O documento faz um resumo da situação política no Brasil nas décadas de 1960 e 1970, comparando a repressão no Brasil com outros países da América Latina e do mundo. Aponta que a ditadura militar no Brasil foi menos violenta do que regimes como Cuba e que a opção na época era entre autoritarismo de direita ou esquerda. Defende também que figuras como Lamarca eram terroristas, não heróis.
1. NÃO FAZ MUITO TEMPO QUE HOUVE
UM
RITUAL MACABRO DESSES NO
BRASIL
A NOSTALGIA DAS OSSADAS
Roberto Campos
Quase duas décadas depois de publicado, constata-se que a inteligência e o descortino do autor ainda
hoje esbanjam lucidez e bom senso, retratando com incrível precisão o tenebroso quadro de nossa realidade.
Dizia-me um amigo argentino, nos anos 60, que seu país, rico antes da Segunda Guerra,
optara no pós-guerra pelo subdesenvolvimento e pelo terceiromundismo. E não se livraria
dessa neurose enquanto não se livrasse de três complexos: o complexo da madona, o
fascínio das ossadas e a hipóstase da personalidade. Duas madonas se tinham convertido
em líderes políticos - Evita e Isabelita.
As ossadas de Evita foram alternativamente sequestradas e adoradas, exercendo absur-do
magnetismo sobre a população. E a identidade nacional era prejudicada pelo fato de
o argentino ser um italiano que fala espanhol e gostaria de ser inglês...
A Argentina parece ter hoje superado esses complexos. Agora, é o Brasil que importa
(sem direitos aduaneiros como convêm ao Mercosul) um desses complexos.
2. NÃO FAZ MUITO TEMPO QUE HOUVE
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RITUAL MACABRO DESSES NO
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Os estrangeiros que abrem nossos jornais não podem deixar de se impressionar com o es-paço
ocupado pelas ossadas: as ossadas sexuais de PC Farias, as ossadas ideológicas dos
guerrilheiros do Araguaia e as perfurações do esqueleto do capitão Lamarca!
Em vez de importarmos da Argentina a tecnologia de laticínios, estamos importando peri-tos
em "arqueologia moderna", para cavoucar as ossadas do cemitério da Xambioá.
Há ainda quem queira exumar cadáveres e ressuscitar frangalhos do desastre automobilís-tico
que matou Juscelino, à procura de um assassino secreto.
Em suma, estamos caminhando com olhos fixos no retrovisor.
E o retrovisor exibe cemitérios.
Na olimpíada mundial de violência, os militares brasileiros da revolução de 1964 não pas-sariam
na mais rudimentar das eliminatórias. Perderiam feio para os campeões socialistas,
como Lênin, Stálin e Mao Tsé-Tung. Seriam insignificantes mesmo face a atletas menores,
como Fidel Castro, Pol Pot, do Camboja, ou Mengistu, da Etiópia.
Os 136 mortos ou desaparecidos em poder do Estado, ao longo das duas décadas de mili-tarismo
brasileiro, pareceriam inexpressivos a Fidel, que só na primeira noite pós-revolu-cionária
fuzilou 50 pessoas num estádio. Nas semanas seguintes, na Fortaleza La Cabaña, Havana, despachou mais 700 (dos quais 400 membros do anterior governo).
3. NÃO FAZ MUITO TEMPO QUE HOUVE
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E ao longo de seus 37 anos de ditadura, estima-se ter fuzilado 10 mil pessoas.
Isso em termos da população brasileira equivaleria a 150 mil vítimas.
Tiveram de fugir da ilha, perecendo muitos afogados no Caribe, 10% da população, o que,
nas dimensões brasileiras, seria equivalente à população da Grande São Paulo.
Definitivamente na ginástica do extermínio, os militares brasileiros se revelaram singular-mente
incompetentes. Também em matéria de tortura, nossa tecnologia é primitiva, se
comparada aos experimentos fidelistas no Combinado del Este, na Fortaleza La Cabaña e
nos campos de Aguica e Holguín. Em La Cabaña havia uma forma de tortura que escapou
à imaginação dos alcaguetes da ditadura Vargas ou dos "gorilas" do período militar: prisio-neiros
políticos no andar de baixo recebiam a descarga das latrinas das celas do andar su-perior.
O debate na mídia sobre os guerrilheiros do Araguaia precisa ser devidamente "contextua-lizado"
(como dizem nossos sociólogos de esquerda). Sobretudo em benefício dos jovens
que não viveram aquela época conturbada. A década dos 60 e o começo dos 70 foram mar-cados
mundialmente por duas características: uma guinada mundial para o autoritarismo e
o apogeu da Guerra Fria.
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Basta notar que um terço das democracias que funcionavam em 1956 foram suplantadas
por regimes autoritários nos principais países da América Latina, estendendo-se o fenô-meno
à Grécia, Coréia do Sul, Taiwan, Cingapura e à própria Índia, onde Indira Ghandi
criou um período de exceção.
Na América Latina, alastrou-se o que o sociólogo O'Donnell chamou de "autoritarismo bu-rocrático".
O refluxo da onda democrática só viria nos anos 80, que assistiria também à
implosão das ditaduras socialistas.
Uma segunda característica daqueles anos foi a agudização do conflito ideológico.
Na era Kennedy (1961-63), que eu vivenciei como embaixador em Washington, houve na-da
menos que duas ameaças de conflito nuclear. Uma, em virtude do ultimato de Kruschov
sobre Berlim, e outra, a crise dos mísseis em Cuba.
Em meados da década, viria a tragédia do Vietnã.
É nesse contexto que deve ser analisado o episódio dos guerrilheiros do Araguaia e da
morte de Lamarca. Não se tratavam de escoteiros, fazendo piqueniques na selva com ca-nivetes
suíços. Eram ideólogos enraivecidos, cuja doutrina era o "foquismo" de Che Gueva-ra:
criar focos de insurreição, visando a implantar um regime radical de esquerda.
Felizmente fracassaram, e isso nos preservou do enorme potencial de violência acima des-crito.
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Durante nossos "anos de chumbo", não só os guerrilheiros sofreram; 104 militares, poli-ciais
e civis, obedecendo a ordens de combate ou executados por terroristas, perderam
a vida. Sobre esses, há uma conspiração de silêncio e, obviamente, nenhuma proposta de
indenização. Qualquer balanço objetivo do decênio 1965-75 revelará que no Brasil houve
repressão e desenvolvimento econômico (foi a era do "milagre brasileiro"), enquanto nos
socialismos terceiromundistas e no leste europeu houve repressão e estagnação.
É também coisa de politólogos românticos pensar que a revolução de 1964 nada fez senão
interromper um processo normal de sucessão democrática.
A opção, na época, não era entre duas formas de democracia: a social e a liberal.
Era entre dois autoritarismos: o de esquerda, ideológico e raivoso, e o de direita, enca-bulado
e biodegradável.
Hoje se sabe, à luz da abertura de arquivos, que a CIA e o KGB (que em tudo discordam)
tinham surpreendente concordância na análise do fenômeno brasileiro: o Brasil experimen-taria
uma interrupção no processo democrático de substituição de lideranças.
Reproduzindo o paradigma varguista, Jango Goulart, pressionado por Brizola, queria tam-bém
seu "Estado Novo". motivação ideológica.
6. NÃO FAZ MUITO TEMPO QUE HOUVE
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Apenas com sinais trocados: uma república sindicalista.
As embaixadas estrangeiras em Washington, com as quais eu mantinha relações como em-baixador
brasileiro, admitiam, nos informes aos respectivos governos, três cenários para
a conjuntura brasileira: autoritarismo de esquerda, prosseguimento da anarquia peleguista
com subsequente radicalização, ou guerra civil de motivação ideológica.
Ninguém apostava num desenlace democrático...
Parece-me também surrealista a atual romantização pela mídia (com repercussões no Ju-diciário)
da figura do capitão Lamarca, que as Forças Armadas consideram um desertor
e terrorista. Ele faz muito melhor o perfil de executor do que de executado.
Versátil nos instrumentos, ele matou a coronhadas o tenente Paulo Alberto, aprisionado
no vale da Ribeira, fuzilou o capitão americano Charles Chandler, matou com uma bomba
o sargento Mário Kozell Filho, abateu com um tiro na nuca o guarda-civil Mário Orlando
Pinto, com um tiro nas costas o segurança Delmo de Carvalho Araujo e procedeu ao "jus-tiçamento"
de Márcio Leite Toledo, militante do Partido Comunista que resolvera arrepen-der-
se.
Aliás, foram dez os "justiçados" pelos seus próprios companheiros de esquerda.
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Se o executor acabou executado nos sertões da Bahia, é matéria controvertida.
Os laudos periciais revelam vários ferimentos, mas nenhum deles oriundo de técnicas efi-cientes
de execução que o próprio Lamarca usara no passado: tiro na nuca (metodologia
chinesa), tiro na cabeça (opção stalinista) ou fuzilamento no coração (método cubano).
As Forças Armadas têm razão em considerar uma profanação incluir-se Lamarca na gale-ria
de heróis.
As décadas de 60 e 70, no auge da Guerra Fria, foram épocas de imensa brutalidade.
Merecem ser esquecidas, e esse foi o objeto da Lei de Anistia, que permitiu nossa tran-sição
civilizada do autoritarismo para a democracia.
Deixemos em paz as ossadas. Nada tenho contra a monetização da saudade, representa-da
pela indenização às famílias das vítimas. Essa indenização é economicamente factível
no nosso caso.
Os democratas cubanos, quando cair a ditadura de Fidel Castro, é que enfrentariam um
problema insolúvel se quisessem criar uma "comissão especial" para arbitrar indenizações
aos desaparecidos. Isso consumiria uma boa parte do minguado PIB cubano!
Nosso problema é saber se a monetização da saudade deve ser unilateral, beneficiando
apenas as famílias dos que se opunham à revolução de 1964
8. NÃO FAZ MUITO TEMPO QUE HOUVE
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Há saudades, famílias e ossadas
de ambos os lados.
Roberto Campos, economista e diplomata já falecido, foi, entre outros cargos,
embaixador nos Estados Unidos, deputado federal, senador e ministro do Plane-jamento.
É autor de diversas obras sobre política e economia, destacando-se suas memórias
com o título "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994). Texto publicado nos jor-nais
O Globo e Folha de São Paulo , em 04.08.1996.
Enviado pelo médico Dr. Horst Schneider (Estado de Santa Catarina)
Formatação: Rosa Ro (Umuarama – Paraná)