1. Cornélio mata Camila, uma jovem que tentou ajudá-lo, sugando seu sangue para restaurar sua juventude.
2. Victor investiga o assassinato de sua esposa e filha há 3 anos, mas perdeu a esperança. Lorenzo o convence a não desistir.
3. Victor descobre que o assassino, Cornélio, matou novamente. Ele observa a cena do crime sem ser notado.
2. 1.
O sol ardia no céu, cegando todos que se atreviam a
olhar para cima.
Para Cornélio, o sol ardia ainda mais. O homem
de cabelo preto e barba curta andava se arrastando.
Seus olhos brilhavam e pareciam já estarem cegos. Seu
sangue fervia e seu cérebro explodia.
- Senhor? - uma moça de vinte e tantos anos o
parou, um pouco mais jovem que ele, embora, naquelas
condições, ele parecesse mais velho. Parecia
preocupada com o bem-estar do desconhecido. - Ah,
meu deus. Venha comigo!
Ela o arrastou para um banco, logo abaixo de
uma grande árvore, numa praça vazia.
Cornélio sentia sua boca seca, gritando por algo
que saciasse sua sede. Ele sabia o que faria isso.
3. - O senhor quer que eu chame alguém? - ela
tornou a perguntar.
- Muito obrigado, minha jovem - sua voz estava
rouca por conta da idade que chegava correndo. - Se
aproxime, lhe falarei o número de meu filho!
Ela o obedeceu. Certamente não desconfiaria de
um pobre velho que caía aos pedaços. A desconhecida
se agachou e aproximou o ouvido de sua boca, já
pensando que ele não teria forças para falar.
Não foi rápido e tampouco indolor. Mordeu-a
num instante e o sangue que caía do pescoço pingava
no chão duro e ardente, debaixo da sombra emitida
pela grande árvore. Cornélio saciava sua sede e
restaurava sua juventude, a mulher gritava e
lentamente morria. Ele não parecia se importar, afinal,
já eram décadas de gritos e mortes.
4. A moça, Camila, era gentil e se preocupava com
os outros. Não possuía filhos e seus pais moravam em
outra cidade, mas estava noiva de Bruno, e achava que
fosse realmente, com ele, ser feliz para sempre . Talvez
até mesmo fosse ser, fosse ter uma vida feliz. Apenas
não teria porque resolveu, numa tarde monótona, parar
para ajudar uma pobre alma.
Cornélio já se sentia restaurado. O homem
voltara a ter sua aparência de quase 30 anos e estava
saudável. Apesar do sol, agora teria sangue o suficiente
para chegar em casa e trancar-se dentro dela. Quanto
à moça? Ah, deixe-a aí , pensou.
Essa não é uma história onde vampiros são
bonzinhos. Essa é a vida real, aqui eles matam pessoas
inocentes e não possuem um pingo de emoção. E é
assim como um deles foi descoberto.
5. 2.
Victor examinava papéis, mas sem nenhuma esperança
no olho ou alma.
Sentado em sua cadeira, em frente a sua mesa,
os papéis se pareciam mais com uma grande
montanha de decepção. Nunca antes se sentira assim,
tão decepcionado. Exceto, talvez, três anos atrás.
Sempre há aquela hora em que você se vê no
espelho e percebe que não há nada para fazer em
relação ao que ocorreu no passado. O que aconteceu
não pode ser mudado, pois é impossível.
Isso aconteceu para Victor quando ele jogou na
pilha outra pasta cheia de folhas completas e vazias ao
mesmo tempo. O aperto no coração veio primeiro,
como sempre vem, depois foram as lembranças, e, por
final, a lágrima que caiu primeiro pelo olho esquerdo.
6. Pousou os dois cotovelos na mesa de madeira
lisa, pôs os óculos sobre a pilha e passou a mão pela
cara, limpando as lágrimas e expulsando a tristeza, que
agarrava-o como se fosse um amado.
Não conseguiu. A tristeza não o largou, mas a
esperança o deixou na sarjeta enquanto seguia seu
rumo o mais longe possível.
Lorenzo quebrou o clima de tristeza de Victor
batendo na mesa pequena do grande salão, enquanto
corria até ele desesperadamente, como um garoto que
acaba de perceber que perdera a mãe de vista no meio
de uma multidão. Usava um casaco de couro marrom,
sapato e calça preta.
- Merda. Merda. Merda - xingou a mesinha
enquanto pulava numa perna só, segurando a
machucada como se isso fosse resolver alguma coisa.
7. O grande salão da casa de Victor não tinha esse
nome apenas por ter, mas sim era um enorme salão,
digno de realizações de danças antigas, com todos os
cavalheiros de terno e damas de belos vestidos. Possuía
bastante dinheiro, embora agora isso não importava
mais.
Por conta de bons investimentos no passado,
agora o dinheiro aparecia em sua conta bancária
automaticamente; ele, por sua vez, perdeu a vontade
por trabalhar. Escrevia e calculava; estudava e estudava.
Os cálculos eram sua paixão, sua terceira paixão.
- Um quilômetro de salão, mas eu precisava ter
batido na porra da mesa! - criticou-se Lorenzo, agora
agachado e esfregando o tornozelo com seus olhos
franzidos.
Deixara cair ao chão os documentos que
carregava. Suspirou e os pegou novamente, começou
8. procurando por Victor na sala onde sempre trabalhava.
Após tanto tempo, o chefe até mesmo passou a dormir
ali, investigando sem parar.
- Victor! - ele disse ao vê-lo. Andou até a mesa
e estendeu a mão com os papéis.
- É inútil! - respondeu sem tirar as mãos dos
olhos e o cotovelo de cima da mesa.
- Ah, não, Victor. Não novamente. Não é inútil,
lembre-se disso. Você foi o que me disse para que,
sempre que você perdesse as esperanças, era para te
lembrar de que é isso o que quer fazer!
- E é - concordou. - Mas é inútil querer fazer, é
inútil fazer - levantou-se e passou a andar pela sala
apreensivamente. - Há três anos que investigo essa
merda e não encontro nada há três anos também. É
inútil.
- A esperança é a última que morre.
9. - Não, Lorenzo, a esperança foi a primeira que
morreu. O que pensei que ainda não tivesse morrido
era minha vontade, mas até mesmo essa parece ter se
dado descarga e corrido para longe.
- Você não tem vontade de encontrar a porra do
cara que matou elas? - começou a gritar de raiva.
Ajudava Victor há tanto tempo que passara a também
se importar sobre o assunto.
Victor também gritou, de raiva e frustração.
Lágrimas começaram a novamente escorrer pelo rosto.
Lágrimas de raiva e de tristeza.
- É claro que tenho, mas não acho nada há
tempo demais. Demais para mim, pelo menos. É tarde,
Lorenzo, ele não deve mais estar na cidade, ou mesmo
vivo. Provavelmente já foi preso.
10. Preso por outro assassinato que cometeu, e não
pelo da minha mulher e filha , pensou. Os policiais
teriam ligado se tivessem o pegado, não teriam?
Caiu de joelhos ao chão. Estava sem forças para
gritar ou continuar em pé. Tudo escorregava pelo seu
corpo, sua energia parecia o deixar.
- Victor! - gritou e correu até o amigo,
ajudando-o a se levantar. Sentou-o num sofá bege e de
aparência antiga.
A aparência antiga da casa se dava pelo gosto da
mulher. Victor também gostou, mas apenas depois que
tudo ficou pronto. Odiava coisas antigas, mas estava
disposto a fazer isso se fosse deixar ela feliz.
Agora, seu próprio desgosto o traíra. Era
cercado de coisas antigas por todos os cantos: fotos da
mulher e da filha penduradas nas paredes, sobre a
mesa, ao lado da cama.
11. O quarto em que passara a dormir era outro,
pois não conseguia mais entrar naquele em que ela
dormira. Temia que não fosse aguentar tamanha
depressão caso entrasse. E agora, estando repleto de
teias de aranha que ele mesmo deixara que se
formassem, a depressão seria ainda maior.
Ele chorava, pela quarta vez naquele dia.
Era de noitinha, e o sol já despencara do céu.
- Eu vou deixar eles lá em cima! - Lorenzo
olhou para os papéis sobre a mesa. - Se você quiser,
pode lê-los amanhã. Durma, agora, é melhor que
durma para que pense melhor sobre o assunto.
- Não adianta, Lorenzo, não adianta - disse sem
forças. Já começava a deitar-se no sofá que, após tanto
tempo, já possuía a forma de seu corpo no couro.
Lorenzo pôs sob a cabeça do amigo uma
almofada e deixou-o ali, onde sempre dormia.
12. ...
Xingou-se em pensamento por terem discutido.
Aquela não era a vida dele, então não tinha direito de
interferir. Não sabia o que se passava na cabeça de
Victor, então não tinha como consolá-lo.
Sabia, porém, que ele apenas não se matou
porque queria achar quem as matou antes. Agora, com
ele sem vontade e esperança, não sabia o que poderia
acontecer.
Talvez, amanhã, quando descesse de seu quarto,
fosse encontrá-lo sobre sua mesa, com o sangue de sua
cabeça sobre as centenas de papéis que lá estavam.
Talvez fosse o encontrar no mesmo local,
deitado no sofá, com um copo de água e pílulas ao seu
lado. Dormindo em paz, mas nunca acordando.
Talvez, a caminho da escada que leva para o
primeiro andar, passaria na frente do quarto dela e
13. veria a porta aberta. A dor poderia ser tanta que ele
cairia ao chão, sem nem mesmo ter a chance de, lá no
Paraíso, chegar para elas e falar que “O encontrou e o
matou”.
A mulher não aprovaria, mas ficaria aliviada, se
é que se pode não ficar aliviado no Paraíso, se é que era
lá para onde Victor iria quando o matasse.
Lorenzo sabia que o amigo não pensava sobre
isso, pois era inútil. Não as verei novamente , é o que
ele dizia, então é inútil me matar achando que irei .
Mas, às vezes, quando ele isso dizia, seu olho brilhava.
Era uma lágrima que ele lutava para segurar, e sempre
conseguia.
Não sabia se Victor falava aquilo para ele
apenas para o tranquilizar ou se realmente pensava
daquela maneira.
14. Para Lorenzo, era impossível não pensar sobre
ver seus entes queridos novamente. Pensava que a vida
não tinha sentido nenhum se não fosse ter algo após
tudo isso.
Passou a mão pelo rosto, querendo parar de
pensar sobre isso, e conseguiu.
...
O sol entrava pela janela e batia no rosto de Victor,
isso o acordou. Sua cabeça doía.
Se esquecera, por um minuto, da briga do dia
anterior. Então se lembrou e achou melhor ao menos
olhar o que Lorenzo encontrou.
O amigo o ajudava a encontrar pistas sobre o
assassinato delas havia um bom tempo, mas nunca
encontraram nada. Isso o deixava triste.
Sentou na cadeira e pôs os óculos, então pegou
os papéis e se preparou com um suspiro longo.
15. ...
É claro que eles já teriam descoberto o corpo, afinal,
ele não estava assim tão escondido.
Caído no meio da praça, era examinado por
legistas. As duas marcas no pescoço não faziam
sentido, ao menos não ali na praça. E Victor sabia
disso; estava escondido atrás de uma árvore,
observando tudo.
Em casa, apenas disse para Lorenzo “Vou ir à
praça” após ler o que o amigo encontrara e correu até
lá. O amigo conseguira convencê-lo de não parar de
procurar, e sem nem mesmo tentar.
Os documentos entregues para Victor não eram
muito descritivos, tanto porque não eram documentos
oficiais da polícia, como sempre antes conseguiam.
Como era um novo assassinato, não havia ainda
documento algum que pudesse ser comprado de um
16. policial corrupto. Aquele era apenas um simples papel
que descrevia imagens vistas numa câmera de
segurança por um comerciante local.
E, lendo a descrição, Victor percebeu que era
ele, o assassino delas . Ele ainda não morrera ou fora
preso. Estava lá, matando. Sem coração, sem emoção.
O documento fora escrito por Lorenzo,
enquanto conversava com a testemunha.
“O sujeito estava sentado em seu mercado,
lidando com alguns produtos. O homem conta que
viu, na tela com imagens da câmera de segurança do
lado de fora, uma mulher ajudar alguém. Sem som, era
impossível saber o que dizia, e estava assustado demais
para sair do mercado e ouvir. Assustado simplesmente
porque, na tela, nada aparecia. A mulher ajudava
ninguém. Se inclinou em frente a um banco vazio e
começou a gritar. O homem conta que ficou em
17. estado de choque, sem saber a quem chamar ou se
deveria chamar alguém”.
Nada. Fora justamente isso o que Victor vira
nas imagens da câmera de segurança após a morte da
mulher e da filha. Nada as matava, mas morreram
mesmo assim.
Ao contar para a polícia, nem se deram ao
trabalho de investigar ou ver as filmagens. Chamaram-no
de louco, e com razão. Após a terrível experiência,
ficara um pouco louco.
- Empacotem-na e tirem-na daqui, antes que
comece a acumular gente! - disse um homem de
cabelo pouco grisalho que depois começou a coçar a
cabeça, pensativo.
Os outros obedeciam. O homem, o chefe,
andava de lá para cá, mas não viu Victor observando-o.
Estava apreensivo. Para Victor, isso só podia significar
18. uma das duas coisas: ou sabia o que acontecia, ou não
tinha ideia alguma e isso o assustava.
Aquele assassino era esperto e misterioso, até
mesmo sobrenatural, então é claro que ele apostou que
o chefe não fizesse ideia do que lá acontecera.
Victor fitou o chão, que estava inundado de sangue. A
mulher, com olhos que gritavam de desespero, era
levantada e colocada dentro de um saco escuro.
Se não sabe o que é, jogue no lixo . Foi o que
Victor pensou ao ver a cena, criticando a atitude dos
“homens da lei”. Certamente não haveria autópsia ou
investigação minuciosa, isso porque eles sabiam que
isso não levaria a nada.
Para os homens, era melhor nem tocar no
assunto. Provavelmente contatariam a família da moça
e diriam que o assassino fora preso, ou então nem se
19. dariam ao trabalho. Ele, por sua vez, nunca recebera o
telefonema que mentia.
Não sabia se iria se sentir pior ou melhor após a
mentira contada, mas certamente gostaria de tê-la
recebido anos atrás. Talvez sua vida fosse ser
totalmente diferente, talvez já teria casado novamente,
ou, pelo menos, pararia de pensar tanto sobre aquilo.
Os policiais saíam, e nem mesmo perceberam-no.
A praça tornava a ficar vazia, mas o sangue ainda
no chão. E não só o sangue era visto.
- Ele pisou no sangue - o homem disse
esperançoso e saiu de trás das árvores, querendo fazer
parte da atração principal.
Seguiu com os olhos um caminho vermelho,
pegadas de um sapato caminhavam sem notar o
descuido. Andou junto das pegadas do assassino,
olhando para baixo como se estivesse envergonhado.
20. - Te peguei - proferiu, sorriu alegremente e
correu, ainda seguindo as pegadas.
3.
Livros e internet, aquele era o século XXI. Os meios
de e conseguir informação eram infinitos, e ele
procurara por todos.
Vampiros. Pff.
Claro que vampiros não existiam, mas o que
mais deixava duas marcas de mordida no pescoço de
suas vítimas?
Eram tempos modernos, mas inundados de
lendas ultrapassadas.
Não aparecia nas filmagens e, ao passar pelo
espelho no quarto do casal, nada foi visto também.
Essa era a única explicação, mas vampiros não existem.
Não podem existir.
21. Há milênios que descobrimos a escrita, e
ninguém nunca escreveu um relatório que dizia tal
palavra proibida: Vampiro.
Haviam livros, filmes, peças de teatro e até
mesmo danças que possuíam vampiros, mas era apenas
isso. Não podemos nos basear em livros fictícios para
pensar que as coisas são reais, mas, ele se lembrou, seu
colega era cristão. Será mesmo que não podemos?
Em tudo o que é escrito ficcionalmente, uma
pequena parte é real, realmente aconteceu ou é
baseado na verdade. E se a parte falsa de Drácula fosse
que ele era um conde, e não um vampiro? Era possível,
tudo é possível.
São tempos modernos, mas cheios de ilusões
antigas.
Em sua mão direita, ele segurava uma estaca de
madeira muito bem cortada. Na outra, um crucifixo
22. com o homem Jesus sofrendo nele. Segurava-os
firmemente, e não tinha a intenção de largá-los tão
cedo.
Largaria a estaca apenas quando estivesse
banhada de sangue, e o crucifixo apenas quando tivesse
feito o assassino sofrer, tal como ele sofria, tal como o
homem preso no próprio crucifixo sofrera, assim como
todos diziam, mas ninguém parecia ter compaixão.
Amarás o teu próximo como a ti mesmo , foi o
que o homem preso ao crucifixo uma vez disse, mas
ninguém perguntou a Victor se ele precisava de algo.
Ninguém o amou e teve compaixão pela pobre alma
do sofrido, apenas pena, dó.
Soltou um longo suspiro ao parar em frente a
uma casa grande, de gente rica. Era bela e também de
aparência antiga, mas muito mais antiga que a sua
aparentava ser. Parecia ter sido construída décadas,
23. séculos atrás. E era bem provável que tivesse sido,
assim como era bem provável que o morador ainda
fosse o mesmo desde sua construção.
- A esperança não é a última que morre,
Lorenzo, são os malfeitores. Estes vivem para sempre.
Ninguém se lembrará de nomes importantes e
bondosos, mas falarão de Hitler até o fim dos tempos
- falou olhando para baixo, como se quisesse
transmitir a mensagem para o amigo que não estava
por perto.
Victor vestia um sobretudo preto e luvas de
couro da mesma cor. Não percebia, mas estava tão
misterioso quanto o homem que queria matar. Vestido,
talvez, como um verdadeiro matador de vampiros.
Ajustou os óculos com a mão que segurava o
crucifixo e empurrou um portão enferrujado, cercado
24. de um muro de pedra que logo começaria a cair aos
pedaços.
O morador não cuidava da casa, apenas de si
próprio.
A grama estava podre e as flores também. Um
dia, há muito tempo, deveria ser uma bela casa para se
morar. Agora, parecia-se mais com uma casa em que o
próprio Diabo gostaria de morar.
...
O caminho de pedras era repleto de ervas daninhas.
Victor queria sair correndo de lá, seu coração estava
apertado. Apenas não saía porque a raiva era maior
que o medo, sempre foi.
As paredes, já sujas, eram antes de um amarelo
bonito. As janelas marrons, mas agora com teias de
aranha e sempre fechadas, como era de se esperar. A
25. porta, grande e majestosa, estava ainda limpa, ou, pelo
menos, mais limpa que o resto da casa.
Claro, à noite ele precisava sair para procurar
comida, e isso fazia a porta ser a única coisa útil lá.
Não era noite, mas também o sol não brilhava
no céu. Victor não sabia mais se entrava ou se batia na
porta, obrigando-o a sair de casa e encará-lo abaixo
das nuvens e acima dos germes da terra.
Victor pôs a mão na maçaneta circular e
razoavelmente transparente da porta e a empurrou.
Ouviu-se um longo rangido, alto o suficiente para
acordar os mortos que descansavam na terra. Ninguém
apareceu.
Nada de teias de aranha ou móveis cobertos por
um pano branco para não pegarem poeira, tudo estava
limpo até o último centímetro. Era como se o
26. assassino tivesse um certo cuidado interior pela casa,
mas pouco ligava para o exterior.
Sendo um homem que não sai muito de casa,
porém vive dentro dela quase o dia todo, é até mesmo
compreensível tal cuidado.
O primeiro corredor, curto e pouco espaçoso,
parecia ter sido recentemente lustrado, com as paredes
lisas e de um marrom bonito. Ao lado da porta de
entrada, um grande Lírio-da-Paz com suas folhas
ainda repletas de pequenas gotículas de água. A terra
fofa por conta do banho que a planta recentemente
recebeu.
No chão, o carpete era marrom-claro e possuía
um padrão de triângulos, com a intersecção entre eles
sendo de um marrom mais escuro que o da madeira
das paredes. Não era felpudo, mas belo. Bem ajeitado
no chão e limpo.
27. – Preciso admitir – Victor disse para si mesmo
–, ele até que tem bom gosto!
A sala principal, logo depois do corredor, era
grande e a beleza dos móveis antigos permanecia.
Num dos cantos, um piano branco muito bem
cuidado. Nas paredes, belas pinturas que, se
verdadeiras, custam milhões de reais.
Mais plantas em alguns cantos, desta vez eram
Palmeira-Ráfias, plantadas em um vaso branco e
enfeitavam a sala. O piso também era liso e outro
carpete, agora com um padrão diferente, losangos.
A cada passo dado, a casa gemia, parecia querer
que ele fosse embora, mas o homem não obedecia.
Nenhuma outra alma viva, a única respiração
ouvida era a dele, e estava acelerada.
Embora maravilhado, seu medo começara a dar
pontadas em seu coração. A raiva não era mais
28. suficiente para o fazer continuar, mas, por persistência,
continuou mesmo assim.
Outro corredor, outra sala. Tudo ainda muito
bem decorado, à maneira medieval. Embora belo,
vazio. Havia camas em todos os quartos, claro, mas
Victor sabia que não era uma cama o que ele
procurava.
Não, aquele assassino era diferente. As camas,
embora bem-feitas, eram visivelmente não usadas
havia anos. Décadas, talvez. Céus, talvez até mesmo
séculos.
Em que época viveu aquele vampiro maldito?
Sua mulher teria adorado aquela casa, insistido
em conhecer o dono. Ficou feliz por um instante, por
se lembrar dela, então lembrou-se que estava na casa
de seu assassino. O pesar voltou ao coração.
29. Segurou a estaca de madeira com mais força.
Sua mão, agora vermelha, doía. Na outra, segurava o
crucifixo pelo colar de pedras brancas pequenas,
parecidas com minúsculas pérolas.
O quarto que procurava era o único a não ter
uma lâmpada, ou ser belo. Era escuro e frio.
Primeiramente, Victor sentiu na pele a sensação da
morte, porém não da própria, e sim da dele . Sabia, do
fundo de seu coração, que era lá onde ele estaria. No
fundo do quarto, dormindo em pé, no escuro mais
escuro, apenas esperando pela próxima vítima.
…
Baixou os olhos e viu as pegadas vermelhas que o
levaram à casa.
– Maldito – falou alto sem querer, porém
nenhum movimento foi ouvido.
30. Não entrou no quarto de primeira. Precisou
antes ir até certa parte do corredor, pegar uma das
velas do candelabro de parede que iluminava aquela
área.
A única área que parecia não ter evoluído com o
tempo. A única área que parecia realmente ser da casa
que pertencia a um vampiro. O maldito vampiro.
Andava e tomava cuidado para não queimar
suas mãos com a cera que escorria pelo corpo branco
da vela longa. Com habilidade, segurava o crucifixo na
mesma mão da vela.
Manejou chegar em frente a porta, que já não
estava mais lá, era apenas o batente podre. A chama
pobremente iluminava uma pequena parte do local.
– Claro que não pensei em pegar uma lanterna
– e uma lanterna teria sim sido muito melhor.
31. Daquela maneira, precisaria entrar no quarto
para saber se ele estava lá. E isso era algo que Victor
não queria fazer, nem em um milhão de anos. Mas fez,
por elas .
A chama piscava, como uma lâmpada
defeituosa. O quarto se iluminava por pouco e voltava
à escuridão. O coração de Victor dava saltos a todo
momento.
Aquele lugar sim fazia jus ao exterior feio da
casa. Teias de aranhas e poeira por toda a parte. Era
aquilo mesmo que ele esperava ter encontrado ao
entrar na casa. Finalmente achou o que queria, mas
não estava feliz. Nem um pouco.
Mais candelabros não usados e sem velas
jogados sobre uma mesa de madeira clara e de pernas
cobertas por teia. Andou e tropeçou em quadros ainda
mais antigos dos que os da sala principal, agora tão
32. malcuidados que seria difícil vendê-los por mais de
cinco reais.
Achou novamente o que procurava, e
certamente não ficou feliz. Levou um susto e
cambaleou para trás. O caixão em pé era bem cuidado,
porém assustador. Bonito em sua estrutura, mas feio
por conta das teias de aranha que enfeitavam a parede
atrás dele.
Dessa vez sim, fez barulho demais.
Um riso profundo ecoou pelo quarto. Era uma
voz grossa e de deboche. Victor apertou ambos os
objetos contra seu peito. A vela caíra no chão, e agora
produzia formas diabólicas nas paredes. Sua luz quase
fora extinguida, mas, por sorte ou azar, conseguiu ver
que o vampiro começara a abrir seu caixão.
– Chame-me de Cornélio – falou a voz, o
caixão ainda abrindo, enquanto rangia. O interior, até
33. então, completamente escuro. Pôde ver que o vampiro
acordara para ele, mas não o via se despertar e
observar-lhe com seus olhos de assassino.
– Cornélio – concordou, falou em um sopro.
Brandiu sua estaca como se fosse uma espada e o
maldito começara a lentamente aparecer, sua face
sendo iluminada pela tênue chama da vela caída.
– Mate-me, então. Vamos ver quem é mais
forte: o pobre humano ou o terrível imortal.
– Você as matou – falou, olhando-o diretamente
no olho escuro. – E agora é a hora da minha vingança.
Atacou-o tal como um guerreiro ataca outro,
mas eles não estavam numa arena. E tampouco a luta
era justa. Cornélio agarrou-o pelo braço e impediu seu
ataque. Sua força era a de mil homens, mas Victor não
desistiu. Não ainda.
34. – Não sou um assassino – gritou como se fosse
uma ameaça. – Sou um sobrevivente. E agora é hora
sobreviver.
Andou até o indefeso homem, que tentara uma
nova chance, agora com o crucifixo. Brandiu-o tal
como muitos outros homens antes o brandiram, como
uma arma que servia para matar.
Funcionou, um pouco. A imagem do homem
preso ao objeto parecia ácido para os olhos e pele do
vampiro, que se contorceu todo e grunhiu para Victor.
Ele ainda apontava o crucifixo para ele.
Cornélio se levantou rapidamente, agarrando a
mão com o crucifixo, enquanto gritava de dor, jogou-o
no chão.
– Maldito! – rugiu novamente, passando a mão
no rosto como isso fosse curá-lo.
35. – Assassino! – Victor gritou com ainda mais
força, golpeando com a estaca e mirando o coração
negro do vampiro.
O maldito o parou logo no último momento,
com a ponta encostando apenas na superfície de sua
roupa preta e em farrapos.
– Não é minha culpa se deixas aquelas por
quem tem afeição desprotegidas. Se não fosse eu, seria
um reles ladrão qualquer, procurando por preciosas
onde certamente não encontraria.
Jogou-o e ele caiu no chão. Victor derrubara
também a estaca, estava longe demais para tentar
pegá-la.
Olhou para o vampiro com olhos raivosos.
– A culpa é sua e apenas sua. Assassino é aquele
que mata o outro sem dó nem piedade, um ser sem
alma ou coração, que tem prazer ao ver o sofrimento
36. alheio. É isso o que você é, Cornélio. Ela gritava sem
parar, e você não parava. E não pôde simplesmente
acabar com ela, não. Ainda não estava satisfeito. Foi
quando a criança cometeu o erro de aparecer em seu
campo de visão. Um ser como você não distingue certo
do errado. Ela era apenas uma criança!
Arrastou-se até o crucifixo e agarrou-o com
força, pondo-se em pé num pulo rápido, agarrando a
roupa do vampiro e puxando-o para perto de si.
– Você as matou. E essa é a minha vingança! –
repetiu e fez o vampiro vestir o crucifixo, as pérolas no
pescoço, o homem Jesus sobre o peito.
Ele gritou em dor e, desta vez, a dor parecia ser
excruciante, queimando todo seu ser. O vampiro
tentou agarrá-lo novamente, mas não conseguiu, pois
Victor correu para outra parte do quarto.
37. Tentou tirar o crucifixo de seu pescoço,
puxando-o pelas minúsculas pérolas, e foi queimado
novamente. Caiu de joelhos e o grito não acabava,
olhou para Victor com olhos de assassino, e virou pó.
Caiu até a última partícula ao chão e, com isso,
apagou a chama da vela e o quarto, antes com
iluminação tênue, se encontrava na completa escuridão
novamente.
…
Victor acordou em sua cama com um sorriso no rosto,
mas foi por pouco tempo. Demorou consideráveis
segundos para perceber que nada daquilo realmente
ocorrera. Era apenas outro sonho, outro sonho onde
matava o assassino.
Chorou pela primeira vez naquele dia.