1) A poesia, especialmente as epopeias homéricas, pode servir como documento histórico ao fornecer informações sobre a cultura, sociedade e valores da Grécia Antiga.
2) Uma abordagem transdisciplinar que considera a arqueologia pode ajudar a contextualizar as obras de Homero historicamente.
3) A análise isotópica do personagem Páris na Ilíada revela como ele desafia e também reforça os valores heroicos da época.
A poesia como documento histórico: análise da Ilíada e da Odisseia
1. A Poesia como Documento Histórico:
Reflexões Transdisciplinares
Renata Cardoso de Sousa
Orientador: Fábio de Souza Lessa
Laboratório de História Antiga (LHIA-UFRJ)
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq)
2. Apresentação
• Nosso objetivo nessa comunicação é mostrar
como a poesia pode servir de documentação
histórica, bem como dialogar com os
pesquisadores oriundos da área de Letras no
tocante à análise da epopeia.
• Apresentaremos, também, um método de
análise que pode ajudar a compreender o
universo histórico e cultural dos poemas
homéricos.
3. O tratamento da documentação
escrita
• Positivismo: corrente que se expandiu para várias
áreas do conhecimento no século XIX. Na História,
acreditava-se poder chegar à verdade absoluta dos
acontecimentos através da utilização de documentos
escritos oficiais; ideia de prova e primazia da história
política.
• Mesmo com o surgimento quase concomitante da
Antropologia e da Arqueologia, essas ciências eram
pouco utilizadas no meio historiográfico, visto que se
ocupavam de povos primitivos, ágrafos.
4. O tratamento da documentação
escrita
• A partir do final da década de 1920, a Escola dos
Annales, outra corrente historiográfica, chamou
atenção para outros objetos, abrindo o leque de
fontes para a História, e permitu que outras ciências
auxiliassem no estudo deles.
• Um desses objetos incorporados foi a fonte literária.
5. O tratamento das obras de
Homero
• Mesmo sendo escritas, as epopeias homéricas
não foram sempre um objeto de estudo no
campo historiográfico: elas contavam mitos.
• A “Questão Homérica”: desde a Antiguidade,
havia indagações sobre a unidade das
epopeias, sobre a existência de Homero,
sobre a precisão das descrições. A partir do
século XVIII, esse debate ficou concentrado
em duas correntes (analistas e unitaristas).
6. O tratamento das obras de
Homero
• Heinrich Schliemann (1822-1890), um
comerciante alemão, embevecido pelos
poemas homéricos, decidiu investir na
descoberta de Troia, a fim de provar a
veracidade da Ilíada e da Odisseia.
• Cada artefato encontrado pertencia a um
personagem da guerra para ele: a máscara
funerária de Agamêmnon, a taça de Nestor, as
joias de Hécuba.
7. O tratamento das obras de
Homero
• Algumas décadas depois, arqueólogos
profissionais recomeçaram as escavações no
local e acabaram descobrindo onze “Troias”,
sobrepostas umas às outras, sendo a Troia
homérica a VIIa.
• Com a Arqueologia, descobriu-se uma
imiscuidade de períodos nas obras homéricas.
8. O tratamento das obras de
Homero
• Isso se dá porque “É possível que o período descrito na obra
[de Homero] abarque um milênio completo, do ano 1600 ao
600 a.C.” (COLOMBANI, 2005, p. 8).
• As escavações em Hissarlik não estão sendo feitas para
comprovar a Ilíada ou a Odisseia; do mesmo modo, não é a
função do historiador que se debruça sobre as obras
homéricas tentar provar que a guerra de Troia, ou o “rapto”
de Helena, ou as viagens de Odisseu de fato aconteceram.
Não é nossa função provar que Páris, Heitor, Príamo, Aquiles,
Ájax ou Agamêmnon existiram realmente.
9. A função do historiador das obras
homéricas
• “(...) o aproveitamento histórico da obra homérica
será seguro e maior sempre que apontar para o
estudo de aspectos como família, vida social e
política, instituições e normas, princípios éticos,
comportamento religioso, cultura material, ou
fatores econômicos.” (GABBA, 1986, p. 45).
GABBA, Emilio. Homero. In: CRAWFORD, Michael (Org.). Fuentes para el Estudio de la Historia
Antigua. Madrid: Taurus, 1986, p. 38-45.
10. Exemplo de análise: Páris
• Não basta analisar um herói apenas em sua
singularidade: é preciso levar em conta a
sociedade em que ele vive.
• Para isso, realizamos uma leitura isotópica da
obra, a fim de verificar, em nível axiológico,
quais são os elementos euforizados,
disforizados e aforizados.
11. Exemplo de análise: Páris
• O que se espera de um membro dessa sociedade?
Que tenha honra (timé); Que tenha justa-medida
Que tenha virtude (areté); (métron) em seus atos;
Que tenha coragem na Que respeite os anciãos;
guerra; Que se case;
Que respeite os deuses, Que participe das
oferecendo-lhes libações; discussões na agorá;
Que respeite os ritos de Que cozinhe os alimentos,
hospitalidade (xénia); bem como não beba o
vinho puro.
12. Exemplo de análise: Páris
• Como Páris é representado na Ilíada?
“divo” (theoeidés), (vários “sedutor de mulheres” (III, v.
versos); 39);
“marido de Helena cacheada” “careces de força e coragem”
(vários versos); (III, v. 45);
“Páris funesto” (Dýsparis), (III, “Esses cabelos, a cítara, os
v. 39); dons de Afrodite, a beleza” (III,
“fautor desta guerra” (III, v. v. 54);
87; VII, v. 374); “Mas, voluntário, te escusas;
“fautor de desgraças” (VI, v. não queres lutar” (VI, v. 523);
282); “Este, porém, nunca teve
“de belas feições” (III, v. 39); firmeza, nem nunca há de tê-
la” (VI, v. 352).
13. Exemplo de análise: Páris
• A priori, Páris parece ser um anti-herói.
• Entretanto, ao continuarmos a leitura da Ilíada,
vemos que ele retorna ao combate, mata outros
guerreiros, demonstrando sua habilidade com o arco
e flecha.
• Desse modo, Páris configura-se em um modelo de
como proceder, visto que age de maneira vil mas
procura consertar seus erros.
• As obras homéricas têm uma função paidêutica.
14. Considerações finais
• Demonstramos aqui que a poesia pode ser um documento
histórico, à medida que possui elementos reveladores da
cultura helênica políade, por ser uma obra de cunho
paidêutico.
• Além disso, mostramos uma abordagem desses poemas que
pode auxiliar àquele que se debruça sobre eles.
• Mostramos, também, como é importante ir ao texto e
analisar de que forma ele é construído para se estudar essa
sociedade e as personagens descritas na epopeia. O
aproveitamento é ainda maior quando voltamos ao texto em
sua língua original, visto que cada termo engendra uma noção
que pode se perder na tradução.