1. PARTICULARIDADES DA EXECUÇÃO DE HIPOTECA
1. Apresentação.
Propomos falar nesta comunicação da execução para pagamento de quantia
certa em que os créditos do exequente se encontram garantidos por hipoteca.
Uma reforma da acção executiva tem de articular-se com a reforma do direito
material civil e fiscal, como, aliás, é referido no relatório que se discute na
presente conferência. Por isso, não podemos esquecer algumas situações
jurídicas substantivas que, eventualmente, contribuem para o entorpecimento
nestas execuções.
A execução hipotecária tem como característica o facto de o crédito exequendo
ser mais forte que um crédito comum, na medida em que se encontra
guarnecido de hipoteca e baseiam-se num título executivo que é um documento
revestido da força probatória plena a escritura pública. Acresce que na maior
parte das vezes o valor do bem hipotecado é suficiente para o pagamento da
dívida. O que pomos à consideração é a simplificação destes processos, por
hipótese através da aplicação das regras de processo sumário, na linha aliás das
propostas apresentadas no relatório, sempre tendo em conta os interesses em
jogo. A celeridade não pode ser obtida a qualquer preço, nem podem ser
comprometidos os direitos e garantias dos cidadãos. E se há garantias mínimas
que não podem ser postergadas num Estado de direito, deve procurar-se a
simplificação das matérias que revistam menor complexidade, como é o caso
das execuções hipotecárias.
De facto, de um lado, temos os interesses da instituição bancária que financiou a
aquisição da habitação em causa e que, verificado o incumprimento por parte do
devedor, pretende assegurar coactivamente a satisfação do seu direito; do outro
lado, pretende-se assegurar a tutela do interesse do particular, que tem um
direito à habitação constitucionalmente reconhecido .
Este painel é dedicado à experiência do Direito Comparado pelo que cabe fazer
especial referência a algumas ordens jurídicas estrangeiras no que toca à
execução para pagamento de quantia garantida por hipoteca.
Feitas as apresentações passemos, pois, à reflexão proposta.
2. Algumas especialidades da execução de hipoteca.
O mecanismo de efectivação da hipoteca é o processo judicial, não havendo
possibilidade de o credor se apropriar de forma particular dos bens hipotecados
- . A doutrina entende que a necessidade de recorrer à via judicial para que o
titular da garantia possa fazer valer o seu interesse constitui um meio de
resguardar o devedor contra os abusos a que poderia dar origem a alienação do
objecto da garantia, se ao credor fosse permitido realizá-la directamente. Com o
mesmo objectivo (proteger o devedor) se proíbe, como é sabido, a convenção
que atribua ao credor o direito de fazer sua a coisa onerada no caso de o devedor
não cumprir . Ou seja, não se permite, tal como sucedia no direito romano, a
actio hypothecaria, em que o credor se apoderava da coisa, podendo vendê-la
extrajudicialmente para pagar o seu crédito à custa do seu valor .
Da mesma forma, em ordens jurídicas estrangeiras próximas da nossa, à
excepção de Espanha, o procedimento para efectivar o direito de hipoteca é a via
judicial ou, como dizem os alemães, a execução forçada . Veja-se, por exemplo, o
que se passa em Itália, em que o regime da hipoteca é muito próximo do nosso
2. o credor adquire com a hipoteca o direito de executar, ainda que contra um
terceiro adquirente, os bens vinculados à garantia .
Não existe também, entre nós, um procedimento especial da venda da coisa
hipotecada, a execução hipotecária como processo autónomo foi abolida com o
Código do Processo Civil em 1939. Para executar uma dívida garantida por
hipoteca, tem de seguir-se o processo executivo ordinário.
A primeira das razões que podemos apontar para a desburocratização das
execuções hipotecárias é que, nestas, o título executivo é uma escritura pública
de mútuo com hipoteca - , ou seja, trata-se de um título executivo revestido da
máxima força probatória já que é um documento autêntico exarado pelo notário
com uma carga de solenidade muito superior a qualquer outros enumerados no
artigo 46º do Código de Processo Civil.
Por outro lado, a penhora da coisa hipotecada começa, independentemente de
nomeação, pelos bens sobre que incide a garantia e só pode recair sobre outros
bens quando se reconheça a insuficiência deles para conseguir o fim da
execução . A ratio da norma é evitar abusos por parte do credor preferente e
também dimensionar o objecto do processo executivo ao efectivo interesse de
satisfazer . Assim, o efeito da penhora não é conferir preferência ao credor
exequente que já goza em virtude da existência da hipoteca . Nas execuções
hipotecárias, não ocorre o vulgar empobrecimento repentino do executado,
perante a pendência da execução e antes da penhora que vai pondo os seus bens
a salvo desviando-os do seu património para que não possam ser atingidos por
estarem integrados em património de terceiro . Na verdade, já antes da acção
judicial tais actos eram ineficazes em relação ao credor hipotecário o que nos
permite concluir que os efeitos da penhora são praticamente nulos.
O passo seguinte é como em todas as execuções a convocação de credores, a
partir daqui a execução hipotecária segue os mesmos termos da acção executiva
ordinária. São chamados a reclamar os seus créditos todos os credores com
garantia real e os credores privilegiados, pois, nos termos do artigo 824º , nº 2,
do Código Civil, os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os
oneram, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao
de qualquer arresto, penhora ou garantia .
Refira-se, no entanto, que mesmo havendo hipoteca anterior o executado não
podendo dissipar os bens hipotecados pode furtar-se à execução através de
outros expedientes que tornam a venda e a satisfação do direito do credor uma
pura utopia. Estou a pensar em concreto no caso do arrendamento da coisa
hipotecada ou penhorada, que alguma jurisprudência tem entendido a nosso ver
erradamente que não caduca com a venda judicial, ainda que constituído
posteriormente à garantia.
3. Comparação com o sistema espanhol.
Em Espanha, desde sempre, existiu um procedimento especial de execução
hipotecária. Tratava-se de um procedimento judicial sumário com algumas
particularidades. Com a promulgação da nova lei processual civil , o processo
para execução de hipoteca, não sendo verdadeiramente autónomo, tem alguns
desvios ao regime geral em virtude da natureza particular do direito exercido,
sendo os seus trâmites mais simplificados. No fundo, a recente reforma do
processo civil espanhol pouco alterou o regime da execução hipotecária.
Não querendo fazer uma descrição pormenorizada do processo de execução de
hipoteca, obviamente por limites de tempo, ressaltem-se as notas mais
importantes. Começa a lei por estabelecer que a acção executiva destinada a
3. exigir o pagamento de dívidas garantidas por penhor ou por hipoteca, poderá
exercer-se directamente contra os bens dados em penhor ou hipotecados ,
determinando-se que tal procedimento especial só tem lugar quando a execução
se dirige exclusivamente contra esses bens. Isto quer dizer que quando o credor
pretenda exercer o seu direito de acção contra outros bens do devedor, deverá
recorrer ao procedimento comum .
Como requisitos cumulativos de aplicação deste processo, que aliás, já existiam
no regime anterior, estabelece-se que na escritura de constituição de hipoteca
esteja fixado o preço que as partes atribuem ao imóvel, para que sirva de base à
venda judicial; na mesma escritura deve fixar-se um domicílio do devedor para
a prática de requerimentos e notificações ; por fim, no registo da hipoteca
devem constar os dois requisitos referidos . No despacho que ordena o
prosseguimento da execução, o juiz notifica o devedor ou o terceiro
proprietário dos bens para pagar, no domicílio convencionalmente fixado e que
consta do registo.
As formalidades subsequentes, designadamente a junção da certidão de ónus e
encargos, citação de credores com garantia real e reclamação de créditos, são
muito semelhantes ao nosso procedimento. Refira-se que os prazos, neste tipo
de execução, são mais curtos: trinta dias depois de o devedor ser notificado
para pagar terá lugar a venda judicial do bem, cuja data será devidamente
publicitada e notificada ao devedor. Admite-se também a venda por negociação
particular . Por outro lado, são diminutas as possibilidades de oposição à
execução. Conforme se afirma no preâmbulo do diploma espanhol, a lei
estabelece um sistema equilibrado que permite uma tutela eficaz do direito do
credor exequente, através de um elenco limitado e taxativo de causas de
oposição e suspensão da execução, como sejam a extinção da hipoteca ou a
desconformidade da quantia exequenda peticionada com a quantia devida, não
se privando o devedor executado dos essenciais meios de defesa.
A justificação deste tratamento autónomo da execução hipotecária está, segundo
a doutrina espanhola, na natureza real do direito de hipoteca : o credor
hipotecário tem uma garantia mais forte do que o credor comum, que apenas
pode contar com o património geral do devedor não dispondo de um direito
oponível a terceiros. Pelo contrário, o direito ao valor da coisa hipotecada faz
parte da essência da garantia, na medida em que o credor, em caso de
incumprimento, pode executar a coisa e pagar-se com o produto da venda, com
preferência sobre os demais credores, mesmo se a coisa pertencer a terceiros.
De notar, que o entendimento da hipoteca como um direito real é comunmente
partilhado pelas doutrinas portuguesa , italiana , francesa e alemã , pelo que o
problema da realidade não se põe actualmente. E o que caracteriza o direito real
é, precisamente, a possibilidade de o credor poder agir sobre a coisa: não no
sentido de conferir ao seu titular o uso e fruição da coisa, mas o poder de,
mediante um acto de disposição (a venda judicial), realizar à custa desta ( )
determinado valor .
Cumpre fazer especial enfoque à execução extrajudicial da hipoteca no direito
espanhol. Com efeito, existe um procedimento específico para o exercício
extrajudicial do direito de hipoteca: permite-se que na escritura pública de
constituição da garantia se convencione a execução extrajudicial levada a cabo
perante o notário . Não se descura a necessidade de acautelar a alienação da
coisa contra eventuais abusos por parte do credor, submetendo-se o controle da
venda do bem a uma entidade não judicial e idónea como é o notário. Repare-se
4. que, em Espanha, a figura do notário tem uma importância que não tem entre
nós.
O fundamento que a doutrina espanhola encontra para o procedimento
extrajudicial está na própria definição da hipoteca que, segundo o Código Civil
espanhol, sujeita directa e imediatamente os bens sobre que incide, qualquer
que seja o seu possuidor, ao cumprimento da obrigação para cuja segurança foi
constituída . Trata-se de um puro processo de execução não havendo, no
entanto, verdadeira cognição por um órgão jurisdicional. A submissão ao regime
da venda extrajudicial é convencionada entre as partes na escritura e os trâmites
do procedimento estão fixados pormenorizadamente na lei, não podendo as
partes em caso algum desviar-se dessas regras.
Como outros requisitos, refira-se que o preço atribuído ao imóvel tem que estar
fixado na escritura de forma a que sirva de base para venda, à semelhança do
que sucede no processo judicial espanhol propriamente dito. As partes têm que
convencionar um domicílio para a prática de actos e, na escritura de
constituição da hipoteca, deve ser ainda designada a pessoa que há-de outorgar
a escritura de compra e venda da coisa hipotecada em lugar do hipotecante,
podendo ser designado o próprio credor.
A tramitação do procedimento é similar ao procedimento judicial sumário
espanhol : o processo inicia-se com um requerimento que é dirigido ao notário.
Este aprecia o requerimento e os documentos que o acompanham ,
designadamente no que toca à certeza e exigibilidade da obrigação, aplicando-se
os mesmos princípios do processo executivo judicial. Aqui a função do notário
aproxima-se bastante da função do juiz . Terminada esta primeira apreciação, o
notário lavra acta notarial, donde constam os elementos substantivos do
procedimento e, em seguida, pede uma certidão do registo predial e notifica o
devedor para pagar no domicílio convencionado, com a indicação de que se não
o fizer serão executados os bens.
Dez dias após a notificação do devedor, notifica-se o proprietário do bem, se for
distinto do devedor, e os titulares de direitos inscritos sobre o imóvel . Então
inicia-se a fase da venda, devidamente anunciada e publicitada, tal como nos
processos judiciais . A alienação do bem é feita por meio de hasta pública, ou
melhor, por meio de leilão realizado no cartório notarial. Verificada a
arrematação do bem ou a adjudicação e o depósito do preço, o processo finaliza
com a elaboração da acta e a outorga da escritura de transmissão, em que se
farão constar as diligências essenciais efectuadas no processo . A escritura é
título bastante para o registo da aquisição e cancelamento de todos os direitos
inscritos sobre o imóvel posteriormente à hipoteca executada. O adquirente dos
bens, no caso de estes não lhe serem entregues, pode pedir a posse judicial dos
mesmos , mas então terá que recorrer a um processo para o efeito, que correrá
nos tribunais. Refira-se, por último, que o processo notarial apenas poderá ser
suspenso quando se faça prova documental da pendência de um procedimento
criminal por falsidade do titulo hipotecário.
Pensamos que esta modalidade de procedimento executivo extrajudicial não é
concebível no actual direito português. É verdade, como dizem alguns autores
espanhóis, que um procedimento executivo por vezes não implica
verdadeiramente uma decisão judicial no sentido de resolver questões jurídicas
aplicando o direito material a situações concretas. Contudo, há fases do
processo executivo português que têm manifesto carácter jurisdicional e que
não dispensam uma apreciação pelo juiz e, por outro lado, a apreensão de bens
em processo executivo é um acto de carácetr público que reclama, por isso, a
5. intervenção do tribunal. A admitir-se um tal procedimento teria de se eliminar a
fase de reclamação de créditos passando o procedimento notarial a ser uma
execução singular stricto sensu, o que não é de aceitar.
4. Algumas medidas de simplificação.
Uma primeira advertência: do nosso ponto de vista, a desburucratização da
execução hipotecária deverá ocorrer, à semelhança do que ocorre em Espanha,
para as hipotecas convencionais, isto é, as resultantes de contrato, sendo o caso
paradigmático o crédito à habitação . Por uma razão: estas hipotecas são
constituídas por escritura pública e, como acima ficou dito, é este documento
que vai servir de base à execução. Só a segurança e certeza oferecida por um
documento revestido de tal solenidade pode justificar o desvio as regras gerais
da acção executiva. Por outro lado, dentro das hipotecas convencionais, deverá
aplicar-se o procedimento simplificado apenas para aquelas em que a dívida
garantida está determinada ab initio, isto é, excluem-se as vulgarmente
designadas hipotecas genéricas ou hipotecas omnibus , habituais na prática
bancária, porque nestas a dívida a garantir não está à partida determinada,
embora seja determinável.
Somos de opinião que à execução de hipoteca deverão estender-se as
disposições do processo sumário. Porém, são muito limitados os desvios
estabelecidos nos artigos 924º a 927º da lei processual para as execuções
sumárias . As diferenças dizem respeito à penhora prévia à citação. Fora disso,
tudo se reduz ao encurtamento do prazo para o executado deduzir embargos ou
oposição à penhora. A solução é, pois, do nosso ponto de vista, simplificar o
processo sumário e estendê-lo às execuções de hipoteca.
Não vemos qualquer inconveniente a que se lhes aplique a penhora prévia à
citação. Na execução de dívidas com garantia real, a penhora começa,
independentemente de nomeação, pelos bens garantidos. Assim, numa
execução hipotecária, far-se-á menção no requerimento inicial da existência da
hipoteca, sendo o bem a coisa sobre que incide a garantia. Feita a penhora, o
executado será notificado (leia-se, citado) do requerimento executivo, do
despacho determinativo da penhora e da realização desta, altura em que, de
acordo com os trâmites normais, se poderá opor ou deduzir embargos. Dada a
garantia real existente, o executado não poderá requerer a substituição dos bens
penhorados, conforme se estabelece no artigo 926º, nº 2 do Código.
As vantagens da penhora prévia à citação são mais visíveis numa execução
normal: nas execuções hipotecárias, como dissemos acima, não ocorre a
frequente dissipação dos bens, após a proposição da execução. Mas mesmo
assim, ganha-se em celeridade, sem grandes prejuízos para as garantias do
executado.
Segue-se a convocação de credores e reclamação de créditos. Esta etapa só
poderia ser suprimida se se alargasse à execução hipotecária a dispensa de
citação de credores, não existindo razões para suspeitar que incidem sobre eles
direitos reais de garantia, o que é dificilmente concbível estando em causa um
bem imóvel, em regra, de valor elevado . A fase poderia, porém, ser abreviada e
com prazos mais curtos.
Como é sabido, a execução, em Portugal, à semelhança das ordens jurídicas
europeias, tendencialmente singular ou mista : são admitidos a reclamar os seus
créditos alguns credores, que dispõem de garantia real ou de privilégio
creditório. A convocação de credores é feita de duas formas: os credores
6. conhecidos (constantes do registo) são citados pessoalmente; para os credores
desconhecidos (os que têm privilégios), a citação é edital - .
Em Itália, por exemplo, cabe ao exequente proceder à notificação dos credores
preferentes: é o credor que tem o ónus de advertir os credores preferentes de
que, no âmbito de um processo executivo, foram penhorados os bens sujeitos à
garantia e a falta de prova dessa notificação impede o juiz de prosseguir com a
execução, designadamente com a venda dos bens . Para o exequente será fácil
promover a citação ou notificação dos credores com garantia real que estão
inscritos no registo. Quanto aos credores desconhecidos, ou se eliminam os
privilégios, criando-se em seu lugar hipotecas legais, ou então para a
convocação dos credores o regime terá de permanecer. Do nosso ponto de vista,
e ao contrário do que se refere no Relatório, o exequente trabalha mais
rapidamente que o tribunal. Recorde-se que a cominação estabelecida no artigo
51º, nº 2 do Código das Custas Judiciais funciona apenas para o exequente, pelo
que a acção não deverá ficar parada por mais de três meses.
Relativamente à fase da venda, concordamos, genericamente, com as propostas
formuladas, concretamente com a possibilidade de a venda poder ser feita
através de entidades ou instituições especializadas, como as imobiliárias, o que
permite rentabilizar a venda, com evidentes vantagens para o exequente e até
para o próprio executado, evitando-se a fraude na avaliação do bem.
5. Os privilégios creditórios.
Passaríamos agora e muito brevemente, para a apreciação crítica aos privilégios
creditórios. Como se diz no relatório, que a reforma da acção executiva tem de
ser pensada com a necessária articulação com outros ramos do direito,
nomeadamente com o direito civil e com o direito fiscal. Por essa razão,
defendemos a substituição dos privilégios creditórios por hipotecas legais. É
claro que é uma proposta provocatória, mas é a única forma de assegurar o
efectivo conhecimento pelos demais interessados, designadamente pelo credor
hipotecário, da existência de outras garantias incidentes sobre a coisa.
A existência dos privilégios é, desde logo, bastante discutível porque tais
garantias, sendo entendidas como garantias reais e como tais oponíveis erga
omnes, não são todavia registadas. Aliás, essa é a razão pela qual tal garantia
não é conhecida no direito alemão. Dessa forma, um terceiro que adquira um
imóvel ou constitua um qualquer direito real sobre ele, poderá ver-se
confrontado com a existência dos privilégios creditórios sobre o bem. A
hierarquia entre os vários privilégios e entre estes e as outras garantias é
pautada pelas regras substantivas constantes dos artigos 746º a 751º do Código
Civil.
Por outro lado, existem no nosso ordenamento privilégios a mais . Repare-se
que VAZ SERRA , autor do anteprojecto do Código Civil em matéria de
privilégios creditórios, pretendeu reduzi-los apenas àqueles cuja manutenção se
justificasse imperiosamente. Após a promulgação do Código Civil vigente,
criaram-se em leis avulsas mais de meia dúzia de privilégios creditórios para
além dos admitidos no Código Civil , não se mantendo os bons propósitos do
legislador.
Tornou-se cada vez mais precária e insegura a situação do credor hipotecário,
sujeito, como se sabe, a ver reduzida a sua garantia ao limite zero . A enorme
importância dos privilégios no domínio do crédito real, permite compreender o
cuidado com que o assunto foi encarado pelo legislador de 1966 e o melindre
que reveste para o tráfico jurídico qualquer alteração no regime dos privilégios
7. que vise a sua ampliação ou reforço. Contra o argumento de que os bancos são
instituições economicamente poderosas e, por isso, aptas a arcar com os riscos
da existência dos privilégios, sublinhe-se que nem sempre o exequente é uma
instituição financeira, podendo acontecer que se trate de uma pessoa singular.
Na opinião de LEBRE DE FREITAS , o legislador, obedecendo a uma
preocupação de tutela dos interesses do Estado e de outras pessoas colectivas
públicas em detrimento dos credores particulares tem vindo a criar numerosos
privilégios para garantia das dívidas de impostos e de contribuições para a
segurança social, que subvertem a finalidade do processo executivo, desviado da
sua função de realização coactiva do crédito do exequente para a de cobrança,
mediante o aproveitamento da actividade deste, desses créditos fiscais e para-fiscais
. E continua, por lei graduado à frente do exequente, o credor
privilegiado, cujo crédito é normalmente desconhecido quando a execução é
instaurada, acaba frequentemente por ser o único a ser pago pelo produto da
venda dos bens penhorados, enquanto que o exequente não consegue encontrar
no património do devedor bens que lhe permitam a satisfação do seu direito .
Sustenta, ainda, que esta subversão constitui violação do direito fundamental de
acesso à justiça, pois possibilita a retirada ao exequente da tutela judiciária
assegurada pela acção executiva.
Acresce que, embora o nº 3 do artigo 735º do Código Civil estabeleça que os
privilégios imobiliários são sempre especiais, há que referir que essa legislação
posterior ao Código Civil veio consagrar alguns privilégios imobiliários gerais.
Por exemplo, os privilégios creditórios da segurança social, porque incidentes
sobre todos os bens imóveis que se encontrem no património das entidades
patronais devedoras, devem ser qualificados como privilégios imobiliários
gerais , o que põe em causa o perfil dogmático com que foram concebidos os
privilégios, acabando por ser instituído um amplo quadro de preferências,
capaz de abalar a confiança dos investidores na garantia hipotecária, de longe a
mais significativa no tráfico creditício .
A intenção do legislador ao considerar privilegiados os créditos da previdência
compreende-se: pretendeu-se assegurar o efectivo pagamento desses créditos e
obstar ao enorme crescimento das respectivas dívidas. Apesar disso, tendo
presente a matriz em que se inspirou o Código Civil, afigura-se-nos condenável.
Com efeito, os privilégios imobiliários encontram a sua fundamentação na
ligação específica do crédito privilegiado ao imóvel em questão . A natureza
geral dos privilégios consagrados em diplomas avulsos e a inexistência de
qualquer conexão entre o crédito e o imóvel, faz cair por terra (passe a
expressão) toda a sua justificação doutrinal .
ALMEIDA COSTA afirma mesmo que os privilégios imobiliários gerais não
devem qualificar-se como autênticas garantias reais das obrigações, não
podendo, por isso, prevalecer sobre outras garantias reais . Note-se que,
conforme se estabelece no artigo 686º do Código Civil, a hipoteca confere ao
credor preferência sobre os demais que não gozem de privilégio especial. E,
nesta medida, não cede perante os privilégios gerais.
Segundo o artigo 751º do Código Civil, os privilégios especiais são oponíveis a
terceiros e preferem em relação a outras garantias, ainda que anteriores. E
apesar de ser discutível a existência dos privilégios imobiliários especiais,
explicando-se apenas pelo facto de estes privilégios respeitarem a créditos de
impostos, facilmente detectáveis nos livros das Repartições de Finanças, não se
justifica nem se compreende o alargamento da sua aplicação aos privilégios
imobiliários gerais, recentemente criados, sobre os quais o controlo de credores
8. com garantia real se torna impossível - . Compreende-se a doutrina do artigo
751º para os privilégios imobiliários especiais que na sua reduzida expressão
estavam presentes no espírito do legislador ao redigir o preceito (...); mas já não
se compreende a extensão de tal doutrina a todo o património do devedor, com
prejuízo dos direitos de terceiro. Os terceiros têm, efectivamente, uma posição
jurídica respeitável, que não pode ser postergada sem uma imposição legal
inequívoca, que no caso não se verifica .
A orientação da jurisprudência maioritária tem sido no sentido de atender ao
privilégio imobiliário geral da segurança social, independentemente da data da
constituição do crédito, preferindo a outras garantias, de acordo com o
argumento literal retirado do artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80 .
Recentemente, porém, o Supremo Tribunal Administrativo proferiu um acórdão
considerando materialmente inconstitucional o privilégio da segurança social
por violação do princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito e
do princípio da proporcionalidade, consagrados nos artigos 2º e 18º , nº 2 da
Constituição . Entre outras considerações, diz-se no referido acórdão que o
privilégio creditório da segurança social é uma solução desproporcionada, pois
pode lesar gravemente terceiros de boa fé, sobretudo se pensarmos que a
segurança social dispõe de hipoteca legal sobre os bens do devedor e basta
registá-la para possuir uma garantia real publicitada e oponível, por isso, a
terceiros.
Acrescentamos nós: nada justifica privilegiar a segurança social e outros
credores privilegiados em detrimento de terceiros de boa fé, quando, possuindo
hipoteca legal, não foram suficientemente diligentes e não registaram a tempo a
sua garantia. O Estado e a segurança social, como quaisquer agentes
económicos, têm a obrigação de ser diligentes e, se dispõem de hipoteca legal,
deverão proceder ao registo da sua garantia, de forma a que possam fazer valer
o seu direito preferencial face a terceiros, com a publicidade assegurada pelo
registo. Nada justifica o tratamento diferenciado em relação aos demais
credores. Claro que a substituição por hipoteca legal, significa a perda da
preferência em relação aos credores com hipoteca primeiramente registada,
mas, apesar de tudo é uma solução mais equilibrada do que continuar a admitir
as garantias ocultas com evidentes prejuízos para a segurança e certeza
jurídicas que se requerem a um Estado de direito.
Os únicos privilégios cuja subsistência se poderíamos são os créditos dos
trabalhadores por salários em atraso: é que estes credores dificilmente disporão
de uma estrutura organizada ou informação suficiente que lhes permita registar
atempadamente a hipoteca legal. Quanto ao Estado e à segurança social, que se
apressem a registar a garantia de que dispõem.
Por último, refira-se que o Tribunal Constitucional proferiu acórdão, de 22 de
Março de 2000 , em que apreciou a constitucionalidade do artigo 11º do
Decreto-Lei nº 103/ 80, de 9 de Maio, no que se refere à preferência em relação
à hipoteca, decidindo-se pela inconstitucionalidade da norma por violação do
princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático,
consagrado no artigo 2º da Constituição. E baseou-se no seguinte: o privilégio
creditório funciona à margem do registo e sacrifica os demais direitos reais de
garantia; tal não pode, porém, ser aplicado ao privilégios imobiliários gerais.
Com efeito, o princípio da protecção da confiança, postula um mínimo de
certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente
criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente
onerosas com as quais não se poderia moral e razoavelmente contar . Por outro
9. lado, invoca-se a finalidade prioritária do registo que radica na ideia de
segurança e protecção dos particulares, evitando ónus ocultos (e a existência dos
privilégios frustra a fiabilidade do registo), o princípio da confidencialidade
tributária que impossibilita os particulares de previamente indagarem se as
entidades com quem contratam são ou não devedoras ao Estado e à segurança
social, a inexistência de limites temporais para os privilégios e o seu âmbito
geral, não existindo qualquer conexão com o imóvel e o facto que gerou a dívida,
o que implica uma lesão desproporcionada do comércio jurídico.
Concluindo, somos de opinião que a reforma da acção executiva deve passar
pela supressão dos privilégios imobiliários e sua substituição por hipotecas
legais. Só assim se poderá assegurar a efectiva tutela dos interesses dos
particulares.
Penso que já estou a exceder o meu tempo. Tinha previsto falar, ainda, sobre a
questão do arrendamento da coisa penhorada ou hipotecada, mas talvez seja
melhor concluir por aqui. Muito obrigada pela atenção.
Isabel Menéres Campos