2. Cartas da Peste
Mardônio
Cartas da Peste/Mardônio; ilustrações
Fernando Oberlaender .- Salvador: E P P Publi-
cações e Publicidade, 2010.
96 p.: il.
COO 869.93
COU 821.134.3 (81) -34
Coordenação editorial e edição
Fernando Oberlaender
Ilutrações da capa e internas
Fernando Oberlaender
Diagramação
Alfredo Silva
Impressão e acabamento
Gráfica Santa Marta
3. o Banco Capital, ao comemorar seus 45
anos, expressa sua firme convicção de que in-
vestir na cultura da Bahia faz parte do com-
promisso que a iniciativa privada deve manter
com a comunidade, para construção de um
mundo melhor.
Em 2010, o gênero escolhido para o con-
curso do IX Projeto de Arte e Cultura foi "Con-
tos" e a excelente qualidade dos projetos sur-
preendeu os jurados. O vencedor do concurso,
Mardônio, publica seu primeiro livro, "Cartas
da Peste", escolhido pela comissão julgadora
composta dos escritores Állex Leila, Carlos
Ribeiro e Cleise Mendes.
Paralelamente, foram convidados os auto-
res J. Veloso e Marcus Vinícius Rodrigues para
lançamento das suas obras, respectivamente,
"Santo Antônio e outros cantos ... " e "Cada
dia sobre a terra".
Com tantos talentos nesta Cidade, o Banco
Capital se orgulha de ser incentivador do
surgimento de novos autores num país tão ca-
rente de estímulo à cultura.
Ana Maria da Cunha Guedes Rêgo
Diretora
4. Prólogo da Peste
Amigos.
A morte invadiu a Europa em meados do século XIV. Era
a peste negra. Esta foi a maio~ a mais trágica epidemia que a
história registra, tendo produzido um morticínio sem parale-
lo. Foi chamada peste negra pelas manchas escuras que apa-
reciam na pele dos enfermos. Ela teve início na Ásia Central,
espalhando-se por via terrestre e màrítima em todas as dire-
ções. Em 1334 causou 5.000.000 de mortes na IVl0ngólia e
no norte da China. Houve grande mortandade na
Mesopotâmia e na Síria, cujas estradas ficaram juncadas de
cadáveres dos que fugiam das cidades. No Cairo os mortos
eram atirados em valas comuns e em Alexandria os cadáve-
res ficaram insepultos. Calcula-se em 24 milhões o número
de mortos nos países do Oriente.
Em 1347 a epidemia alcançou a Criméia, o arquipélago
grego e a Sicília. Em 1348 embarcações genovesas proce-
dentes da Criméia aportaram em Marselha, no sul da Fran-
ça, ali disseminando a doença. Em um ano, a maior parte da
população de Marselha foi dizimada pela peste.
5. Em 1349 a peste chegou ao centro e ao norte da Itália
e dali se estendeu a toda a Europa. Em sua caminhada
devastadora, semeou a desolação e a morte nos campos e
nas cidades. Povoados inteiros se transformaram em ce-
mitérios. Calcula-se que a Europa tenha perdido a metade
de sua população.
Esta epidemia inspirou o livro DECAM ERÃO, de Giovanni
Boccaccio, que viveu de 1313 a 1375.
Em 1894, em Hong I<ong,o bacteriologista suíço Alexan-
dre Yersin isolou pela primeira vez a bactéria, e determinou o
seu modo de transmissão, tendo sido homenageado com a
nomeação a partir do seu nome para a espécie responsável.
A doença era causada então pela bactéria Yersínía pestís,
transmitida ao ser humano através das pulgas dos ratos-pre-
tos (Rattus rattus), que conviviam pacificamente entre os
homens, como cães ou gatos.
Afastando os ratos, afastavam-se também as pulgas e con-
seqüentemente a peste.
O problema é que, na idade média, ninguém sabia disso.
6. Carta I:
O general Genovês na província de Caffa,
na Criméia, conta ao rei como foram mila-
grosamente salvos da invasão dos Tátares
por uma estranha praga.
Carta 11:
Um servo no porto de Messina escreve ao
filho, relatando a chegada de um navio fan-
tasma, cheio de riquezas, corpos abando-
nados e um terrível tripulante
Carta 111:
O testamenteiro oficial de Londres se tran-
ca em sua masmorra tentando fugir da pes-
te, e descreve o horror que vê de sua janela
Carta IV:
Um jovem e rico mercador recebe uma car-
ta póstuma de seu avô, onde ele fica saben-
do das origens funestas de sua fortuna
7. Carta V:
Tendo que administrar os bens da família
no interio~ um jovem parisiense escreve ao
irmão relatando as transformações que a
peste Ihe causou
Carta VI:
O zelador de latrinas de Londres conta em
carta à ex-esposa como a peste o tornou
centro da cidade, e por que ele não sente
mais por ela ter fugido com outro
Carta VII:
O Arcanjo Gabriel escreve ao anjo da mor-
te, parabenizando-o pelo belo trabalho e in-
formando de uma nova missão que Ele quer
bem real izada
Carta VIII:
Um servo relata aos pais como a cidade
onde ele e a irmã estão vivendo foi poupa-
da da morte. Ele suspeita que a irmã tenha
algo a ver com o milagre
Carta IX:
Um demônio conta ao irmão Lúcifer tudo
o que fez para conseguir as almas de uma
cidade inteira, tendo a peste como barga-
nha, e explica por que perdeu
8. Carta X:
O servo pessoal de Giovanni Boccaccio es-
creve à sua amada, falando da vida em
Florença nos tempos da peste, de poesia
e da convivência com o jovem e pregui-
çoso mestre
Carta XI:
Um jovem servo escreve ao mestre uma
carta de despedida, contando a ele que não
vai mais usar sua imunidade à peste para
enriquecê-Io e que fugiu levando do mestre
algo mais valioso que os tesouros rouba-
dos dos mortos
9.
10. Senho~
Escrevo-te para dar contas dos aconteci-
mentos passados nesta tua colônia genovesa
na Criméia, ocorridos em outubro, do ano de
1347 da encarnação do fil ho de Deus.Trans-
crevo com a fidelidade dos olhos que viram e
dos ouvidos que ouviram tudo o que se suce-
deu na cidade de Caffa; rogo a Deus que mi-
nha mão não trema no ato de relembrar tão
assombrosos acontecimentos.
Na manhã do décimo dia do mês, ainda nos
encontrávamos sitiados pelos Tátares, como
sabias. Todas as rotas de alimentação e trans-
porte da cidade foram interceptadas pelos ga-
nanciosos e cruéis inimigos que intentavam in-
vadir e saquear esta tua colônia. Seus exérci-
tos, auxiliados pelos venezianas, acamparam
11. na praiaj ao sulj bloqueando nossas rotas de comércio e de
abastecimento.
Pediste-me para comandar as defesas da cidade deste ata-
quej embora soubéssemosque o inimigo possuía nosso número
multiplicado por seisj o que tornava improvável a resistência.
Aceitei o pedido por amor ao reino de Gênovaj por nossaantiga
amizadej mas sobretudoj na confiança que guardo em Deuse na
magnífica misericórdia divina que nosprotege e isola dosTátares.
Nos últimos dias desfrutamos uma tensa tréguaj cheia de
espera e receio. Nossos exércitos foram abatidos como cor-
deiros pela esmagadora maioria turcaj mas nossa muralha
conteve o avanço inimigo. Cansando-osj exaurindo-Ihes as
idéias e as técnicasj deixando-os ao alcance de nossos arcos.
Criou-se um impasse: sair e lutar representava a morte cer-
ta sob o fio da espada oriental; ficar e contra-atacar dava-nos
segurança e tranqüilidade. Mas com a tomada das rotasj nos-
sos mantimentos começaram rapidamente a escassear; havia
inúmeros feridos sem tratamentoj multidões à beira da fome e
o estado constante de alerta nos esgotava irreversivelmente.
Nessesdiasj vinha-me à mente como um aviso funestoj a lem-
brança de outros cercos que terminaram mal para o povo siti-
ado: os egípcios resistiram três anos ao assedio persaj e foram
vencidos; os troianos e sua mítica fortificação sustentaram o
combate com os gregos por dez anos. E pereceram.
Em reunião com outros generaisj sabíamos que nosso máxi-
mo de bravura nos levaria a mais um mêsj numa visão otimista.
Foi então que Deusj em sua infinita misericórdia e para gran-
diosa exemplificação de seu poder e iraj nos deu a vitória.
Como disse anteriormentej tivemos onze dias de estranha
tréguaj visto que pela exaustão de nossos recursosj osTátaresj
em condições normais de assaltoj nos sufocariam até a rendi-
ção. Mas não foi isso que aconteceu. Seus cantos de guerra
12. calaram; suas setas não riscaram mais o céu, suas catapultas
não feriam nossa fortaleza. Eles simplesmente sumiram.
Não direi de modo algum que sua falsa ausência sugerisse
sentimentos de alegria ou alivio: nossos batedores confirma-
vam que o inimigo ainda nos espreitava, com a paciência de
um chacal, ou de um corvo que aguarda ansioso a morte da
presa exausta.
Na manhã do undécimo dia de ausência, os anjos de Deus,
ou a fome, me despertaram uma hora mais cedo, quando as
jóias que adornam o firmamento apenas empalideciam e o
céu era ainda um fraco azul noturno. Eu acordei sabendo
que estava farto daquela situação. Daquele silêncio que insis-
tia, da espera que esgotava. Eu preferia falàr, lutar, agir, em
vez disso, virava a cabeça e os ouvidos ao menor ruído, espe-
rando o tinido das armas. Não tenho pressa de morre~ não,
mas eu gostaria de parar de esperar, antes a morte do que a
agonia. Por que os tátares demoravam tanto?
Dirigi-me ajanela demeusaposentos,natorre central de Caffa
em busca dos sentinelas na muralha. Dia após dia, acordar e ver
suasposturas displicentes me relaxava. Oar frio matinal torna-
ra-se meu desjejum. Ocanto longínquo dos galos era a sinfonia
de que a vida comum subsistia, apesar da guerra.
À minha frente, acinzentada pelo fim da noite, estendia-se
nossa imponente muralha, exibindo orgulhosa suas torres, a
altura monumental e sólida de suas guaritas. Eu ergui os om-
bros, fechei os olhos como de costume e traguei com prazer o
cheiro úmido do orvalho que se oferecia. Ouvi o silêncio gosto-
so da paz matinal e a harmonia do sonho coletivo. Caffa é
realmente uma parte de Gênova, ainda que a um passo do ori-
ente hostil, essacidade sabe como saborear uma noite de sono.
Em meio ao silêncio curador do inicio da manhã, um esta-
lar sutil de madeira cruzou o a~ vindo de algum lugar longín-
13. quo, além das muralhas. Outros quatro iguais aos primeiros o
seguiram. Procurei com os olhos e vi os sentinelas confusos e
alerta, acompanhando uma trajetória qualquer. Em seguida
pude também visualizar um estranho objeto dançando no céu.
Era pequeno para ser uma pedra de catapulta, e grande de-
mais para ser uma flecha. Aquilo, que confesso ter pensado
ser um saco de farinha com cordas soltas ao seu redor, cru-
zou a altura da muralha e atingiu com um som oco o pátio da
cidade, atrás da muralha.
Ao perder a força o movimento do impacto e finalmente
parar, o horror tomou conta de nós: uma catapulta tártara
acabara de nos atacar com um cadáver.
O sol começara a surgi~ batendo as montanhas ao longe
de dourado e luz. Outros três corpos de soldados inimigos
atingiram a muralha pelo lado de fora. Um deles pousou ao
lado dos sentinelas, no alto de nossa fortificação. Destroçado
pelo impacto, apodrecido e esverdeado, revelando que a mor-
te poupara a alma antes do destino do corpo.
Nossa perplexidade e confusão ainda reverberavam quan-
do novamente ouvimos o estalar das catapultas inimigas. Num
ato de completo sufocamento, corri para as escadas que me
levariam ao topo do castelo, a fim de ver nosso ofensor, bus-
cando o alto como quem busca ar. Subi de quatro em quatro
degraus e, de uma janela no caminho, pude ver que o novo
ataque fora ajustado pelos resultados do primeiro. Cientes
da distância e da força do vento, eles investiram novamente,
desta vez atacando-nos com uma funesta munição humana
muito maior. Dançavam no ar, como bonecos de pano, não
menos que quarenta desgraçados corpos, deixando ao sabor
do vento seu repouso final. A maioria sobrepujou nossa mu-
ralha e se estraçalhou no pátio. O corre-corre azafamado de
nossos soldados terminou por acordar a cidade. De todas as
14. janelas e portas abertas as bocas se perguntavam horroriza-
das algo para o qual não tínhamos resposta.
Finalmente cheguei ao último nível. Minha visão enrique-
cera-se com a imagem do alto da muralha, e além; do des-
campado, de cinco catapultas fora do alcance de noss.0sar-
cos e alguns poucos homens desarmados empurrando carro-
ças vazias para longe das armas. Eles devem ter trazido ali
os corpos que jogaram sobre nós.
Vês com que tipo de coisa sórdida e inumana tenho que
lidar em tuas terras? O oriente enlouquece, como um vinho
que faz perder toda a lucidez, toda medida.
Nenhum dos nossos havia se movido sobre os muros. Nem
mesmo eu, na verdade, sabia o que dizer-Ihes diante do
macabro ataque que sofríamos. Foi então que novamente o
assédio recomeçou. O número de homens em torno das ar-
mas diminuíra enormemente. Uma nova safra amaldiçoada
iniciava seu derradeiro ataque. Começaram velozmente a
ganhar altitude. Alguns dos sentinelas gemeram horroriza-
dos ao constatar antes de mim uma grotesca e inenarrável
diferença naquele último voleio. A munição agora não se
desengonçava no ar como as primeiras. Os corpos voavam
firmes, a cabeça ereta, braços unidos ao corpo, ganhando o
céu como deuses, ou anjos em revoada. A altura agora era
infinitamente maior que a dos ataques anteriores. Oscadáve-
res comandavam o vôo.
Não eram cadáveres, senhor.
A palidez do fim da noite sumira quando os demônios ala-
dos foram tocados pelo sol. Oscorpos no ar brilharam diante
de nossa estupefata inércia. Eles abriam os braços de forma
calculada buscando o máximo do vento. A cidade ficou em
silêncio naquele breve pulsar de crueldade e loucura atroz
que presenciávamos inermes.
15. Meu corpo seenrijeceu com o suor frio que me escapava da
pele. 05 olhos deles, senhor. 05 olhos estavam abertos. A pele
pál ida do rosto não escondia uma estranha e macabra fel icida-
de. Foge-me a capacidade de descrever o que vi em seus sem-
blantes. Era a certeza da morte iminente, a aceitação passiva
dela. Era a liberdade em forma pura, como nunca o mundo vira
antes, talvez apenas nos rostos convictos e serenosdos mártires.
05 primeiros começaram a cair em nossos telhados. Al-
guns deles gritavam horríveis palavras em turco, antes do
pouso final. A multidão respondia horrorizada com desespe-
ro e choro. Quanto a mim, estava hipnotizado por um solda-
do inimigo que conseguira uma altura maior que a de seus
companheiros de armas e morte. Nenhum deles usava escudo
ou armadura. Apenas camisas e calças de pano. O vento brin-
cava com suas roupas e o cabelo solto; e soltos ficavam 05
sorrisos e a estranha satisfação pela morte incomum.
Eu não conseguia despregar meu olhar daquele soldado
magro de olhos fechados que se aproximava do mais alto dos
céus. Seus companheiros começavam a estraçalhar-se con-
tra as paredes do castelo, alguns entravam janelas adentro,
causando gritos de pavor na população. Então finalmente
seu vôo começou a declinar e a trajetória ficou firme. Seus
olhos muito vermelhos se abriram e encontraram 05 meus.
Sua queda parecia atraída para mim. Era nítido que seu vôo
passaria por minha posição, mas eu não queria, ou não podia
sair dali. O que era aquele sorriso? O que representava aque-
la maldita satisfação? Essescondenados escondiam-me algo
e eu precisava saber.
Alguém atrás de mim gritou meu nome, e não obteve res-
posta. Ovulto zumbido r do inimigo seaproximava com o olhar
fixo no meu, seus braços se abriram e suas mãos sefecharam
no formato do meu pescoço pouco antes do choque, pouco
16. antes de nosso encontro mortal, mas pouco depois de meu
cavalariço me puxar pela cintura e salvar-me a vida.
Seu corpo passou veloz rente ao meu, puxando o ar atrás de
si, jogando em meu nariz um poderoso cheiro de animal, o chei-
ro de sua liberdade, o cheiro daquele que sabe que vai morrer.
a chão tremeu ao sofrer o impacto do corpo, que se des-
manchou ao deitar pela última vez, levantando uma coluna
de poeira e sangue enegrecido no arrastar de seu pouso vio-
lento. Sua derradeira expressão, de sorriso e paz, ficou im-
pregnada em minha mente, enquanto meus olhos me impedi-
am de deixá-Io até que finalmente a respiração o abandonou.
Eu e meu cavalariço, ainda atônitos pelo acontecido, su-
cumbidos pela emoção, acompanhamos os poucos inimigos
que restaram levar embora suas catapultas vazias.
Naquele resto de manhã, sondávamos no cansaço dos
olhos, no mais fundo das almas, que nossos soldados assusta-
ram-se com aquele medonho presente.
De fato, não era uma ofensiva, antes ainda uma despedida
dos tátares e dos venezianos. Nos dias que se seguiram per-
cebemos que nossas rotas estavam desobstruídas. Tomamo-
nos de coragem e mandamos nossos batedores à praia, ao
coração do inimigo. Confesso que somente acreditei em suas
noticias quando vi com meus próprios olhos. Na praia, nossa
praia, os incontáveis galeões da armada turca haviam sumi-
do. Em seu lugar uma infinidade de corpos cobria a areia até
onde os olhos conseguiam alcançar.
Avançávamos crispados, entre o mar de defuntos inimi-
gos, sem atinarmos com o que sucedera. Alto ia o sol, sufo-
cante o calor. Um fedor de morte e podridão nos recepcionava
com avidez.
Nos muitos corpos virados com a face para o sol, entre
outros cadáveres em posição crispada, revolvidos, bolhas de
17. sangue enegrecido e solidificado pelo calor seco estavam es-
touradas em cachos sob as axilas, a garganta e a virilha.
Muitas armas e utensílios de uso diário foram abandonados
ao léu por aqueles que a ira divina poupou. Entre os alimentos
ainda frescos, somente as moscas, turbilhonando em chusmas
junto aos defuntos, e alguns ratos pretos cheios de pulgas es-
gueirando-se pelas sombras dos corpos, pareciam indicar vida.
Não sabemos com certeza o que ocorreu. É certo que uma
estranha praga corroeu o poderoso exército tártaro e os obri-
gou a uma fuga desesperada, talvez para Constantinopla,
Messina ou Veneza.
Diante de tão grandiosa demonstração de poder e miseri-
córdia, não podíamos deixar de render nosso preito de agra-
decimento a Deus, logo após juntarmos os imundos corpos
infectados com a implacável ira divina e queimá-Ios.
Desta forma termino o relato de nossa gloriosa vitória
sobre o inimigo oriental. Os homens da guarda, agora en-
quanto escrevo, resolveram fugir às atividades normais e fin-
giram uma improvável indisposição coletiva. Estão todos com
dor de cabeça e dores pelo corpo. Creio que eles se achem
merecedores de um descanso após sobreviver ao exército
tátaro e seus aliados venezianos, mas a disciplina deve per-
sistir. Eu os repreenderei de maneira adequada, assim com
incentivarei a merecida festa pela vitória.
E assim dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta vossa
colônia vi. Beijo as mãos de Vossa Alteza.
Desta cidade de Caffa, nas vossas terras na Criméia, hoje,
terça-feira, primeiro dia de novembro de 1347.