudo tão dejà vu mesmo antes de ver. Só proponho alimentar seu tédio. Para tanto, exponho a minha admiração. Você em troca cede o seu olhar sem sonhos à minha contemplação: Adoro, sei lá por que, esse olhar meio escudo que em vez de meu álcool forte pede água Perrier.
  • 6. Antônio Cícero ALGUNS VERSOS As letras brancas de alguns versos me espreitam em pé no fundo azul de uma tela atrás da qual luz natural adentra a janela por onde ao levantar quase nada o olhar vejo o sol aberto amarelar as folhas da acácia em alvoroço: Marcelo está para chegar. E de repente, de fora do presente, pareço apenas lembrar disso tudo como de algo que não há de retornar jamais e em lágrimas exulto de sentir falta justamente da tarde que me banha e escorre rumo ao mar sem margens de cujo fundo veio para ser mundo e se acendeu feito um fósforo, e é tarde.