O documento discute a campanha "CRESÇA" da Oxfam, que visa garantir a justiça alimentar e produção sustentável de alimentos para alimentar 9 bilhões de pessoas até 2030. A campanha defende maior investimento na agricultura familiar, relações mais diretas entre produtores e consumidores, e políticas públicas que garantam a soberania e segurança alimentar, especialmente para mulheres e populações vulneráveis.
2. 2
CRESÇA. Comida. Justiça. Planeta ECRESÇA
por Muriel Saragoussi*
stamos chegando a 9 bilhões de pessoas no planeta e,
nos últimos anos, a fome no mundo aumentou em vez de
diminuir. Não é uma questão de produtividade porque,
apesar desta ter crescido muito, temos hoje quase 1 bi-lhão
de pessoas que passam fome.
A Oxfam aborda a questão da alimentação a partir da ótica da
justiça alimentar, da ótica de direitos, levando em conta que o mun-do
tem recursos limitados e que, portanto, não é só produzir mais,
mas repartir melhor e considerar os fatores sociais e ambientais
envolvidos na produção.
A campanha da Oxfam iniciada em junho de 2011 recebe o
nome “CRESÇA” porque precisamos produzir mais alimentos, in-vestir
na agricultura familiar, garantir que os agricultores, indígenas,
extrativistas e camponeses – homens e mulheres - estejam pron-tos
para o desafio de alimentar 9 bilhões de pessoas nas próximas
décadas. É um desafio que requer enfrentar a desigualdade no
controle e no acesso aos alimentos e aos recursos naturais, crescer
de uma forma distinta, diminuir as emissões de carbono e contribuir
para o enfrentamento da mudança climática. Significa construir ca-pacidades
para que os agricultores familiares enfrentem as incer-
tezas climáticas e do mercado de alimentos e atendam as necessi-dades
dos mais pobres. Para isto é preciso contar com um sistema
de governança global para a questão alimentar, capaz de lidar com
crises e volatilidade dos preços. Por fim, temos de aumentar o de-bate
sobre esses temas e promover o engajamento da sociedade
na construção de um futuro onde todos tenham e exerçam seu di-reito
a alimentação.
O avanço conseguido na luta contra a fome ao longo das últi-mas
décadas vem sendo dizimado. O vai-e-vem dos preços de ali-mentos,
a exploração dos recursos naturais e as mudanças climáti-cas,
têm aumentado o número de pessoas famintas no mundo e as
projeções para o futuro próximo são ainda mais graves. O relatório
“Crescendo para um futuro melhor”, referencia de nossa cam-panha,
mostra que se essas questões não forem enfrentadas rapi-damente,
os preços internacionais dos principais alimentos irão
mais do que dobrar até 2030. Precisamos com urgência de um
novo compromisso por parte de governos e empresas, de uma nova
forma de engajamento da sociedade para enfrentar a desigualdade
gerada pela falência do atual sistema de controle da produção, dis-tribuição
e consumo de alimentos.
3. 3
OXFAM
A Campanha Cresça chega no momento certo. Estamos num
mundo de múltiplas crises, é uma crise econômica, mas é também
uma crise de valores éticos, uma crise de produção, uma crise cli-mática.
Os modelos de produção de alimentos vão ter de mudar
porque o clima já mudou, o mundo já mudou. Só se o modelo de
produção mudar é que vamos ter capacidade de sair destas crises,
criar um modelo de desenvolvimento justo, com equidade.
Agricultura familiar
Nossa opção prioritária é pela agricultura familiar. Ela tem a ca-pacidade
de inovar, de absorver técnicas e propostas de produção
que constroem a justiça alimentar, a agroecologia e a produção
sustentável a curto e a longo prazo.
São necessários maiores investimentos para a agricultura fami-liar.
Segundo o IBGE, 70% dos produtos agrícolas consumidos no
país vêm da agricultura familiar, mas somente 24% das terras boas
para o plantio estão nas mãos dos pequenos agricultores.
Relação produção e consumo
Não é só uma questão de direito de acesso aos alimentos, é tam-bém
uma questão de consciência sobre o que nos alimenta, quem
produz, como e para quê produz. Buscar a relação mais direta possí-vel
entre produtor e consumidor é coerente com nossos objetivos.
A produção tem que estar próxima do consumo. O objetivo da
produção não deve ser o de exportar ou levá-la para onde pagarem
mais, mas sim de alimentar as pessoas e de uma forma saudável.
Ela só pode estar longe do consumo em situações extremas ou em
situações de dificuldade. A questão central é garantir alimentos
para todas as pessoas de uma forma sustentável.
O Brasil tem hoje mais de 85% da sua população vivendo nas
cidades. São 160 milhões de pessoas que vivem uma vida urbana,
com grandes variações, é verdade, mas os laços de convivência do
mundo rural estão cada vez mais longínquos. A pobreza no mundo
urbano tem novas características, tornando ainda mais difícil a so-brevivência,
pobreza esta que demanda uma atenção especial aos
muitos milhões de brasileiros que nela estão.
Os governos
Essa é a primeira campanha da Oxfam que junta todas suas afi-liadas.
Ela está sendo realizada em mais de 40 países. O Brasil é um
dos 10 países estratégicos da campanha, pela sua capacidade de
influenciar a temática da alimentação no resto do mundo, pelo
exemplo e pela vontade política de fazê-lo.
De acordo com o IPEA, o Brasil conseguiu tirar da miséria, entre
2004 e 2009, de 30 a 32 milhões de brasileiros. Mas a garantia de
que eles permaneçam fora da miséria, fazendo três refeições por
dia, não está dada. A sociedade brasileira deve estar consciente de
que precisa garantir conquistas, não abrir brecha para retrocessos.
O Estado tem um papel fundamental na garantia da soberania ali-mentar,
da segurança alimentar e da justiça alimentar. São progra-mas
como o PAA, o Programa de Alimentação Escolar, a garantia
de preços mínimos para produtos da sociobiodiversidade, as priori-dades
nas compras públicas, que iniciam novas políticas. A partir
de 2009, por exemplo, 30% dos alimentos para a merenda escolar
devem ser comprados de pequenos produtores.
Mulheres
A grande maioria dos alimentos no mundo é produzida por mu-lheres
e esse dado é absolutamente invisível. Em muitos países,
mulheres não têm acesso a terra ou aos recursos naturais neces-sários
para sua sobrevivência. Precisamos dar destaque à realidade
das mulheres produtoras. Precisamos de políticas públicas especí-ficas
para elas.
Sociedade Civil
A campanha no Brasil se propõe a contribuir para aumentar o
debate na sociedade brasileira em geral em relação à questão da jus-tiça
alimentar. A participação cidadã é fundamental. Ela se dá através
da pressão e do engajamento de cada pessoa nas chamadas da
campanha para iniciativas conjuntas junto aos governantes; no papel
de consumidor de cada cidadão; no seu papel de eleitor e eleitora,
apoiando candidatos que defendam políticas de enfrentamento dos
problemas apontados pela campanha; e apoiando iniciativas de or-ganizações
e movimentos sociais que estão na mesma luta.
O papel da Oxfam é apoiar processos e movimentos da própria
sociedade brasileira, sua sinergia, articulação, sua capacidade para
dar o passo seguinte. Nosso papel é alimentar alianças dentro da
sociedade e fortalecer parceiros para que eles possam fazer as
mudanças necessárias no modelo de desenvolvimento brasileiro.
Jogos Vorazes
Os estoques públicos de alimentos quase desapareceram e
não há transparência sobre aqueles disponíveis no mundo, sejam
públicos ou privados. O mundo financeiro passou a especular sobre
o preço futuro dos alimentos, causando grande volatilidade em
seus preços. Especular em cima da vida e da morte das pessoas
sempre foi um grande negócio — antes era a guerra, agora também
é a comida.
Regular os preços dos alimentos, dar transparência aos esto-ques
públicos e privados, garantir acesso à informação e controle
social sobre o setor é um dos objetivos da campanha.
A Campanha CRESÇA não trata de temas novos, mas da ne-cessidade
de providências rápidas, imediatas e de mudanças im-prescindíveis
para evitar que a situação ultrapasse limites críticos
inimagináveis. É a urgência que nos move.
*Muriel Saragoussi é coordenadora de campanhas e incidência da Oxfam na
Brasil. Engenheira agrônoma de formação, ela tem mais de 30 anos de militân-cia
nas áreas de sustentabilidade e combate à fome.
A Oxfam tem respondido
a crises de alimentos por
quase 70 anos - desde a
Grécia em 1942, passando
por Biafra (1969), Etiópia
(1984), Níger (2005),
Chifre da África no ano
passado, e estamos nos
preparando para enfrentar
a crise anunciada do Sahel,
este ano. Estamos
presentes nos inúmeros
desastres silenciosos que
passam despercebidos da
mídia e da opinião pública
global - todos totalmente
evitáveis, resultado de
decisões desastrosas,
do abuso de poder e
de políticas econômicas
perversas.
5. 5
OXFAM
O Cassino Agrário
por gonzalo fanjul*
O economista britânico John Maynard Keynes tinha opini-ões
bem definidas sobre os mandarins financeiros de
sua época: “sugerir à City de Londres uma ação social
em beneficio do bem público é como discutir A origem
das espécies com um bispo”. Quase um século depois, os merca-dos
se tornaram mais complexos e sofisticados, mas o modo
como os especuladores aproveitam em beneficio próprio das leis
débeis ou inexistentes mudou muito pouco. Este é o caso do mer-cado
de alimentos, onde as consequências do laissez-faire vão
além do aceitável.
Durante os últimos 4 anos o preço dos alimentos básicos teve
as oscilações mais agudas vistas em décadas. As causas dessa
espiral incluem uma combinação conhecida de fatores que diminu-íram
a oferta e dispararam a demanda, como a produção de bio-combustíveis
ou o incremento do consumo de carne na Ásia. Mas
também intervieram outras variáveis, como a desmedida especula-ção
financeira. Quando setores tradicionalmente mais rentáveis
perderam fôlego na bolsas da Europa e Estados Unidos, os espe-culadores
colocaram seus olhos na comercialização de matérias
primas como o trigo, o milho ou a soja, que receberam o mesmo
tratamento financeiro que um chip ou uma hipoteca.
Os produtos financeiros (como os mercados futuros ou as op-ções
de compra, que garantem a entrega de uma mercadoria em
um prazo e preço determinados com antecedência) são recursos
habituais de vendedores e compradores para diminuir o risco ine-rente
a qualquer mercado agrário. Mas isso dificilmente descreve o
que ocorreu nos últimos anos. A escalada inicial dos preços atraiu
os especuladores de grandes firmas, como Goldman Sachs e J.P.
Morgan, que desenvolveram instrumentos derivados e índices
combinados de matérias primas que multiplicaram as piruetas fi-nanceiras
e os riscos associados a elas, e converteram a agricultu-ra
em outro de seus cassinos.
No primeiro trimestre de 2008, enquanto os preços dos prin-cipais
alimentos disparava, os investidores estavam colocando
nesses mercados a irrisória quantia de um bilhão de dólares diá-rios,
boa parte dos quais eram destinados a operações bilaterais
alheias ao controle das principais bolsas (o que se conhece como
operação OTC). Somente no mercado do trigo esses índices che-garam
a controlar em junho desse mesmo ano 42% do mercado
nos EUA. A crise precipitou a saída maciça de capitais desses e
de outros mercados, e com ela a queda brusca de preços que co-nhecemos
em 2009.
A especulação contribuiu para gerar um mercado com preços
mais caros e menos previsíveis, cuja consequências são sentidas
em boa parte pelos países mais pobres do planeta. Oxfam é teste-munha
de como a volatilidade extrema dos preços golpeou consu-midores
e produtores pobres, incapazes de aguentar o choque ou
de aproveitar suas oportunidades. Desde o Camboja, até a Nigéria
e a Guatemala, A FAO calcula que o número dos que passam fome
aumentou entre 2008 e 2009 em mais de 250 milhões, até supe-rar
pela primeira vez na história o número de 1 bilhão de seres hu-manos.
A alta dos preços de 2011 podem ter intensificado essa
tendência.
O que se pode fazer? Muitas das medidas de reforma dos
mercados financeiros que estão sendo aprovadas nos Estados
Unidos e em outros países – como a transparência, a regulação
dos produtos derivados e o controle das operações OTC – ajudarão
a colocar limites nos especuladores. Mas são necessárias garan-tias
adicionais no caso de um mercado tão sensível para o bem-
-estar humano, do qual depende o direito à alimentação. Nesse
âmbito a responsabilidade do G20 é iniludível e aí o governo do
Brasil deve exercer a mesma liderança demonstrada em casa, com
a implantação de políticas contra a fome que são admiradas em
todo o mundo. No mais, é tratar um câncer com aspirinas.
*Gonzalo Fanjul, assessor estratégico da Oxfam Internacional.
6. CRESÇA. Comida. Justiça. Planeta A questão agrícola na RIO+20
por Jean Marc von der Weid*
O documento base da Rio+20, produzido pelo Programa
6
das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEP), não
dá à agricultura o lugar central que deveria ocupar no
debate, além de abster-se de constatar os problemas
provocados pelo modelo de desenvolvimento agrícola dominante
no mundo, conhecido como agricultura industrial.
A agricultura, entendida no sentido amplo adotado pela FAO, in-clui
os cultivos temporários ou perenes, a pecuária, a pesca/aqüi-cultura
e a exploração florestal. Ela é o maior fator de perda de bio-diversidade,
de destruição florestal e de desertificação em todo o
mundo. Ela também é o maior consumidor de água potável (70%),
além de ser o principal agente de contaminação de rios, lagos e
aqüíferos. A contaminação química provocada pelo uso de adubos
químicos e agrotóxicos também é um fator importante na destrui-ção
do meio ambiente nas zonas costeiras, em particular na foz dos
rios onde cria imensas áreas chamadas de desertos marinhos, afe-tando
também a pesca.
A agricultura tem forte relação com a questão da produção de
combustíveis (álcool e biodiesel em tempos mais recentes e carvão
e lenha desde muito tempo). Do ponto de vista das mudanças cli-máticas
a agricultura é responsável por 18% das emissões de ga-ses
de efeito estufa (GEE), mais do que a queima de combustíveis
7. 7
OXFAM
nos transportes. Se combinarmos este efeito direto com as emis-sões
provocadas pelo desflorestamento (em grande parte provo-cado
pela expansão das áreas agrícolas) e outras emissões ocorri-das
em outras etapas da cadeia alimentar, chegamos a cerca de
50% de emissões de GEE. Finalmente, é preciso lembrar que a
agricultura concentra a maior parte da população em extrema po-breza
no mundo e que não existe modelo de desenvolvimento urba-no
nos tempos modernos capaz de absorver este contingente.
A agricultura industrial tem outros efeitos negativos sobre os re-cursos
naturais renováveis como os solos. Desde a segunda guerra
mundial aproximadamente 2 bilhões de hectares de solos potencial-mente
agricultáveis no mundo já foram degradados, mais de 22%
de toda a área disponível para cultivos, pastagens e florestas.
A degradação química dos solos devido às praticas agríco-las
é responsável por 40% das perdas nas áreas cultivadas.
Este modelo agrícola tem outro calcanhar de Aquiles, a sua de-pendência
de recursos naturais não renováveis como petróleo,
gás, fosfatos e potássio. A exaustão das reservas mundiais de
petróleo já se faz sentir nos custos crescentes deste combustí-vel.
As reservas de gás têm previsão de alcançar seu pico de
produção em 2025. As de fósforo já passaram por este pico e
as de potássio devem alcançá-lo em mais 20 anos.
Na atualidade, o mundo produz comida suficiente para alimen-tar
os mais de 7 bilhões de habitantes do planeta. A existência de
mais de um bilhão de famintos se deve a problemas de pobreza e
não de disponibilidade, mas no futuro próximo haverá carência ab-soluta
de alimentos se o presente modelo produtivo não for radical-mente
alterado. Os custos de produção no modelo da agricultura
industrial, alem das perdas das áreas cultiváveis, deverão trazer de
volta o fantasma da fome endêmica em escala não vista desde o
início do século vinte.
Frente a este quadro de crise profunda, que pode levar a terríveis
problemas sociais e instabilidade política em muitos países, um gru-po
de entidades da sociedade civil elaborou uma proposta para a
Rio+20 intitulada “Tempo de Agir”. O documento (disponível no site
www.aspta.org.br) aponta para um novo modelo de agricultura base-ado
na produção familiar, empregando as práticas da agroecologia.
A agroecologia é definida como o manejo integrado dos recur-sos
naturais (solo, água e biodiversidade) sem uso de insumos ex-ternos
industriais. São policulturas integradas com criações ani-mais
e com a vegetação natural.
A agroecologia é econômica no uso de água e de energia e,
além de não emitir GEEs, promove uma forte absorção de carbono.
O sistema não tem efeitos contaminantes para águas, solos, produ-tores
e consumidores e promove uma dieta saudável. Os críticos
mal informados sobre estes sistemas dizem que suas produtivida-des
são baixas e que adotar a agroecologia obrigaria a aumentar a
área cultivada e, portanto, aumentar o desmatamento. Pesquisas
da FAO, da Univesidade de Essex e da Academia de Ciências dos
Estados Unidos, para citar apenas alguns estudos, indicam que os
sistemas agroecológicos têm índices de produtividade compará-veis
aos convencionais e que os preços superiores cobrados pelos
produtos vendidos como orgânicos não se devem a custos de pro-dução
superiores ou produtividades inferiores, mas à relação de
oferta e demanda do mercado e aos custos de comercialização dos
orgânicos. Ambas as questões podem ser resolvidas com o au-mento
da produção agroecológica (orgânica), garantindo uma ofer-ta
de produtos de qualidade a preços mais baixos.
A questão mais importante a ser notada na produção agroeco-lógica
é a sua demanda de conhecimentos técnicos e de mão de
obra. Diz-se que a agroecologia é “knowledge intensive” enquanto
a agricultura industrial é “input intensive”. A questão do conheci-mento
na agroecologia deriva da sua busca de grande diversifica-ção
na estratégia de mimetizar os sistemas naturais. Isto implica na
necessidade de se procurar um desenho produtivo específico para
cada propriedade, o que não se faz sem métodos de pesquisa que
integrem o agricultor como experimentador. A questão da mão de
obra não é apenas relativa às limitações de uma mecanização dos
sistemas produtivos quando os mesmos são muito diversificados,
mas à exigência de cuidados e informação que limita a eficiência
do trabalho assalariado. Tudo isto resulta no fato de que a agroeco-logia
opera, em condições ideais, em sistemas produtivos da agri-cultura
familiar de pequena escala.
Para países como os Estados Unidos, onde o emprego agrícola
é inferior a 4% do emprego total e que tem menos de dois milhões
de agricultores familiares, adotar a agroecologia seria (será) dra-mático,
pois necessitarão de gerar uma nova classe de campone-ses
quando o conjunto das crises acima referidas vier a destruir a
sua agricultura convencional. No Brasil, apesar dos descaminhos
de uma reforma agrária sempre feita à “meia boca” ainda temos
perto de 4,5 milhões de agricultores familiares e potencial para
mais 10 milhões capazes de adotar a agroecologia como forma de
produção. Isto poderá acontecer de forma dramática pela mera for-ça
das crises que assolam a humanidade ou de forma controlada e
suave se as necessárias políticas públicas forem adotadas. Dado o
gravíssimo problema de pobreza mundial e nacional, o fato de que
os sistemas agroecológicos sejam demandadores de mão de obra
não é um problema, mas uma solução. Eles vão permitir que um
enorme contingente de excluídos venha a integrar-se na sociedade
de forma produtiva e não assistencial.
Dada a total falta de compromisso dos governos da maior parte
do mundo com as exigências de mudanças drásticas na forma
como o mundo produz, consome e se relaciona com a natureza, não
podemos esperar muito da Rio+20, mas o que os signatários do
manifesto “Time to Act” pretendem é despertar a opinião pública e
continuar um embate nos planos internacional e nacionais após a
conferência.
*Jean Marc von der Weid é coordenador do Programa de Políticas Públicas da
AS-PTA Agroecologia e Agricultura Familiar.
8. 8
CRESÇA. Comida. Justiça. Planeta O Mais
democracia
para enfrentar
a fome
POR Maria EMÍlia Lisboa Pacheco*
Consea é resultado de uma manifesta vontade política
por ouvir as demandas da sociedade. É fruto das refle-xões
pioneiras sobre a fome, feitas por Josué de Castro
- que é seu patrono; do ex-presidente Lula, que o re-criou,
e foi recentemente indicado pelos conselheiros seu Presi-dente
de Honra; de Betinho, da Ação da Cidadania Contra a Fome
e a Miséria e pela Vida. É a expressão dos ecos da cidadania, das
vozes do campo, da floresta e da cidade.
Em sua composição está a fala dos sujeitos de direitos, repre-sentados
pelas organizações dos povos indígenas, população ne-gra,
quilombolas, pescadores, comunidades de terreiro, extrativis-tas
como as quebradeiras de coco, organizações da agricultura
familiar e camponesa. É a expressão de nossa sociobiodiversidade,
com suas formas de vida e manejo dos bens da natureza nos vários
biomas, e de uma sociedade pluriétnica.
Mas também estão presentes entidades do direito humano à
alimentação; centrais sindicais; redes, fóruns e articulações da so-berania
e segurança alimentar e nutricional, da agroecologia, da
economia solidária, da educação cidadã; representações de orga-
nizações de matriz religiosa; das organizações que reúnem pesso-as
com necessidades especiais, consumidores e profissionais do
campo da saúde e nutrição; organizações ligadas à agricultura pa-tronal
e indústria de alimentos.
O CONSEA abriga a expressão das várias dimensões da políti-ca
de segurança alimentar e nutricional, sintetizadas no princípio da
intersetorialidade, que nos é muito caro.
Reafirmamos que essa política, baseada no direito humano à ali-mentação
adequada, deve se concretizar através das diretrizes con-tidas
no Plano Nacional de Segurança de Alimentar e Nutricional:
acesso universal à alimentação adequada e saudável; promoção do
abastecimento e estruturação de sistemas sustentáveis e descentra-lizados
de base agroecológica de produção, extração e processa-mento;
instituição de processos permanentes de educação alimen-tar
e nutricional; fortalecimento das ações de alimentação e nutrição
em todos os níveis da atenção à saúde; promoção do acesso univer-sal
à água de qualidade e em quantidade suficiente; apoio às iniciati-vas
de promoção da soberania alimentar, segurança alimentar e nu-tricional
no âmbito internacional e nas negociações internacionais.
9. 9
OXFAM
O CONSEA tem, hoje, uma representação de 51% de mulhe-res.
A expressão de seu papel na luta pela garantia da segurança
alimentar e nutricional começa a refletir-se na consciência da so-ciedade
de que são portadoras de direitos, embora haja muito a
avançar no plano das políticas e seus instrumentos de operaciona-lização
que ainda discriminam as mulheres.
A 4ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricio-nal
ocorrida no final do ano passado em Salvador, na Bahia, foi o
coroar de um movimento que envolveu mais de 75 mil pessoas,
com a participação de 3.000 municípios, todas as regiões, todos os
estados. Representou uma inequívoca mostra da força e do alcan-ce
de nossa articulação e mobilização social.
Reconhecemos e valorizamos os significativos avanços conse-guidos
no Brasil na mobilização social pela soberania e segurança
alimentar e nutricional, para os quais contamos várias vezes com a
atuante Frente Parlamentar de Segurança Alimentar e Nutricional.
Temos programas estruturantes que têm sido inspiradores para
iniciativas análogas em outros países, como é o exemplo do Pro-grama
de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de
Alimentação Escolar (PNAE), o Programa um Milhão de Cisternas
(P1MC) e mais recentemente a inovadora proposta do P1+2 – uma
terra e duas águas no semiárido.
Esses são programas que contribuem para revigorar as econo-mias
locais, estimular a diversificação da produção, valorizar as cul-turas
alimentares e impulsionar a participação social, a organização
popular, revitalizando o tecido associativo.
Mas vivemos tempos também de grandes desafios, contradi-ções
e riscos de desconstrução de conquistas. Por exemplo, o De-creto
Federal 4887/2003, assinado pelo ex-presidente Lula, que
regulamentou o processo de titulação das terras dos remanescen-tes
das comunidades de quilombos, criando mecanismos que faci-litam
o processo de identificação e posterior titulação de comuni-dades,
encontrou ferrenha oposição.
Precisamos compreender que para os territórios étnico-raciais
a terra não é apenas um meio de produção da sua subsistência e
reprodução física, mas, também um patrimônio sócio-cultural. A
terra é a sua casa, o lugar onde nascem, crescem e desenvolvem
suas diferentes formas de vida. É o lugar onde enterram seus mor-tos
e celebram a vida. É o lugar onde produzem e reproduzem sua
cultura, onde historicamente domesticam plantas e animais e nos
deixam um enorme legado de espécies e variedades que enrique-cem
a nossa biodiversidade.
A terra não é mercadoria, nem propriedade privada de pessoa
física ou jurídica. É patrimônio coletivo, de todo um povo, de seus
usos e costumes, e assim a apropriação dos seus frutos se dá,
igualmente, de forma coletiva, de forma sustentável.
O reconhecimento e a efetivação do direito ao território para as
comunidades quilombolas representa muito mais do que a necessá-ria
reparação do erro histórico da escravidão: é a garantia para que
a sociedade brasileira possa contar com a existência dos quilombos
na contínua construção econômica, social e cultural da sociedade.
Para reverter o quadro de riscos para essas populações, o
Consea defende o etnodesenvolvimento como uma diretriz a ser
plenamente incorporada no conjunto das políticas públicas do
Estado brasileiro, e em especial nas políticas de Segurança Ali-mentar
e Nutricional.
Consideramos fundamental adotar o objetivo estratégico da
soberania e segurança alimentar e nutricional como um dos ei-xos
da estratégia de desenvolvimento do país para superar as
desigualdades socioeconômicas, regionais, étnico-raciais, de gê-nero
e geração e erradicar a pobreza extrema e a insegurança
alimentar e nutricional.
O fortalecimento da capacidade reguladora do Estado se faz
necessário, tanto na efetiva regulação da expansão das monocul-turas,
como na adoção de medidas como o banimento imediato dos
agrotóxicos que já foram proibidos em outros países, incluindo os
que foram utilizados em guerras, como o glifosato; o fim de subsí-dios
fiscais, acompanhado da implementação de mecanismos de
regulação da comunicação mercadológica de alimentos.
É socialmente inaceitável que o mercado seja o único regulador
das decisões tecnológicas. A consciência dos consumidores e a
manifestação de suas incertezas devem ser consideradas. É indis-pensável
revisar a lei de biossegurança e modificar a composição e
funcionamento da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança
(CTNBio), para expressar as diferentes visões existentes na socie-dade
e na comunidade acadêmica e ampliar a participação e o con-trole
social.
Investir na agricultura familiar e camponesa é gerar emprego e
renda para milhões de pessoas, é estimular a produção de alimen-tos
e a diversidade de culturas, é respeitar tradições alimentares e
preservar a natureza, é fixar o homem no campo, é fortalecer as
economias locais e regionais.
O aprofundamento da democracia participativa e redistributiva
para assegurar o direito humano à alimentação adequada requer a
concretização do direito à terra, reconhecendo sua função social nas
dimensões socioambiental, econômica e trabalhista, conforme a
Constituição Federal, através de amplo programa de reforma agrária.
Os movimentos sociais e entidades da sociedade civil defen-dem
princípios e valores que nos são muito caros: soberania ali-mentar,
sustentabilidade socioambiental, justiça social e climática,
participação, controle social, intersetorialidade, igualdade nas rela-ções
de gênero, entre outros. São estes valores que devem pautar
as ações do CONSEA.
*Maria Emília Lisboa Pacheco é antropóloga, mestre em Antropologia Social
(Universidade Federal do Rio de Janeiro- UFRJ), integrante da FASE (Federa-ção
de Órgãos para Assistência Social e Educacional), da Articulação Nacional
de Agroecologia (ANA) e do Fórum Brasileiro de Soberania, Segurança Ali-mentar
e Nutricional (FBSSAN), atual presidente do CONSEA.
10. CRESÇA. Comida. Justiça. Planeta
Aproximando a produção
e o consumo
Silvio Caccia Bava*
10
território; o financiamento em condições acessíveis aos micro e
pequenos empreendedores com novos mecanismos de interme-diação
financeira; a maior participação dos atores sociais nos
processos de decisão política, o maior cuidado com o meio am-biente
do lugar em que vivem.
Os circuitos curtos buscam que a produção e o consumo, sem-pre
que possível, se dêem no mesmo território, beneficiando sua
cidade ou região. Não se trata apenas de encurtamento de distân-cias,
mas de estruturar uma economia de empresas locais, peque-nas
e grandes, que estimulem a circulação de riqueza no local, arti-culem
cadeias produtivas, absorvam a mão de obra local,
necessitem pouco capital, e utilizem baixa tecnologia, abrindo es-paço
para que estas iniciativas sejam também empreendimentos
populares.
Esta abordagem é resultante dos ensinamentos de uma longa
trajetória de experiências nascidas na sociedade civil, que são fruto
das práticas de resistência e das iniciativas de movimentos sociais
e redes de cidadania na busca por soluções para se enfrentar os
problemas da pobreza no Brasil. Os circuitos curtos são inspirados
em experiências de desenvolvimento local, com todas suas varian-tes,
economia solidária, comércio justo, e agrega um novo compo-nente,
a preocupação com a sustentabilidade ambiental.
Ao fortalecer os circuitos curtos de produção e consumo, o pro-jeto
de desenvolvimento busca a criação de oportunidades para os
atores locais, maiores possibilidades de promover a sustentabilida-de
ambiental, a equidade social e a qualidade de vida no território.
Do ponto de vista da segurança alimentar, por exemplo, o fo-mento
à agricultura familiar, a redução das distâncias a ser percor-rida
pelos alimentos, a recuperação do cultivo de subespécies lo-cais,
a comercialização em menor escala de alimentos, são agendas
diretamente relacionadas aos circuitos curtos, e se contrapõem à
grande produção baseada na grande propriedade, bem como aos
sistemas de comercialização hiper centralizados. Programas como
a exigência de que 30% da alimentação escolar seja comprada
A disputa pelas alternativas de desenvolvimento expressa a
contraposição de dois modelos. O dos circuitos longos de
produção e consumo, domínio das transnacionais; e o dos
circuitos curtos de produção e consumo, que são o cam-po
de atuação dos atores e da economia local.
Por circuitos longos entendemos, por exemplo, a exportação de
commodities. A soja que é plantada na região central do país e que
é exportada para a China. Tomemos este exemplo. A plantação ex-tensiva
de soja requer grandes áreas e acaba por concentrar ainda
mais a terra no Brasil, expulsando a agricultura familiar. As técnicas
de produção são todas mecanizadas, requerendo grande maquina-ria
e técnicos especializados para operá-las. Tudo isso requer muito
capital. É preciso investir em silos, estradas de ferro, portos, navios,
sem considerar o enorme gasto de energia.
Os circuitos longos, ao contrário do que prega a ideologia do
mercado, pauperizam o território em que operam, retiram dele re-cursos
naturais e a riqueza gerada pela produção, que é transferida
para os centros financeiros internacionais. Como seu objetivo não é
o desenvolvimento do território, também não se preocupam com a
degradação ambiental que geram. Com a adoção de novas tecno-logias,
dos avanços na mecanização e na automação, estes gran-des
empreendimentos passaram também a absorver muito pouca
mão de obra local. O saldo para os atores locais e o desenvolvimen-to
do território não é favorável.
Um olhar crítico sobre os circuitos longos, sobre as grandes es-calas
e os grandes percursos que favorecem a concentração do ca-pital
e prejudicam o meio ambiente, a qualidade de vida e a estrutu-ra
social, é o ponto de partida para questionarmos este paradigma
de produção e consumo.
Por circuitos curtos entendemos a busca pela aproximação
entre os locais de produção e consumo de bens e serviços; a re-dução
da escala das distancias percorridas pelos produtos a se-rem
transportados; a diminuição da necessidade de uso de redes
de transporte, energia e logística; a utilização de mão de obra do
11. 11
dos produtores locais são um bom exemplo de iniciativas que visam
o encurtamento dos circuitos de produção e consumo.
A agenda local se identifica com a agenda global. O desafio é
participar deste movimento mundial: o da disputa por um novo mo-delo
de desenvolvimento. E toda atenção deve ser dada a proces-sos
que atuem no sentido de atenuar ou neutralizar as tendências
concentracionistas que existem.
Sabemos que nenhuma sociedade se viabiliza exclusivamente
baseada em circuitos curtos. A questão central é que a convivência
com os circuitos longos deve buscar o desenvolvimento do territó-rio
e o fortalecimento dos atores locais.
Recentemente, com a crise do atual modelo de desenvolvimen-to,
a questão do desenvolvimento do território passou a estar rela-cionada
com a do próprio modelo de desenvolvimento. E incorpora
a questão ambiental pela urgência e dramaticidade que ela carre-ga.
Trata-se, na verdade, de uma situação mais complexa, trata-se
de uma crise civilizatória onde a grande tarefa é construir uma nova
sociedade e, para atender esta sociedade, um novo modelo de pro-dução
e consumo.
Em toda sociedade existe um novo modelo de produção e con-sumo
em gestação. Ele é fruto das lutas pela sobrevivência, das lu-tas
sociais, de conflitos pela democratização da sociedade e da ri-queza.
Mas este novo modelo nem tem visibilidade, nem é visto no
seu conjunto, ou reconhecido como uma alternativa ao modelo vi-gente.
Ele acaba por se apresentar na forma de inúmeras experiên-cias
que conseguem sobreviver, mas que não se apresentam como
algo articulado, como uma proposta de organização social. Por for-ça
dos controles impostos pelos atores hegemônicos, o campo de
experimentação de novos padrões de produção e consumo não ga-nha
o espaço público, não se torna objeto de debate, não traz apor-tes
para o debate sobre o modelo de desenvolvimento.
Os circuitos curtos de produção e consumo trazem consigo
uma nova proposta de organização da sociedade e da economia.
Podem ser parte de um quebra-cabeça que aponte novos cami-nhos.
De toda maneira, para fins imediatos, é uma proposta que
favorece os agentes daquele lugar, os trabalhadores e moradores
daquele território.
O desafio maior não é o desenvolvimento de novas técnicas ou
processos de produção, já existe um acumulo importante de co-nhecimentos
a partir das milhares de experiências que se desen-volvem
no campo da economia solidária e outras formas cooperati-vas
de produção e consumo. A questão é política, isto é, de que se
constituam articulações, redes, atores coletivos na sociedade civil
que defendam políticas públicas de apoio e fortalecimento dos cir-cuitos
curtos.
*Silvio Caccia Bava é sociólogo, técnico do Instituto Pólis, diretor do jornal “Le
Monde Diplomatique Brasil”.
OXFAM
12. 12
CRESÇA. Comida. Justiça. Planeta Os sistemas atuais de produção e consumo de alimentos
são marcados pela produção em larga escala e o consu-mo
de massa. Eles geram a exclusão de pequenos agri-cultores,
a exploração de trabalhadores no campo, ex-cluem
os consumidores sem poder aquisitivo. Suas atividades
degradam o meio ambiente tanto pelo lado da produção (monocul-turas,
desmatamento, contaminação, etc.) como pela comercializa-ção
(emissão de gases do efeito estufa pelo transporte de longas
distâncias, sobrepreço pelo excesso de intermediários). E trazem
ainda impactos negativos sobre a saúde humana (resíduos de agro-tóxicos,
uso indiscriminado de aditivos, alimentos nutricionalmente
pobres e ricos em gordura, sal e açúcar, etc.).
Repensar este modelo de produção e consumo de alimentos
passa necessariamente pelo debate sobre o papel da mulher. No
caso de alimentos, as decisões de compra são das mulheres. Infe-lizmente,
este “poder de compra” esbarra na falta de informação so-bre
os impactos socioambientais dos sistemas de produção de ali-
Consumo
responsável
e saudável
de alimentos:
desafio para
as mulheres
POR Lisa Gunn e Adriana Charoux*
mentos e sobre a qualidade nutricional dos alimentos industrializados,
distanciando as mulheres de alternativas mais responsáveis e sau-dáveis
de consumo.
A piora na qualidade da alimentação
da população brasileira
O padrão alimentar da população brasileira, sobretudo de crian-ças
e adolescentes, está comprometendo a saúde pública. Segun-do
a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) 2008-2009, realizada
pelo IBGE, 48% da população está com sobrepeso e 15% já se
classifica em estado de obesidade. “A parcela dos meninos e rapa-zes
de 10 a 19 anos de idade com excesso de peso passou de 3,7%
(1974-75) para 21,7% (2008-09), já entre as meninas e moças o
crescimento do excesso de peso foi de 7,6% para 19,4%”.1
86% da população consome mais gorduras saturadas do que o
necessário e 61% se excede no consumo de açúcar. A falta de vita-minas
e nutrientes atinge 68% da população. Mais de 90% dos bra-
13. 13
OXFAM
sileiros não ingere as 400 gramas diárias recomendadas pelo Minis-tério
da Saúde de frutas, legumes e verduras e prefere consumir
outros tipos de alimentos pouco nutritivos. Aumenta o risco de doen-ças
cardiovasculares, diabetes e outras graves doenças crônicas.
Mãe, compra!
Sabe-se que os hábitos de alimentação se desenvolvem na in-fância,
e que a probabilidade de uma criança obesa se tornar um
adulto obeso é muito grande. A publicidade, especialmente voltada
para crianças, enaltece estilos de vida muitas vezes totalmente in-sustentáveis.
No entanto, existe amplo respaldo na legislação brasileira para
que essa situação seja revertida, especialmente no Código de Defe-sa
do Consumidor (Lei 8.078/90). A proteção contra publicidades
abusivas está elencada entre os direitos básicos do consumidor (art.
6º, IV), especialmente aquelas que se aproveitam da deficiência de
julgamento e experiência da criança e que induzem o consumidor a
se comportar de forma prejudicial a sua saúde (art. 37, § 2º).
Cabe à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) es-tabelecer
regulamentos específicos para controle da publicidade
de alimentos. A regulamentação governamental em defesa das
crianças não é novidade. Diversos países já o fizeram, como Suécia,
Inglaterra, Noruega e Canadá�.
Apesar de buscar coibir “práticas excessivas...”, a ANVISA ain-da
não disciplina de forma apropriada o tema. A resolução está sus-pensa
devido a diversas ações judiciais, de diferentes associações
empresariais, que são contra a regulação deste tipo de publicidade
porque tem seus interesses comerciais afetados.
Agrotóxicos
Líder mundial no consumo de agrotóxicos, o Brasil leva para a
mesa alimentos de qualidade incerta, muitas vezes contaminados.
Alguns agrotóxicos causam problemas neurológicos, reprodutivos,
de desregulação hormonal, e até câncer. E apesar de serem proibi-dos
em vários locais do mundo, como União Européia e Estados
Unidos, há pressões do setor agrícola para manter esses produtos
no Brasil.
Grande parte dos avanços obtidos com a Lei dos Agrotóxicos
(Lei nº 7.802, de julho de 1989), não tem se tornado efetivos na
prevenção, fiscalização e controle dos efeitos nocivos destes pro-dutos.
Outro ponto falho apontado é a falta de sanções e punições
aos que descumprem a lei.
Aproximando consumidoras urbanas
da agricultura familiar agroecológica
A crítica ao sistema atual vem promovendo o fortalecimento da
agricultura familiar de base ecológica, a comercialização solidária,
os grupos de consumo responsável, ações de promoção da segu-rança
alimentar e nutricional, etc.
Os grupos de consumo responsável e as feiras de produtos or-gânicos
são exemplos de alternativas mais “sustentáveis”, que não
se restringem a nichos de mercado para os consumidores que po-dem
pagar mais por eles.
Foram identificadas 140 feiras de produtos orgânicos em 22
das 27 capitais avaliadas. Estas feiras aproximam os consumido-res
dos pequenos produtores agroecológicos. Porém temos que ir
muito além, fazendo com que espaços como estes se espalhem
por todas as cidades do país.
Pesquisa do Idec2 levantou os preços de sete alimentos orgâni-cos
(repolho verde, berinjela, pimentão verde, chuchu, tomate, cebo-la
e alface americana) em quatro capitais do país. A diferença de
preço de um mesmo produto pode chegar a 463%, dependendo do
canal de venda (grandes supermercados, feiras de orgânicos e en-tregas
em domicílio). Em 100% dos casos, os preços mais baixos
foram os praticados nas feiras de produtos orgânicos.
É importante incentivar a aproximação das consumidoras urba-nas
com as pequenas produtoras rurais por meio de políticas públi-cas
locais de abastecimento. Queremos um maior número de feiras
de produtos agroecológicos, assim como a formação de grupos de
consumidores de produtos agroecológicos da agricultura familiar.
O poder do consumidor
As consumidoras podem ser atoras relevantes na luta para que
as empresas reduzam os impactos socioambientais em suas ca-deias
produtivas e para exigir dos governos políticas públicas que
estimulem o desenvolvimento de novos padrões sustentáveis de
produção e consumo. Além disso, os consumidores devem ser esti-mulados
a rever os seus hábitos de consumo e buscar alternativas
para mudança.
É preciso evitar o risco de cair em uma interpretação ingênua da
realidade, como se o problema se resumisse às empresas tornarem
sua produção mais limpa, ou de baixo carbono, e os consumidores
se tornarem conscientes dos impactos socioambientais negativos.
Novos paradigmas de produção e consumo implicam um novo mo-delo
de desenvolvimento. A produção sustentável exigirá a revisão dos
modelos de negócio, e não apenas o “esverdeamento” da produção.
1 Dados da POF 2008/2009 http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noti-cias/
noticia_visualiza.php?id_noticia=1699&id_pagina=1
2 Revista do Idec, edição 142, abril de 2010.
*Lisa Gunn, socióloga graduada pelo Instituto de Filosofia e Ciências Huma-nas
da Unicamp e mestre em ciência ambiental (Procam - Programa de Pós
Graduação em Ciência Ambiental da USP), é coordenadora executiva do Idec.
*Adriana Charoux é formada em Comunicação Social pela FAAP (Fundação
Armando Alvares Penteado) e História na USP (Universidade de São Paulo) e
autora do livro “A ação social das empresas: quem ganha com isso?”, Editora
Peirópolis, 2007.
14. 14
CRESÇA. Comida. Justiça. Planeta A As mulheres
e a produção
de alimentos
Uma perspectiva feminista
para o debate
por Nalu Faria*
reflexão sobre o envolvimento das mulheres nos siste-mas
de produção e consumo de alimentos exige olhar
para um terceiro aspecto: a reprodução é considerada
uma esfera sob a responsabilidade das mulheres, através
da realização cotidiana do trabalho doméstico e de cuidados. Trata-
-se de uma visão naturalizada do feminino, vinculada à maternidade,
e que define o que é ser mulher no mundo. Ao mesmo tempo, a he-gemonia
capitalista na definição do atual modelo de produção, re-produção
e consumo de alimentos impõe um sistema agroindus-trial,
dominado pelas grandes empresas do agronegócio e pelas
grandes redes de supermercados. As mulheres são expulsas de
regiões que produzem determinados produtos, como é o caso da
soja e eucalipto, ou incorporadas como mão de obra intensiva em
outros, como na produção de frutas, flores e legumes.
A estrutura patriarcal da família e a divisão sexual do trabalho
organizam a inserção das mulheres no trabalho agrícola. Suas ati-vidades
são vistas como parte do seu papel de mães, vinculadas ao
trabalho doméstico e de cuidados, com a produção no quintal, da
horta, do pomar e de pequenos animais. Seu trabalho no roçado é
considerado apenas como uma ajuda e, portanto, não é reconheci-do
como trabalho, o que promove a invisibilização das mulheres
como produtoras de alimentos.
Ainda prevalece uma visão homogênea de família em que o ho-mem
representa os interesses do conjunto, incluindo a mulher e fi-lhos.
Aparentemente os membros da família têm interesses co-muns
que se complementam, ocultando a hierarquia de gênero e
geração centrada no poder dos homens sobre as mulheres e
filhos(as). A divisão sexual do trabalho separa trabalho de homens
e de mulheres, e o trabalho dos homens sempre é mais valorizado
que o das mulheres.
15. 15
OXFAM
A separação entre as esferas da produção e reprodução orga-niza
a economia capitalista e patriarcal, que coloca como centro a
produção mercantil e, ao mesmo tempo, oculta e invisibiliza os elos
entre essas duas esferas.
No padrão atual, a alimentação para os pobres, cada vez mais
homogeneizada, é centrada em carboidratos, alimentos industriali-zados
e produzidos em massa; e os ricos se beneficiam de alimen-tos
carregados de experiência e cultura, produtos de origem con-trolada
e orgânicos (Marcha Mundial das Mulheres, 2008).
Mulheres rurais em luta
No Brasil, as mulheres rurais têm uma longa trajetória de lutas
para conquistar seu reconhecimento como trabalhadoras rurais e
como cidadãs. Nesse percurso estão as lutas para serem aceitas
como sindicalizadas, pelo acesso à previdência e à licença materni-dade,
para ter documentos. Essas lutas desembocaram na reivindi-cação
por renda, o que questiona o homem como representante da
família, e incluem a demanda para que as mulheres participem em
todos os momentos da produção e comercialização. Com isso, am-pliaram-
se as reivindicações para se ter acesso ao crédito, à assis-tência
técnica, mas também para decidir sobre a produção e o con-trole
da comercialização.
As trabalhadoras rurais e camponesas constróem um dos mo-vimentos
de mulheres mais enraizados, com maior organicidade e
capacidade de mobilização em nosso país. São exemplos desse
processo as quatro edições da Marcha das Margaridas (2000,
2003, 2007 e 2011), os vários acampamentos do Movimento de
Mulheres Camponesas (MMC), das mulheres do MST, a ações das
mulheres em vários movimentos pelo fortalecimento da agroecolo-gia
e tantos outros.
Soberania alimentar:
estratégia dos povos para outro modelo
A construção de uma proposta e uma abordagem de soberania
alimentar faz parte de um processo de resistência dos movimentos
camponeses à ofensiva capitalista de imposição de uma agricultura
de mercado. Em suas trajetórias esses movimentos recuperam o
significado das práticas de produção alimentar, da agricultura, dos
conhecimentos, da cultura alimentar desenvolvidos pelos povos, e
resgatam o papel das camponesas como produtoras de alimentos.
As lutas em torno da soberania alimentar contribuem para visibilizar
a relação campo e cidade e a importância de considerar a inter-re-lação
entre o consumo alimentar na cidade com a produção e dis-tribuição
de alimentos.
Por um novo paradigma de sustentabilidade
da vida humana
Utilizar o conceito de divisão sexual do trabalho e o princípio da
soberania alimentar para abordar as práticas das mulheres como
produtoras e consumidoras de alimentos permite:
Ter uma visão integrada da produção, reprodução e consumo e
entender as práticas das mulheres, marcadas pela divisão sexual
do trabalho, que faz com que garantam o cuidado e sustentação da
vida humana às custas de uma grande sobrecarga de trabalho. As-sumir
essa destinação naturalizada, ao não ser encarada como uma
questão política e econômica, deixa o caminho aberto para que as
respostas às tensões vividas pelas mulheres apareçam a partir do
mercado e do consumo alienado.
A transformação deste processo exige a construção de outro
paradigma de sustentabilidade da vida humana, no qual o cuidado
da vida seja colocado no centro da organização econômica e social,
e seja estabelecido o equilíbrio entre produção e reprodução como
responsabilidade de todos (as). Exige, portanto, redefinir os tempos
de trabalho produtivo e reprodutivo, a importância da co-responsa-bilização
dos homens pelo trabalho doméstico e de cuidados, a es-truturação
e aumento de serviços sociais, mas também a constru-ção
de alternativas solidárias e coletivas.
O reconhecimento do papel histórico das mulheres na produção
de alimentos e no descobrimento, hibridação, seleção e preservação
das sementes, na construção de um amplo conhecimento acumula-do
durante milênios, que garantiu a biodiversidade. Disso decorre a
compreensão de que o quintal, na realidade brasileira, cumpre um
papel importante para uma produção diversificada, que é funda-mental
para a garantia de soberania alimentar. Essas práticas têm
também um papel importante na resistência à agricultura de merca-do
e sua tentativa de homogeneizar a produção no campo.
O reconhecimento de que a família não é uma unidade homo-gênea
e está perpassada por conflitos e interesses de gênero, mar-cados
por uma relação de poder desigual entre homens e mulhe-res.
Daí a importância das mulheres serem consideradas como
sujeitos individuais e com direito à autonomia econômica e política.
O que abre questões como a demanda pelo acesso à renda, como
o direito à documentação e o questionamento do homem como re-presentante
da família.
A compreensão da importância da produção para o auto-con-sumo,
combinada com acesso à renda, colocou para as mulheres a
questão do seu direito de participar em todas as decisões e mo-mentos
da produção e comercialização. Esta postura levanta tam-bém
a necessidade de acesso ao crédito.
A reorganização da produção, reprodução e consumo em uma
perspectiva de construção da igualdade entre homens e mulheres
é, portanto, central para um novo paradigma de sustentabilidade da
vida humana.
*Nalu Faria é Psicóloga, coordenadora da SOF Sempreviva Organização
Feminista.
Bibliografia
Faria, N. Economia Feminista e agenda das mulheres no meio rural. In: Butto, A
(Org). Estatísticas Rurais e a Economia Feminista. Brasilia. MDA. 2009.
Marcha Mundial das Mulheres. Desafios para a Soberania Alimentar desde as mu-lheres.
São Paulo. Marcha Mundial das Mulheres. 2008
16. 16
CRESÇA. Comida. Justiça. Planeta A história do Brasil é marcada por um modelo de de-senvolvimento
conservador, excludente e concentra-dor
da terra e da renda, resultando em graves proble-mas
sociais, econômicos e ambientais para o país.
Para contrapor a esse modelo o Movimento Sindical dos Tra-balhadores
e Trabalhadoras Rurais – MSTTR - concebeu o
Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável e
Solidário – PADRSS, que tem na essência a demanda por uma
ampla e massiva reforma agrária com valorização e o fortaleci-mento
da agricultura familiar.
O desenvolvimento rural sustentável e solidário se efetiva so-mente
se construído com a participação dos trabalhadores e tra-balhadoras
rurais, para o que é essencial a democratização do
acesso a terra, a políticas públicas com igualdade de oportunida-des
e exercício pleno da cidadania – acesso à saúde, educação,
lazer, cultura, habitação, segurança, etc. (10º CNTTR, 2009).
Nesse sentido, a CONTAG tem lutado pela implantação de
uma Política de Desenvolvimento do Brasil Rural - PDBR,
apoiando fortemente a proposta aprovada pelo Conselho de
Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário - CONDRAF1. E,
conforme preconiza o PADRSS, esta política deve abrigar os re-ferenciais
da agroecologia nos processos de produção agrope-cuária,
com foco nas potencialidades econômicas locais e na
capacidade de mão-de-obra das populações do campo e da flo-resta,
garantindo sustentabilidade na produção e na renda. Da
mesma forma, promove processos organizativos da agricultura
familiar por meio do SISCOP2, que se propõe a organizar a agri-cultura
familiar nas cadeias de produção, comercialização e
Políticas públicas de
abastecimento alimentar
por paulo oliveira poleze*
17. 17
OXFAM
acesso aos mercados, garantia da assistência técnica e crédito
rural, por meio do cooperativismo.
Na contramão da crise internacional – o ano de 2012 se apre-senta
à beira de uma recessão das economias avançadas endivida-das,
em função do socorro ao setor privado na crise de 2008 – o
Brasil segue num importante processo de ascensão econômica,
política e social, condição que o coloca como referência nos seto-res
agropecuário e energético, especialmente.
O MSTTR cumpre o papel de avaliar e propor saídas concretas
para os históricos problemas socioeconômicos herdados pelo Bra-sil
aproveitando da oportunidade e da conjuntura socioeconômica
nacional para avançar mais rapidamente na construção e imple-mentação
de políticas públicas para o desenvolvimento sustentável
garantindo vida plena às populações do campo e cidades com se-gurança
e soberania alimentar.
O potencial da agricultura familiar sua relação
com soberania e segurança alimentar.
Com a instituição da Lei 11.326/06 se consagrou por definitivo
o conceito de “Agricultura Familiar”. Antes esse público era identi-ficado
por meio de expressões de pouco ou insignificante peso
sócio-político, como pequenos produtores, produtores familiares,
produtores de baixa renda ou agricultores de subsistência.
Segundo dados do Censo Agropecuário 2006 a agricultura
familiar representava 84,4% dos estabelecimentos agropecuá-rios,
com uma área de 80,25 milhões de hectares (24,3% da
área total); ocupava 12,3 milhões de pessoas acima de 14 anos
no campo (74,4% do total), sendo em média 5,0 pessoas ocu-padas
a cada 100 ha de área, contra 1,7 dos estabelecimentos
agropecuários não familiares, o que mostra uma eficiência
maior; e, mesmo com 1/3 (um terço) da área total dos estabele-cimentos
agropecuários, ela foi responsável por 38% do valor
total da produção.
Esses dados reafirmam a estratégia da CONTAG de lutar
por uma ampla e massiva reforma agrária como forma de expan-dir
e consolidar o modo de produção da agricultura familiar para
enfrentar os desafios das próximas décadas em que a produção
de alimentos precisará crescer em 50% para atender a uma po-pulação
de 9,0 bilhões de pessoas no ano de 2050, conforme
estima a FAO (2009).
A agricultura familiar é estratégica para garantir a segurança
alimentar das populações rurais e urbanas com produção de qua-lidade
e em quantidade em todos os Municípios, Estados e Regi-ões
do Brasil, com possibilidades de atendimento a outros povos.
Ao longo dos últimos 17 anos, já fizemos uma grande caminhada
onde pautamos e conquistamos por meio dos Gritos da Terra Brasil3,
um significativo número de políticas públicas e programas, a exemplo
do Pronaf Crédito (Custeios e Investimentos), Proagro Mais, Progra-ma
Garantia-Safra, Seguro da Agricultura Familiar – SEAF, Progra-ma
de Garantia de Preços na Agricultura Familiar – PGPAF, Progra-ma
de Aquisição de Alimentos – PAA, Programa de Alimentação
Escolar – PNAE, Programa de Habitação Rural – PNHR, Serviço de
Atenção à Sanidade Agropecuária – SUASA, dentre outros.
Para garantir a implementação dessas políticas públicas e pro-gramas
necessita-se uma consistente articulação dos atores so-ciais
e políticos, especialmente por parte dos Gestores Municipais
e Estaduais, bem como a garantia da participação das organiza-ções
da sociedade civil para efetivo controle social. Nesse sentido,
a CONTAG orienta suas Federações e Sindicatos para ocupar qua-litativamente
os espaços de representação legalmente constituídos
(Conselhos, Fóruns, Câmaras Temáticas etc.) garantindo atendi-mento
às demandas dos trabalhadores/as rurais, especialmente,
na implementação do Pronaf Crédito, PNAE, PNHR e PAA.
Grandes desafios à agricultura familiar para
garantia da segurança alimentar
A agricultura familiar precisa integrar sistemas de produção e
comercialização articulados a redes de consumo e permuta da pro-dução
por meio de contratos de curto, médio e longo prazo, garan-tindo
a participação direta das partes nas tomadas de decisão so-bre
a logística de beneficiamento, armazenamento e distribuição da
produção, bem como a formação dos preços. Portanto, é preciso
organizar a agricultura familiar preparando-a para disputar chama-das
públicas e conquistar espaços para colocar sua produção no
mercado institucional.
Por outro lado, a agricultura familiar precisa ser vista como
profissão que garanta segurança, renda e qualidade de vida. As-sim,
é necessário consolidar as políticas públicas e programas
existentes para facilitação de acesso aos recursos de investi-mentos
em infraestrutura, capacitação em gestão e organização
da produção e acesso aos mercados, além de superar as defici-ências
de logística, registro/certificação da produção e, em es-pecial,
de assistência técnica.
Contudo, negociar preços remuneradores à produção é o desa-fio
maior. Como negociar preços remuneradores em longo prazo
garantindo qualidade e estabilidade nos contratos?
1 A Política de Desenvolvimento do Brasil Rural – PDBR foi proposta pelo Conse-lho
de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário – CONDRAF e –compre-ende
o espaço rural como o conjunto diversificado dos espaços ambientais, so-cioculturais,
econômicos e político-institucionais do território nacional, onde
predominam processos de organização da sociedade fundados nas atividades
agrícolas (...) e não agrícolas e nas atividades urbanas que mantêm fortes rela-ções
de dependência e interação com a dinamização da vida social nesses espa-ços
rurais (CONDRAF, 2009)
2 O SISCOP é a estratégia de atuação do MSTTR para articular, mobilização e
apoiar ações de fortalecimento e consolidação da União Nacional das Coopera-tivas
da Agricultura Familiar e Economia Solidária – Unicafes.
3 Ação de mobilização nacional anual de lideranças do MSTTR para proposição,
avaliação, reivindicação e negociação de políticas públicas para o desenvolvimen-to
rural sustentável e solidário, desde o ano de 1996.
*Paulo Oliveira Poleze é Assessor da CONTAG.
18. 18
CRESÇA. Comida. Justiça. Planeta
Agronegócio:
vocação ou profecia
autorrealizada?
por Sergio Schlesinger*
A chamada vocação agrícola do Brasil é geralmente acom-panhada
de adjetivos como inequívoca, inquestionável,
algo tão indiscutível quanto um dogma religioso. A palavra
vocação, de fato (do latim vocatio), tem origem religiosa. É
o chamamento divino ao cumprimento irresistível de uma missão.
“Quem é chamado deve seguir incondicionalmente”, diz a Bíblia.
Durante milênios, a agricultura assegurou praticamente sozinha
a sobrevivência da humanidade. Nessa perspectiva histórica, o co-mércio,
outros serviços e a indústria são atividades recentes. São
elas que garantem nos dias atuais a maior parcela de renda dos pa-íses
desenvolvidos. No Japão, a agricultura responde hoje por ape-nas
cerca de 1% do PIB. Mais recentemente, no caso da China, seu
governo (comunista e ateu, por sinal) decidiu romper com a voca-ção
agrícola do país, que vai se tornando o maior importador mun-dial
de alimentos e grande exportador de produtos com alto conte-údo
tecnológico.
Não faz muito tempo, a agropecuária brasileira foi rebatizada:
passou a chamar-se agronegócio, unida para sempre à indústria
e outras atividades vinculadas ao setor. Pediu perdão pelas dívi-das
e pelas multas resultantes do desmatamento. Trata agora de
atirar à fogueira o Código Florestal e outros obstáculos ao cum-primento
de nossa vocação maior: desbravar a natureza para ser
o celeiro do mundo.
Dizem seus defensores que o agronegócio brasileiro, ao contrá-rio
do que se dá nos países desenvolvidos, não recebe subsídios do
governo. Que basta que este reduza o custo Brasil, os impostos so-bre
suas atividades e que cumpra outras obrigações como a me-lhoria
da infraestrutura e logística para o setor. Mas se considera-mos
que subsídio é toda forma de apoio à atividade econômica,
financeira ou não, direta ou indireta, ou ainda de ordem legal, vemos
que a realidade não é essa. Eis aqui alguns dos instrumentos que o
governo vem utilizando para fortalecer o agronegócio.
A entrada das multinacionais do agronegócio é estimulada a
partir do final dos anos 1980, com a chamada abertura comer-cial
e financeira. Esta última estabeleceu gradualmente a livre
circulação de capitais, permitindo que fossem remetidos ao ex-terior
sem comprovação de que houvessem ingressado anterior-mente,
liberando as remessas de lucros, royalties e assistência
técnica entre filiais e matriz no exterior. Agrotóxicos e equipa-mentos
agrícolas tiveram suas tarifas de importação reduzidas.
A exportação de matérias-primas foi isenta de impostos, esti-mulando
a exportação da soja em grãos, especialmente. Em
1997, a Lei de Proteção de Cultivares viabilizou a comercializa-ção
de sementes transgênicas.
Os juros do crédito rural são subsidiados pelo Tesouro: em
2006, a média da taxa Selic, referência para os juros pagos ao mer-cado
pelo governo, foi superior a 15%, enquanto os médios e gran-des
produtores rurais eram financiados a 6,75% ao ano. O último
Censo Agropecuário, referente a 2006, aponta que a agricultura
familiar é responsável por 84,4% dos postos de trabalho gerados
pela agropecuária e 38% do valor total da produção. Na safra
2005/06, ela recebeu apenas 13,7% dos financiamentos públicos
destinados ao setor.
A renegociação das dívidas resultantes destes financiamentos
tornou-se outra fonte de subsídios, sobretudo para a agricultura em-presarial.
A partir de 1995, elas foram sucessivamente renegociadas
e reduzidas. Somente entre 2002 e 2005, o governo abriu mão de
R$ 9 bilhões. As dívidas renegociadas em 1995, 1999 e 2002, rola-das
em 25 anos com juros de 3% ao ano (enquanto a taxa Selic os-cilava
entre 15 e 20%), só em contratos acima de R$ 100.000 so-
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OXFAM
mavam um valor global de R$ 26 bilhões. Cálculos informais
indicam que seus beneficiários não são mais que vinte mil grandes
proprietários. Feitas as contas, isto representa uma transferência a
cada um deles de R$ 15 mil mensais.
O BNDES é o braço financeiro do governo federal, principal
executor da política de desenvolvimento econômico. Sua carteira
de financiamentos, muito superior à de qualquer outra instituição
financeira do país (R$ 140 bilhões em 2011), revela as prioridades
setoriais do governo. Seus empréstimos são também concedidos a
juros subsidiados pelo Tesouro. A referência é a TJLP, que geral-mente
corresponde a cerca da metade da Selic. O banco financia
desde o plantio até os equipamentos agrícolas. Usinas de cana-de-
-açúcar, frigoríficos e a indústria de papel e celulose são os seg-mentos
do agronegócio que vêm recebendo os maiores financia-mentos.
Fibria, JBS e Marfrig estão entre as dez empresas privadas
que mais receberam recursos do BNDES. Nas três empresas, o
BNDES tem também participação acionária.
Muitas das empresas que protagonizaram fusões recentemen-te
tinham o BNDES como sócio. É o caso da Sadia-Perdigão, que
formaram a BR Foods, e da Votorantim Celulose e Aracruz, que se
uniram na Fibria. Nesta última, o banco detém 30% do capital. A
promoção de fusões e aquisições visa ampliar a consolidação des-tes
setores e também estimular a internacionalização da atuação
de empresas brasileiras, como a JBS, da qual o BNDES é também
acionista.
Estas mesmas prioridades estão presentes no Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC), criado em 2007 pelo Governo
Federal. Nas regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste, sobretudo, o
objetivo é o apoio à grande produção agropecuária, como no caso
do asfaltamento da rodovia Cuiabá-Santarém e o escoamento da
soja. No caso da cana-de-açúcar, além do investimento em novas
usinas, o PAC prevê também investimentos de R$ 4,1 bilhões em
obras destinadas ao transporte do etanol, concentradas na cons-trução
de dois alcooldutos.
É mais longa a lista das benesses do Estado ao agronegócio.
A Embrapa, por exemplo, através de convênios com a Syngenta e
a Monsanto, desenvolve variedades de soja transgênica adapta-das
às diversas condições climáticas do território brasileiro, como
no caso da soja. Mas fiquemos por aqui. A soja nos dá uma ideia
clara sobre quem, afinal paga esta longa e pesada conta. Enquan-to
a exportação de seus grãos é isenta de impostos, o preço do
óleo de soja comestível, componente da cesta básica do consu-midor
brasileiro, tem embutido, no mercado interno, uma carga tri-butária
de 37,18%.
Tudo isso, na visão das lideranças do agronegócio brasileiro,
está longe de ser suficiente. Segundo a senadora Kátia Abreu,
também presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do
Brasil, “Estamos no momento de decidir se vamos ganhar dinheiro
com a produção agrícola ou se vamos ser apenas uma grande re-serva
legal de florestas do mundo”. Em outras palavras, a visão do
agronegócio é a de que é preciso mudar o Código Florestal para
remover os obstáculos (as florestas e seus habitantes, no caso)
que impedem o Brasil de conquistar a liderança mundial na produ-ção
de alimentos.
E é assim que cresce, continuamente, o preço que pagamos
por nossa suposta vocação agrícola. E que há de se autorrealizar a
profecia de que seremos em breve o celeiro do mundo.
*Sergio Schlesinger, economista, consultor da FASE na área sócio-ambiental.
Coordenação
editorial:
Silvio Caccia Bava
Reportagem e edição:
Luís Brasilino
Edição de arte:
Órbita Design
Ilustrações:
Daniel Kondo
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