O documento descreve o anúncio feito pelo Anjo Gabriel a Zacarias sobre o nascimento de seu filho João Batista. Zacarias e sua esposa Isabel, já idosos e estéreis, tinham orado por um filho. Quando Zacarias exercia suas funções sacerdotais no templo, o Anjo apareceu e disse que os pedidos deles foram ouvidos e que Isabel daria à luz João, que seria grande perante Deus e converteria muitos a Ele.
1. Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida
Jovem, ao encontro de Jesus!
aquele que batizava
oão,
de
Luzum olhar na história
rastros 2017
nº 3
fevereiro
J
Despretensioso convite para o
retorno às coisas simples, belas
e profundas do Evangelho.
2. 3
João,o
- Eu sou a voz que clama no
deserto!... (João, 1:23)
batista
3. 4 5RASTROS DE LUZ | JOÃO, AQUELE QUE BATIZAVA
nNo ano 15 do império de Tibério César, sendo
Pôncio Pilatos governador da Judeia e Herodes Ântipas
tetrarca da Galileia, um personagem estranho desceu
os contrafortes de Decápole e passou o olhar pelo vale
rasgado até às montanhas da Samaria.
Lá embaixo, fluindo por entre bosques de sicômoros
e tufos cerrados de palmeiras, corre o Jordão para
o sul, descansando em remansos criados de areia
branca.
O homem veste esquisitamente uma pele de camelo
e um conto de couro, e traz na mão direita longo
bordão de viagem. Alimenta-se de gafanhotos e mel
silvestre e, nas pousadas ao longo do caminho que
vem do deserto, adormece com a cabeça reclinada
sobre pedras.
Aparenta trinta e poucos anos; é moreno e forte de
musculatura e de expressão; uma expressão leonina,
que se acentua ainda mais quando o vento morno,
soprando das chapadas quentes da Pereia, sacode-lhe
a negra cabeleira, agitando-a sobre os ombros viris.
Vem descendo a montanha e clamando ao descê-la.
Clama para as pedras que se erigem na escarpa,
como auditório. Os ecos repetem as palavras soltas; o vento as arrebata e as
desfaz.
Viandantes procedentes de Gadara param e ouvem-no; atravessam assustados o
rio e espalham a notícia, que repercute desde Citópolis a Corazin. Afluem curiosos.
O agigantado profeta, em altos brados, anuncia:
- Eu sou a voz que clama no deserto! E eis que os tempos são chegados de
preparar o caminho do Senhor! Os vales se erguerão e os montes se abaixarão, e
as escabrosas veredas se tornarão planas. Arrependei-vos de vossos pecados e, de
espírito humilde, vinde receber o batismo.
Sim, estamos falando de João, aquele que batizava, a voz que clamava no
deserto, o precursor de Jesus.
Rio Jordão
4. 7
sobre
comer
“E este João tinha as suas
vestes de pelos de camelo, e
um cinto de couro em torno
de seus lombos; e alimentava-
se de gafanhotos e de mel
silvestre”.
gafanhotos ...
5. 8 9RASTROS DE LUZ | JOÃO, AQUELE QUE BATIZAVA
nNo original grego, nestas duas
passagens encontramos a palavra acris
e acrides, cuja tradução é a seguinte:
1º) Dicionário Grego–Português e
Português–Grego, de Isidro Pereira:
gafanhoto.
2º) The Analytical Greek Lexicon:
locusta.
3º) Lexicon of the New Testament, de
Arndt and Gingrich: gafanhoto, locusta.
A palavra gafanhoto tem uma
projeção bem maior do que pensamos.
Basta afirmar que o Dicionário da Bíblia,
de Davis, nos informa que, segundo os
rabinos, existem e são classificadas 800
variedades de gafanhotos.
O Velho Testamento usa nove
diferentes palavras hebraicas para
identificar os gafanhotos, porém a mais
usada é acris.
Na Bíblia e na literatura
contemporânea, sobre este assunto,
a palavra acris sempre se refere a um
inseto – o gafanhoto. Esta circunstância
tem levado muitos comentaristas
hodiernos a concluírem que neste relato
sobre João Batista há referência ao
inseto.
É também uma realidade inegável
que o gafanhoto tem sido parte da dieta
alimentar dos povos do Oriente Médio,
desde os tempos antigos.
De acordo com as leis sobre os
animais limpos e os imundos, em
Levítico 11, há certas espécies de
gafanhotos que são limpos (verso 22),
portanto permitidos na dieta de um
judeu.
Estes fatos têm levado os
comentaristas, em nossos dias, quase
que uniformemente à conclusão de
que em Mateus e Marcos a palavra
acris deva designar o inseto e não
uma espécie de árvore. Mas apesar
desta conclusão, desde os tempos
primitivos nos foi transmitida uma
tradição persistente e enfática de que
apalavra acris significa outras coisas e
não o inseto. Dentre estas as que mais
têm sido sugeridas são as seguintes:
pequenos pássaros bravios, caranguejos,
lagosta, pera silvestre, ou outro fruto,
bolos, vagens de alfarrobeira. Muitas
destas são meras suposições, mas a que
defende alfarrobeira sustenta-se numa
evidência linguística e antropológica.
A alfarrobeira é extensamente
cultivada em terras litorâneas do Mar
Vermelho e é comum na Palestina ao
norte de Hebrom.
As bolotas com as quais o “Filho
Pródigo” alimentava os porcos eram as
alfarrobas, conforme Lucas 15:16.
Há algumas evidências que favorecem a ideia de que os gafanhotos usados por
João eram vegetais. É bom ainda saber de evidências seguras indicando que o inseto
“gafanhoto” é muito pobre como alimento, portanto incapaz de sustentar uma vida
humana.
Entre os primeiros a contestarem a ideia de que a dieta de João Batista incluía
gafanhotos = insetos estiveram os ebionitas, um grupo de judeus cristãos da Síria,
que, como os essênios, eram um tanto ascéticos e advogavam uma dieta vegetariana.
Creem alguns estudiosos que os ebionitas substituíram em seus manuscritos acrides =
gafanhotos por ecrides = bolos. Esta substituição teria sido feita em harmonia com seus
princípios dietéticos.
Em todos os manuscritos bíblicos antigos se encontra acrides.
Os pais da Igreja de origem grega, que tinham melhor conhecimento do uso do grego
bíblico, não concordavam que acris em Mateus e Marcos indicasse o inseto.
Alfarrobeira
6. 10 11RASTROS DE LUZ | JOÃO, AQUELE QUE BATIZAVA
Muitos consideravam os acrides dos
Evangelhos equivalentes a akrodua
= frutos ou às pontas dos ramos de
árvores ou ervas.
Em um sermão do ano 400 a.D.,
atribuído erroneamente a Crisóstomo,
há a afirmação que João comia frutos
da alfarrobeira – acridas botanôn.
A expressão”acridas botanôn” é
traduzida para o latim como “herbarum
summitates“, significando as pontas ou
brotos das plantas.
Os escritores gregos e seus
tradutores latinos entenderam que o
termo gafanhoto, usado como alimento
por João Batista, se referia a um regime
vegetariano.
Existe também a palavra autorizada
do Espírito de Profecia explicando a
dieta de João Batista:
“A simplicidade de sua vestimenta,
uma peça de vestuário tecida de
pelos de camelo, era uma reprovação
direta à extravagância e pompa dos
sacerdotes judaicos, e do povo em geral.
Seu regime, puramente vegetariano,
composto de gafanhotos e mel silvestre
era uma censura à condescendência com
o apetite e glutonaria que prevalecia por
toda aparte” (Conselhos Sobre Saúde,
pág. 72).
O Dicionário da Bíblia, de Davis,
na página 25, ao comentar a palavra
“alfarrobas”, assim se expressa:
“Espécie de alimento destinado aos
porcos, que o filho pródigo desejava
comer, quando se achava em terra
estranha, abandonado pelos amigos
de outros tempos – Lucas 15:15. A
bainha das alfarrobas, Ceratónia Siliqua,
também se chama bainha de gafanhoto
e pão de João. É árvore formosa e
sempre verde, de nove a dez metros
de altura, sem espinhos e com as
folhas semelhantes às do freixo. Produz
bainhas em grande abundância que,
às vezes, atingem a trinta centímetros
de comprimento. Depois de maduras
servem para sustento do gado e dos
porcos, e em tempos de grande fome
servem para alimento dos pobres. Da
polpa das vagens ou bainhas faz-se um
xarope muito apreciado”.
Por conseguinte, diante das ideias
expostas até aqui é fácil chegar a
uma conclusão inelutável. Embora os
gafanhotos fossem alimento permitido
pela lei levítica; que este inseto era e
continua sendo parte da dieta do Oriente
Médio, à semelhança do uso dos “içás”
em certas regiões do Brasil, e ainda que
as pessoas pobres o comiam e comem
em tempos de escassez de alimentos;
cremos que os gafanhotos que
alimentavam João Batista eram vegetais
e não os insetos.
(Com base no Livro: Leia e
Compreenda Melhor a Bíblia, de Pedro
Apolinário)
Semente de alfarroba
Bainha de alfarroba
7. 13
Apareceu-lhe, então, o Anjo
do Senhor, de pé, à direita
do altar do incenso. Ao vê-
lo, Zacarias perturbou-se e
o temor apoderou-se dele.
Disse-lhe; porém, o Anjo:
“Não temas, Zacarias, porque
a tua súplica foi ouvida, e
Isabel, tua mulher, vai te
dar um filho, ao qual porás o
nome de João.
o
Joãode
anúncio
(Conforme Lucas, 1:5 a 25)
8. 14 15RASTROS DE LUZ | JOÃO, AQUELE QUE BATIZAVA
nNos dias de Herodes, rei da Judéia,
houve um sacerdote chamado Zacarias,
da classe de Abias1
; sua mulher,
descendente de Aarão, chamava-se
Isabel. Não tinham filhos, porque Isabel
era estéril e os dois eram de idade
avançada.
Quando exercia suas funções
1 Zacarias (do hebraico Zekariyah, “Deus se
lembrou”), Contemporâneo do Rei Herodes, o grande,
e do Imperador César Augusto, era um descendente da
linhagem sacerdotal de Levi, atendia na escala de seu
ancestral Abias, a oitava numa ordem dentre 24 turnos,
estabelecida pelo Rei Davi por volta de 1020 a.C.
Na nona semana do calendário judaico é a Festa do
Pentecostes. Todos os oficiais do templo estavam em
serviço em razão do grande afluxo de gente. Em segui-
da, na décima semana, recaía sobre a 8ª família - ABIAS
(ABIAH) a responsabilidade pelo serviço no templo.
Esse era o turno, a classe, ou a turma de Abias.
Na Igreja Ortodoxa comemora o dia de festa de Zacarias
em 5 de setembro , junto com Elisabeth, apontada como
uma matriarca. Zacarias também é venerado como um
profeta no calendário dos Santos da Igreja Luterana na
mesma data. Todavia, no calendário grego ortodoxo,
Zacarias e Isabel, são celebrados em 24 de junho.
sacerdotais, no seu turno, tendo entrado
no Santuário do Senhor para oferecer
o incenso, apareceu-lhe, então, o Anjo
do Senhor2
, de pé, à direita do altar do
incenso.
Ao vê-lo, Zacarias perturbou-se e o
temor apoderou-se dele.
Disse-lhe, porém, o Anjo: “Não tenha
medo, Zacarias. Sua súplica foi ouvida,
e Isabel, sua esposa, vai lhe dar um
filho, que deverá chamar-se João (ou
2 Anjo. Encontramos em O livro dos médiuns, de
Allan Kardec, Cap. I, item 2, os seguintes conceitos:
Os Espíritos não são senão as almas dos homens, despo-
jadas do invólucro corpóreo (corpo físico).
Os anjos são almas que galgaram o último grau da
escala...
Os anjos são os mensageiros de Deus, encarregados de
velar pela execução de seus desígnios em todo o Univer-
so.
Iohanan, que em hebraico significa: “Deus é cheio de graça”, “agraciado por Deus”
ou “a graça e misericórdia de Deus” e “Deus perdoa”). Você e muitos se alegrarão
com o seu nascimento, pois ele será grande diante do Senhor e converterá muitos
dos filhos de Israel ao Senhor, seu Deus. Ele caminhará à sua frente, com o espírito
e o poder de Elias, a fim de converter os corações dos pais aos filhos e os rebeldes
à prudência dos justos, para preparar ao Senhor um povo bem disposto”.
Isabel e Zacarias, por viverem em uma sociedade que valorizava
desmedidamente a maternidade, carregavam dentro de si a frustração de Isabel ser
tida por estéril e ambos já avançados em idade, o que os havia até então impedido
de terem tido filhos. O sentimento maternal, familiar, é próprio da natureza
humana. E as súplicas deles à Deus para que os distinguisse com um filho, eram
constantes. Além do mais, havia também o desejo de dar seguimento à linhagem
da descendência sacerdotal, que os dois traziam pelas tradições familiares.
Zacarias, ainda um tanto assustado, perguntou ao Anjo: “De que modo saberei
disso?” Pois eu sou velho e minha esposa é de idade avançada”.
Em outras palavras o Anjo respondeu-lhe ser enviado de Deus e vinha anunciar o
que iria acontecer. Não era suposição. Era fato consumado pela vontade de Deus.
E de fato, algum tempo depois, Isabel, sua esposa, estava grávida.
9. 17
MariaVISITA
Isabel
Bendita és tu entre as
mulheres e bendito é o fruto
de teu ventre! Donde me vem
que a mãe do meu Senhor
me visite? Pois quando a tua
saudação chegou aos meus
ouvidos, a criança estremeceu
de alegria em meu ventre.
Feliz aquela que crê nos
desígnios do Senhor, pois
tudo será cumprido!
(Conforme Lucas, 1:36 e 37 e 1:39 a 45)
10. 18 19RASTROS DE LUZ | JOÃO, AQUELE QUE BATIZAVA
qQuando da visita de um Anjo à Maria,
anunciando-lhe a vinda de Jesus (leia
o Fascículo 1), ele noticiou: também
Isabel, sua parenta, concebeu um filho
na velhice, e este é o sexto mês para
aquela que chamavam de estéril. E
afirmou: Para Deus, com efeito, nada é
impossível.
Com base nessa notícia, Maria pôs-se
a caminho para a região montanhosa,
dirigindo-se apressadamente a uma
cidade de Judá, para encontrar-se com
Zacarias e Isabel.
Ao saudar Isabel, esta sentiu a
criança lhe estremecer no ventre, tendo
sentido a presença de Maria. Isabel,
então, envolvida em forte inspiração
do mundo espiritual, com um grande
grito, exclamou: Bendita és tu entre
as mulheres e bendito é o fruto de teu
ventre! Donde me vem que a mãe do
meu Senhor me visite? Pois quando a
tua saudação chegou aos meus ouvidos,
a criança estremeceu de alegria em meu
ventre. Feliz aquela que crê nos desígnios do Senhor, pois tudo será cumprido!
Observemos que Isabel não sabia que Maria estava grávida, menos ainda que o gestado era Jesus, o tão aguardado Messias. Ela estava
ciente, sim, que seu filho estava marcado para importante missão. No entanto, com a aproximação de Maria é que, sentindo – ela e o
seu filho no ventre -, vislumbrou que a criança em gestação por Maria era a Luz do Mundo. O que a fez manifestar-se com reverência e
alegria, registrando ser este também o que sentia seu filho em seu ventre.
Notemos que para ambas as mulheres, bem como para seus respectivos maridos, toda a injunção dos fatos, bem como a
movimentação familiar, com viagens, visitas, providências, comportamentos, se originava por interferência orientativa direta do mundo
espiritual, através da manifesta presença e comunicação dos Anjos, que agiam não só como anunciadores daqueles Espíritos que viriam,
pelo nascimento, em conjunto, em dupla, cumprir especiais missões, mas também como protetores de todo o processo, cuidando para que
tudo saísse conforme a vontade de Deus.
Fica claro que tais acontecimentos não se deram ao acaso. Jesus não nasceu ao acaso. João também não é fruto do acaso. É o plano de
Deus para a Humanidade, traçado previamente e que foi e que vem sendo executado com esmerado zelo, tendo Espíritos missionários que
renascem no momento oportuno e outros muitos Anjos (Espíritos) designados para auxiliar e acompanhar tais tarefas.
Do mesmo modo está claramente explícito que tanto João como Jesus eram personagens viventes, formadas, individualizadas,
altamente capazes e com tarefas bem definidas, tudo antes da serem concebidos por seus pais e nascerem. Aliás, com base nas profecias,
tudo estava previsto há muito, muito tempo atrás.
11. 21
o
Joãode
Você, meu filho, será chamado
profeta do Altíssimo, pois
irá à frente do Senhor, para
preparar-lhe os caminhos,
para transmitir ao seu povo
o conhecimento da salvação,
pela remissão de seus
pecados, de seus erros, de
seus equívocos.
nascimento
(Conforme Lucas, 1:57 a 80)
12. 22 23RASTROS DE LUZ | JOÃO, AQUELE QUE BATIZAVA
qQuanto a Isabel, completou-se o tempo para o parto, e ela deu à luz um filho
No oitavo dia, foram circuncidar o menino. Queriam dar-lhe o nome de seu pai,
Zacarias, mas a mãe, tomando a palavra, disse: “Não, ele vai se chamar João”.
Replicaram-lhe: “Em tua parentela não há ninguém que tenha este nome!”
Por meio de sinais, uma vez que Zacarias, desde o seu encontro com Anjo
Anunciador, estava mudo, perguntaram ao pai como queria que se chamasse.
Pedindo uma tabuinha, ele escreveu “Seu nome é João”.
Tão logo terminou de escrever, ele voltou a falar normalmente. O que causou
enorme surpresa de todos os presentes à cerimônia, cujo acontecido se espalhou
rapidamente por toda a região montanhosa da Judéia. E todos os que ouviam
gravavam essas coisas no coração, dizendo: “Que virá a ser esse menino?” E, de
fato, a mão do Senhor estava com ele, direcionando-lhe para feitos históricos.
Abramos um parêntesis para considerarmos a hipótese de que a mudez de
Zacarias tenha se dado por forte emoção, como vem descrito nos textos bíblicos,
a qual, pela sua somatização, transbordou em uma doença psicossomática
temporária, situação que a medicina moderna identifica e trata. Como o fato se deu
há mais de 2.000 anos, as pessoas associaram o sintoma a “castigo Divino”, como
o fizeram com tantas outras ocorrências. O mesmo sentimento popular quanto a
volta da fala – agora como tendo cessado o “castigo”, que se deu em momento
também de grande emoção, mas em circunstância menos inusitada, ao menos para
Zacarias, como a de se deparar com um Anjo e com ele dialogar.
O sofrimento é um mal que faz bem. Sem ele, o ser humano ainda estaria nas
fases mais grosseiras do seu desenvolvimento antropossociopsicológico, sem o
equilíbrio necessário para os enfrentamentos do processo da evolução.
Tem disso ele que o vem arrastando, às vezes, de maneira penosa, pelo caminho
da ascensão intelecto-moral, em cujo patamar se encontra.
Nada obstante, quanto evoluído se encontra o ser, mais sensível se torna ao
sofrimento.
A diferença entre o sofrimento do bruto e do esteta, do ser primitivo e
daquele que se encontra em nobre estágio de evolução, é maneira como cada
qual enfrenta o impositivo do sofrimento. Os primeiros estorcegam na aflição,
rebelando-se, agridem de maneira incoerente até serem submetidos ao talante das
circunstâncias, quais metais vigorosos que o fogo em alta temperatura consegue
moldar, enquanto os outro são-lhe dóceis à voz, compreendem-lhe a finalidade,
aceitam-no, tronando-se menos tristes.1
Continuando a lição:
É inegável a ação do pensamento na conduta humana sob qualquer aspecto
considerado.
1 Vitória sobre a depressão. Joanna de Ângelis, cap. 23. Divaldo Franco.
13. 24 25RASTROS DE LUZ | JOÃO, AQUELE QUE BATIZAVA
Os impulsos saudáveis são absorvidos com facilidade e transformados em
campos de força edificante, harmonizadora, que fomentam o bem-estar, o
equilíbrio e a paz. O oposto igualmente se dá, quando aceitas essas ondas de ódio,
de inveja, de competitividade perturbadora, transformando-se em estados de
angústia, desajustamento, desinteresse pela via, enfermidades.2
O ser humano é aquilo que pensa.
Administrar a emoção é possível e é nosso direito – direito de ter uma mente
livre, feliz, saudável, de navegar com segurança nas revoltas águas das relações
humanas e sociais.
Você sofre pelo amanhã? Faz o velório das coisas antes do tempo?
Muito se sofre por pequenos problemas e, o que é mais grave, por coisas que
nunca irão acontecer.
Será que cuidamos com seriedade da nossa saúde mental, assim como cuidamos
de outras coisas?
Pois deveríamos fazê-lo, com todo ardor e empenho.
Damos tanta atenção na conquista do trivial, e acabamos errando no essencial.
A vida moderna, segundo o modelo de vida diária que muitos adotam, acaba por
criar paradoxos doentios:
• Dependência de estímulos externos, como lazer acentuado, jogos esportivos
2 Encontro com a paz e a saúde. Joanna de Ângelis, cap. 6. Divaldo Franco.
mais violentos, filmes em sua maioria de mortandade, músicas ruidosas, na busca
de prazer fugidio, esquecendo-se que a satisfação legítima é estimulada pelas
conquistas que nos engrandeça perante a própria consciência.
• Soledade. As pessoas estão sós nos elevadores, nos ambientes de trabalho,
nas ruas, nos parques, nas praças, nos lares. Apesar da multidão à nossa volta,
nos sentimos sós. Os olhos e os ouvidos se fecharam e não mais enxergamos
e ouvimos os que estão à nossa volta, alheios ao fato de que o relacionamento
humano é da nossa natureza, e é uma via com duas mãos, significando a ação de
buscar e de se abrir para receber.
• A morte do diálogo. Muitos só sabem falar de si mesmos. Pais e filhos
raramente trocam experiências de vida, cruzam suas histórias, convivem. A família
moderna está se tornando um grupo de estranhos. O smartphone, cuja tecnologia
deveria aproximar pessoas pela facilidade da comunicação, acaba se tornando
o centro das atenções entre o aparelho e o usuário, que se fecha em si mesmo,
desconectando-se do seu entorno. Perdas, angústias, medos, conflitos não são
verbalizados entre familiares, amigos.
• Discriminação e preconceito. A discriminação chegou a patamares
insuportáveis. Discriminamos e excluímos as pessoas de nosso relacionamento de
múltiplas formas. Hoje se expande para as minorias, para povos, para religiões e
religiosos, repetindo cenas de barbárie que pareciam terem ficado no passado mais
distante.
Voltaire escreveu com razão: Preconceito é opinião sem conhecimento.
14. 26 27RASTROS DE LUZ | JOÃO, AQUELE QUE BATIZAVA
As mesmas discriminações preconceituosas que João, Jesus e outros tantos
sofreram em sua época, ainda hoje persistem, com o agravante que também são
encontradas no seio de religiosos (inclusive de espíritas) e de certas religiões. No
passado muitos foram mortos por causa de preconceitos (haja vista para os negros,
chineses e latinos). Hoje o preconceito continua matando. A pergunta que persiste:
até quando?
Enquanto o Amor anunciado por Jesus como sendo o que resume todas as leis
e os profetas, não morar, alimentar e transbordar dos corações humanos, o mundo
terá páginas de sua história manchada por essa nódoa moral da pior espécie:
preconceito.
Com suas linhas de poesia e profunda reflexão, cantou para nós Rabindranath
Tagore:
O verdadeiro amor não conhece fronteiras,
Nem preconceitos raciais ou sociais,
Nem divergências religiosas ou interesses materiais,
O verdadeiro amor nasce porque tem de nascer,
Pois é como uma flor que desabrocha sob o calor do sol,
Para que simplesmente cumpra o seu destino.
• A qualidade de vida está se deteriorando. Usos e costumes estão
direcionados para quebra de valores ético-morais. Religiões que se transformam
em agências arrecadadoras de dinheiro, negociando o nome de Deus. A ganância
desmedida pela posse do dinheiro, enceguece a cadeia produtiva, com alimentos
comprometidos de variada ordem, medicamentos sabidamente sem efeito curativo
ou que são geradores de problemas maiores ao que se propõem medicar. Apesar
dos avanços da área médica, a ansiedade, o estresse, as disfunções emocionais
acabam sendo rotuladas como normais, por ser característica de boa parte da
população, notadamente por aqueles midiáticos, enquanto ser tranquilo e relaxado
é anormal.
Nos empenhemos por proteger a emoção, valorizando a emoção que eleva,
deixando para depois aquela que simplesmente enleva.
Doemo-nos sem esperar retorno.
Não façamos exigências que os outros não podem dar.
Deixemos de agir à base do “bateu-levou”.
Reflitamos o absurdo comportamental quando cremos ser engrandecedora e
positiva a afirmativa do tipo: eu sou assim mesmo e não vou mudar. Que goste de
mim quem quiser.
Perdoar e se autoperdoar. Agindo assim, “desmontaremos” as antipatias e as
inimizades à nossa volta.
Que nosso falar seja sim-sim para o positivo, o sincero, o solidário, o fraterno;
e não-não para a queixa, o azedume, o mau-humor, a discórdia, a fofoca, a
maledicência.
Saibamos agir com inteligência e protejamos nossa emoção.
Proteger a emoção é ser livre para sentir, mas não algemado pelos sentimentos.
É capacitar-se para gerenciar o medo, reciclar a ansiedade, superar a insegurança,
dominar a dependência psíquica de coisas e nonadas.
A saúde emocional, a felicidade, a tranquilidade, o prazer de viver e a
criatividade estão ao alcance de todos.
Fechando o parêntesis, voltemos ao tema principal.
Emocionado, Zacarias, louvando e agradecendo a Deus a bênção de um filho,
predizia o futuro daquela criança, enunciando e anunciando: Você, meu filho, será
chamado profeta do Altíssimo, pois irá à frente do Senhor, para preparar-lhe os
caminhos, para transmitir ao seu povo o conhecimento da salvação, pela remissão
de seus pecados, de seus erros, de seus equívocos. E em estado de oração rendeu
graças ao misericordioso coração do nosso Deus, que permitia a vinda logo mais
do Astro das alturas, para iluminar os que jazem nas trevas e na sombra da morte,
para guiar os passos dos homens no caminho da paz, de que seu filho seria o
precursor.
Você, meu filho, será chamado profeta do
Altíssimo, pois irá à frente do Senhor, para
preparar-lhe os caminhos, para transmitir ao
seu povo o conhecimento da salvação, pela
remissão de seus pecados, de seus erros, de seus
equívocos.
15. 29
o
do amor
Quem poderia saber qual a
conversação solitária que se
travara entre ambos?
Distanciados no tempo,
devemos presumir que
fosse, na Terra, a primeira
combinação entre o amor e a
verdade, para a conquista do
mundo.
encontro
e
da verdade
16. 30 31RASTROS DE LUZ | JOÃO, AQUELE QUE BATIZAVA
aApós a famosa apresentação de Jesus
aos doutores do Templo de Jerusalém,
Maria recebeu a visita de Isabel e
de seu filho, em sua casinha pobre de
Nazaré.
Depois das saudações habituais, do
desdobramento dos assuntos familiares,
as duas primas entraram a falar de
ambas as crianças, cujo nascimento
fora antecipado por acontecimentos
singulares e cercado de estranhas
circunstâncias. Enquanto o patriarca
José atendia às últimas necessidades
diárias de sua oficina humilde, entre-
tinham-se as duas em curiosa palestra,
trocando carinhosamente as mais ternas
confidências maternais.
- O que me espanta dizia -
Isabel com caricioso sorriso - é o
temperamento de João, dado às mais
fundas meditações, apesar da sua
pouca idade. Não raro, procuro-o
inutilmente em casa, para encontrá-
lo, quase sempre, entre as figueiras
bravas, ou caminhando ao longo das
estradas adustas, como se a pequena
fronte estivesse dominada por graves
pensamentos.
- Essas crianças, a meu ver -
respondeu-lhe Maria, intensificando o
brilho suave de seus olhos —, trazem
para a Humanidade a luz divina de um
caminho novo. Meu filho também é
assim, envolvendo-me o coração numa
atmosfera de incessantes cuidados.
Por vezes, vou encontrá-lo a sós,
junto das águas, e, de outras, em
conversação profunda com os viajantes
que demandam a Samaria ou as aldeias
mais distantes, nas adjacências do lago.
Quase sempre, surpreendo-lhe a palavra
caridosa que dirige às lavadeiras, aos
transeuntes, aos mendigos sofredores...
Fala de sua comunhão com Deus com
uma eloquência que nunca encontrei
nas observações dos nossos doutores
e, contentemente, ando a cismar, em
relação ao seu destino.
- Apesar de todos os valores da
crença - murmurou Isabel, convicta —,
nós, as mães, temos sempre o espírito
abalado por injustificáveis receios.
Como se se deixasse empolgar por
amorosos temores, Maria continuou:
- Ainda há alguns dias, estivemos
em Jerusalém, nas comemorações
costumeiras, e a facilidade de
argumentação com que Jesus
elucidava os problemas, que lhe eram
apresentados pelos orientadores do
templo, nos deixou a todos receosos
e perplexos. Sua ciência não pode
ser deste mundo: vem de Deus, que
certamente se manifesta por seus lábios
amigos da pureza. Notando-lhe as
respostas, Eleazar chamou a José, em
particular, e o advertiu de que o menino
parece haver nascido para a perdição de
muitos poderosos em Israel.
Com a prima a lhe escutar
atentamente a palavra, Maria
prosseguiu, de olhos úmidos, após
ligeira pausa:
- Ciente desse aviso, procurei
Eleazar, a fim de interceder por Jesus,
junto de suas valiosas relações com as
autoridades do templo. Pensei na sua
infância desprotegida e receio pelo seu
futuro. Eleazar prometeu interessar-
se pela sua sorte; todavia, de regresso
a Nazaré, experimentei singular
multiplicação dos meus temores.
Conversei com José, mais detidamente,
acerca do pequeno, preocupada com o
seu preparo conveniente para a vida!...
Entretanto, no dia que se seguiu às
nossas íntimas confabulações, Jesus se
aproximou de mim, pela manhã, e me
interpelou: - “Mãe, que queres tu de
mim? Acaso não tenho testemunhado
a minha comunhão com o Pai que está
no Céu?!” Altamente surpreendida
com a sua pergunta, respondi-lhe,
hesitante: - Tenho cuidado por ti,
meu filho! Reconheço que necessitas
de um preparo melhor para a vida...
Mas, como se estivesse em pleno
conhecimento do que se passava em
meu íntimo, ponderou ele: “Mãe, toda
preparação útil e generosa no mundo
é preciosa; entretanto, eu já estou
com Deus. Meu Pai, porém, deseja de
nós toda a exemplificação que seja
boa e eu escolherei, desse modo, a
escola melhor”. No mesmo dia, embora
soubesse das belas promessas que
os doutores do templo fizeram na
sua presença a seu respeito, Jesus
aproximou-se de José e lhe pediu,
com humildade, o admitisse em seus
trabalhos. Desde então, como se nos
quisesse ensinar que a melhor escola
para Deus é a do lar e a do esforço
próprio - concluiu a palavra materna
com singeleza —, ele aperfeiçoa as
madeiras da oficina, empunha o martelo
e a enxó, enchendo a casa de ânimo,
com a sua doce alegria!
Isabel lhe escutava atenta a
narrativa, e, depois de outras pequenas
considerações materiais, ambas
observaram que as primeiras sombras
da noite desciam na paisagem,
acinzentando o céu sem nuvens.
A carpintaria já estava fechada e
José buscava a serenidade do interior
doméstico para o repouso.
As duas mães se entreolharam,
inquietas, e perguntavam a si próprias
para onde teriam ido as duas crianças.
*
Nazaré, com a sua paisagem, das
mais belas de toda a Galileia, é talvez
o mais formoso recanto da Palestina.
Suas ruas humildes e pedregosas, suas
casas pequeninas, suas lojas singulares
se agrupam numa ampla concavidade
em cima das montanhas, ao norte do
Esdrelon. Seus horizontes são estreitos
e sem interesse; contudo, os que
subam um pouco além, até onde se
localizam as casinholas mais elevadas,
encontrarão para o olhar assombrado
as mais formosas perspectivas. O céu
parece alongar-se, cobrindo o conjunto
maravilhoso, numa dilatação infinita.
Maria e Isabel avistaram seus filhos,
lado a lado, sobre uma eminência
banhada pelos derradeiros raios
vespertinos. De longe, afigurou-se-lhes
que os cabelos de Jesus esvoaçavam
ao sopro caricioso das brisas do alto.
Seu pequeno indicador mostrava a João
as paisagens que se multiplicavam a
distância, como um grande general
17. 32 33RASTROS DE LUZ | JOÃO, AQUELE QUE BATIZAVA
que desse a conhecer as minudências
dos seus planos a um soldado de
confiança. Ante seus olhos surgiam
as montanhas de Samaria, o cume de
Magedo, as eminências de Gelboé, a
figura esbelta do Tabor, onde, mais
tarde, ficaria inesquecível o instante da
Transfiguração, o vale do rio sagrado do
Cristianismo, os cumes de Safed, o golfo
de Khalfa, o elevado cenário do Pereu,
num soberbo conjunto de montes e
vales, ao lado das águas cristalinas.
Quem poderia saber qual a
conversação solitária que se travara
entre ambos?
Distanciados no tempo, devemos
presumir que fosse, na Terra, a primeira
combinação entre o amor e a verdade,
para a conquista do mundo. Sabemos,
porém, que, na manhã imediata, em
partindo o precursor na carinhosa
companhia de sua mãe, perguntou
Isabel a Jesus, com gracioso interesse:
- Não queres vir conosco? - ao que
o pequeno carpinteiro de Nazaré
respondeu, profeticamente, com inflexão
de profunda bondade: - “João partirá
primeiro.”
Transcorridos alguns anos, vamos
encontrar o Batista na sua gloriosa
tarefa de preparação do caminho à
verdade, precedendo o trabalho divino
do amor, que o mundo conheceria em
Jesus-Cristo.
João, de fato, partiu primeiro, a fim
de executar as operações iniciais para
grandiosa conquista. Vestido de peles
e alimentando-se de mel selvagem,
esclarecendo com energia e deixando-
se degolar em testemunho à Verdade,
ele precedeu a lição da misericórdia
e da bondade. O Mestre dos mestres
quis colocar a figura franca e áspera do
seu profeta no limiar de seus gloriosos
ensinos e, por isso, encontramos em João Batista um dos mais belos de todos os símbolos imortais do Cristianismo. Salomé representa a
futilidade do mundo, Herodes e sua mulher o convencionalismo político e o interesse particular. João era a verdade, e a verdade, na sua
tarefa de aperfeiçoamento, dilacera e magoa, deixando-se levar aos sacrifícios extremos.
Como a dor que precede as poderosas manifestações da luz no íntimo dos corações, ela recebe o bloco de mármore bruto e lhe trabalha
as asperezas para que a obra do amor surja, em sua pureza divina. João Batista foi a voz clamante do deserto. Operário da primeira
hora, é ele o símbolo rude da verdade que arranca as mais fortes raízes do mundo, para que o reino de Deus prevaleça nos corações.
Exprimindo a austera disciplina que antecede a espontaneidade do amor, a luta para que se desfaçam as sombras do caminho, João é
o primeiro sinal do cristão ativo, em guerra com as próprias imperfeições do seu mundo interior, a fim de estabelecer em si mesmo o
santuário de sua realização com o Cristo. Foi por essa razão que dele disse Jesus: - “Dos nascidos de mulher, João Batista é o maior de
todos.”
Humberto de Campos
(Texto extraído do livro: Boa nova, Humberto de
Campos, cap.: 2. Francisco Cândido Xavier)
18. 35
a
O tempo passava. O menino
crescia e se fortalecia em
espírito. E habitava nos
desertos, até o dia em que se
manifestou a Israel.
pregaçãodeJoão(Conforme Lucas, 3:1 a 20)
(Mateus, 3:1 a 12)(Marcos, 1:1 a 8)
19. 36 37RASTROS DE LUZ | JOÃO, AQUELE QUE BATIZAVA
tTratando-se de um acontecimento
que ia abalar o mundo, Lucas associa
o aparecimento do arauto de Nosso
Senhor, João Batista, como o reinado
do tirano Tibério, em seu décimo
quinto ano, quando Pôncio Pilatos era
governador da Judéia, Herodes tetrarca
da Galileia, seu irmão Filipe tetrarca
da Ituréia e da Traconítide, Lisânias
tetrarca de Abilene, sendo Sumo
Sacerdote Anás, e Caifás, veio a palavra
de Deus sobre João, filho de Zacarias,
no deserto.
João vivia solitário no deserto,
vestido com a pele de um camelo e
uma correia de couro à volta dos rins.
Pregava a mortificação e praticava-a
primeiro. A essência de sua mensagem
aos soldados, aos empregados públicos,
aos trabalhadores, a todos os que
o escutavam, era: Arrependam-se.
A primeira advertência lançada aos
homens no Novo Testamento é que têm
de mudar de vida. Os Saduceus têm
de pôr de parte o seu mundanismo; os
Fariseus a sua hipocrisia e presunção.
Com o país dominado pelos
Romanos, o caminho mais seguro para
a polaridade de João seria prometer
que aquele que havia de vir, aquele a
quem ele anunciava, seria um libertador
político. Teria sido esta a maneira
de proceder dos homens comuns;
mas em vez de um chamamento às
armas, João faz um chamamento à
reparação dos costumes, uma reforma
comportamental, uma renovação da
escala de valores, uma mudança de
crenças e propósitos existenciais, uma
nova maneira de ver a vida.
O Batista anunciava os tempos novos,
em que o tesouro será depositado em
todas as nações.
As crenças representam uma
das estruturas mais importantes do
comportamento. Quando realmente
acreditamos em algo, nos comportamos
de acordo com essa crença.
E todos temos experiência própria
de que ao mudarmos certa crença,
mudamos o comportamento decorrente,
adequando-o ao novo valor.
O foco das pregações de João era
no sentido de ressignificar as crenças e
os valores adotados por aqueles que o
procuravam.
Muitos séculos antes, tinha Isaías
predito que o Messias seria precedido de
um mensageiro (Marcos, 1:2-4)
.
Eis que eu envio o meu mensageiro
diante de ti, a fim de preparar o teu
caminho; voz do que clama no deserto:
preparai o caminho do Senhor, tornai
retas suas veredas.
João Batista esteve no deserto
proclamando um batismo de
arrependimento para a remissão dos
pecados, e iam até ele toda a região
da Judéia e todos os habitantes de
Jerusalém, e eram batizados por ele no
rio Jordão, confessando seus pecados.
João, asceta rigoroso, movido por
uma convicção profunda dos males do
mundo, enfatizava que um penitente
precisava estar consciente dos seus
erros para trabalhar o arrependimento.
E proclamava: “Depois de mim, vem
o mais forte do que eu, de quem não
sou digno de, abaixando-me, desatar
a correia das sandálias. Eu os tenho
batizado com água. Ele, porém, os
batizará com o Espírito Santo”.
João apresentava profunda
semelhança com o profeta Elias, nos
hábitos, nos costumes, nas vestimentas,
na alimentação, na vida solitária no
deserto.
No livro Vida de Jesus, em seu
Capítulo VI, Ernesto Renan comenta:
Depois que a nação judaica entrara
com uma espécie de desespero a refletir
sobre o seu destino, a imaginação do
povo voltava-se com muito afeto para
os antigos profetas. Ora, de todos
os personagens do passado, cuja
recordação vinha, como sonhos de
uma noite agitada, despertar e abalar
o povo, o maior era Elias. Esse gigante
dos profetas, da sua áspera solidão
do Carmelo, vivendo a vida das feras,
habitando as cavidades dos rochedos,
donde saía como o raio para fazer
e desfazer os reis, viera a ser, por
sucessivas transformações, uma espécie
de ente sobre-humano, ora visível, ora
invisível, e que não tinha experimentado
a morte. Acreditava-se geralmente que
Elias estava para reaparecer e viria
restaurar Israel.
Cerca de trezentos anos depois de
Isaías, o profeta Malaquias profetizou
que o arauto prometido por Isaías viria
no espírito de Elias.
Eu enviarei Elias como profeta.
(Malaquias, 4:5)
Séculos após séculos rolaram através
do espaço, até que apareceu no deserto
o grande homem com um gênero de
vida semelhante à de Elias.
Uma visão rápida e superficial, pode
levar a se pensar numa imitação pura e
simples por parte de João.
Olhando com olhos de ver, a Bíblia é
um rico repositório de fatos e fenômenos
essencial e claramente espirituais, com
entidades do mundo espiritual atuando,
esclarecendo, orientando, ou mesmo
desorientando homens.
Outro aspecto muito claro do
pensamento do povo de Israel é a do
renascimento dos mortos, do retorno à
vida através de novo nascimento, ou,
em termos atuais, na reencarnação.
Nesse sentido, encontramos farto
material nos textos bíblicos. Isaías,
Malaquias, Jesus, os apóstolos, tratavam
do retorno e do renascimento com a
naturalidade de um tema reincidente na
vida cotidiana.
Aqui citamos algumas:
Mateus, 17:10 a 13
Os discípulos perguntaram-lhe: “Por
que razão os escribas dizem que é
preciso que
Elias venha primeiro?” Respondeu-
lhes Jesus: “Certamente Elias terá de
vir para restaurar tudo. Eu vos digo,
porém, que Elias já veio, mas não o
reconheceram. Ao
20. 38 39RASTROS DE LUZ | JOÃO, AQUELE QUE BATIZAVA
contrário, fizeram com ele tudo quanto quiseram. Assim também o Filho do
Homem irá sofrer da parte deles”. Então os discípulos entenderam que se referia a
João Batista.
Marcos 8:27 e 28
Jesus partiu, com seus discípulos para os povoados de Cesareia de Felipe e, no
caminho, perguntou a seus discípulos: “Quem dizem os homens que EU SOU?”
Responderam-lhe: “João Batista; outros, Elias; outros ainda, um dos profetas”.
Marcos 9:10 a 13
Eles observaram a recomendação perguntando-se o que significaria “ressuscitar
dos mortos”. E perguntaram-lhe: “Por que motivo os escribas dizem que é preciso
que Elias venha primeiro?”
Ele respondeu: “Elias certamente virá primeiro, para restaurar tudo. Mas
como está escrito a respeito do Filho do Homem que deverá sofrer muito e ser
desprezado? Eu, porém, vos digo: Elias já veio, e fizeram com ele tudo o que
quiseram, como dele está escrito”.
E o renascimento não cabendo só
para profetas. Regra geral para todos.
Eis Jesus dialogando com Nicodemos,
como lemos em João, 3:1 a 7:
E havia entre os fariseus um homem,
chamado Nicodemos, príncipe dos
judeus. Este foi ter de noite com Jesus,
e disse-lhe: Rabi, bem sabemos que és
Mestre, vindo de Deus; porque ninguém
pode fazer estes sinais que tu fazes, se
Deus não for com ele.
Jesus respondeu, e disse-lhe: Na
verdade, na verdade te digo que aquele
que não nascer de novo, não pode ver o
reino de Deus.
Disse-lhe Nicodemos: Como pode
um homem nascer, sendo velho? Pode,
porventura, tornar a entrar no ventre de
sua mãe, e nascer?
Jesus respondeu: Na verdade, na
verdade te digo que aquele que não
nascer da água e do Espírito, não
pode entrar no reino de Deus. O que
é nascido da carne é carne, e o que é
nascido do Espírito é espírito. Não te
maravilhes de te ter dito: Necessário
vos é nascer de novo.
Tudo nos leva a concluir que,
conforme vem expresso em Mateus,
17:3: João, o Batista, era Elias,
renascido.
As incessantes romarias ao Jordão
inquietam os sacerdotes em Jerusalém.
Escolhem emissários astutos e os
mandam a Abara.
Num dado momento das tarefas
diárias de João, atendendo o povo e
batizando-os, mergulhando-os nas
águas do rio Jordão, um dos espiões
dos grandes de Israel questiona-o, se
seria ele Elias, ou um outro profeta, ou
mesmo o Messias que há de vir.
- Afinal, quem é você? - repete o
provocador.
Como um trovão, reboa a réplica do
Enviado:
- Eu sou a voz que clama no deserto,
a voz de que falou Isaías, e cuja missão
é preparar o caminho do Senhor. Eu
batizo com água; ele batizará com fogo.
Já está no meio de vocês e vocês não
o conheceram. Ele é aquele que virá
após mim, porém, que era antes de mim
na Eternidade; e eu não sou digno de
desatar as correias de suas alparcas.
Mesmo antes de encontrar-se com o
Messias, de quem era primo, proclamou
a superioridade de Cristo: Após mim
vem outro mais forte do que eu, ante o
qual não sou digno de me prostrar para
lhe desatar a correia dos sapatos. (Marcos
1: 7)
.
21. 41
o
Esse encontro estava marcado
desde a aurora dos tempos.
batismodeJesus(Conforme Mateus, 3: 13-17;
Marcos, 1: 9-11; Lucas, 3: 21-22)
22. 42 43RASTROS DE LUZ | JOÃO, AQUELE QUE BATIZAVA
eEra um homem de pouco mais de 30
anos.
Veio sozinho e misturou-se na
multidão.
Não tinha o aspecto áspero dos
profetas, nem a atitude autoritária dos
escribas e doutores da lei.
Vestia uma túnica talar de linho
branco e um manto de lã, avermelhado,
dos tecidos de Damasco, Magdala ou
Tiro. Os cabelos louro-escuros eram
penteados à moda nazarena, e a barba
lhe dava ao semblante reflexos de ouro
antigo.
Ninguém notara presença daquele
homem no meio da turba que se
aglomerava em Salim, junto ao rio,
onde João batizava e pregava.
O recém-vindo detém-se na encosta
que desliza para as margens do rio.
Lá embaixo, com a água até a cintura,
apoiando-se pela mão esquerda dos
penitentes, a linfa cristalina. Ondula a
multidão entre os penedos, os caniços,
os tufos de palmeiras e de junco;
espalha-se pelos barrancos e recôncavos
ribeirinhos, com águas límpidas
estancadas.
Janeiro. É uma linda manhã de céu
azul com nuvens esparsas, de brancura
alvinitente. Brilha o sol nas copas do
arvoredo; cintila nos penhascos úmidos;
crepita no dorso claro do rio.
Do alto da encosta, o jovem
nazareno contempla o espetáculo da
multidão ondulante, no cenário de
pedras e palmeiras. Do outro lado,
Galaad. Em frente à turba homogênea
de camponeses, artífices, soldados,
publicanos, homens e mulheres de
todas as idades e condições, ergue-se o
profeta atlético e áspero, de cuja boca
se desprendem, como raios, fuzilantes
conceitos contra os erros humanos, e
de cujas mãos jorra com água lustral, a
misericórdia divina e a consolação para
as almas arrependidas.
O homem de Nazaré considera
aquele povo e aquele profeta, cuja fama
chegara ao Esdrelon e às montanhas
setentrionais, pela voz das caravanas e
dos peregrinos. E, rompendo caminho
entre as pessoas, dirige-se para João,
detendo-se à margem do rio.
João estremece, fitando-o.
Esse encontro estava marcado desde
a aurora dos tempos.
A primeira impressão do Batista é a
do seu espantoso isolamento em face da
Terra e dos homens.
Sente-se extremamente só, com a
sua certeza: reconhece Aquele cujos
caminhos está preparando.
Tudo no homem de túnica branca e
manto encarnado difere do profeta de
dorso nu e de pernas nuas com cinto
de couro de camelo, o rude bordão, o
olhar chamejante, que parece despedir
faíscas. O homem que se aproxima
é másculo, porém, delicado; é puro,
sem afetação de santidade; é austero,
sem aspereza; humilde, sem ares
subservientes; é todo espírito, sem
menosprezo e degradação do corpo.
Realiza-se nele (e João bem o percebe)
a harmonia dos ritmos perfeitos, o
sentido dos equilíbrios exatos. Aquele
homem não é propriamente um homem
e, entretanto, e apesar de tudo – é o
Homem. É o filho do Homem e, por
conseguinte, - na suprema expressão
humana – o Filho de Deus.
Ao contemplar o homem de trinta
anos, que se aproxima do rio, desviando
os caniços e os leques das palmeiras,
João põe-se a exclamar:
- Eis o Cordeiro de Deus, que tira os
pecados do mundo. Dele é que eu disse:
Depois de mim, vem um homem que
passou adiante de mim, porque existia
antes de mim. (João 1:29 e 30)
Todos os olhares se voltam para o
jovem de manto rubro, que marcha
resolutamente, rompendo as águas na
direção do Batista. A multidão vê os
dois homens que se aproximam dentro
do rio. Parece que discutem. Alguns
distinguem o estranho diálogo:
- Eu é que devia ser batizado por
você – diz João – e, entretanto, é você
que vem à mim? (Mateus, 3:14 e 15)
- Consente, por agora, ... responde
o outro – porque assim nos convém
cumprirmos tudo que é justo.
João Batista ergue os olhos ao céu
e depois curva a cabeça leonina. Enche
pequeno vaso de barro com água e
despeja-a sobre a cabeça do neófito.
A multidão vê os dois homens com
arrebatados num êxtase. João Batista
escuta uma voz, se dentro ou fora do
espírito não saberia precisar:
- Este é meu filho muito amado em
quem me comprazo! (Mateus, 3: 17; Marcos, 1: 11;
Lucas, 3:22)
Ele se afastara pelo mesmo caminho
por onde transitavam os rebanhos,
desaparecendo entre os renques de
tamareiras. Não tivera João a felicidade
de dialogar com Ele, nem voltaria a vê-
lo outra vez.
E quando a multidão se dispersa
no crepúsculo, João reúne alguns
discípulos, dizendo-lhes:
- Eu não o reconheci num primeiro
momento; mas aquele que me mandou
batizar com água, esse me disse: Sobre
aquele que você ver descer o Espírito e
sobre ele repousar, esse é o que batiza
com o Espírito Santo. E eu vi, e tenho
testificado que Ele é o Filho de Deus.
(João, 1: 32 a 34)
Rio Jordão
23. 45
apontamentos
Qualquer que seja o
fundamento histórico, João dá
um novo significado ao rito da
imersão ao conclamar o povo
ao arrependimento devido à
aproximação do Reino dos
céus.
sobre
o
batismo
24. 46 47RASTROS DE LUZ | JOÃO, AQUELE QUE BATIZAVA
aA palavra baptismós, do grego,
significa imersão.
Dentre outros significados, batismo
quer dizer primeira experiência numa
atividade ou no conhecimento de algo,
que é igual a iniciação.
Esta prática, que assinala períodos
milenários, parece ter nascido na Grécia
Antiga, logo após a constituição de uma
seita que cultuava a Deusa Cotito e a
quem os atenienses rendiam os seus
louvores. Esta seita era constituída
de sacerdotes que tinham recebido o
nome de baptas, porque se banhavam
e purificavam com perfumes antes da
celebração das cerimônias.
Há, também, referência histórica
que os antigos persas apresentavam o
recém-nascido ao padre, perante o Sol,
simbolizado pelo fogo. O padre pegava
a criança e a colocava em uma bacia
com água, a fim de lhe purificar a alma.
Nessa ocasião o pai dava nome ao filho.
[...]
A cerimônia do batismo, no
verdadeiro sentido de banho expiatório,
já havia, também, na Índia, milhares
de anos antes de existir a Europa,
tendo daí passado para o Egito. Na
Índia eram as águas do Ganges,
consideradas sagradas, como ainda
hoje, que possuíam esta propriedade
purificadora; do Ganges passou-se para
o Indus, igualmente sagrado, de onde
se propagou ao Nilo, do mesmo modo
sagrado, para, finalmente, terminar no
Jordão, onde João as empregava com o
mesmo fim e como simples formalidade
do seu rito.
Os judeus usavam como
característica da sua fé, a circuncisão,
a prática que consistia numa operação
cruenta que Moisés havia decretado,
levando em conta, sobretudo, uma
necessidade higiênica, ditada pelo clima
daquelas paragens.
Sob certo aspecto, João deliberou
substituir aquela prática cruenta da
Igreja Hebraica, a circuncisão, pela
imersão no Rio Jordão.
Observemos que o filho de Zacarias
que recebera o nome de João pela
intercessão do Espírito Gabriel em
comunicação com o seu pai, que era
sacerdote do templo, não era conhecido
por Batista. Este nome lhe foi dado
posteriormente, caracterizando-o com o
aquele que batizava.
Permanece também a possibilidade
de João ter adaptado as abluções
diárias dos membros da comunidade
de Qumran, transformando-as em um
rito de significado escatológico que
fosse realizado uma única vez, sem
repetições. Há outros que encontram o
contexto histórico do batismo de João no
batismo judaico dos prosélitos. Quando
um gentio abraçava o judaísmo, deveria submeter-se a um banho ritual (batismo),
à circuncisão e oferecer sacrifícios.
Há alguns pontos de semelhança entre o batismo de João e o de prosélitos.
Em ambos os ritos, no batismo de João e no de prosélitos, o candidato era
imerso ou imergia-se completamente na água. Os dois batismos envolviam um
elemento ético, pelo fato de que a pessoa batizada fazia um rompimento total
com sua antiga conduta para dedicar-se a uma nova vida. Em ambos os casos, o
rito era de iniciação, pois introduzia a pessoa batizada em uma nova comunhão:
uma comunhão com o povo judaico e a outra no círculo daqueles que estavam
preparados para participar da salvação do Reino messiânico vindouro. Ambos os
ritos, em contraste com as purificações judaicas comuns, eram realizados de uma
vez por todas.
É possível que o contexto histórico que explique a origem do batismo de
João não seja nem o batismo da comunidade Qumran, nem o de prosélitos,
mas simplesmente as abluções cerimoniais previstas no Antigo Testamento. Os
sacerdotes eram obrigados a se lavarem em sua preparação para ministrarem no
santuário, assim como exigia-se que o povo participasse de certas purificações em
várias ocasiões (Lv. 11-15; Nm. 19).
Qualquer que seja o fundamento histórico, João dá um novo significado ao rito
da imersão ao conclamar o povo ao arrependimento devido à aproximação do Reino
dos céus.
Jesus foi batizado por João, mas Ele, por sua vez, não batizava, como bem se lê
em João, 4:2: Ainda que Jesus mesmo não batizava, mas os seus discípulos.
Em quase todas as culturas tradicionais, os ritos de passagem assinalam o fim
da infância e o início da idade adulta. Mas nem todos esses ritos são indolores e
isentos de perigo como os nossos bailes das debutantes, a primeira comunhão dos
católicos ou o bar mitzva dos judeus. Existem aqueles que se lançam literalmente
no vazio amarrados a um cipó nos tornozelos, e quem se deixa picar nas mãos por
dezenas de formigas tropicais.
Por exemplo, a primeira iniciação dos meninos Karajá (MT/TO) se dá por volta
dos sete ou oito anos de idade. Consiste na perfuração do lábio inferior, que irá
receber um adorno. A perfuração é feita com a clavícula de um macaco, e se dá na
presença dos pais.
Os homens de então, bem como ainda hoje, no geral, têm uma necessidade de
feitos e fatores materiais externos, tangíveis, para melhor registrar as ocorrências e
melhor demarcar seu aprendizado a respeito das coisas e a busca de seus efeitos.
Como bem diz Aristóteles: Não há nada na nossa inteligência que não tenha
passado pelos sentidos.
Logo, é natural esse apego aos símbolos, aos ritos, as manifestações exteriores,
mesmo nem sempre preenchendo o vazio existencial. Isso é ponderável para o
homem.
25. 48 49RASTROS DE LUZ | JOÃO, AQUELE QUE BATIZAVA
Também por isso temos dificuldade em melhor utilizar a injunção do
pensamento, da reflexão e da imaginação, como ferramenta produtora do
conhecimento e da sabedoria, sem menosprezo ao que está no externo, mas, sim,
nos voltarmos e valorizarmos o que já está em nosso íntimo.
Alcançaremos, por certo, essa percepção da vida, como no dizer de Antoine de
Saint-Exupéry: Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos.
Observemos, no entanto, independente das respeitáveis práticas exteriores,
como no nosso tema: o batismo de João, que persistem até hoje e guardam
importante mensagem para seus adeptos, que João tinha como prática principal o
chamamento das pessoas para o arrependimento e penitência para remissão dos
pecados, preparando-se para o reino de Deus.
Em outras palavras, assim disse João Batista:
“O meu único escopo, colocando-me às margens do Jordão e atraindo a mim as
multidões, era ver, no meio destas, aquele sobre o qual pousasse o Espírito Santo,
porque foi este o sinal que o Espírito que me assiste, deu-me para eu reconhecer o
Filho Amado de Deus e apresenta-lo às multidões. Além disso, batizando com água,
eu tinha por tarefa preparar o ânimo do povo, convidando ao Arrependimento, de
maneira a poder receber o Batismo do Espírito Santo e do Fogo”.
Demarcava as promessas da renovação moral que o iniciado fazia de viva voz,
com o ritual da água que lavava o iniciado, purificando-o para seguir uma nova
vida, aguardando a chegada do Messias.
Emmanuel, Espírito Guia de Chico Xavier, em seu livro: O Consolador, ao
responder a questão 298, esclarece-nos, especialmente como pais, que devemos
(...) entender o batismo como o apelo do seu coração ao Pai de Misericórdia, para
que os seus esforços sejam santificados no trabalho de conduzir as almas a eles
confiadas no instituto familiar, compreendendo, além do mais, que esse ato de
amor e de compromisso divino deve ser continuado por toda a vida, na renúncia
e no sacrifício, em favor da perfeita cristianização dos filhos, no apostolado do
trabalho e da dedicação.
A nossa grande iniciação nos põe mergulhados em uma nova existência, na qual
cada dia se apresenta como bênção de oportunidade renovada, para seguirmos
em nossa caminhada redentora, ao encontro do Bem pleno em nós. O nosso
batismo são os embates de cada dia no mundo, vivendo de modo a vencermos o
mundo e não por ele sermos vencidos. A nos tornarmos a cada dia, melhores do
que no dia anterior, e no dia seguinte melhores do que no dia anterior, e assim
sucessivamente.
À medida que nossas crenças e valores, que ditam nosso modo de pensar e de
ser, forem se reformulando em bases mais congruentes com a nossa realidade
de espíritos imortais que somos, vamos descobrindo a real razão do existir e o
porvir já não estará velado pela nossa cegueira da ignorância, a eternidade deixará
de ser suposição por se apresentar verdadeira, e a esperança nos estimulará ao
arrependimento, ao autoperdão, e ao reparo de nossos erros, tendo a força da fé
como alavanca para nos levantarmos dos caimentos e seguirmos adiante, sempre
em frente e para o alto, rumo para a glória da felicidade conquistada, com passos
firmes e destemidos, pois o Messias será sim nosso guia e modelo, e seus ensinos
terão deixado nossos pensamentos para se alojarem em nossos corações, e daí
virão para movimentar nossas mãos em constante serviço em nome do amor e da
caridade.
João, aquele que batizava, cumpriu sua missão com zelo, dedicação, confiança,
persistência e destemor.
Façamos nós o mesmo.
Importa que a religião que professemos nos religue com Deus, auxiliando-nos a
nos tornarmos homens de bem. Suas práticas exteriores ou a ausência dessas não
fazem melhor umas das outras. Todas são importantes para o finalismo Divino. O
que realmente importa é nossa qualidade de vida religiosa.
Trabalhemos por alcançar a religiosidade da consciência, onde o sagrado que
alimente nosso âmago, seja consagrado pelo sentimento superior que nosso
coração guarde, e seu palpitar dite o ritmo de nossa vida que não titubeia diante do
sacrifício em nome do amor por nós, pelo próximo e por Deus, acima de todas as
coisas.
Mais do que uma bandeira religiosa, nosso comportamento é o parâmetro.
Deixe-se iniciar na jornada ao encontro do Cristo, lembrando sempre que Ele é o
Caminho, a Verdade e a Vida. Ou, segundo outros tradutores dos textos sagrados:
o Caminho da Verdadeira Vida.
26. 51
outro
Saibam que é necessário
que ele cresça e eu diminua.
Aquele que vem do alto está
acima de todos.
testemunho
de
João(Conforme João, 3: 22 a 36)
27. 52 53RASTROS DE LUZ | JOÃO, AQUELE QUE BATIZAVA
jJesus veio com os seus discípulos para o território da Judéia e permaneceu ali
com eles e batizava, ainda que, de fato, Jesus mesmo não batizasse, mas os seus
discípulos. (João, 4:2)
João também batizava em Enon, perto de Salim, pois lá as águas eram
abundantes e muitos se apresentavam para serem batizados.
Em dado momento, originou-se uma discussão entre os discípulos de João e um
certo judeu a respeito da purificação; eles vieram encontrar João e lhe disseram:
“Rabi, aquele que estava contigo do outro lado do Jordão, de quem você deu
testemunho, está batizando e todos vão a ele”.
João respondeu: “Um homem nada pode receber a não ser que lhe tenha sido
dado do céu. Vocês mesmos são testemunhas de que eu disse: ‘Não sou eu o
Cristo, mas sou enviado adiante dele’.
Saibam que é necessário que ele cresça e eu diminua. Aquele que vem do alto
está acima de todos.
29. 56 57RASTROS DE LUZ | JOÃO, AQUELE QUE BATIZAVA
aA porta abriu rangendo em ferros gastos e uma figura grotesca assomou à
soleira, erguendo o alfange brilhante de encontro ao retalho de luar, que invadira a
estreita cela.
A noite serena estava envolta em escumilha franjada de prata e se ouviam, de
longe em longe, os surdos sons reveladores da bacanal desenfreada no outro lado.
Maqueronte ou Maquero, a fortaleza sombria erguida nas cumiadas do planalto
de Moab, na Pereia, descortinava horizontes ilimitados. De um lado, o fosso do mar
morto, caindo mil e duzentos metros abaixo e, além das imensas planícies, o monte
Nebo, donde Moisés contemplara a Terra Prometida.
Naquela torre da sinistra cidadela ele já passara dez meses de doloroso
cativeiro.
É verdade que não sofrera suplícios; todavia, isolado dos discípulos
amados, que no vau de Bethabara ou nos “mananciais da paz”, em Citópolis,
pregava a necessidade do arrependimento e a penitência, sofria o amargor da
punição indébita. Intimamente recordava suas próprias palavras dirigidas aos
companheiros, quando estes, algo enciumados, lhe falaram sobre Jesus;
“O homem não pode receber coisa alguma se do céu não lhe for dada. Vós
mesmos sois testemunhas de que vos disse: Não sou o Cristo! mas fui enviado
apenas como precursor. Quem tem a esposa, esse é o que é o esposo. O amigo do
esposo, que o acompanha, alegra-se intimamente quando ouve a voz do esposo.
Pois, esta alegria me coube abundantemente. Convém que ele cresça e que eu
diminua”...
Era março de 29.
Herodes Ântipas retornava da viagem encetada à Babilônia, como membro da
comitiva de Tibério, que tinha à frente o legado Vitélio, para conseguir as simpatias
de Artabano, rei dos Medos, que vencera os Partos em guerra sangrenta e cruel.
Demorando-se em Maqueronte, resolvera ali comemorar o próprio natalício,
oferecendo à comitiva principesca e ociosa suntuoso festim, naquele inverno, ao
invés de desfrutar o agradável clima de Tiberíades onde passava invariavelmente
essa quadra do ano.
*
Ele aguardava aquele instante e para isto se fortalecera em longas e calmas
meditações.
Naqueles meses do amargo cativeiro, em hora alguma quebrantara o ânimo
firme ou a coragem férrea. Não tergiversou nem jamais temeu; se muitas vidas
possuísse, de uma só vez todas daria pelo direito de proclamar os dias de justiça
que se avizinhavam e invectivar a degradação dos costumes que se imiscuíra
na própria corte, onde o incesto e o adultério campeavam sob o beneplácito
condescendente da cordialidade vulgar.
Nos dias transatos de peregrinação pelo deserto, alimentando-se frugalmente
e mergulhado em profundos cismares, sentira as mãos fortes e intangíveis do
Pai fortalecendo suas fibras, e ouvira no coração as vozes ininteligíveis dos seres
angélicos, ordenando-lhe a pregação redentora, para abrir veredas por onde
seguisse o Esperado...
Aquela era a hora do testemunho: sentia-o interiormente.
Experimentara estranha algidez prenunciadora do momento. Até então estivera
recordando todos os acontecimentos.
Desfilaram mentalmente aqueles dias risonhos da infância feliz, sombreada
apenas por secreta preocupação acerca de Deus e sobre os homens a crescer
através dos dias, exageradamente pelos verdes anos da adolescência.
Quantas vezes, não poderia dizê-lo, escutando as narrativas da Lei, na
Sinagoga, ou comentando os Livros Sagrados, sentira-se arrebatado pela
necessidade de meditar a sós, perdido pelos áridos e difíceis caminhos das
Aquela era a hora do testemunho: sentia-o
interiormente.
30. 58 59RASTROS DE LUZ | JOÃO, AQUELE QUE BATIZAVA
regiões ásperas do deserto montanhoso e adusto! E ao fazê-lo, quantas visões
inextricáveis experimentara!... Em toda a inquietação que o atormentava e em toda
a necessidade de que procurava fugir, sentia que os Céus o conduziam para um
destino: o de preparar caminhos para outros pés... para o Messias Libertador!
Tudo na sua vida transcorrera de modo incomum. O berço lhe fora oferecido
em circunstâncias transcendentais. Seus pais receberam-no, quando já não o
esperavam.
Conhecia o fato, narrado pelo próprio Zacarias.
Ansioso por um filho, ele fora ao Templo orar e, ao fazê-lo, surpreendera-se pela
presença de um ser espiritual que lhe disse: “Nada receies, Zacarias, pois que a tua
oração foi escutada. A tua mulher, Isabel, dar-te-á um filho, ao qual porás o nome
de João. Ele será para ti motivo de alegria e regozijo, porquanto será grande no
Senhor”.
O torpor e o receio invadiram seu pai, estranha mudez lhe adviera e, depois, o
nascimento aguardado.
As mãos de Deus, indiscutivelmente, pousavam sobre o seu lar.
Depois...
Ao seguir para o deserto, vestiu-se como o antigo profeta Elias: uma pele de
camelo no corpo, em volta dos rins um cinto de couro...
Iniciara o ministério por volta do ano 15 do império de Tibério César, sendo
Pôncio Pilatos governador da Judeia e Herodes Ântipas tetrarca da Galileia...
Descera os chapadões rochosos e duros da Peréia e viera a Bethabara, perto
da embocadura do Mar Morto, onde o Jordão enseja um vau de fácil acesso para
as caravanas, e ali começara pregando e lavando as impurezas com a água do rio,
expectante, porém, quanto Àquele que conduziria os homens, assinalando-os com o
fogo da verdade, o sinal da vida eterna.
O clima de inverno é ali delicioso e as águas velozes passam cantando entre os
festões de canas e fetos, sob a sombra de tamarindeiros cujo verdor contrasta com
o deserto de fogo ardente e nu, mais adiante.
Contava somente trinta anos e estava estuante de força e vigor.
A voz tonitroante brada sem cessar: “Quem vos ensinou a fugir da cólera que vai
chegar? O machado corta já as raízes das árvores. Toda árvore que não produz bom
fruto será cortada e lançada ao fogo”.
A evocação fá-lo chorar: saudades daqueles dias de ação preparatória para a
chegada d’Ele...
*
Havia quase cinco séculos que a boca profética ali se calara e uma preocupação
geral dominava os corações.
O sangue das vítimas das guerras e das rebeliões incessantes, abafadas a ferro
e fogo, corria abundante e o clamor das vozes ao Senhor era ensurdecedor. O Alto,
no entanto, permanecia em silêncio...
Ele se sentia, não há como duvidar, “a voz que clama no deserto” e preparava
“os caminhos do Senhor”. Fora assim mesmo que respondera aos judeus enviados
pelos sacerdotes e levitas de Jerusalém, ao lhe indagarem se ele era o Cristo ou
o Elias esperado. Naquele instante, força incomum dominara-o e nobre inflexão
modulara-lhe a voz ao proclamar: “Eu batizo com água; mas no meio de vós está
desconhecido de vós, aquele que virá após mim. Eu nem sou digno de lhe desatar
as correias do calçado”. Isto fora em Betânia, um pouco além do Jordão, e sentira-
se grande na própria pequenez.
No dia seguinte, recordava-o com os olhos nublados de pranto e indizível
felicidade interior, a alva se espraiava lentamente e a “Casa da passagem”
regurgitava de viajantes. Sob os loendros e tamarindeiros em flor zumbiam
miríades de insetos, suaves olores perpassavam no ar.
Pregava as primícias do Reino de Deus com inusitada emoção.
O verbo quente, derramado em catadupas de alento esperançoso, umedecia-
lhe os olhos requeimados pelo Sol ardente. Quando se movimentava no afã de
arregimentar almas para o exército que preparava, vira-O de relance descendo a
borda do rio, por sobre a relva verdejante com os vestidos brilhando de maneira
incomum, tendo sobre a cabeça o “coffieh” (espécie de turbante) tradicional. O
Maqueronte
31. 60 61RASTROS DE LUZ | JOÃO, AQUELE QUE BATIZAVA
vaso improvisado para o banho lhe escorregara da mão e ele gritou sem poder
dominar-se: “Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. Este é de quem
eu dizia: após mim vem um que é maior que eu; porque existia antes de mim. Não
o conhecia eu, mas, para o tornar conhecido em Israel, é que vim com o batismo
d’água” e aproximando-se, disse-lhe:
- “Eu é que devia ser batizado por ti – e tu vens a mim?”
- “Deixa por agora; convém cumprirmos tudo que é justo”.
Ele falava com eloquente grandeza espiritual.
Após o ato singelo, ouviu-se uma voz, se dentro ou fora do espírito,
rememorando, não saberia dizê-lo: “Este é meu Filho querido, no qual pus a minha
complacência”.
Tudo acontecera em janeiro do ano anterior e parecia tão próximo!...
Ele se afastara pelo mesmo caminho por onde transitavam os rebanhos,
desaparecendo entre os renques de tamareiras. Não voltara a vê-lo outra vez; não
tivera a felicidade de dialogar com Ele.
Uma tranquila confiança empolgara-lhe o espírito desde então.
Pôs-se a verberar com mais ardor contra a degeneração moral onde esta se
encontrasse.
Foi visitar o Tetrarca e sem trepidar invectivou-lhe a conduta.
Como pudera aquele reizete pusilânime e ignóbil trair a filha de Aretas, rei dos
Nabateus, que se vira obrigada a buscar refúgio além da Peréia, em Petra, junto
ao pai, enquanto ele recebia a esposa do seu meio-irmão, Herodes Felipe I, que
vivia em Roma como cidadão, sem qualquer título, e era filha de outro meio-irmão,
Aristóbulo, apaixonado como a avó, Mariamne, a asmoneana, assassinada por
Herodes, o Grande!...
As palavras veementes queimavam, e Ântipas o ouvira impressionado.
Fraco, porém, ou indiferente, não tivera o príncipe a nobreza de libertar-se da
estranha paixão, sem sequer reagira.
Sabia, no entanto, da ira que empolgara a alma da mulher ferida no seu orgulho
e desfaçatez...
A noite sonhava muito longe e o vento frio corria por sobre os montes do Galaad.
*
Os pífaros agudos varam a noite estrelada e as sombras no salão de festas da
fortaleza dançam retalhadas pelas flamas vermelhas das lâmpadas de cobre e
cristal suspensas...
As recordações continuam a assalta-lo na masmorra sombria e infecta.
Quantas humilhações que, todavia, não o feriam!
No íntimo recordava: “É necessário que Ele cresça e eu diminua”... Gostaria de
ter ouvido, conversando com o Ungido! À mente vinha a lembrança de Moisés,
atormentado, no alto Nebo, fitando a “terra eleita” sem lobrigar alcançá-la...
Com esse receio no coração, nascido talvez dos dias de solitária e triste reclusão,
mandara dois discípulos procurarem Jesus de Quem tanto ouvia falar, para saber...
A resposta não chegara e a hora era aquela, a sua hora.
O suor começou a escorrer abundante.
Estava, porém, em paz.
Seu espírito, preparado para o testemunho, não acalentava ilusões. Forjara a
esperança nos foles, fornos, bigornas do ascetismo, da dedicação e da confiança
totais.
Levantou-se, aspirou o ar tranquilo da noite, examinou a nesga de céu bordado
e lavado de luar, fitou o carrasco que o contemplava soturno à porta aberta. A voz
soou firme como no passado, embora o desgaste orgânico.
- Estou pronto! – disse.
Ajoelhou-se sobre a palha imunda do cubículo e curvou a cabeça para baixo.
*
Na manhã clara, meses antes, na Galileia formosa, os discípulos de João,
ansiosos, interrogaram o estranho o nobre Rabi:
- “És tu aquele que há de vir, ou devemos esperar por outro?”
- “Ide – respondeu, jubiloso -, e contai a João o que ouvis e vedes: os cegos
veem, os coxos andam, os leprosos tornam-se limpos, os surdos ouvem, os
mortos ressuscitam, e aos pobres é anunciada a boa nova. Feliz de quem não se
escandalizar de mim”.
Logo se afastaram, comovidos e fascinados. O Mestre, tocado de ternura pelo
prisioneiro que O mandara inquirir, falou:
- “Que saístes a ver ao deserto? um caniço agitado pelo vento? pois que saístes
a ver? um homem em roupas delicadas? Ora, os que trajam roupas delicadas
residem nos palácios dos reis, Por que, pois, saístes? para verdes um profeta? Sim,
declaro-vos eu e mais que um profeta: porque este é de quem está escrito: Eis que
envio a preceder-te o meu arauto, a fim de preparar o caminho diante de ti!”
A balada da revelação nos lábios do Rabi se emoldura de cristalina beleza e ele
prossegue:
- “Em verdade vos digo que entre os filhos de mulher não surgiu quem fosse
maior do que João Batista. Entretanto, o menor no reino dos céus é maior que
32. 62 63RASTROS DE LUZ | JOÃO, AQUELE QUE BATIZAVA
ele. Desde os dias de João Batista até hoje, o reino dos céus sofre violência e os
homens violentos o tomam de assalto. Porque todos os profetas e a lei, até João,
vaticinaram. Ele porém – se o quiserdes aceitar – é o Elias que há de vir. Quem tem
ouvidos para ouvir ouça!”
Sim, João é Elias reencarnado, abrindo caminhos e preparando estradas!
A verdade está enunciada. Luz nova se projeta nos dédalos da ignorância
multimilenar.
*
Em Maqueronte, entre os convidados de toda parte, encontravam-se Herodíade
e Salomé, sua filha do consórcio com Filipe I; Agripa, seu irmão, que mais tarde,
no império de Calígula, seria nomeado sucessor de Filipe, no seu território, e,
posteriormente, quando Ântipas foi exilado para Lião, na Gália, lhe sucederia
em sua Tetrarquia. Também lá estava Herodes-Filipe II, o Tetrarca pacífico da
Gaulanítida e Traconítida, que em breve tempo casaria com Salomé.
O festim, digno das cortes orientais, excedia em luxo e loucura.
Vitélio, chegando em sua liteira suntuosa, traz consigo todo um exército de
bajuladores e serviçais e entra triunfalmente recebido pelo aniversariante.
Os crótalos cantam; as cítaras e os “kinnor” (harpa judaica de som grave)
enchem o ar de estranhas e lânguidas melodias, enquanto os timbales marcam o
febril compasso.
Os lampadários estão em todo o seu esplendor e os candelabros, com almotolias
de prata e outro, derramam luz sobre os tapetes da Babilônia, de Tiro, de Sidon e
os panos coloridos de Damasco a escorrerem pelas paredes de pedra lavrada.
Jacintos, dálias, rosas e jasmins forma festões coloridos e perfumados em volta,
por detrás das mesas de ébano e mogno trabalhadas.
Saduceus e fariseus discutem animadamente, enquanto os suculentos manjares
desfilam e atendem aos convivas.
Uma escrava canta estranha e ignota melodia.
Num intervalo, os velários são descerrados.
E subitamente, ante o espanto geral, Salomé, menina-moça, põe-se a dançar...
O vinho louro escorria abundante e o bailado de loucura inebriava os príncipes,
os fariseus, os convidados em geral.
A dança, u’a mistura de ritmos religiosos e pagãos, era também lasciva.
Quando a música se interrompeu e imenso silêncio penetrou triunfante, a
bailarina tombou em atitude insólita e luxuriosa.
Ântipas, entorpecido pelo vinho e pela sensualidade, exclamou em febre,
enlaçando a jovem menina:
- “Pede! Pede-me metade do meu reino e eu to darei”!
Pela mente ambiciosa da garota excitada perpassam as paixões e ansiedades da
sua época.
Atordoada, busca a genitora para aconselhar-se, e esta, achando propícia a
ocasião, segreda: “pede-lhe a cabeça de João”.
A menina empalidece.
A mãe, autoritária, insiste: pede-lhe! E eu te darei o que quiseres. Esse João
ousou desmoralizar-me diante da ralé e perante o próprio rei, que, acovardado,
idumeu supersticioso, não teve altivez de o punir, degolando-o com severidade para
servir de exemplo. Limpa-me o nome, filha! não apenas peço: eu to exijo!
O ar pesava e a expectativa se fez geral.
Alguém gritou: pede-lhe! É rei, e após prometer não poderá recusar. Somos
Mar da Galileia
33. 64 65RASTROS DE LUZ | JOÃO, AQUELE QUE BATIZAVA 65 RASTROS DE LUZ | A DESCONHECIDA INFÂNCIA
de
Luzum olhar na história
rastros
PRÓXIMO FASCÍCULO:
Este é o filho do carpinteiro?
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Curitiba - PR
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Jesus Christ of Latter-day Saints
Livros: além dos citados no corpo dos
textos, Vida de Cristo, de Fulton J. Sheen
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obra estão reservados, única e exclusivamente, para Maurício Silva. Proibida a sua reprodução parcial ou total,
por qualquer meio, sem expressa autorização, nos termos da Lei 9.610/98.
testemunhas. Pede!
Com a voz rouca a menina propôs:
- “Dá-me a cabeça de João” para que eu possa bailar.
Ântipas, respeitava e temia o Batista.
Ouvindo o singular pedido, estremeceu, e quedou-se lívido.
Gargalhada geral explodiu no ar e as vozes, em coro, reclamaram:
- Dá-lhe a cabeça do Batista ou temes ofertá-la?!
Atoleimado, o rei chamou um sicário e mandou-o decepar a cabeça de João,
encarcerado.
No alto, a lua, em minguante, ocultou-se entre nuvens escuras e um silêncio
tétrico se encheu de expectação...
... A Lâmina prateada cortou o ar e num baque surdo a cabeça do Precursor
rolou no piso de pedra...
A música voltou a soar e, rodopiando, com uma bandeja de prata na mão
espalmada, Salomé entregou a Herodíade o troféu: a cabeça decepada do Batista
que fitava com olhos sem luz a consciência ultrajada dos seus algozes.
Semidesvairada a infeliz mulher pôs-se a gargalhar...
Elias resgatava o crime cometido às margens do rio Quizom, quando mandara
decepar a cabeça dos adoradores de Baal e, livre, tarefa cumprida, ascendia, agora,
nos Cimos.
Seus discípulos rogaram a Ântipas o cadáver e o sepultaram com carinho.
Em colina longínqua, auscultando a noite silente, Jesus orava.
Dias depois abandonou as terras de Herodes Ântipas e foi semear a boa nova em
outras terras...
Cumpriam-se as Escrituras.
O silêncio que o Precursor fizera ensejava a audição do Messias por toda a Terra,
numa nova Era.
Amélia Rodrigues
(Texto extraído do livro Primícias do Reino, de Amélia Rodrigues, Cap. O precursor. Divaldo
Franco)