1. C A D E R N O S D A
E D U C A Ç Ã O E S P E C I A L
DEFICIÊNCIA MENTAL
DEFICIÊNCIA FÍSICA
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO
SECRETARIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
N. 1/1998
3. DEFICIÊNCIA FÍSICA
Maria Christina Braz Thut Maciel
Apenas diferentes 50
Os primeiros anos (até 3 anos) 60
Escola, a primeira aventura (4 a 6 anos) 70
Bem além dos limites (7 a 11 anos) 77
Adolescência: Ritmo. Desejo. Ação! 84
Adulto, cidadão e diferente 90
DEFICIÊNCIA MENTAL
4. 6 Programa 1 7
DEFICIÊNCIA MENTAL
artindo de um quadro conceitual genérico, a
P classificação tradicional caracteriza as seguintes
deficiências: mental, física, visual, auditiva e
múltipla. De acordo com estimativas da ONU (não
confirmadas oficialmente no Brasil), essas deficiênci-
as afetam 10 por cento da população de países em de-
senvolvimento, nas seguintes proporções:
Mental 5%
Física 2%
Auditiva 1,3 %
Múltipla 1%
Visual 0,7 %
No Brasil, as estimativas demonstram que a deficiên-
cia mental corresponde à metade do total de pessoas com
deficiência: seriam 7,5 milhões de pessoas, entre os 15
milhões de brasileiros hipoteticamente deficientes.
A definição de deficiência mental mais difundida
e aceita atualmente é a dada em 1992 pela American
Association of Mental Retardation (AAMR):
Funcionamento intelectual significativamente abaixo da
média, coexistindo com limitações relativas a duas ou
mais das seguintes áreas de habilidades adaptativas: co-
municação, autocuidado, habilidades sociais, participa-
ção familiar e comunitária, autonomia, saúde e seguran-
5. 8 Programa 1 Deficiência mental 9
ça, funcionalidade acadêmica, de lazer e de trabalho. • Toda pessoa com deficiência mental é doente.
Manifesta-se antes dos 18 anos de idade.
• Pessoas com deficiência mental morrem cedo, devi-
Esta é uma forma realista de considerar tal condi- do a ‘graves’ e ‘incontornáveis’ problemas de saúde.
ção humana que, em diferentes momentos e contextos • Pessoas com deficiência mental precisam usar
históricos, já foi vista e sentida culturalmente como: ‘de- remédios controlados.
positária do mal’, ‘objeto de maldição’ ou ‘tragédia fa-
• Pessoas com deficiência mental são agressivas
miliar’. Ou, inversamente, como ‘detentora de poderes
e perigosas, ou dóceis e cordatas.
sobrenaturais’, ‘beneficiária de especial proteção’ etc.
Algumas vezes, a própria ciência formulou hipó- • Pessoas com deficiência mental são generaliza-
teses e defendeu teses depreciativas, como Platter que, damente incompetentes.
no século XVI, enfatizava o caráter de degenerescência • Existe um culpado pela condição de deficiência.
da deficiência mental:
• O meio ambiente pouco pode fazer pelas pesso-
Por seus pais, alguns, entre os imbecis, recebem um ca- as com deficiência.
ráter hereditário, e são causas internas que são, então,
• Pessoas com deficiência mental só estão ‘bem’
responsáveis pela imbecilidade; daí decorre muitas ve-
com seus ‘iguais’.
zes que, como os homens ativos e inteligentes concebem
seres semelhantes a eles, assim também os improdutivos • Para o aluno deficiente mental, a escola é apenas
concebem crianças de espírito embotado. um lugar para exercer alguma ocupação fora de casa.
Em escritos do século XVII também encontramos
referências à noção de doença confundida com defi-
Questões diagnósticas
ciência mental (então chamada ‘imbecilidade’), pre- Embora a deficiência mental possa ser identificada pre-
conizando a possibilidade de sua origem congênita cocemente (em especial nos quadros sindrômicos e nos
ou adquirida, e da existência de tratamentos que pu- casos mais graves), a escola com freqüência é o local
dessem levar à cura. Foi somente a partir do século em que surge pela primeira vez a hipótese de que uma
XVIII que surgiu uma abordagem ‘educacional’ das criança tenha essa condição, em razão da demanda
pessoas com deficiência mental, graças a estudos e advinda de aprendizagens escolares específicas.
iniciativas de médicos como Itard e Seguin. No entanto, tal hipótese deve necessariamente ser
A deficiência mental não pode ser confundida com confirmada, antes que algum rótulo seja aposto ao
doença mental (distúrbios emocionais, psicoses etc.), aluno. Com freqüência, as mais variadas característi-
nem com problemas ou distúrbios de aprendizagem; cas ou peculiaridades dos alunos, às vezes de caráter
tampouco com peculiaridades advindas do ambien- até mesmo transitório, são falsamente consideradas
te cultural (diferenças lingüísticas, de hábitos etc.). como sinais ou ‘sintomas’ de deficiência mental.
Em ambientes pouco exigentes, é menor a tendên-
Os séculos passaram, trazendo paulatinamente cia a rotular pessoas como deficientes. Inversamen-
nova compreensão a respeito dessa condição. No te, as comunidades mais competitivas, com acentua-
entanto, alguns mitos persistem, como por exemplo: do grau de exigência de desempenho e de habilida-
6. 10 Programa 1 Deficiência mental 11
des para funcionar no contexto social, identificam Conhecer e identificar esses fatores de risco é es-
maior número de deficientes mentais. pecialmente importante, para que se possam estabe-
O diagnóstico de deficiência mental, a ser realizado lecer programas de prevenção. No entanto, não existe
por um médico ou psicólogo e por um pedagogo, deve uma correlação linear obrigatória entre cada um des-
levar em consideração o momento da vida, bem como a ses fatores e a condição resultante – ou seja, muitas
diversidade cultural, lingüística e socioeconômica da pes- pessoas expostas a fatores de risco não apresentam
soa. O teste psicométrico deve ser considerado apenas deficiência mental. Além disso, com freqüência não é
como um indicador, a ser confirmado por pesquisa mais possível identificar o fator causal.
aprofundada, em cada caso. Se a hipótese de deficiência
mental for confirmada, a pessoa precisa receber atendi- Prevenção primária
mento e apoio favoráveis a seu desenvolvimento, a sua
aprendizagem e a sua independência na vida cotidiana. Segundo a Organização Mundial de Saúde, as medi-
Apenas recentemente as pessoas com deficiência men- das voltadas para a prevenção primária podem ser
tal passaram a ter um genuíno direito à cidadania e a se assim esquematizadas:
beneficiar dos progressos da ciência no sentido de uma
compreensão melhor de sua condição e de suas possibili- Medidas pré-natais
dades de desenvolvimento. Todavia, a idéia de isolar e se- • condições de saneamento básico;
gregar ainda persiste em muitos casos, na concepção dos • cuidados especiais em regiões de risco radiativo;
que julgam que a plena integração social jamais se conso- • planejamento familiar;
lidará numa sociedade competitiva que preconiza a bele- • aconselhamento genético pré-natal;
za, a produtividade, o vigor e a conveniência. • acompanhamento da gestação (saúde e nutrição
Para superar essas barreiras e, conseqüentemen- materna);
te, desenvolver ações que garantam o pleno acesso • diagnóstico pré-natal.
dessa parcela da população aos recursos socioeduca-
cionais, é indispensável dominar conhecimentos a Medidas perinatais
respeito de deficiência e reconhecer as reações pes- • atendimento médico-hospitalar de qualidade na
soais e sociais provocadas por essa condição. situação de parto;
• atendimento de qualidade ao recém-nascido;
Prevenção • screening neonatal;
• PKU (teste do pezinho).
Após ter sido superada a noção de que a deficiência
mental é uma doença, têm sido realizados estudos no Medidas pós-natais
sentido de conhecer melhor os fatores de risco que • condições de saneamento básico;
podem vir a determinar essa condição. Na verdade, • serviços de puericultura adequados (que incluem
existe uma complexidade de causas, sendo que ele- as campanhas de vacinação);
mentos múltiplos e interativos estão envolvidos na • prevenção de acidentes domésticos.
origem da condição de deficiência mental.
7. 12 Programa 1 Deficiência mental 13
A prevenção primária é voltada para a comunida- atenção terciária. Além disso, devido à falta de políticas
de em geral, com o objetivo de diminuir a incidência públicas firmes, essas ações resultam da expressiva partici-
de doenças e acidentes que possam ser causadores de pação da sociedade civil (pais, profissionais, associações etc.).
deficiência. Depende prioritariamente de ações polí- Malgrado os esforços desses segmentos, é bem pouco
ticas que tornem viável a implantação de programas o que se oferece à maior parte da população com deficiên-
preventivos garantidos em dispositivos legais, tais cia mental. Alguns estudos indicam que 67 por cento dos
como o Estatuto da Criança e do Adolescente. portadores de deficiência mental não recebem atendimen-
to algum; e apenas 33 por cento recebem um atendimento
Prevenção secundária razoável. Entre o que é oferecido, merece especial aten-
ção o aspecto educacional que, no Brasil, é tradicio-
A prevenção secundária se refere às ações que redu-
nalmente entendido como Educação Especial.
zem a duração dos problemas já existentes, ou rever-
tem seus efeitos. É destinada a pessoas que já apre-
sentam uma condição de deficiência, ou manifestam Educação Especial
problemas que, se não receberem atendimento ade-
Compreende-se que, no contexto da Educação Especial,
quado, podem resultar em deficiência.
o termo ‘educacional’ se refere a todo espaço institucio-
Esse tipo de atendimento é feito por meio de pro-
nal voltado para o desenvolvimento e a aprendizagem
gramas destinados a conter a evolução de doenças ca-
do indivíduo. Esse espaço é comprometido com os
pazes de causar deficiência, ou então por meio de pro-
múltiplos e interdependentes aspectos do desenvolvi-
gramas de estimulação destinados a minimizar os agra-
mento – cognitivo, afetivo, socioemocional –, tendo
vos provocados por um quadro de deficiência.
como referência as diferenças individuais e as possibi-
São exemplos de ações de prevenção secundária:
lidades socioeducacionais de seus sujeitos.
diagnóstico precoce, programas que incluem dieta
Acredita-se que toda criança deve ter o direito de
para crianças com fenilcetonúria, programas de
estar inserida em um programa educacional, indepen-
estimulação precoce etc.
dente de suas possibilidades de aprendizagem acadê-
mica, até porque o sentido aqui atribuído ao processo
Prevenção terciária educacional ultrapassa, e muito, os limites impostos a
A prevenção terciária se dirige às pessoas que já vi- um programa restrito à educação formal, acadêmica.
vem a condição de deficiência mental. Tem por obje- Todo espaço educacional pressupõe a convivên-
tivo possibilitar o pleno desenvolvimento das cia entre os pares. A possibilidade de conviver, trocar
potencialidades do indivíduo, diminuindo as eventu- (dar e receber) e vivenciar situações do cotidiano é
ais defasagens provocadas por sua condição. Tais um objetivo implícito no processo de aprendizagem,
ações incluem o atendimento clínico e o atendimen- bem como no desenvolvimento humano.
to pedagógico (pré-escolar, escolar, de preparação O direito de todos os indivíduos à educação, como
para o trabalho etc.). caminho possível de integração com o meio social,
Em nossa sociedade, são precárias as políticas de pre- deve ser respeitado, independentemente das dificul-
venção. Assim, as ações se voltam prioritariamente para a dades ou deficiências do educando.
8. 14 Programa 1 Integração, deficiência mental e educação 15
A educação, direito de todos e dever do Estado e da INTEGRAÇÃO, DEFICIÊNCIA
família, será promovida e incentivada, com a colabo- MENTAL E EDUCAÇÃO
ração da sociedade, visando o pleno desenvolvimen-
to da pessoa, seu preparo para o exercício da cidada-
nia e sua qualificação para o trabalho.
(Constituição Federal, 1988, Capítulo III, Seção I, art. 205)
Se a educação é direito de todos, os indivíduos por-
tadores de deficiência estão sem dúvida aí incluídos;
questão da integração do aluno com deficiên-
portanto, sua educação é plenamente assegurada. Além
disso, o artigo 208, inciso III, reassegura o “[...] atendi-
mento educacional especializado aos portadores de de-
A cia mental faz pensar nas dificuldades senti-
das pelos professores, manifestas em indaga-
ções do tipo:
ficiência, preferencialmente na rede regular de ensino”.
Assegurar oportunidades iguais, no entanto, não signi- • Como integrar o aluno com deficiência mental
fica garantir tratamento idêntico a todos, mas sim oferecer em uma classe comum, sendo que essas classes
a cada indivíduo meios para que ele desenvolva, tanto têm, no mínimo, trinta alunos?
quanto possível, o máximo de suas potencialidades. Assim, • Como administrar a ‘atenção especial’ que de-
para que o princípio da igualdade de oportunidades (di- veria ser dispensada ao aluno com deficiência
reito formal) se torne um fato (direito real), é indispensá- mental, sem prejuízo dos demais alunos?
vel que sejam oferecidas oportunidades educacionais
diversificadas. O verdadeiro significado da igualdade de • Como receber um aluno com deficiência men-
oportunidades repousa mais na diversificação que na se- tal, se o professor não é habilitado em Educa-
melhança de programas escolares. (Mazzota, 1982) ção Especial?
• Como o professor poderá fazer as adaptações
curriculares e desenvolver as atividades didáti-
cas sem o suporte técnico-pedagógico de um es-
pecialista?
• Como lidar com a dificuldade dos demais alu-
nos e pais em ‘aceitar um colega diferente’?
Cabe aqui perguntar: estas questões refletem mitos
e preconceitos, ou expressam a realidade?
Não temos a pretensão de responder às questões
colocadas, mas propomos uma reflexão conjunta so-
bre a compreensão dos conceitos de: integração, de-
ficiência mental e educação.
9. 16 Programa 1 Integração, deficiência mental e educação 17
Integração: do que estamos falando? Esse caminho depende da qualidade das relações
Integrar: tornar inteiro; completar, inteirar, integralizar. (desde as primeiras vivências) que são estabelecidas
Inteirar-se, completar-se. Juntar tornando parte integran- entre a criança (dimensão individual) e seu grupo de
te; reunir-se, incorporar-se. (Novo Dicionário Aurélio) referência: família, escola etc. (dimensão social).
Depende, ainda, do compromisso e da aceitação da
Pensando nessa definição, a integração aparece
deficiência por familiares, vizinhos, colegas, professores
sob duas dimensões que se entrelaçam: a dimensão
etc. Portanto, depende do processo de relacionamento
individual e a dimensão social.
dialeticamente construído entre os sujeitos.
Ainda hoje, muitos professores e outros profissio-
Vale a pena ressalvar a ineficácia dos instrumen-
nais da educação acreditam que o aluno com defici-
tos legais que, na tentativa de garantir a integração do
ência mental tem pouca, ou nenhuma, possibilidade
aluno com deficiência mental na classe comum, im-
de se integrar. Será um mito, ou é uma realidade?
põem uma pseudo-aceitação deste, acabando por
Ao pensarmos a integração do ponto de vista do sujei-
gerar desordens na ordem escolar.
to, na dimensão individual, podemos falar no movimento
Quando a presença do aluno diferente é imposta,
próprio da criança, que a conduz naturalmente em direção
sem a devida preparação (do próprio aluno com de-
ao outro e ao meio ambiente. Podemos dizer que esse
ficiência, de seus colegas e professores, dos pais, de
movimento é uma condição básica para a aprendizagem:
funcionários etc.), fica difícil falar em integração. A
aprendizagem de si, do outro e do mundo a seu redor.
integração não se faz com atos legais, não pode ser
Quanto à dimensão social, podemos pensar nas
imposta. Ela é conquistada, nas ações e nas relações.
diferentes formas de receber, ou de aceitar o movi-
mento da criança com deficiência mental, por parte Deficiência mental:
do outro. Como essa criança diferente é recebida ao do que estamos falando?
se relacionar com o outro? Qual a influência da acei-
O grau de comprometimento intelectual das crianças
tação ou da rejeição na construção de sua identida-
com deficiência mental (aspectos internos) abrange
de, de sua auto-imagem, enfim, de sua auto-estima?
uma escala variada.
Pode-se dizer que a integração é um processo bilate- Em uma das extremidades estão as crianças que
ral que pressupõe a participação e a ação partilhada, desenvolvem habilidades sociais e de comunicação
ao mesmo tempo dividida e somada. É um movimen- eficientes e funcionais, têm um prejuízo mínimo nas
to de conquista de espaço (interno e externo), tanto áreas sensório-motoras, e podem apresentar compor-
daquele que pertence ao chamado grupo minoritário tamentos similares aos das crianças de sua idade que
quanto dos demais participantes da comunidade. não são portadoras de deficiência. Esse grupo consti-
tui a maioria, cerca de 85 por cento.
Sem dar uma visão simplista a essa questão complexa, No centro da escala estão as crianças com nível
podemos pensar que, para o sujeito poder se integrar, ou de comprometimento intelectual mais acentuado,
seja, se assumir como indivíduo, conhecendo e aceitando porém capazes de adquirir habilidades sociais e de
suas possibilidades e dificuldades, há um longo caminho comunicação, contanto que disponham de apoio e
a percorrer, tanto por ele mesmo quanto pela sociedade. acompanhamento mais constantes. Representam,
10. 18 Programa 1 Integração, deficiência mental e educação 19
aproximadamente, 10 por cento dessa população. dimensão social. Somente assim podemos efetivar ações
Apenas cerca de 5 por cento apresentam um rebaixa- que garantam o pleno acesso dessa parcela da popula-
mento intelectual significativo, com freqüência associado ção aos recursos socioeducacionais disponíveis.
a outros comprometimentos. Nos primeiros anos da infân- O acesso a recursos educacionais não é apenas um
cia, essas crianças adquirem pouca (ou nenhuma) fala co- direito do cidadão com deficiência, mas também uma
municativa e apresentam prejuízos substantivos no desen- das vias que pode garantir o exercício de sua cidada-
volvimento sensório-motor. Beneficiam-se com a nia e a apropriação da mesma.
estimulação multissensorial, também requerendo um am-
biente estruturado, favorável a seu desenvolvimento e Educação: do que é
aprendizagem, com apoio e acompanhamento constantes. mesmo que estamos falando?
Nessa escala, podemos encontrar uma enorme Refletir sobre a integração da pessoa com deficiência
variedade de formas de apresentação e de condições mental implica necessariamente repensar o sentido
de desenvolvimento e de aprendizagem. atribuído à educação. Implica, portanto, atualizar nos-
sas concepções e dar um novo significado aos propó-
Resumindo: o índice de pessoas com comprometi-
sitos educacionais, compreendendo a complexidade
mento cognitivo pouco acentuado é predominante,
e a amplitude que envolvem o processo de constru-
com aproximadamente 85 por cento. Os indivíduos
ção de cada indivíduo, seja ou não deficiente.
com maior comprometimento correspondem à me-
A educação a que nos referimos tem um caráter
nor parcela dessa população.
amplo e complexo, envolvendo todas as ações e as
Boa parte da população com comprometimento in- relações (planejadas ou não, formais ou informais)
telectual pouco acentuado está excluída da escola públi- produzidas pelo indivíduo e para ele, tendo como
ca. Outra parte está matriculada em classes especiais da propósito uma atitude contínua de preparar e se pre-
rede pública e um pequeno (muito pequeno) grupo está parar, formar e se formar, pela vida e para ela.
integrado em classe ou em escola comum. Assim entendendo, lembramo-nos de Freinet, para
Tendo isso em vista, é importante ‘provocar’ os quem a “educação não é uma fórmula de escola, mas
professores, no sentido de despertá-los para a ques- sim uma obra de vida”.
tão da inclusão e da integração do aluno com defici- O processo educacional voltado para as pessoas
ência mental no espaço social. Esse espaço não inclui com deficiência mental deveria ser pensado nessa
apenas a escola e a família, mas também ruas, pra- mesma perspectiva, ou seja, tendo em vista a prepa-
ças, parques, feiras, clubes – enfim, todos os espaços ração para a vida na família, na escola e no mundo.
que possam ser ocupados por esses alunos, em dire- Se isso ocorresse, o processo educacional resultaria
ção a sua autonomia e a sua participação social. naturalmente em convívio e participação social.
Para superar as barreiras do preconceito, um caminho Porém, como os mitos e preconceitos ainda ron-
possível passa, por um lado, pelo conhecimento da con- dam o imaginário da grande maioria das pessoas,
dição de deficiência, na dimensão do sujeito; e, por outro devemos continuar falando em Educação Especial,
lado, pelas atitudes e pelo comportamento da sociedade com todas as especificidades que lhe são próprias
(em especial professores, demais alunos e pais etc.), na (ou, por vezes, impróprias).
11. 20 Programa 2 21
E o que é Educação Especial?
A Educação Especial é parte integrante da educação co-
A CRIANÇA DE 0 A 3 ANOS:
mum. Em tese, corresponde a um caminho longitudinal ESTIMULAÇÃO INTENSIFICADA
que compreende ações sucessivas, desde os programas
de estimulação desenvolvidos com bebês, até os progra-
mas de preparação para o trabalho, na idade adulta, pas-
sando pelos programas pré-escolar e escolar.
Falar da questão da integração da pessoa com
deficiência mental nos leva a concluir que, se existe
nascimento do bebê marca o início da vida ex-
O
hoje a preocupação em relação a sua integração, está
clara a forte presença de seu contraponto, a segrega- tra-uterina e do processo de construção de uma
ção. A história da humanidade é pródiga em exemplos nova pessoa. Esse processo não é estático, nem
de segregação de pessoas com deficiência e, infeliz- ocorre de forma linear: é entremeado por períodos de
mente, o mesmo não se pode dizer da integração. avanço, por retrocessos e estagnações, conforme pesqui-
As marcas dos mitos e preconceitos em relação à pes- sas de Wallon e Vygotsky. Assim, cada indivíduo tem sua
soa deficiente não se apagam. Entre elas, talvez a mais cruel própria personalidade, bem como um ritmo e um perfil
seja a tendência a não admitir seu potencial de desenvolvi- individuais de desenvolvimento.
mento e de aprendizagem. Com isso, o aluno é precocemente Os estudiosos do desenvolvimento infantil enfatizam
anulado ou, na melhor das hipóteses, enfrenta as maiores a relevância das experiências dos primeiros anos de
dificuldades para ser educado na vida escolar e social. vida, que irão fornecer todos os alicerces importantes
No entanto, independente das dificuldades advindas para as futuras aprendizagens e para o desenvolvimen-
de sua deficiência, todo aluno pode, a seu modo e em to da criança. Eles asseguram que o bebê necessita ali-
seu tempo, se beneficiar de programas educacionais. Ele mento e higiene para crescer fisicamente; e, acrescentam,
precisa apenas que lhe sejam dadas oportunidades ade- requer também atenção e afeto, para desenvolver suas
quadas para desenvolver seu potencial de aprendiza- estruturas psicológicas (mental e emocional).
gem e, conseqüentemente, se integrar. É essencial para todo bebê sentir-se aquecido, ali-
mentado, higienizado e sustentado no colo com firmeza
BIBLIOGRAFIA e aconchego; cada uma dessas necessidades tem um
equivalente psicológico e emocional.
AMARAL, Lígia Assumpção. Conhecendo a deficiência - Para que o bebê se acostume com o som da voz
em companhia de Hércules. São Paulo, Robe, 1995. humana e das palavras é fundamental conversar com
FREINET, C. Pedagogia do bom senso. São Paulo, ele desde os primeiros dias. As sementes do aprendi-
Martins Fontes, 1985. zado da comunicação já estão sendo lançadas: o uso
MAZZOTTA, Marcos José da Silveira. Fundamentos da da palavra com seus significados só se viabiliza pela
Educação Especial. São Paulo, Pioneira, 1982. interação com uma pessoa falante.
——. Educação escolar: comum ou especial? São Paulo, Ao longo do primeiro ano de vida ocorre um proces-
Pioneira, 1987. so intenso de desenvolvimento e de maturação neuroló-
12. 22 Programa 2 A criança de 0 a 3 anos: estimulação intensificada 23
gica. As reações reflexas iniciais (sucção, preensão palmar cias e vivências proporcionadas pelo meio ambiente,
e plantar, marcha reflexa etc.) aos poucos vão se tornan- graças à mediação dos adultos (fator social).
do ações voluntárias, isto é, controladas pela criança. Assim, o ciclo da vida é marcado por períodos que
O bebê tende a repetir os movimentos que asso- se sucedem, sendo um o alicerce do outro – vai sen-
cia com sensações agradáveis. A presença da mãe ou do construído passo a passo, num contínuo, gradual
de sua substituta é um fator fundamental; ao atribuir e equilibrado movimento – a dança da vida!
significado às ações da criança, o adulto estimula a Normalmente, as crianças com deficiência mental,
repetição de tais ações. cujo desenvolvimento intelectual (cognitivo) é mais
lento, demoram mais para aprender a usar o próprio
Alguns passos do desenvolvimento corpo. E começam mais tarde que as outras crianças
a levantar a cabeça, rolar o corpo, sentar, usar as mãos,
Aqui estão alguns passos do desenvolvimento normal ficar em pé, andar e fazer outras coisas. Apresentam
da criança – processo que inclui variações de tempo um atraso no desenvolvimento neuropsicomotor.
e diferenças individuais: As conquistas são progressivas e a criança cami-
• 3 meses: o bebê sorri, pega objetos delibera- nha em direção a sua crescente autonomia: se alimen-
damente, como a chupeta, e reconhece com ale- tar sozinha, falar, andar, correr, saltar, pensar, brincar...
gria pessoas da família, principalmente a mãe. No entanto, às vezes precisa enfrentar obstáculos, pre-
• 6 meses: rola o corpo, emite sons e sílabas, saco- cisa resistir ao desejo dos pais ou de outras pessoas
de o chocalho e estranha pessoas desconhecidas. de fazer as coisas por ela.
• 9 meses: senta sem apoio, olha quando é chamado A descoberta do ‘não’ é um marco importante na
pelo nome, procura e encontra objetos escondidos. caminhada em direção à independência. Impor limi-
• 12 meses: anda sem apoio, emite algumas palavras tes e estabelecer a disciplina são atitudes que fazem
com intencionalidade: ‘áua’ = quero água; ‘nenê’ = dá parte da tarefa de educar. Esse aprendizado irá demar-
para o nenê etc. Pega e entrega objetos quando lhe car os caminhos para a formação da consciência.
pedem e começa a ajudar na hora de se vestir. As experiências bem-sucedidas precisam se sobre-
• De 1 a 2 anos: o desenvolvimento global se ex- por às demais. Cabe inicialmente aos pais
pande. A criança começa a caminhar e a capaci- proporcioná-las, a fim de que a criança aprenda a se
dade de exploração se amplia, indo além do pró- lançar no mundo com confiança. Saber que é amada
prio corpo, do corpo da mãe e dos objetos que lhe e desejada pelos pais lhe transmite segurança e cons-
eram oferecidos. Ela já pode se deslocar e ir ao titui a base para a construção de sua auto-estima.
encontro de outros objetos e brinquedos. Explorando as possibilidades de seus brinquedos
e dos objetos da casa (bater, empurrar, puxar, apertar,
As aquisições vão se dando de forma gradual e pro- morder...), a criança passa a inventar suas próprias
gressiva; cada etapa representa uma conquista e, ao brincadeiras; essa é a experiência que a introduz no
mesmo tempo, prepara para futuras aquisições. O pro- mundo de faz-de-conta.
cesso de desenvolvimento resulta da interação entre a Brincar se torna progressivamente uma atividade
maturação neurológica (fator biológico) e as experiên- significativa para o bem-estar da criança, assim como
13. 24 Programa 2 A criança de 0 a 3 anos: estimulação intensificada 25
os atos de comer e dormir. Quando brinca, ela apren- tar a cabeça aos 3 meses pode sugerir apenas um atra-
de muitas coisas acerca do mundo exterior e da ma- so; porém não fazê-lo aos 6 meses talvez indique uma
neira de lidar com ele; ao mesmo tempo, são estimu- deficiência.
lados outros aspectos do desenvolvimento. Nascer com uma deficiência instalada, ou ter o
Para exercitar e estimular a imaginação da crian- risco de desenvolvê-la, em nada altera as necessida-
ça, ouvir histórias é um recurso valioso. Trata-se de des básicas: alimentação, higiene, afeto, proteção e
uma atividade que desperta prazer e interesse: os oportunidades para explorar o próprio corpo e o
contos, mitos e lendas se incorporam a seu mundo. mundo a sua volta.
A imitação e a manipulação, em jogos e brincadei- Mas, é claro que a criança com deficiência mental
ras, incentivam o domínio da coordenação visomotora tem necessidades próprias. Os pais, os profissionais e
e da capacidade de antecipar e planejar ações. Ativi- os agentes de estimulação devem tentar descobrir es-
dades como quebra-cabeça, bastões de aparafusar, sas necessidades e procurar a melhor forma de atendê-
roscas, cilindros, brinquedos de construir etc. são óti- las. A programação da intervenção e da estimulação
mas nesse sentido. específicas deve ter como ponto de partida uma avalia-
A criança se diverte e aprende com tintas a dedo, ção médica, pois os procedimentos de estimulação de-
gizão, canetas hidrográficas, lápis de cor etc. Dançar, pendem do quadro apresentado pelo bebê.
cantar, marchar, saltar obstáculos, brincar na água são
atividades prazerosas e altamente produtivas para o É importante levar em conta que:
desenvolvimento e o domínio do corpo em movimen- • O manuseio incorreto de um bebê com paralisia
to, ou seja, para a coordenação global e o equilíbrio. cerebral pode provocar deformidades ósseas. É im-
portante lembrar que a paralisia cerebral não im-
Estimulação precoce plica, necessariamente, deficiência mental.
• O manuseio incorreto de um bebê com síndrome
Para a maioria das crianças, o processo de desenvolvi- de Down pode comprometer ainda mais seus pre-
mento e aprendizagem transcorre de forma natural, juízos na área motora.
bastando que elas recebam da família os cuidados bá-
sicos, a atenção, o carinho e os estímulos espontâneos. Ao detectar o mais cedo possível a deficiência ou
Porém, uma parcela da população infantil precisa da os atrasos de desenvolvimento do bebê se ganha tem-
intervenção específica dos pais e de profissionais, ou po na corrida em prol da atualização de suas capaci-
agentes de estimulação, para se desenvolver. dades de desenvolvimento global. A demora para ini-
Estamos falando do bebê que nasce com deficiência ciar a intervenção adequada cria o risco de perdas
mental (quadros sindrômicos), ou daquele que não tem irreparáveis e de defasagens irreversíveis.
uma deficiência instalada, mas corre o risco de vir a As atividades de estimulação precoce, que consti-
apresentá-la (bebês com alto risco neurológico). tuem prática adotada internacionalmente, se destinam
Os bebês chamados de alto risco podem apresen- a crianças de 0 a 3 anos de idade com quadro de defici-
tar um atraso no desenvolvimento sem que isso ne- ência instalado desde o nascimento – como por exem-
cessariamente indique uma deficiência: não susten- plo a síndrome de Down. São adotadas também para
14. 26 Programa 2 A criança de 0 a 3 anos: estimulação intensificada 27
crianças suscetíveis de vir a apresentar uma deficiência saúde, em salões comunitários, ou em outros espa-
(em conseqüência de razões diversas), em função de ços disponíveis na comunidade, com a participação
atraso no desenvolvimento neuropsicomotor. da família e de agentes comunitários treinados e su-
pervisionados por profissionais da área da saúde.
Estimular significa criar condições facilitadoras para As pessoas envolvidas em atividades de
o desenvolvimento do bebê e da criança. estimulação precoce precisam estabelecer uma re-
lação afetiva com a criança, a despeito da deficiên-
Cabe aos pais, aos profissionais e aos agentes de pre- cia apresentada, confiando em suas possibilidades
venção a tarefa de proporcionar situações e atividades d e d e s e n v o l v i m e n t o. E s s a r e l a ç ã o v a i s e n d o
estimuladoras, de conformidade com a etapa de desen- construída por meio do toque, da maneira de se-
volvimento. Assim, ao dispor da maior variedade possí- gurar e manipular o bebê, dos gestos e da comuni-
vel de situações e de oportunidades para experimentar, cação pelo olhar.
explorar e brincar, incluindo movimentos corporais e uso
de todos os sentidos – principalmente visão, audição e tato BIBLIOGRAFIA
– a criança estará efetivamente sendo estimulada.
Nos programas de estimulação se enfatiza a par- ARAÚJO, C. A. de. “Desenvolvimento afetivo-emocio-
ticipação da família (mãe, pai, irmãos e avós), uma nal”. Campanha de Prevenção das Deficiências: De-
vez que um ambiente familiar e social adequadamente senvolvimento Normal da Criança - 1: 13-17. São
estimulador favorece o processo de aprendizagem e Paulo, Segmento, 1996.
o desenvolvimento da criança. MILLER, Lisa. Compreendendo seu bebê. Rio de Janei-
ro, Imago, 1992.
Todo programa de estimulação precoce pressupõe SOCIEDADE BENEFICENTE SÃO CAMILO. O deficien-
um trabalho de orientação da família, para tornar te no Brasil: aspectos multidisciplinares da criança
possível: atípica. 2. ed., 1991.
• facilitar as relações afetivas entre a família e a criança;
STEINER, Déborah. Compreendendo seu filho de 1 ano.
• aprender a estimular naturalmente o filho, sem
Rio de Janeiro, Imago, 1992.
contudo se tornar mãe ou pai ‘terapeuta’;
TROWELL, Judith. Compreendendo seu filho de 3 anos.
• perceber as oportunidades de exploração que o
Rio de Janeiro, Imago, 1992.
meio físico e social oferecem à criança;
• perceber a importância do papel de cada membro
da família como mediador da estimulação nos pri-
meiros anos de vida.
O trabalho de estimulação precoce, indispensável
para a aprendizagem e o desenvolvimento da criança
com deficiência mental, não requer uma estrutura
sofisticada. Pode e deve ser realizado em centros de
15. 28 Programa 3 A criança de 4 a 6 anos: brincar é coisa séria 29
cialização. Esse trabalho envolve, na mesma medida,
A CRIANÇA DE 4 A 6 ANOS: o empenho da família, da creche, da pré-escola e de
BRINCAR É COISA SÉRIA todas as pessoas que convivem com a criança.
Talvez o desenvolvimento da sociabilidade seja a
Para conhecer a criança, é indispen- principal função da pré-escola, embora não seja uma
sável observá-la nos seus diferentes função exclusiva – tampouco se pretende que esse
espaço substitua ou suplante o papel da família. Ali,
campos e nos diferentes exercícios
a criança tem ricas oportunidades de ser trabalhada
de sua atividade cotidiana [...] e na
nas questões dos limites, das regras e das normas.
escola, em particular.
( Wallon) Ela aprende sempre, dentro e fora de sala de aula,
na vida e na interação com outras crianças. Enfim, o es-
construção do conhecimento pela criança, ao lon- paço de aprendizagem é tão amplo e complexo quanto
A go da vida, é fruto da inter-relação entre uma base
biológica, o organismo, e as condições externas – o
meio ambiente. Nesse processo, o adulto e as crianças mais
o processo de desenvolvimento humano. Assim, a res-
ponsabilidade pela educação fundamental do indivíduo
deve ser dividida igualmente entre a família e a escola,
experientes desempenham um papel vital – são os media- cada qual assumindo o papel que lhe é devido.
dores do saber acumulado pelo grupo cultural a que per-
tencem, e essa mediação ocorre por meio da linguagem. A integração à escola
A linguagem torna possível a comunicação entre
os indivíduos, a transmissão de informações e a tro- A creche e a pré-escola são espaços institucionais que
ca de experiências. A própria língua, veículo de assi- têm como proposta teórica o trabalho com múltiplos e
milação e de apropriação das conquistas alcançadas interdependentes aspectos do desenvolvimento da
pela espécie humana ao longo de milhares de anos, criança – cognitivo, afetivo, emocional, físico e social –,
é aprendida em situações de interação. levando em conta as diferenças individuais: capacida-
de, ritmo, personalidade etc.
As crianças, portadoras ou não de deficiência mental, Esses espaços devem contemplar as necessidades
constroem seu conhecimento pouco a pouco, na con- socioeducacionais da criança com deficiência mental, des-
tínua interação com as pessoas a seu redor. de que seu comprometimento não seja um empecilho.
A experiência nos relacionamentos, as influências • Por que a criança com deficiência mental normal-
mútuas e a possibilidade de vivenciar situações no- mente não é aceita em creches e pré-escolas co-
vas e desafiadoras possibilitam à criança a gradual e muns, sendo encaminhada para escolas especiais?
cada vez mais complexa construção da imagem do • Por que ela enfrenta tanta resistência, quando se
mundo que a cerca e das formas de nele viver. propõe a integração?
As condutas e os comportamentos esperados pela
sociedade permanecem como objeto de aprendiza- As iniciativas de integração em creches e pré-escolas
gem. Daí a importância do chamado trabalho de so- têm sido positivas tanto para a criança com deficiência
16. 30 Programa 3 A criança de 4 a 6 anos: brincar é coisa séria 31
mental quanto para as demais. Aprender sobre deficiência Entre 3 e 4 anos, a criança começa a ter consciên-
convivendo com ‘o diferente’ é uma rica experiência de vida. cia de si mesma, uma vez que já construiu a própria
Mitos e preconceitos acerca das possibilidades e imagem. As relações sociais são favorecidas por suas
das condições de aprendizagem da criança com defi- aquisições, especialmente pela linguagem. As trocas
ciência mental estão entre os grandes responsáveis sociais, a atividade pré-escolar e a aprendizagem ad-
por sua exclusão dos espaços educacionais. quirida propiciam uma grande evolução.
Na fase pré-escolar, a criança está desenvolvendo Histórias, músicas, desenhos etc. são recursos es-
e utilizando ativamente a linguagem. O uso da pala- pecialmente atraentes no período de 4 a 6 anos; con-
vra é uma característica essencial, pois possibilita a tribuem para ampliar a capacidade da criança de pen-
representação simbólica. A função simbólica que se sar, e, ao mesmo tempo, ampliam o vocabulário.
manifesta no jogo, na imitação, nas histórias criadas Por volta dos 4 e 5 anos, a criança já tem noções de
ou recriadas pela criança, é considerada uma forma tempo – manhã, tarde e noite; ontem, hoje, amanhã –,
de representação do mundo. relacionando esses conceitos com sua vida cotidiana.
A imitação, bem como as brincadeiras de faz-de- Aos 6 anos é despertada a curiosidade por apren-
conta, nada mais são que a representação simbólica der os ‘porquês’ e ‘para que’ do mundo físico, agora
de objetos e ações. Imitar a mãe em alguma ativida- percebido com maior lógica e coerência.
de doméstica, imitar a professora que dá aula, dirigir
uma caixa de sapato como se fosse um carro, são re- E a criança com
presentações que, na verdade, fazem parte do proces- deficiência mental?
so de aprendizagem.
Para qualquer criança, seja ou não deficiente, brin- Assim como existem variações no ritmo, no compor-
car de faz-de-conta constitui um constante exercício de tamento e na personalidade das crianças em geral,
elaboração, de raciocínio e de construção do conhecimen- uma outra variável se manifesta na aprendizagem e
to. O fazer é um instrumento fundamental para a apren- no desenvolvimento da criança com deficiência men-
dizagem das crianças entre 4 e 6 anos: pintar, modelar, tal: as limitações intelectuais decorrentes de sua defi-
trabalhar com formas, com bastões e recipientes. ciência. Na maioria das vezes, essas limitações não
constituem um impedimento para a aprendizagem.
A brincadeira envolve uma reflexão a respeito do Mas é preciso respeitar seu ritmo e seu tempo.
mundo interno e da imaginação, por um lado, e do O convívio com outras crianças não-deficientes,
mundo externo, da realidade, por outro. Serve para em um ambiente social e educacional integrado, cons-
explorar o pensamento e a emoção. titui um elemento facilitador da aprendizagem e do
desenvolvimento da criança com deficiência mental,
Percebe-se, assim, a importância da brincadeira. especialmente nessa faixa etária. Ações devidamente
Ao se sujar, se machucar, criar, construir, contar e ou- planejadas e a compreensão de que ela está em cons-
vir histórias, beijar, abraçar e brigar com os colegas, tante processo de aprendizagem e desenvolvimento
a criança vive plenamente o cotidiano, com relações geram um ambiente social e educacional integrador.
ricas em trocas e modelos. Tendo suas limitações respeitadas e recebendo
17. 32 Programa 4 33
oportunidades adequadas, todo indivíduo tem condi-
ções de desenvolver, a seu modo, suas capacidades A CRIANÇA DE 7 A 11 ANOS:
potenciais. Nesse sentido, reafirmamos a importância O DESAFIO DA ESCOLA
do papel do professor como agente mediador do pro-
cesso de aprendizagem, levando em consideração as A educação proporcionada pela
diferenças individuais e proporcionando atividades escola tem um caráter intencional
diversificadas e motivadoras, que façam do ensino e e sistemático, que dá especial rele-
da aprendizagem grandes aventuras. vo ao desenvolvimento intelectual.
Finalizando, podemos dizer que se torna impera- (Dias, 1981)
tivo potencializar a participação da criança com defi- educação escolar deveria representar, para toda
ciência mental na vida cotidiana e social, desde a mais
tenra idade, a fim de que possa efetivamente atuar no
mundo, exercitando sua autonomia, aprendendo a
A criança, a oportunidade de um salto qualitativo
em sua aprendizagem e em seu desenvolvimen-
to. Vygotsky (1991) afirma que, corretamente organiza-
decidir, opinar, cooperar, enfim, caminhando e con- da, a aprendizagem escolar oferece algo completamen-
quistando sua integração com seus próprios passos te novo para o desenvolvimento da criança, pois ativa e
(ainda que menos ágeis). desencadeia processos internos. Nesse sentido, o pro-
fessor tem papel vital, pois cabe a ele fazer a mediação
BIBLIOGRAFIA entre os conteúdos curriculares e a criança.
A proposta básica da escola consiste em desempenhar
HOLDITCH, Lesley. Compreendendo seu filho de 5 a função de promotora de aprendizagens: organizar de
anos. Rio de Janeiro, Imago, 1992. forma sistemática, por meio dos conteúdos curriculares,
MILLER, Lisa. Compreendendo seu filho de 4 anos. Rio o conhecimento produzido pelo homem ao longo dos
de Janeiro, Imago, 1992. tempos (Matemática, Português, Ciências etc.).
STEINER, Déborah. Compreendendo seu filho de 6 Nas sociedades escolarizadas, esse espaço de no-
anos. Rio de Janeiro, Imago,1992. vos saberes específicos é valorizado pela criança an-
VYGOTSKY, L.S. “Aprendizagem e desenvolvimento tes mesmo de iniciar o aprendizado formal. Por isso,
em toda família, independentemente das condições
intelectual na idade escolar”. In: Psicologia e Pe-
socioeconômicas e culturais, o ritual que antecede o
dagogia I, 31-50. Lisboa, Estampa, 1991.
primeiro dia de aula sempre se repete.
No Brasil, a educação é obrigação do Estado e direi-
to de todos, de acordo com a Constituição Federal de
1988 (Capítulo III, Seção I, art. 205). É assegurada, in-
clusive, às crianças e jovens portadores de deficiên-
cia com atendimento especializado, preferencialmen-
te, na rede regular de ensino (art. 208, inciso III).
18. 34 Programa 4 A criança de 7 a 11 anos: o desafio da escola 35
Embora esteja expresso em lei que os portadores Sabemos que a consciência da competência é formada
de deficiência devem ter, de preferência, atendimen- progressivamente e que a auto-estima da criança em fase
to educacional especializado na rede regular de ensi- de escolarização se liga ao sucesso na escola e a suas ex-
no, é sabido que o sistema educacional público não periências de socialização, vivências estas que são
oferece tais condições a todos os indivíduos portado- empobrecidas quando passa a freqüentar a classe especial.
res de deficiência mental, não somente pela diversi-
dade de tipos e graus de deficiência, mas também, Perda da motivação, desinteresse e não-mobilização
principalmente, porque há pouca vontade política. das energias internas refletem a internalização do
Comunidades mobilizadas por pais de crianças com sentimento de incapacidade imprimido pela escola.
deficiência fundaram instituições e escolas especializadas
para atender, principalmente, às crianças com prejuízos Mesmo que a criança precise enfrentar experiên-
mais acentuados – e que, na maioria das vezes, tiveram a cias de insucesso, o percurso da aprendizagem deve
deficiência identificada por ocasião do nascimento. A tra- ser gratificante. É a condição para que ela avance em
jetória institucional desse grupo costuma começar com o direção a patamares mais elevados.
Programa de Estimulação Precoce (0 a 3 anos). A dualidade do ensino (comum/especial) tem sido
um dos mecanismos utilizados pela escola para dis-
A experiência escolar criminar, principalmente, as crianças de classes so-
ciais mais baixas. Há diversas críticas ao sistema de
O Estado tem o dever de assumir o atendimento escolar ensino dual. Vivemos um momento de busca de so-
direto, por meio das redes de ensino, às crianças com luções para a integração desses sistemas.
deficiência mental em grau leve, as educáveis.
Criar um sistema integrado capaz de atender a necessi-
Esses alunos, que correspondem a aproximadamente
dades educacionais de crianças e jovens escolarizáveis,
85 por cento da população portadora de deficiência
sem as separações que hoje ocorrem, significa que os
mental, são identificados como tal após o início de sua
professores e demais profissionais da educação precisam
vida escolar, uma vez que o atraso no desenvolvimento aprender muita coisa acerca de pessoas deficientes. Na
é, normalmente, discreto e que suas dificuldades e a len- realidade, precisam aprender a levar em consideração as
tidão na aprendizagem começam a ser percebidas fren- diferenças de natureza e grau variados, apresentados por
te à demanda escolar: a primeira dessas demandas é a quaisquer pessoas. (Omote, 1996. Grifo nosso)
alfabetização – ponte para outras aprendizagens.
A marca inicial da trajetória escolar desses alunos é a O papel do professor
repetência. Portanto, até o momento em que foram enca-
minhados para a classe especial, eram vistos como não- Aprender acerca de pessoas com deficiência mental pode
deficientes. Assim, em vez de vivenciarem na escola um significar, para nós professores, deixar de encaminhar
processo de promoção pela via da aprendizagem, ocorre o indiscriminadamente para recursos especializados (clas-
oposto: as reincidentes repetências e o rótulo de deficiente ses especiais, escolas ou instituições especializadas) os
mental são os ‘ganhos’ desse aluno em seu processo esco- alunos que apresentam dificuldades escolares, sem antes
lar – processo de degradação, pela via da não-aprendizagem. proceder a um estudo rigoroso, do ponto de vista peda-
19. 36 Programa 4 A criança de 7 a 11 anos: o desafio da escola 37
gógico, de cada caso em particular. E significa considerar, sar seus próprios pensamentos; portanto, os conteúdos de
nesse estudo, principalmente os aspectos ligados à pró- seus pensamentos se tornam conscientes.
pria escola, enquanto facilitadora ou não de aprendiza- A exploração do próprio corpo, característica do
gens – metodologia, sistemática de avaliação do aluno, re- período anterior, se desloca para a exploração e o
lacionamento com a classe, currículo etc. – e, ainda, a conhecimento do mundo exterior. Nessa fase, se ob-
abordagem teórica que dá sustentação ao nosso entendi- serva curiosidade e ímpeto por atividades intelectuais.
mento do que é aprendizagem e como ela se processa. A criança se torna crítica e autocrítica.
Em relação à decisão quanto ao encaminhamen- Mais potente e mais segura, continua a caminha-
to do aluno para classe especial, é importante que se da em direção a sua autonomia.
leve em consideração que: As relações fora do âmbito familiar (com colegas,
[...] a educação tem como princípio fundamental a capacidade amigos e professores) passam a ser o centro de inte-
de crescimento do ser humano, que é ilimitado quanto à qual- resse da criança. A aceitação de regras e normas é fruto
quer tentativa de previsão, ou seja, de antecipadamente indicar de seu convívio grupal, o que implica um amadureci-
com precisão as possibilidades de cada um. (Mazzotta, 1987) mento da criança. Lealdade e fidelidade são noções
aprendidas nessa etapa da vida. O outro é levado em
Aprender acerca do aluno com deficiência mental
consideração. É a fase do jogo cooperativo, coletivo.
na faixa etária de 7 a 11 ou 12 anos significa, ainda,
rever nossos conhecimentos sobre o desenvolvimen- E a criança com deficiência mental?
to infantil, embora de forma breve.
A criança com deficiência mental não é desprovida de
Uma nova etapa inteligência. Se a deficiência for leve, ela é capaz de atin-
gir uma estrutura cognitiva que lhe possibilite realizar
Em função de uma nova condição de desenvolvimento operações lógicas de nível concreto, com apoio em ob-
cognitivo, a criança de 6 a 7 anos passa a conhecer o mun- jetos. Portanto, consegue operar mentalmente e abstrair,
do e a se relacionar com ele de forma diferente do que fa- tal como a criança que não é deficiente.
zia na fase pré-escolar. Seu comportamento, sua linguagem, Piaget se refere à estrutura cognitiva da criança com
suas relações sociais e, principalmente, seu raciocínio, pas- deficiência mental como uma “construção mental inacabada”.
sam por grandes modificações. O conhecimento começa a No caso da deficiência leve, a estrutura cognitiva não chega
ser construído de forma mais compatível com o mundo real, ao estágio das operações formais, ou seja, não chega à cons-
uma vez que agora a fantasia se diferencia da realidade. trução final – quarto e último estágio das estruturas do co-
A flexibilidade e a mobilidade crescentes de seu pen- nhecimento. Daí a expressão “construção mental inacabada”.
samento a tornam capaz de operar mentalmente; por exem- Se a criança com deficiência mental leve é capaz
plo, compreende que, se 5 + 3 = 8, então: 8 - 3 = 5 e 8 - 5 = de operar mentalmente, embora numa idade poste-
3. As operações mentais, como seriar, classificar, ordenar, e rior à das crianças não-deficientes, ela é também ca-
as que envolvem reversibilidade, conforme o exemplo, são paz de ser alfabetizada e de ter acesso a outros co-
realizadas com apoio em objetos ou materiais concretos. nhecimentos das sucessivas seriações escolares.
Ou seja, é a existência do concreto e observável que dá Progressivamente, práticas inovadoras e integradas
suporte aos seus pensamentos. Ela se torna capaz de pen- têm confirmado que, devidamente ‘trabalhadas’, as crian-
20. 38 Programas 5/6 39
ças com deficiência mental leve podem surpreender.
Para que essas práticas deixem de ser iniciativas iso- PASSAGEM
ladas e se tornem um projeto comum de todos os pro- PARA A VIDA ADULTA
fissionais da educação, precisamos superar a mesmice
pedagógica. Atividades artificiais, repetitivas e desprovi-
das de qualquer significado (recorte, colagem, pintura,
modelagem etc.) devem ser substituídas por um ambien-
te rico em linguagem e em desafios ao pensamento da
criança: em um ambiente alfabetizador.
fase da adolescência é marcada por conflitos, con-
Ao assumir efetivamente nosso papel, podemos que-
brar o círculo vicioso: não se ensina porque não se
acredita nas capacidades da criança (tão pouco co-
nhecidas!) e a criança não aprende porque não lhe
A quistas e grandes descobertas: descoberta do cor-
po em transformação e de suas novas possibili-
dades, descoberta da sexualidade e do desejo de trocas
são oferecidas oportunidades de aprender. afetivas com o sexo oposto... descobertas, descobertas...
Para o jovem, a necessidade de ser aceito pelo
Romper com esse círculo vicioso implica um rompi-
grupo de referência e de fazer valer suas posições,
mento anterior: desmontar o sistema dual de ensino e
seus valores, seus desejos e seus impulsos faz parte
iniciar, imediatamente, a construção de um sistema in-
dessas marcantes descobertas e constitui uma fonte
tegrado. Criar um sistema capaz de atender às necessi-
de conflitos e de conquistas.
dades educacionais de todas as crianças, utilizando os
O estranhamento do corpo em acelerada transfor-
recursos de Educação Especial como recursos adicionais
mação faz o adolescente perder a referência até mes-
e, portanto, paralelos, mas não exclusivos (Omote, 1996).
mo do espaço físico que ocupa: ‘tromba’ com freqüên-
Assim procedendo, estaremos no caminho de, efe-
cia nos móveis, as mãos parecem não reter copos e
tivamente, estender a todos o direito à educação.
jarras, os pés tropeçam nas menores coisas, a voz...
BIBLIOGRAFIA Ah! Quantos desafinados ais!!!
A sexualidade em franca e prazerosa ascensão é uma
DAVIS, Cláudia & OLIVEIRA, Zilma. Psicologia na edu- forte adversária das aulas, dos livros, das lições e das
cação. São Paulo, Cortez, 1990.
demais responsabilidades. A cabeça está sempre mais
MAZZOTTA, Marcos José da Silveira. Educação escolar: próxima da lua do que do mais interessante filme ou
comum ou especial? São Paulo, Pioneira, 1987. livro. O quarto, aliado e cúmplice dos grandes segredos,
MORAES, Zulca Rosseto de. Temas sobre desenvolvimen- está com a porta invariavelmente trancada, a despeito
to, 5(27): 18-26. São Paulo, Memnon, 1995. do que pensem os pais. O som, ‘rock pauleira’, sempre
NOT, Louis. Educação dos deficientes mentais. São Pau- muito alto parece mesmo acompanhar o ritmo e a tur-
lo, Francisco Alves, 1983. bulência próprios dessa fase.
VYGOTSKY, L.S. “Aprendizagem e desenvolvimento Mantendo alguns espaços internos e externos pró-
intelectual na idade escolar”. In: Psicologia e Pe- prios da infância (especialmente os que convêm e quan-
dagogia I, 31-50. Lisboa, Estampa, 1991. do convêm), os adolescentes começam a conquistar os
21. 40 Programas 5/6 Passagem para a vida adulta 41
espaços do mundo adulto. Ora se sentem adultos e as- tar’ o filho em um mundo violento como o de hoje
sim se apresentam ao mundo, ora se mostram crianças pode não ser um ato de bravura; mas, sem dúvida, é
birrentas. Mas, efetivamente, pertencem ao espaço in- uma grande aventura, é um ato de coragem.
definido de um tempo finito e belo: a adolescência!
Muitos conflitos giram em torno da ambivalência Desenvolvimento cognitivo
entre dois pólos: infância e vida adulta. Pólos aparen-
temente distintos, mas absolutamente complementa- Quanto ao aspecto cognitivo (intelectual), é na adoles-
res, que, como em contínuo movimento de gangorra, cência que se atinge o mais complexo estágio de desen-
se alternam em autonomia e dependência. volvimento – chamado por Piaget de “operatório formal”.
Esse movimento de alternância nos mostra que As operações de pensamento tornam o adolescente ca-
não se abandona de todo a infância na adolescência, paz de, agora, compreender aspectos e situações abs-
tampouco se deixa a adolescência por completo ao tratas do mundo que até então não lhe eram acessíveis.
conquistar a vida adulta. Leva-se nessa ‘viagem’ uma Ao se libertar do mundo concreto, ou seja, da fase
bagagem repleta de pequenos e grandes tesouros. E anterior de desenvolvimento cognitivo, o adolescente ga-
tesouros são sempre muito bem guardados. nha acesso a outras possibilidades de perceber o mundo
Continuamente, o adolescente é obrigado a ouvir e atuar nele, mesmo que seja só em pensamento: o dese-
as célebres e contraditórias frases – que talvez ne- jo de transformação do mundo, da sociedade, da vida...
nhum de nós tenha esquecido: O conhecimento, cuja construção se iniciou a par-
tir do nascimento (período sensório-motor), continua
Não faça mais isso, você já é um moço!
a avançar em sua estruturação, processo que ocorre-
Não pode ir sozinho, já é tarde, você ainda é uma rá durante toda a vida do indivíduo.
criança. Em função de seu déficit intelectual, o indivíduo
E os pais, apesar de terem sido vítimas das mes- com deficiência mental leve não chega a atingir o úl-
mas contradições em sua adolescência, acabam por timo e mais complexo estágio da estruturação
reproduzi-las. Assim, o conflito também é vivido, em cognitiva, o operatório formal. Permanece no estágio
certa medida, pelos pais. anterior: o operatório concreto. Ou seja, seu conheci-
mento de mundo continua a depender do apoio de
Será que meu filho já é capaz de...
objetos, de suas vivências e das representações men-
Mas é ainda tão criança para... tais dos mesmos.
Como saber se já é hora de ‘soltá-lo’ no mundo? Ou,
até quando precisará ser aquecido pelas ‘asas’ da mãe, Eterna criança?
retardando seus vôos? E que direito têm os pais de ten-
tar limitar os passos do adolescente em direção à vida Muitos pais e professores de adolescentes com deficiên-
adulta, se até mesmo os ‘pés’ já cresceram tanto? cia mental acreditam poder prorrogar indefinidamente
Cresceram para conquistar o mundo. Mundo de a infância, como se fosse possível. Consideram-se ca-
aventuras, riscos, conquistas, responsabilidades, des- pazes disso e plenos de direito; é comum ouvirmos:
cobertas, alegrias e sofrimentos. Por outro lado, ‘sol- Cresceu só no tamanho, mas... é uma eterna criança!
22. 42 Programas 5/6 Passagem para a vida adulta 43
Ele adora Papai Noel, adora comemorar o Dia do vivências adequadas a sua idade cronológica. Essas
Índio, o Dia da Criança. vivências são pressupostos básicos do processo de
A tentativa de proteger o filho dos preconceitos integração, pois irão possibilitar a ele o aprendizado e
sociais, o desconhecimento ou a negação da maturi- o exercício de comportamentos e condutas mais com-
dade biológica – que é a mesma para todos –, a fan- patíveis com as exigências da comunidade em que vive.
tasia de poder postergar infinitamente as situações
conflituosas que ele irá enfrentar e a própria dificul- As propostas pedagógicas e os objetivos educacionais
dade de aceitação da deficiência do filho parecem as destinados ao adolescente com deficiência mental
principais dificuldades dos pais para lidar com o ado- leve devem ter como prioridade possibilitar-lhe a
lescente e com tudo que envolve essa fase da vida. conquista da máxima autonomia possível, e a inde-
pendência em relação aos outros indivíduos.
Pais, irmãos, professores e comunidade em geral pre-
cisam aprender a lidar com as pessoas portadoras de Ele precisa se tornar capaz de resolver os proble-
deficiência mental de acordo com as condições e as mas práticos que encontra nos diversos ambientes
vivências próprias de sua idade cronológica. nos quais circula – familiar, escolar, oficinas de pre-
paração para o trabalho e comunidade em geral.
É preciso aprender a adaptar as atividades e o tra- Falar em autonomia implica falar na aquisição da
to com qualquer sujeito na totalidade de seu ser: ser leitura, da escrita, do cálculo e dos demais conteúdos
criança, e não bebê; ser adolescente, e não criança; ser escolares, bem como de todos os conhecimentos aces-
adulto, e não mais adolescente. síveis a sua condição cognitiva. Na maioria das vezes,
Tratar o adolescente como tal, e não como criança – esses conhecimentos têm sido negados ao adolescen-
na escola, na instituição, nas oficinas de trabalho, na fa- te portador de deficiência mental, apesar dos longos
mília e na comunidade em geral –, significa eliminar de e intermináveis anos que ele permanece na escola.
seu mundo o tratamento infantilizado, as músicas de De forma contraditória, continuamos no discurso
criança, as orelhinhas de coelho, as caras pintadas no Dia a buscar a integração social, sem perceber que a apro-
do Índio, as comemorações do Dia da Criança, as ativi- priação dos conhecimentos necessários à vida em
dades pedagógicas e sociais próprias da infância. Signi- ambiente aberto é uma das vias dessa integração.
fica reconhecer e valorizar suas potencialidades, inde- A educação dos portadores de deficiência mental
pendente de sua deficiência. Significa afirmar sua con- leve depende, necessariamente, da revisão de alguns
dição de sujeito – o que não tem ocorrido na maneira princípios – nossas propostas pedagógicas, nossa con-
pela qual é tratado pelo meio social. cepção sobre deficiência mental, nossas atitudes e pro-
cedimentos metodológicos –, e de sua adequação à ca-
A questão da educação pacidade desses estudantes de operar mentalmente.
Precisamos atualizar nossos conhecimentos e
Precisamos buscar alternativas de propostas pedagógi- transformar nossa prática, pois só assim estaremos
cas, de atividades no âmbito familiar e no meio social, contribuindo, como profissionais da educação, para o
que propiciem ao adolescente com deficiência mental processo de integração social desses indivíduos.
23. 44 Programas 5/6 Passagem para a vida adulta 45
Não estamos negando as especificidades e pecu- bens de consumo? Não podemos pensar que essa é
liaridades advindas da deficiência mental. Queremos, sua única finalidade.
sim, enfatizar as possibilidades desse sujeito, na to-
talidade de seu ser. A infantilização gerada por senti- Dentre os aspectos principais envolvidos na questão do
mentos de piedade, comiseração, superproteção e trabalho, vamos ressaltar sua importância: na auto-reali-
descrença nas potencialidades do indivíduo são sen- zação, na auto-estima, na independência econômica, na
timentos que dificultam ou, mesmo, em casos extre- autonomia, no prazer, na sensação de aceitação e no
mos, impedem seu processo de integração. ‘pertencimento’. Quanto a este último, vale assinalar que
muito da satisfação de qualquer empregado com seu tra-
Entender a integração como um processo implica
balho consiste, exatamente, em fazê-lo ‘com’ e ‘em tor-
uma visão voltada para o futuro, sendo que a inser-
no de’ pessoas com ele compatíveis! (Amaral, 1993)
ção do portador de deficiência mental no mercado de
trabalho é o coroamento desse processo.
Assim, podemos dizer que o indivíduo, seja ou não
portador de deficiência, tem necessidade de se sentir
Trabalho: a marca da vida adulta aceito pelo grupo de referência, experimentando a
gratificante e prazerosa sensação de pertencimento.
Todo o investimento e o esforço despendidos pelo Pertencer, efetivamente, a um grupo, é poder tro-
suj ei to, pel a f amí l i a e pel a so c i edade durant e o car, poder cooperar e poder compartilhar – ações e
percurso educacional deveria ter a função de pre- emoções, conquistas, descobertas, dúvidas, dificulda-
parar o jovem para assumir responsabilidades e des, inseguranças...
se integrar na sociedade com uma atividade pro-
dutiva. Voltando no tempo e retomando a história...
O trabalho e sua conseqüente repercussão na vida A pessoa com deficiência mental: ‘sem direito à vida’,
dos indivíduos em particular e da sociedade como um ‘depositária do mal’, ‘objeto de maldição’, ‘tragédia fami-
todo é, assim, um dos mais marcantes aspectos da liar’, ‘detentora de poderes sobrenaturais’, ‘doente men-
vida adulta. tal’. Seu lugar na sociedade: asilo, exclusão, segregação.
Durante a vida inteira somos preparados para
assumir um trabalho e por ele responder, o que sig- E hoje?
nifica responder por nós mesmos, no sentido de po- Estimulação precoce, aprendizagem e desenvolvi-
dermos mostrar e demonstrar que temos algo de bom mento, potencialidade, escola integrada, legislação,
para produzir. Algo feito por nós. Nós nos expressa- estudos científicos, auto-estima, auto-realização, au-
mos, nos revelamos e nos expomos por meio do tra- tonomia, participação, integração, trabalho.
balho que realizamos.
O trabalho tem uma forte representação, tanto no Os avanços são notáveis: mudamos muito nosso
plano individual, quanto no coletivo. Mas propomos modo de pensar, sentir e agir em relação à pessoa com
uma ampliação da associação feita usualmente entre deficiência mental. Hoje, muitos dos mitos fazem par-
trabalho e bens de consumo. Será que o trabalho tem te de um passado longínquo e cruel. Cruel pelo des-
como único sustentáculo a possibilidade de adquirir conhecimento, cruel pelos preconceitos e pelos estig-
24. 46 Programas 5/6 Passagem para a vida adulta 47
mas. Quebramos alguns preconceitos, derrubamos conexão entre as propostas feitas na escola e os pro-
algumas barreiras – avançamos! gramas de preparação profissional) com as exigências
No entanto, como o processo de pensamento é e demandas do mercado de trabalho local (conside-
muito mais ágil que as transformações sociais dele de- rando as necessidades e especificidades regionais).
rivadas, ainda se constata um enorme descompasso
entre aquilo que se pensa e se quer e aquilo que deve
ser transformado. BIBLIOGRAFIA
Os objetivos perseguidos pelos programas escolares
e os resultados por eles obtidos não têm contribuído para AMARAL, Lígia Assumpção. Pensar a diferença: deficiên-
a real preparação da pessoa com deficiência mental para cia. Brasília, Coordenadoria Nacional para Integração
a vida em sociedade, com tudo que representa. da Pessoa Portadora de Deficiência (Corde), 1994.
D’ANTINO, Maria Eloisa Famá. “Oficina pedagógica: es-
A questão do trabalho na área da deficiência mental paço profissionalizante?”. In: O deficiente no Brasil:
é ampla, complexa e polêmica, tanto no nível social aspectos multidisciplinares da criança atípica. 2. ed.
mais abrangente, quanto nos níveis institucional, fa- São Paulo, Ação Camiliana Pró-Excepcionais, 1991.
miliar e pessoal. No entanto, precisamos enfrentá-la. LA TAILLE, Yves de et al. Piaget, Vygostsky, Wallon: teorias
Enfrentá-la significa continuar avançando no nosso psicogenéticas em discussão. São Paulo, Sumus, 1992.
sentir, no nosso pensar e, por certo, no nosso agir.
MAZZOTTA, Marcos José da Silveira. Educação espe-
cial no Brasil: história e políticas públicas. São Pau-
Não há, por outro lado, uma visão de processo.
lo, Cortez, 1996.
Não há integração entre os objetivos educacionais e
VASH, Carolyn L. Enfrentando a deficiência. São Pau-
aqueles destinados à preparação para o trabalho: os
lo, Pioneira/Edusp, 1988.
programas são estanques e se encerram em si mes-
mos, tendo por finalidade apenas o curso em si.
Observa-se, ainda, outra desconexão: entre as ins-
tituições de formação profissional e as exigências e
necessidades do mercado de trabalho. Programas
repetitivos, com atividades simuladas próprias de ofi-
cinas protegidas, se distanciam muito das exigências
reais do mercado de trabalho.
O moderno mercado de trabalho requer um tra-
balhador capaz de acompanhar os rápidos avanços
tecnológicos e de se ajustar com agilidade a diferen-
tes funções.
Cabe às distintas instituições, as escolares e as de
preparação profissional, articular as questões
concernentes à preparação do indivíduo (incluindo a
26. 50 Programa 1 Apenas diferentes 51
hemiplegia, ou seja, uma paralisia na metade de seu
APENAS DIFERENTES corpo que recebia o comando da parte do cérebro que
foi lesada.
Lutar pelos direitos dos deficientes Após um mês de
é uma forma de superar as nossas internação, e após vár ios
próprias deficiências. exames, finalmente você
( J.F. Kennedy) tem alta. Volta para casa,
mas precisa começar a fazer
fisioterapia, em um centro
magine que você tem uma vida comum, como a de reabilitação para defici-
I de todo mundo. Levanta cedo, se arruma, toma seu
café da manhã e sai para trabalhar. Vai almoçar em
casa, depois volta para o escritório. No final da tarde,
entes físicos.
Você tem esperança de
se recuperar totalmente e,
pega o ônibus lotado e vai para o curso que está fa- depois de algum tempo, fi-
zendo, com a intenção de melhorar de emprego e de car igualzinho ao que era
salário. antes do acidente.
À noite, cansado, finalmente chega em casa. Lá, você Depois de seis meses, a
janta com a família e vai para a cama; no dia seguinte, equipe que trabalha na re-
começa tudo novamente. Enfim, essa é sua rotina. cuperação lhe informa que
De repente, um dia, o inesperado... Você está atra- o objetivo já foi alcançado.
vessando a rua e é atropelado. Tudo é muito rápido. Você se pergunta: Mas como,
Quando acorda está numa UTI, lembra vagamente do se eu não mexo meu braço e
que aconteceu... arrasto minha perna para
Você está se sentindo estr anho, não consegue andar?
mexer a perna e o braço esquerdo, mas não entende Mais uma vez lhe explicam o que é uma lesão no
direito o que está acontecendo. Em seguida, chega um cérebro e quais são suas conseqüências. Na hora em
médico e lhe diz: Você foi atropelado, teve um que você bateu a cabeça, as células nervosas que
traumatismo craniano e ficará hemiplégico! Você só mandavam ordens para o braço direito e para a per-
entende que foi atropelado, e o resto? O que foi isso na direita morreram. Por isso, você não consegue mais
que ele disse? mexer esse braço, nem ter movimentação completa da
Vamos por partes. Um traumatismo craniano ocor- perna. Você agora é um deficiente físico.
re quando uma batida muito forte na cabeça destrói A Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes,
células nervosas no interior do cérebro. elaborada em 1975, definiu deficiente físico como uma
Em seu caso, foram lesionadas as células que co- pessoa incapaz de assegurar, por si mesma, total ou
mandavam o movimento da metade direita de seu parcialmente, as necessidades de uma vida individual
corpo; agora, elas não conseguem mais desempenhar ou social normal, em decorrência de uma deficiência,
seu papel. Em conseqüência, você ficou com uma congênita ou não, em suas capacidades físicas.