A poesia de Fernando Pessoa: dor, fragmentação e fingimento
1. FERNANDO PESSOA ORTÓNIMO
Fernando Pessoa conta e chora a insatisfação da alma humana. A sua precaridade, a sua
limitação, a dor de pensar, a fome de se ultrapassar, a tristeza, a dor da alma humana que
se sente incapaz de construir e que, comparando as possibilidades miseráveis com a
ambição desmedida, desiste, adormece “num mar de sargaço” e dissipa a vida no tédio.
Os remédios para esse mal são o sonho, a evasão pela viagem, o refúgio na infância, a
crença num mundo ideal e oculto, situado no passado, a aventura do Sebastianismo
messiânico, o estoicismo de Ricardo Reis, etc.. Todos estes remédios são tentativas
frustradas porque o mal é a própria natureza humana e o tempo a sua condição fatal. É uma
poesia cheia de desesperos e de entusiasmos febris, de náusea, tédios e angústias
iluminados por uma inteligência lúcida – febre de absoluto e insatisfação do relativo.
A poesia está não na dor experimentada ou sentida mas no fingimento dela, apesar do poeta
partir da dor real “a dor que deveras sente”. Não há arte sem imaginação, sem que o real
seja imaginado de maneira a exprimir-se artisticamente e ser concretizado em arte. Esta
concretização opera na memória a dor inicial fazendo parecer a dor imaginada mais
autêntica do que a dor real. Podemos chegar à conclusão de que há 4 dores: a real (inicial), a
que o poeta imagina (finge), a dor real do leitor e a dor lida, ou seja, intelectualizada, que
provém da interpretação do leitor.
Características temáticas
Identidade perdida (“Quem me dirá sou?”) e incapacidade de autodefinição (“Gato
que brincas na rua (...)/ Todo o nada que és é teu./ Eu vejo-me e estou sem mim./
Conhece-me e não sou eu.”)
Consciência do absurdo da existência
Recusa da realidade, enquanto aparência (“Há entre mim e o real um véu/à própria
conceção impenetrável”)
Tensão sinceridade/fingimento, consciência/inconsciência
Oposição sentir/pensar, pensamento/vontade, esperança/desilusão
Anti sentimentalismo: intelectualização da emoção (“Eu simplesmente sinto/ Com a
imaginação./ Não uso o coração.” – Isto)
Estados negativos: egotismo, solidão, ceticismo, tédio, angústia, cansaço, náusea,
desespero
Inquietação metafísica, dor de viver
Neoplatonismo
Tentativa de superação da dor, do presente, através de:
evocação da infância, idade de ouro, onde a felicidade ficou perdida e onde não
existia o doloroso sentir: “Com que ânsia tão raiva/ Quero aquele outrora!” –
“Pobre velha música”
refúgio no sonho, na música e na noite
ocultismo (correspondência entre o visível e o invisível)
2. criação dos heterónimos (“Sê plural como o Universo!”)
Intuição de um destino coletivo e épico para o seu País (Mensagem)
Renovador de mitos
Parte de uma perceção da realidade exterior para uma atitude reflexiva
(constrói uma analogia entre as duas realidades transmitidas: a visão do mundo
exterior é fabricada em função do sentimento interior)
Reflexão sobre o problema do tempo como vivência e como fator de
fragmentação do “eu”
A vida é sentida como uma cadeia de instantes que uns aos outros se vão
sucedendo, sem qualquer relação entre eles, provocando no poeta o sentimento
da fragmentação e da falta de identidade
O presente é o único tempo por ele experimentado (em cada momento se é
diferente do que se foi)
O passado não existe numa relação de continuidade com o presente
Tem uma visão negativa e pessimista da existência; o futuro aumentará a sua
angústia porque é o resultado de sucessivos presentes carregados de negatividade
O sonho, a intersecção entre o sonho e a realidade (exemplo: Chuva oblíqua – “E os
navios passam por dentro dos troncos das árvores”);
A angustia existencial e a nostalgia da infância (exemplo: Pobre velha música –
“Recordo outro ouvir-te./Não sei se te ouvi/Nessa minha infância/Que me lembra
em ti.” ;
Distância entre o idealizado e o realizado – e a consequente frustração (“Tudo o
que faço ou medito”);
A máscara e o fingimento como elaboração mental dos conceitos que exprimem as
emoções ou o que quer comunicar (“Autopsicografia”, verso “O poeta é um fingidor”)
A intelectualização das emoções e dos sentimentos para a elaboração da arte
(exemplo: Não sei quantas almas tenho – “O que julguei que senti”)
Tradução dos sentimentos nas linguagem do leitor, pois o que se sente é
incomunicável.
Características estilísticas
A simplicidade formal; rimas externas e internas; redondilha maior (gosto pelo
popular) que dá uma ideia de simplicidade e espontaneidade
Grande sensibilidade musical:
eufonia – harmonia de sons
aliterações, encavalgamentos, transportes, rimas, ritmo
verso geralmente curto (2 a 7 sílabas)
predomínio da quadra e da quintilha
Adjetivação expressiva
Economia de meios:
Linguagem sóbria e nobre – equilíbrio clássico
Pontuação emotiva
Uso frequente de frases nominais.
Associações inesperadas [por vezes desvios sintáticos – enálage (“Pobre velha
música”)]
Comparações, metáforas originais, oximoros
Uso de símbolos
Reaproveitamento de símbolos tradicionais (água, rio, mar...)
3. Na poesia de Fernando Pessoa como ortónimo coexistem duas vertentes: a tradicional e a
modernista.
Alguns dos seus poemas seguem na continuidade do lirismo português outras iniciam o
processo de rutura, que se concretiza nos heterónimos ou nas experiências modernistas.
A poesia, a cujo conjunto Pessoa queria dar o título Cancioneiro, é marcada pelo
conflito entre o pensar e o sentir, ou entre a ambição da felicidade pura e a frustração que
a consciência de si implica (como por exemplo no poema Ela canta, pobre ceifeira nos versos
“O que em mim sente ‘stá pensando./Derrama no meu coração”).
Fernando Pessoa procura através da fragmentação do “eu” a totalidade que lhe
permita conciliar o pensar e o sentir. A fragmentação está evidente por exemplo, em Meu
coração é um pórtico partido, ou nos poemas intersecionistas Hora absurda , Chuva oblíqua
e Não sei quantas almas tenho (verso “Continuamente me estranho”). O interseccionismo
entre o material e o sonho, a realidade e a idealidade, surge como tentativa para encontrar
a unidade entre a experiência sensível e a inteligência.
A poesia do ortónimo revela a despersonalização do poeta fingidor que fala e que se
identifica com a própria criação poética, como impõe a modernidade. O poeta recorre à
ironia para pôr tudo em causa, inclusive a própria sinceridade que com o fingimento,
possibilita a construção da arte.
Sinceridade/fingimento
Intelectualização do sentir = fingimento poético, a única forma de criação artística
(Autopsicografia, Isto)
Despersonalização do poeta fingidor que fala e que se identifica com a própria criação
poética
Uso da ironia para pôr tudo em causa, inclusive a própria sinceridade
Crítica de sinceridade ou teoria do fingimento está bem patente na união de contrários
Mentira: linguagem ideal da alma, pois usamos as palavras para traduzir emoções e
pensamentos (incomunicável)
Consciência/inconsciência
Aumento da autoconsciência humana
Tédio, náusea, desencontro com os outros (tudo o que faço ou medito)
Tentativa de resposta a várias inquietações que perturbam o poeta
Sentir/pensar
4. Concilia o pensar e o sentir
Obsessão da análise, extrema lucidez, a dor de pensar (ceifeira)
Solidão interior, angústia existencial, melancolia
Inquietação perante o enigma indecifrável do mundo
Nega o que as suas perceções lhe transmitem - recusa o mundo sensível, privilegiando o
mundo inteligível
Fragmentação do eu, perda de identidade – sou muitos e não sou ninguém
interseccionismo entre o material e o sonho; a realidade e a idealidade; realidades psíquicas
e físicas; interiores e exteriores; sonhos e paisagens reais; espiritual e material; tempos e
espaços; horizontalidade e verticalidade.
O tempo e a degradação: o regresso à infância
Desencanto e angústia acompanham o sentido da brevidade da vida e da passagem dos dias
Busca múltiplas emoções e abraça sonhos impossíveis, mas acaba “sem alegria nem
aspirações”, inquieto, só e ansioso.
O passado pesa “como a realidade de nada” e o futuro “como a possibilidade de tudo”. O
tempo é para ele um fator de desagregação na medida em que tudo é breve e efémero.
Procura superar a angústia existencial através da evocação da infância e de saudade desse
tempo feliz - nostalgia do bem perdido, do mundo fantástico da infância.
Fernando Pessoa Ortónimo e a Heteronímia
Biografia
Fernando Pessoa Álvaro de Campos Ricardo Reis Alberto Caeiro
Nasceu em Lisboa,
em 13 de Junho de
1888
Foi, em 1896, com a
mãe para Durban,
África do Sul e fez
lá os seus estudos
primários e
secundários
Regressou a
Portugal em 1905 e
ingressa no Curso
Superior de Letras,
do qual desiste mais
Nasceu em Tavira,
em 15 de Outubro
de 1890
Fez o Liceu em
Portugal e o curso
de engenharia na
Escócia
Engenheiro naval
(por Glasgow), vive
em Lisboa
Viajou pelo Oriente
(de onde resultou o
Opiário)
Nasceu no Porto, em
19 de Setembro de
1887
Educado num colégio
jesuíta (latinista
por educação alheia
e semi-helenista por
educação própria),
formou-se em
Medicina
Por ser monárquico,
partiu para o Brasil
em 1919
Nasceu em Lisboa,
em 16 de Abril de
1889
Viveu quase toda a
vida no campo; órfão
de pai e mãe desde
muito cedo, viveu de
pequenos
rendimentos, com
uma tia-avó; não
teve profissão nem
educação literária
para além da 4ª
classe
5. tarde
Morre em 30 de
Novembro de 1935
Alto, magro e com
tendência a curvar-
se
Era moreno, mais
baixo e mais forte
que Caeiro
De estatura média,
era louro e tinha os
olhos azuis
Motivos poéticos e caracterização do poeta
expressão musical
do frio, do tédio e
dos anseios de alma
resignação dorida
de quem sofre a
vida sendo incapaz
de viver
egotismo
exacerbado
ceticismo
náusea
gosto pelo que é
popular
intelectualização do
sentir
obsessão da análise
solidão interior,
angústia existencial,
melancolia,
resignação
inquietação perante
o enigma
indecifrável do
mundo
fragmentação do
Eu, perda de
identidade
procura, absurdo,
ansiedade
nostalgia do bem
perdido, do mundo
amor à vida
masoquismo
triunfalismo
modernista
abulia, tédio,
cansaço e náusea
civilização
poeta futurista,
sensacionista e por
vezes escandaloso
(segundo Pessoa)
recusa a expressão
em termos de
sentimentos
defende a
existência antes do
pensamento; o corpo
antes do espírito
poeta
sensacionalista, por
vezes escandaloso
poeta intelectual
embora mais
evolutivo dos
heterónimos
predomínio da
emoção espontânea
e torrencial
elogio da civilização
industrial, moderna,
paganismo
busca de um prazer
relativo
aceitação calma da
ordem das coisas
discípulo de Caeiro,
como o Mestre,
aconselha a
aceitação calma da
ordem das coisas e
faz o elogio da vida
campestre,
indiferente ao social
opõe a moral pagã à
moral cristã,
considerando a
primeira uma moral
de orientação e
disciplina e a
segunda uma moral
de renúncia e
desapego
faz o elogio do
epicurismo
(tendência para a
felicidade pela
harmonização de
todas as faculdades
através da
disciplina)
a sabedoria consiste
em gizar a vida
(mais como
tentativa) através
de um exercício da
razão
variedade da
Natureza
panteísmo sensual
aceitação calma do
Mundo tal como é
"atenção
maravilhosa ao
mundo exterior
sempre múltiplo"
deambulismo
misticismo
naturalista
é o Mestre que
Pessoa opõe a si
mesmo, com o qual
tem que aprender: a
viver sem dor; a
envelhecer sem
angústia; a morrer
sem desespero; a
fazer coincidir o ser
com o estar; a
combater o vício de
pensar; a ser uno
(não fragmentado)
vive de impressões,
sobretudo visuais.
Ver, exclusivamente
ver
não quer saber do
passado nem do
futuro. Vive no
Presente
identifica-se com a
Natureza, vive
segundo o seu ritmo,
6. fantástico da
infância
não inculca normas
de comportamento
vive pela
inteligência intuitiva
e pela imaginação
da velocidade e das
máquinas, da energia
e da força, do
progresso
virado para o
exterior, tenta
banir o vício de
pensar e acolhe
todas as sensações
ansiedade e
confusão emocional.
Angústia existencial
tédio, náusea,
desencontro com os
outros
presença terrível e
labiríntica do Eu de
que o poeta se tenta
libertar
fragmentação do
Eu, perda de
identidade
sentido do absurdo
excitação da
procura, da busca
incessante
tem consciência da
dor provocada pela
natureza precária
do homem. Medo da
velhice e da morte.
Crença no Fado
é austero (no
sentido clássico do
termo), contudo,
disciplinado,
inteligente É o
poeta da razão
é um homem
civilizado, de boas e
elegantes maneiras,
culto, pagão (de um
paganismo
decadente)
moralista
deseja nela se
diluir, integrando-se
nas leis do Universo,
como se fosse um
rio ou um planta
lírico, instintivo,
espontâneo, ingénuo,
inculto (em relação
à sabedoria escolar)
recusa a
introspeção e a
subjetividade, abre-
se ao mundo
exterior com
passividade e
alegria. É o poeta do
real objetivo
vive de impressões,
sobretudo visuais
(sensacionismo)
goza em cada
impressão o seu
conteúdo original
(epicurismo)
homem ingénuo
poeta do real
objetivo
Estilo
eufonia dos versos
linguagem fina
expressão límpida
associações inesperadas
(interseccionismo)
preferência pela
verso livre
longos versos de 2 ou
3 linhas
apóstrofes repetidas
oximoros
onomatopeias
constrói
laboriosamente o
seu estilo
revela formação
clássica
poesia de 2ª
pessoa
expressões
familiares
imagens e
comparações
bem conseguidas
pobreza lexical
verso livre
7. métrica curta
linguagem simples,
espontânea mas sóbria
reticências
gosto pelo popular (uso
frequente da quadra)
versos leves em que
recorre
frequentemente à
interrogação
estilo esfuziante,
torrencial, dinâmico
exclamações,
interjeições
dramatização do
pensamento que
condensa na Ode
monólogos
estáticos
fazer poesia é
uma atitude
involuntária
transformação
do abstrato no
concreto