O documento discute a prática dos cuidados paliativos em uma enfermaria hospitalar no Brasil. A enfermaria acolhe pacientes com doenças terminais que não podem mais ser curados e foca em garantir qualidade de vida e conforto aos pacientes até o fim, em vez de apenas prolongar a vida. O texto descreve cenas na enfermaria, como um paciente que encontrou a alegria antes de morrer, e debate os limites da medicina diante da morte.
Cuidados paliativos: respeito à hora do fim como parte do respeito à vida
1. saúde e bem-estar morte
a enfermaria entre a vida e a m
Lá, eles respeitam o tempo de morrer. Lá, cuidar é mais importante q ue c
Eliane Brum e Marcelo Min (fotos)
56 > época , 18 de agosto de 2008
EP535p056a066.indd 56 14/8/2008 01:40:40
2. vivendo a morte Antônio Walter Correia abriu o
sorriso da primeira foto antes de começar a contar uma
das muitas histórias de sua vida. Na segunda foto, três dias
depois, o contador de histórias encerrou a sua suavemente
a morte
te q ue curar. Lá, todo dia eles respondem: prolongar a vida ou aceitar o fim?
18 de agosto de 2008, época > 57
EP535p056a066.indd 57 14/8/2008 01:41:05
3. saúde e bem-estar morte
D
e repente, João Barbosa de Lima começou com dignidade. Essa nova visão do exercício da medicina tem
a rir às gargalhadas. Seu corpo devastado balançado os alicerces da bilionária indústria da saúde – e põe
pelo câncer se sacudia todo na cama de hos- em xeque a visão contemporânea da morte.
pital. Depois de meses sem um sorriso, o O tratamento batizado de “cuidados paliativos” surgiu na dé-
iceberg que comprimia seu riso se despren- cada de 60 do século XX por iniciativa da médica inglesa Cicely
dia dele. “Essa doença me deixou de um Saunders. Em 1967, ela criou o St. Christopher’s Hospice, em
jeito que filho me beijava, neto me beijava, Londres, para cuidar de doentes que não podiam ser curados.
mulher me beijava e eu não conseguia sorrir. Estava trancado Cicely acreditava que “o sofrimento só é intolerável se ninguém
por dentro”, diz. “Então, meu filho imitou o Costinha, vejam só, cuida”. Dizia a seus pacientes: “Quero que você sinta que me
o Costinha, e destrancou meu riso.” Banal assim. Grande assim. importo pelo fato de você ser você, que me importo até o último
Daquele dia em diante, João ria sozinho. Puxava um lenço en- momento de sua vida e que faremos tudo o que estiver ao nosso
carnado para enxugar os olhos. E continuou rindo quando foi alcance, não somente para ajudá-lo a morrer em paz, mas tam-
para casa. E nem queria rir tanto porque lhe doía por dentro. bém para você viver até o dia de sua morte”. Cuidados paliativos
Mas não conseguia mais segurar. João sabia que morreria, mas priorizam a qualidade da vida possível – e não o prolongamento
tinha descoberto também o que o fazia viver. A família ao redor, da vida a qualquer preço.
esse riso à toa, a mulher de uma vida, a vida vivida. No início dos anos 70, a psiquiatra Elizabeth Kübler-Ross,
Essa cena aconteceu numa manhã de sexta-feira na Enfermaria conhecida por descrever os estágios do processo de morte,
de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Público Esta- levou Cicely e suas idéias para os Estados Unidos, onde o mo-
dual de São Paulo. No 12o andar, a Enfermaria é temida. Pelos vimento ganhou força. Em 1990, a Organização Mundial da
corredores, sussurram que é “a enfermaria da morte”. Para lá só Saúde recomendou a prática dos cuidados paliativos. No Brasil,
vão aqueles com escassas chances de cura. Mas quem entra na o Ministério da Saúde prepara-se para publicar uma portaria
Enfermaria logo se surpreende. Num lugar onde pessoas mor- com diretrizes para esse modelo de assistência. Hoje, há um
rem, há sempre alguém rindo, contando uma movimento internacional reivindicando a
história, pequenas grandes cenas como a que inclusão dos cuidados paliativos e do tra-
abre esta reportagem. E a tristeza é ameniza-
da pela convicção profunda de quem sofre de Ao acolher tamento da dor à Declaração Universal dos
Direitos Humanos.
não estar sozinho, nem para enfrentar a dor doentes no A Enfermaria de Cuidados Paliativos do
fim da vida,
física da doença nem para lidar com a dor Hospital do Servidor foi criada em 2002
psíquica da proximidade da morte. pela médica de família Maria Goretti Sales
A Enfermaria de Cuidados Paliativos é um
centro de difusão de uma idéia ainda sub- defende-se Maciel, presidente da Academia Brasilei-
ra de Cuidados Paliativos. Sexta-feira é o
versiva nos hospitais brasileiros. (Em parte,
isso explica o preconceito.) O tratamento ali
uma prática dia da semana em que a equipe completa
– médicos, psicóloga, enfermeira, assisten-
começa onde a maioria termina. Ao acolher médica em que te social e, quando o hospital dispõe, um
pacientes com a vida abreviada pelo câncer
ou por uma doença crônica, defende-se uma cuidar é mais fisioterapeuta – visita os pacientes. É o que
a médica Juliana Monteiro de Barros chama
prática médica em que cuidar é mais do que
curar. “Quando disseram que minha irmã do que curar de “dia do visitão”. Para fazer esta reporta-
gem, acompanhamos a rotina da Enfermaria
iria para o 12o andar, me aconselharam a não nessas sextas-feiras. E os últimos 115 dias
permitir”, diz Tomie Taniyama. “Entrei na Enfermaria apreen- de uma paciente (leia a reportagem na pág. 68). O fotógrafo
siva. Então me encantei. A equipe deu dignidade à minha irmã Marcelo Min, que se dedica a fotografar partos, logo constatou:
e conforto para nós, da família.” “Nascer e morrer é a mesma coisa”.
O grande embate travado naquele que, desde o século XX, é o
altar da morte – o hospital – e pelos seus sacerdotes modernos a morte envergonhada - A história humana pode
– os médicos – trata dos limites da prática médica diante do ser contada pela forma como cada sociedade, em diferentes
fim da vida. Na visão hegemônica da medicina ocidental, se períodos, lidou com a morte. O historiador francês Philippe
não existe chance de cura, não há mais o que fazer pelo doente. Ariès escreveu sobre o tema, primeiro num pequeno livro cha-
E, como é difícil aceitar limites, parte dos médicos apela para mado História da Morte no Ocidente e depois em dois volumes
procedimentos invasivos e dolorosos na tentativa de prolongar a intitulados O Homem Diante da Morte. “A morte no hospital,
vida a qualquer preço. Em geral, um preço alto, tanto em recursos eriçado de tubos, está prestes a se tornar hoje uma imagem
financeiros quanto em custo pessoal. Ou, algo mais freqüente em popular mais terrífica que o trespassado ou o esqueleto das
hospitais públicos, abandonam os pacientes com a justificativa retóricas macabras”, afirmou.
de que nada mais podem fazer por ele. O psicanalista Rubem Alves deu um tom confessional à im-
Na ótica dos paliativistas – profissionais que acreditam no potência do homem contemporâneo diante da medicalização
respeito à hora do fim como parte do respeito à totalidade da da morte: “Tenho muito medo de morrer. O morrer pode vir
vida –, é nesse momento que a equipe de saúde pode fazer mais: acompanhado de dores, humilhações, aparelhos e tubos enfiados
garantir uma morte sem dor física, os sintomas controlados, o no meu corpo, contra a minha vontade, sem que eu nada possa
paciente consciente e rodeado por quem ama. Nem antecipar fazer, porque já não sou mais dono de mim mesmo; solidão,
a morte nem esticar a vida, mas garantir que se viva até o fim ninguém tem coragem ou palavras para, de mãos dadas comigo,
58 > época , 18 de agosto de 2008
EP535p056a066.indd 58 14/8/2008 01:41:05
4. Fotos e textos exclusivos
em www.epoca.com.br
chegou à conclusão de que três dias de
luto é suficiente? Por que dois é pouco e
quatro é demais? Seria o primeiro dia para
enterrar o morto, o segundo para limpar
os armários e o terceiro para chorar? E
depois, a vida continua?
“Hoje a morte e o luto são tratados com
o mesmo pudor que os impulsos sexuais
há um século”, escreveu o antropólogo
britânico Geoffrey Gorer, em 1955, em
Pornografia da Morte. A interdição do
sexo na era vitoriana, segundo ele, fora
substituída pela interdição da morte no
século XX. A morte teria se tornado obs-
cena e, portanto, deveria ser escondida.
O luto, circunscrito ao âmbito privado,
passara a ser tão secreto e individual
como a masturbação.
Tornou-se deselegante sofrer em pú-
blico. Com a desculpa – fornecida pelos
outros – de que precisamos de solidão
para lidar com a perda, nosso telefone
pára de tocar. Se sofremos além do período
socialmente aceitável, tornamo-nos um
caso patológico. Os amigos nos dão o tele-
fone de um psiquiatra: o que nos falta não
é um ombro humano, mas antidepressivo.
Se morrer é inevitável, o melhor a fazer
é evitar qualquer um que nos obrigue
a pensar no assunto. “De algum secreto
lugar me vem a força para erguer a xíca-
ra, acender o cigarro, até sorrir quando
alguém me diz: ‘Você hoje está com a
João risonho Depois que libertou seu sorriso, João Barbosa de Lima passou a rir
sozinho no hospital. Ele sabia que morreria, mas tinha descoberto o que o fazia viver
cara ótima’, quando penso se não doeria
menos jogar-me de um décimo primeiro
andar”, escreveu Lya Luft sobre o luto pelo
falar sobre a minha morte (...) Muitos dos chamados ‘recursos seu segundo marido, o psicanalista Helio Pellegrino.
heróicos’ para manter vivo um paciente são, do meu ponto de A morte só é tema de mesa de bar quando se transforma em
vista, uma violência ao princípio da ‘reverência pela vida’. Por- Uma Lição de Vida, título do livro do professor americano Randy
que, se os médicos dessem ouvidos ao pedido que a vida está Pausch, morto de câncer pancreático no final de julho. Para ele,
fazendo, eles a ouviriam dizer: ‘Liberta-me’.” morrer era um fracasso. Lutar contra o tumor e não vencê-lo o
Começamos a morrer no exato instante em que começamos colocaria num lugar inaceitável para a sociedade americana e
a viver. E hoje estamos mais mortos do que estávamos ontem. para si mesmo: o transformaria num loser (perdedor). Pausch
Mas, atualmente, mais que em qualquer outro período histó- superou esse impasse ao transformar o fim de sua vida num case
rico, vivemos a morte como uma experiência marginal. Ela de sucesso. Ele não pôde vencer o câncer, mas, naquilo que era
se passa, de preferência, oculta dentro do hospital. Nossa dor, essencial para ele e para a sociedade em que vive, vencera. Conse-
quando perdemos alguém, deve ser superada rapidamente, de guira fazer de sua morte um best-seller internacional. É um sinal
forma asséptica como um procedimento cirúrgico, sem baru- do espírito do nosso tempo que a morte comentada por todos seja
lho e sem perturbar os amigos. justamente uma morte “bem-sucedida”, materializada num livro
Pela lei, se perdemos um parente direto, temos direito a nos cujos rendimentos são estimados em US$ 6 milhões.
ausentar por três dias do trabalho. Quem casa, tem cinco. Quan- Pausch nos fala de superação, não de impotência. Mas morrer é
do nasce um filho, a mãe tem licença de 120 dias. Como se lidar com dois fatos essenciais da vida humana: impotência e falta s
18 de agosto de 2008, época > 59
EP535p056a066.indd 59 14/8/2008 01:41:15
5. saúde e bem-estar morte
João falante João Barbosa de Lima gostava de ilustrar suas histórias com gestos largos. Na foto, ele conversa com a médica Maria Goretti Maciel
de controle. Por isso, talvez, a morte tenha se tornado tão envergo- Em outro momento, um residente afirmou: “Acho que como
nhada. Ela nos lembra daquilo que gostaríamos de esquecer. Em médico não podemos fazer mais nada nesse caso. É só tratamento
nossa época, vende-se a ilusão de que é possível controlar com pílulas humanitário”. A médica Juliana Monteiro de Barros reagiu: “E o que
sentimentos tão intangíveis como a melancolia ou a tristeza, prender é humanitário para você?”. O residente disse: “É garantir que ele vá
a juventude à força de bisturis e cosméticos, prescindir da tradição embora com dignidade, sem dor, sem falta de ar, rodeado por quem
e construir-se a si mesmo sem dever nada a ninguém. A morte nos ele gosta”. Ela então provocou:“E isso não é ser médico?”.
lembra que há algo de errado nessa equação. Podemos transformar o Juliana desejou ser médica aos 8 anos, quando o pai morreu de
corpo, mas não evitamos que ele morra. Podemos decidir entre mar- infarto. “Eu já era onipotente. Decidi que ninguém mais passaria
cas na prateleira, mas não decidimos deixar de morrer. Podemos fazer por isso”, diz. Muitos anos depois, durante a residência, ela conta
nossas próprias regras, mas entre elas não está viver para sempre. A que perdeu uma paciente num atendimento de emergência. Trans-
morte nos confronta com a questão fundamental do nosso limite. tornada pelo sentimento de impotência, jogou o carro contra uma
coluna da garagem. O choque a curou da vontade de ser Deus.
os deuses de jaleco - Diante da morte, nossa impotência “Naquela hora acordei”, afirma hoje, aos 36 anos.
pode ser mascarada pela onipotência da grande estrela destes tempos: O bordão da prática médica tradicional é “lutar”. E lutar é ser
não mais o padre, o pastor ou o xamã, como no passado, mas o médi- potente. “Vamos lutar juntos”, alguns médicos dizem aos pacientes,
co. Não todos, mas muitos. Nas escolas de medicina, eles aprendem a especialmente aos que têm bons planos de saúde ou podem pagar
curar. Não a cuidar. Nessa linha de pensamento, perder um paciente por tratamentos caros. Nesse contrato, porém, apenas um morre.
é um fracasso pessoal. “Eu achava que era um tipo de Deus”, diz E apenas um perde a qualidade da vida possível em nome do im-
Márcio Meireles, de 30 anos, que trabalhou na Enfermaria durante possível. Como dizer ao médico para parar no momento em que
um mês. “Acreditava que, levando o paciente para a UTI, resolveria a morte é iminente e inevitável? Como dizer: “Se o caso do meu
tudo. Descobri que havia coisas que não poderia resolver. Isso me deu filho não tem cura, basta desse tratamento que o deixa sem forças
uma enorme tranqüilidade para viver. Hoje sou um médico melhor para viver o que tem para viver” ou “Não vamos submeter minha
do que era, porque entendo meus limites.” mãe a essa cirurgia porque ela só vai sofrer à toa”. Como desafiar a
Ser bom médico, para a maioria, é tentar todos os procedi- autoridade médica, que insiste em “tentar tudo”? Como não “tentar
mentos, mesmo os mais invasivos e dolorosos, para prolongar a tudo” diante da morte de quem amamos? Como resistir ao conforto
vida condenada pela doença. Não que médicos professem uma de colocar todas as decisões entre as mãos do “doutor” numa hora
modalidade de sadismo, mas eles acreditam com sinceridade que em que a vida pesa sobre nossos ombros como nunca?
“tentar tudo” é o que de melhor podem fazer. “Eu disse ao paciente “Tentar tudo” pode se tornar sinônimo de tortura médica legali-
que não se preocupasse, que vamos resolver todos os problemas zada. O paciente morre porque não havia cura naquele estágio da
dele”, disse um residente a Goretti Maciel, certo de que estava doença. Talvez morra dias ou semanas depois do que morreria sem
fazendo – e dizendo – a coisa certa. “Quanta onipotência. E como intervenções pesadas, de difícil recuperação. Mas perdeu semanas ou
você pretende resolver todos os problemas dele?”, questionou a meses de vida com qualidade, em que poderia fazer uma viagem adiada
chefe da Enfermaria. há muito, comer no restaurante preferido, rever os filmes do coração s
60 > época , 18 de agosto de 2008
EP535p056a066.indd 60 14/8/2008 01:41:24
6. saúde e bem-estar morte
ou apenas beijar quem se ama. Ou não fazer
nada, cercado por aqueles de quem se gosta Visões do fim da cama e o empurrou pelos corredores.
Na porta, o filho os esperava com o carro
ou sozinho como gosta. Perdeu essa chance As principais diferenças da prática ligado. Saíram cantando pneus. “Eu ficava
em nome de quê? Para quê? Por quê? médica para o tratamento de olhando pra trás, achando que a polícia
Uma frase é sempre repetida nos velórios: pacientes na fase final da vida estava perseguindo a gente”, contou. En-
“Nunca deixou de lutar. Enfrentou a morte cerraram a fuga na porta do hospital onde
até o fim. Foi um vencedor”. Diante de uma Enfermaria Enfermaria de sua decisão seria respeitada.
doença incurável, porém, às vezes é preciso Tradicional Cuidados Paliativos A obstinação terapêutica pode ser cruel.
parar de lutar. Diante do inevitável, o mais Seu avesso é igualmente perverso. Os doentes
corajoso talvez seja aceitar. Diante da imi- sem chance de cura são reduzidos a uma
nência da morte, o que se pode decidir é Práticas médicas sigla: “RHD” – “Regime Higiene-Dietético”.
como viver até o fim. A vida é prolongada por meio de proce- Ou, como se diz nos hospitais, “banho e
dimentos médicos e equipamentos até o comida”. Na maioria dos hospitais públi-
as duas facEs da onipotência - esgotamento dos recursos cos, falta dinheiro para arcar com o custo
No início de agosto, o mundo se surpreendeu – sempre alto – de procedimentos que en-
Não há nenhuma tentativa de prolongar a
com a notícia de que o ator Paul Newman vida, só de melhorar a qualidade da vida en-
volvem tecnologia de ponta e medicamen-
decidira morrer em casa. Aos 83 anos, ele quanto ela existir. Todo o esforço da equipe tos importados. Os recursos financeiros e
estaria com câncer e foi fotografado deixan- destina-se a aliviar o sofrimento físico e humanos – invariavelmente escassos – são
do o hospital. Segundo amigos, passou os psíquico do paciente até a hora da morte concentrados naqueles com possibilidade
últimos dias botando a vida em ordem e dis- concreta de cura. Os outros são despacha-
tribuindo seus bens. O astro de Hollywood Exames laboratoriais e procedimentos dos de volta para casa, sem assistência, ou
decidiu como vai viver sua morte. diagnósticos (tomografias, ultra-sonografias, deixados num canto, sem que a equipe
ressonâncias magnéticas etc.)
A escritora Susan Sontag fez uma escolha gaste tempo com eles. A lógica é a mesma:
oposta. Autora de livros sobre a doença e a São rotineiros, para acompanhar a evolu- se não há como curar, então a medicina
morte, Susan morreu de câncer em 2004, aos ção da doença nada pode fazer.
71 anos, sem conseguir aceitar sua condição. Num quarto da Enfermaria, a garota
Só são realizados se forem essenciais para
Seu médico foi claro: um transplante de me- o controle dos sintomas
conta que já esteve no inferno – condena-
dula significaria mais sofrimento e ínfimas da pelo sistema de saúde, pela ideologia
chances de sucesso. Susan insistiu. Quando Procedimentos invasivos (sondas de
da cura. Aos 51 anos, sua sogra tornou-se
a avisaram que o transplante fracassara, ela alimentação e urinárias) uma “RHD”. O hospital, ligado a uma re-
estava presa a dezenas de tubos que a manti- nomada faculdade de medicina, concluiu
Uso sistemático
nham viva. E continuava perguntando o que que nada mais poderia ser feito por ela.
mais os médicos podiam fazer por ela. Só são usadas quando significarem alívio Coube à nora cuidá-la em casa, sem apoio.
Susan morreu coberta de feridas e hemato- para o paciente Por três anos a garota viveu, hora após
mas, sem se despedir de ninguém. Seus últi- hora, diante do corpo da sogra. A mulher
mos meses foram descritos pelo filho, David Procedimentos de ventilação mecânica tinha uma fístula na axila. Na realidade,
Rieff, em Nadando em um Mar de Morte (entubação e máscaras de oxigênio sob um buraco. Através dele, era possível ver
pressão – bipap)
– Memórias de um Filho. “Eu não podia nem as costelas, o pulmão e o reflexo da batida
dizer que a amava, porque isso seria interpre- Uso rotineiro do coração. Todo dia ela assistia à sogra
tado como uma despedida”, diz David. Su- O conforto respiratório é obtido pela
apodrecendo por dentro, viva.
san escolheu morrer sem se reconciliar com combinação de medicamentos (opióides À medida que o buraco aumentava, fazer
a idéia de morrer. Mas essa foi sua escolha. e sedativos) em doses baixas, para que o os curativos ia se tornando mais difícil. “As
Susan era a única que poderia fazê-la. paciente possa despertar com facilidade moscas não a deixavam em paz, eu passava
No quarto da Enfermaria de Cuidados a noite abanando ela”, contou. “Quando
Paliativos, uma mulher estava ali porque Aplicação de medicação parenteral lavava sua roupas, encontrava ovos e lar-
também defendera seu direito de escolha. O mais comum é o acesso venoso central, vas de bicho.” Quando a água que a doente
Dona de casa, mãe de nove filhos, cometera com introdução de cateter em veia calibro- bebia começou a entrar pela boca e sair
duas loucuras em uma existência inteira: a sa próxima ao coração pelo buraco, ela e o marido a colocaram
primeira, ao fugir do Ceará aos 16 anos para Em geral, usa uma via subcutânea, com no carro e rodaram por vários hospitais. Só
se casar com o amor da sua vida. A segunda, menor risco e causando menos desconfor- foram acolhidos na Enfermaria. A realida-
na véspera, ao fugir de um hospital para pro- to ao paciente de do corpo da paciente era tão aterradora
teger o amor de sua vida. Com metástase no que Kathia Camargo, uma enfermeira ex-
cérebro, os médicos decidiram submetê-lo Manobras de ressuscitação periente, sofria para fazer os curativos.
a uma cirurgia. Ela disse “não”. Ele já sofrera cardiopulmonar (entubação, massagem
cardíaca e choques no coração)
o suficiente. Não falava mais. Mas o doutor Escolha até o fim - Diante da im-
insistiu em dar a última palavra: “Sim”. Procedimentos-padrão em caso de parada possibilidade de curar, o que um médico
Ela planejou então uma fuga cinemato- cardiorrespiratória pode fazer é cuidar. E cuidar não é pouco.
gráfica. Primeiro, o filho roubou o pron- Não ressuscita, a parada cardiorrespirató- Nem é fácil. “É claro que os pacientes
tuário. Na madrugada, ela tirou o marido ria é considerada morte gostariam que fôssemos seus deuses s
62 > época , 18 de agosto de 2008
EP535p056a066.indd 62 14/8/2008 01:41:36
7. saúde e bem-estar morte
particulares”, diz Goretti Maciel. “Ser palia-
tivista é aprender a lidar com a impotência,
com a certeza de que jamais seremos deuses
ou capazes de aliviar todo o sofrimento. Po-
demos apenas ser humanos e compartilhar o
sofrimento, o que é mais verdadeiro.”
Se há algo que desafina a voz de bossa nova de
Goretti é achar que cuidados paliativos é “aquele
povo que só pega na mão”. Ela começou a mon-
tar o serviço no Hospital do Servidor Público
em 2000 e tornou-se uma cliente contumaz das
companhias aéreas ao atravessar o país em sua
cruzada pela causa. “Fazer cuidados paliativos
não é só pegar na mão do paciente e conversar.
Tem de estudar muito, o tempo todo, porque
tratar da dor e dos sintomas é uma arquitetura
delicada”, diz. “Olhamos para a pessoa inteira,
e não para uma parte do seu corpo. Precisamos
entender não só sua situação clínica, mas suas
emoções, suas dificuldades. É preciso entender
sua história para ajudá-la a viver a vida da me-
lhor forma possível até o fim.”
Na Enfermaria não há espaço para frases
como: “Me entrego em suas mãos, doutor” .
Como viver a morte é uma decisão do paciente, é
ele o responsável por sua vida até o fim – ou sua
família, se já não puder decidir. Um engenheiro
de 46 anos, pai de três filhos adolescentes, foi
protagonista de um momento de grande dor
e beleza. O câncer o levou à Enfermaria. E, lá, a
equipe chegou a um impasse: ele morreria em
alguns dias, com as pernas, ou teria pouco mais curada Na Enfermaria, Yolanda Kovalke de Almeida descobriu que não poderia
de um mês de vida sem elas. Toda a Enfermaria curar o corpo, mas que havia curado a alma. “O cuidado da equipe me abriu os olhos,
chorou por ele, com ele. Atravessaram a madru- me fez descobrir que a mudança estava dentro de mim. Me libertei. É engraçado,
gada conversando, ele e a mulher. Na manhã a gente procura Deus em tantas partes, e eu fui encontrar aqui, no carinho destas
seguinte, ele anunciou sua decisão: amputaria médicas, desta equipe, na descoberta de que existe no mundo um lugar assim”
as pernas. “Toda minha vida, matei um leão por
dia”, ele disse. “O de hoje é minha perna. Depois
vejo como resolvo o outro.” Dias depois da cirurgia, ele disputava uma naquele momento comer não fará diferença. Mas não é fácil aceitar.“Meu
corrida de cadeira de rodas com outro paciente no corredor. Morreu marido quase não come mais” disse a mulher a Juliana.“Não seria bom
,
dois meses e uma semana mais tarde, feliz por cada dia vivido. botar uma sonda nele? Eu entendo do meu marido, mas não entendo do
É preciso improvisar diante dos limites impostos pela doença. Por organismo dele.”Sentada num banquinho, a médica responde, suave:“O
semanas, a psicóloga Luana Viscardi, de 30 anos, teve de “escutar” um organismo naquela cama é o seu marido. Nesse momento, uma sonda
paciente que já não podia falar, mas queria contar sua história. Luana não vai trazer benefício, só sofrimento. Mas vamos decidir junto com a
leu seus lábios, acolheu sua torrente silenciosa e conseguiu ajudar senhora. E vamos apoiá-la.” Ele morreu alguns dias depois. Sem sonda.
uma pessoa sem voz, mas cheia de palavras. “Às vezes os pacientes Para outra paciente, comer era o que fazia sentido na vida. Mas
imaginam que eu estou lá para convencê-los de que morrer é bom”, ela estava num estágio em que vomitava tudo o que ingeria. Mesmo
diz. “Meu trabalho é ouvir e atender à demanda da vida. É não tratar assim, não queria ser alimentada por uma sonda. “Comer, para mim, é
como morte o que é vida nem como coisa o que é gente.” o sabor da vida”, disse à médica Veruska Hatanaka, de 34 anos. Mesmo
Depois de integrar a equipe, Luana decidiu propor aos pais e irmãos vomitando, para ela valia a pena. A equipe respeitou sua vontade. Ela
uma terapia de família. “Achei que havia questões que precisávamos comeu e vomitou até morrer. Viveu.
resolver entre nós, e foi transformador”, afirma. “Na Enfermaria, a Veruska engravidou duas vezes na Enfermaria. Tinha encontros
morte não pertence ao futuro. É agora. Em mim esse contato repercu- quase diários com a morte enquanto a vida crescia dentro dela. Per-
tiu como vontade de cuidar mais dos momentos cotidianos, construir deu seu primeiro bebê. E também viveu seu luto ali. “Acho que esse
relações mais positivas, ter um almoço de família gostoso.” luto me aproximou do sofrimento dos pacientes, me tornou mais
Para cuidar na morte, é preciso compreender a singularidade da vida sensível”, diz. Na segunda gestação, algumas vezes seu bebê moveu-se
de cada um. Não basta aplicar o manual. O que é alívio para um paciente dentro dela enquanto um paciente exalava o último suspiro. “E isso
pode ser uma tortura para outro. A falta de apetite quando a vida chega também me tornou mais sensível. Para mim, o processo da morte
perto do fim é sempre um drama para o doente e para a família. Em geral, é parte do processo da vida. São dois começos”, diz. s
64 > época , 18 de agosto de 2008
EP535p056a066.indd 64 14/8/2008 01:41:53
8. saúde e bem-estar morte
Na Enfermaria, a morte é um parto do lado avesso. E as médicas ótima: “Seu fulano conseguiu fazer cocô! Foi tão bom pra ele”. No
são parteiras que, em vez de esperar o tempo de nascer, respeitam início, Tia Celeste parece ser uma paciente muito popular. “Tia Celeste
o tempo de morrer. Yolanda Kovalke de Almeida compreendeu sua passou por aqui”, se escuta de uma e outra. Depois que Tia Celeste foi
morte como um novo nascimento. Ela tinha metástases pelo corpo e voltou tantas vezes sem apresentação formal, a pergunta torna-se
inteiro, passara a vida cuidando de todos, para ela era difícil deixar- inevitável. “Na Enfermaria as pessoas vão se purificando, enxergando
se cuidar. Numa manhã sua revolta se foi. “Eu me transformei aqui coisas que não viam. Então acho que isso é um pouco celestial para
na Enfermaria”, disse. “Estou doente, mas não sou a doença. Estou elas”, diz Regina Célia de Jesus, de 30 anos. “Aí, para os outros setores
viva. Quero viver enquanto estiver viva. Essa é a minha cura. Me do hospital é morte mesmo, mas aqui é Tia Celeste.”
libertei.” Tira os óculos, enxuga as lágrimas, abre um sorriso lindo. Diante do diagnóstico, a paciente chorou muito. “O que faço da
E arrisca: “Você acha que eu posso tomar uma cervejinha?”. minha vida?”, pergunta a Regina. “Viva”, diz Regina. A paciente retru-
ca: “Mas uma vida deste jeito?”. A auxiliar responde: “Enquanto há
Uma eqUipe especial - Quem entra num dos nove aparta- respiro, tem vida. Faça tudo o que tem vontade, vá a lugares que não
mentos da Enfermaria pode sentir um insólito cheiro de morango. pôde ir”. A paciente não se convence: “Mas aqui na cama?”. Regina
Parece fora de lugar, ninguém pensa que o fim da vida combina com gesticula: “Tem alguma coisa inesquecível que você deseje comer?”.
frutas tão exuberantes. O cheiro vem da cabeça do paciente. E é xam- A paciente nem pensa: “Pão com manteiga na chapa”. Regina dá um
pu de motel. A regra foi criada pelas enfermeiras e auxiliares: quem grito: “E eu que pensei que você ia querer jantar no Fasano!”. E desce
namorar tem de trazer o kit xampu, condicionador e pente para os 12 andares para buscar um pão com manteiga na chapa na lanchonete
pacientes. Assim, lá às vezes a morte tem um cheiro afrodisíaco. do hospital. A mulher come chorando.
Cada apartamento é individual e tem duas camas, para que o doente “Estou com muito medo desse seu setor. Disseram que minha
nunca fique sozinho e o acompanhante não precise se aboletar mãe veio pra cá para morrer”, diz a filha de uma paciente. Regina
num daqueles sofazinhos que acabam com a reage: “Não é assim”. A acompanhante é agres-
coluna. Às 8h30 de uma manhã, pela janelinha siva : “Ah, vai curar a minha mãe?”. A auxiliar
da porta, era possível ver o casal dormindo na
mesma cama – de conchinha. Uma paciente Cuidar é escutar responde: “Não, não vamos curar. Vamos dar
qualidade de vida a ela”. A mulher insiste: “E o
pergunta se pode fazer sexo usando oxigênio. a demanda que é qualidade de vida?”. Regina diz: “Qualida-
da vida. É não
Outra, sempre tão recatada em vida, agora deu de de vida é sua mãe conseguir respirar e falar
para escandalizar a família arrancando toda a bom dia sem precisar do cateter. É sua mãe não
roupa de uma vez. E outra ainda ri de si mes-
ma: apaixonara-se pelo residente. “Converso tratar como ter medo de falar porque vai ficar sem ar. É sua
mãe poder abraçar você sem sentir dor”. A filha
com ele e esqueço que estou sem dentadura.
Lembro de mim como era antes. E, quando me
morte o finalmente compreende: “Então minha mãe
está no lugar certo. Quero muito um abraço”.
vejo no espelho, até me assusto.” que é vida e
As regras são mínimas. A principal é despa-
char o paciente para casa assim que for possível. como coisa Janelas da alma - Cada leito é uma ja-
nela para o mundo de alguém. Perto da mor-
As passagens pelo hospital devem ser rápidas,
apenas para tratar crises que exigem maior es- o que é gente te, a vida fica mais nua. E as contradições se
explicitam. Morre-se como se vive, só que de
trutura. Para as demais intercorrências há uma modo mais radical. Reduzido ao essencial, um
equipe de visita domiciliar comandada por Rosângela Martins Con- paciente tinha uma força que ninguém sabia explicar. Ergueu-se
ceição, de 45 anos, uma professora de História que ao cuidar do sobre si mesmo, levantou um braço esquálido e, sem poder falar,
câncer da avó descobriu sua vocação de enfermeira. “Quando me disse chega. O câncer tinha lhe roubado as cordas vocais, mas não
tornei enfermeira, eu sabia que era o meu lugar no mundo. Mas conseguira lhe arrancar a raiva. Ele morreu sem um som, mas com
somos ensinados a ver as pessoas por partes do corpo, por doenças. E fúria. Estava nu. Exceto por um detalhe. No dedo, um anel de dou-
acabamos achando que a sensibilidade é incompatível com a razão”, tor. Por toda a vida ele havia sido pedreiro. A presença do anel, mais
diz. “Recuperei minha sensibilidade aqui. E descobri que sem ela não do que a falta das roupas, era o que o deixava mais nu.
dá para enxergar o paciente nem compreender o que ele precisa.” Apodrecer por dentro pode ser uma bênção. Uma doente tem
Cada visita dura horas. Além dos procedimentos técnicos, Ro- um tumor na coxa esquerda. Apodrece por fora. Uma flor de
sângela e a auxiliar ouvem as últimas histórias, suavizam angústias carne que a cada dia engole um pouco mais dela. Seu rosto está
e provam um bolo feito para a ocasião. São tantas as comilanças em paz. Logo o paradoxo se desmancha. Pouco antes de descobrir
que a equipe publicou um livro só com receitas dos pacientes. Esta o câncer, ela ficou cega. Foi o que a salvou da tragédia maior: a
é outra característica da Enfermaria: ela engorda. visão de si mesma. Por ter sido jogada no escuro, ela se manteve
Maria de Cleide, Regina, Zilda, Neucilene, Edineia, Mary... Elas são na claridade até o fim.
18 auxiliares de enfermagem. Ficam dia e noite ao lado dos pacientes “Você viu o exame, doutora?” É o jeito que uma paciente en-
ajudando a urinar e defecar, dando banho, limpando sangue e vômito, contra para perguntar se vai morrer. A médica pega sua mão,
escutando. Isso dá a elas um olhar muito particular sobre a vida e tam- acaricia seus cabelos. Diz: “O que você tem está espalhado pelo
bém sobre a morte.“Antes eu me preocupava se estava gorda, se minha seu corpo. Mas a gente vai estar aqui, com você. Tirando sua
mama estava caída” diz Maria de Cleide Batista, de 44 anos.“Depois que
, dor, ajudando você, cuidando de você”. Os olhos dela erram pelo
vim pra cá, agradeço a Deus por fazer xixi e por respirar bem.” quadrilátero do quarto, por um longo instante não se fixam em
As auxiliares formam uma pequena torcida organizada. Quando nada. Então ela encontra algo sólido. Ancora seu olhar nos olhos
alguém vai buscar a razão de tanto barulho, a explicação é sempre da médica. Aceita. Ela diz: “Muito obrigada”. u
66 > época , 18 de agosto de 2008
EP535p056a066.indd 66 14/8/2008 01:41:57
9. Saúde e bem-eStar morte
“
Sem tempo
A doença
surpreendeu
Ailce quando ela
acreditava estar
mais perto de seus
sonhos. Como a
maioria de nós,
ela descobriu que
adiara demais
68 > época , 18 de agosto de 2008
EP535p068a074.indd 68 14/8/2008 01:42:46
10. a mulher que Ailce anda de ônibus por todo lado, dança em bailes da terceira
idade, vive um romance com um homem mais jovem. “Você
acredita que, quanto mais eu danço, mais tenho vontade de dan-
alimentava çar?” Ela dança sozinha pela liberdade de rodopiar pelo salão
sem que ninguém a conduza. Sempre quis conduzir ela mesma
sua vida. Escolhe seus passos no salão de baile enquanto suas
células a traem no silêncio de seu corpo.
ÉPOCA acompanhou Se câncer é a palavra que não diz, liberdade é a palavra que repete.
os últimos 115 Ailce está presa, literalmente. Sua vida depende de duas mangueiras
fincadas dentro dela. Elas drenam a bile para fora de seu corpo. O
dias da vida da líquido amarelo escoa em dois recipientes de plástico que ela carrega
numa sacola de supermercado nas andanças dentro de casa, numa
merendeira Ailce bolsa decorada com as princesas da Disney quando passeia. Um dia
um segurança olha feio para sua bolsa achando que ela está furtando
de Oliveira Souza, produtos da prateleira. E devagar Ailce vai deixando de sair. Desliga
a música dentro de casa. E não dança mais.
morta há um mês Estar presa a horroriza. Passou a vida esperneando para escapar
de uma prisão metafórica. E agora está amarrada não aos fios invi-
Eliane Brum e Marcelo Min (fotos) síveis que a ligam às convenções do mundo, como a todos nós, mas
às duas mangueiras de material sintético que drenam o rio poluído
de seu interior. “A gente não vale nada. Olha o que sai de mim.”
Quando entrou na sala de cirurgia, achava que faria apenas
um exame complicado. “Lembro que o médico cantava pra me
É
acalmar. Não lembro a música. Eu dormi com a anestesia e quando
“
voltei estava numa maca, no corredor. Eu sentia um frio muito
tão estranho”, ela diz. “Passei a vida inteira grande. Tremia. Vi os drenos e descobri que estava presa.”
batendo ponto, com horário pra tudo. Quan- Ela logo descobre que sou um terceiro fio na vida dela. Ela nunca
do me aposentei, arranquei o relógio do pul- tinha falado muito de si mesma. Desse dreno de palavras ela gosta.
so e joguei fora. Finalmente eu seria livre. Aí “A gente fica guardando coisas por toda a vida. Quando eu falo,
apareceu essa doença. Quando tive tempo, parece que elas vão se soltando dentro de mim. Me liberto.”
descobri que meu tempo tinha acabado.”
Ela está intrigada com essa traição da vida. Sua Ailce é uma mulher comum. Nunca pensou que sua
expressão é de perplexidade.Ailce de Oliveira Souza não é uma filóso- vida dá um romance. Nem mesmo uma reportagem. Ela não al-
fa, é uma merendeira de escola. Toda sua vida havia sido de uma con- cançou o Pico do Everest, nem desvendou a espiral do DNA ou
cretude às vezes brutal. E agora a morte chegava exigindo metáforas. compôs uma sinfonia. Também não queimou sutiã em praça pú-
Lá fora faz sol, e os vizinhos vivem na primeira parte do poema blica. Ailce viveu.
de Manuel Bandeira. Quando o enterro passou/Os homens que se Na narrativa de sua história, ela começa a decifrar pequenas
achavam no café/Tiraram o chapéu maquinalmente/Saudavam o singularidades despercebidas numa existência em que o tempo
morto distraídos/Estavam todos voltados para a vida/Absortos na foi devorado em turnos de trabalho. Ailce percebe que não há
vida/Confiantes na vida. Lá dentro, sentadas uma diante da outra, como dar sentido à morte, mas ela pode dar sentido à vida. Só
eu e ela vivemos o segundo ato. Um no entanto se descobriu num assim poderá suportar a superfície fria de um fim que já toca
gesto largo e demorado/Olhando o esquife longamente/Este sabia que com as mãos. Para viver tão perto da morte, ela precisa adivi-
a vida é uma agitação feroz e sem finalidade/Que a vida é traição. nhar a tessitura da vida. Do contrário, só lhe restam aquelas
Ailce nunca deixou de se sentir traída por “essa doença”, como mangueiras sintéticas.
se expressa na maior parte das vezes, ou “o tumor”. Não pronuncia Ailce sempre desejou se “libertar” e, como muitos de nós,
a palavra câncer. Quando nos conhecemos, em 26 de março, faz nunca conseguiu definir muito bem de quê. “Eu gosto de ir pra
quase um ano que sua pele amarelara e ela se enchera de náuseas. frente”, diz. Descobre então que terá de enfrentar não a Medicina,
Ailce se revolta contra Deus. É dele a traição. mas a Poesia: Temos, todos que vivemos/Uma vida que é vivida/E
Seu câncer é uma pedra no meio do caminho das vias biliares. outra vida que é pensada/E a única vida que temos é essa que é
O tumor obstrui a passagem e, sem ter por onde escoar, a bile é dividida/Entre a verdadeira e a errada.
lançada no sangue, e a deixa inteira amarela. Quando ganha essa Intuitivamente ela sabe que sua sanidade depende de enfren-
cor solar, Ailce ainda não tem 66 anos. E acredita viver o melhor tar o caos da vida, mais do que o da morte, que é só um ponto
tempo de sua vida. “Sem filhos, sem marido, aposentada, livre”, final em geral improvisado. E então, com esforço e não sem
diz. Ela planeja conhecer as obras de Aleijadinho, nas cidades sofrimento, ela poderá se reconciliar com os pontos soltos, os
históricas de Minas Gerais, e a Espanha dos filmes de Sarita padrões interrompidos, as costuras tortas da trama do vivido.
Montiel. Quando a paisagem passa veloz pela janela do ônibus, Para ela, o mais difícil é aceitar que alguns bordados ficarão por
sente que está indo para um lugar que sempre quis, não importa fazer. Ou, pior, serão tecidos sem ela.
o destino. “Você já reparou como a gente muda quando viaja? Ela é a quarta filha de nove, a penúltima com o nome iniciando
Parece que me liberto de tudo.” por “a”. Ailton, Amilton, Adailton, Ailce... “Eu sentia falta de s
18 de agosto de 2008, época > 69
EP535p068a074.indd 69 14/8/2008 01:42:46
11. Saúde e bem-eStar morte
espaço, de um canto só meu.” No final de sua vida, ela tem não
apenas um canto, mas uma casa só sua. Ampla, dois andares, é a
encarnação em concreto de seus esforços. Pela casa ela sacrificou
muito. Mas quando adoeceu descobriu que a casa transforma-
ra-se numa prisão. Agora quer se libertar da casa. Mas, a cada
semana, a cada mês, seu espaço encolhe. Primeiro, o portão da
rua marca a fronteira de seu mundo. Depois, a porta da frente.
Em seguida, seu território é circunscrito ao 2o andar. E, por fim,
tudo o que tem é o quarto. diante
Ailce então fecha a janela na cara do sol e não sai mais da cama. do fim
Nessa época, ela descobre que é possível viver na memória. E refaz Ailce no quintal
o itinerário de sua vida. Ela nascera em São Romão, cidadezinha de sua casa,
mineira forjada em histórias de sangue. E sua infância cabia num vão em abril, um
entre a largueza do São Francisco e um riacho de nome Escuro, que ano depois
dos primeiros
banhava a fazenda da família. Crescera cercada de água por todos os
sintomas
lados, mas tinha medo de nadar. Seu pai havia sido capitão de porto, do câncer
delegado de polícia, juiz de paz. Sua mãe fora uma mulher forte, que
fugira do primeiro casamento, aos 13 anos, com a pequena Maria pela
mão. Mantinha a casa e os filhos asseados, as toalhas bordadas bem
alvas, a cozinha mergulhada numa névoa de vapores perfumados.
Essa memória olfativa feita de temperos, toicinho e do-
çura engendrada nas panelas da mãe acompanhou Ailce por toda
a vida. Perto da morte tornam-se mais vivas. Quando as toxinas
liberadas pelo tumor envenenam o corpo, e ela enjoa de tudo,
lembra o feijão gordo, o pão de queijo, os biscoitos de polvilho. E
sua boca castigada é afagada por uma saliva de infância. Ailce, que
já não consegue comer, lambuza-se em banquetes de lembranças.
Mais tarde, 18 quilos mais magra, e já sem forças para andar até o
banheiro, ela ainda suspira por uma broa de dona Santa. nas bambas, mas sobre saltos. E, quando ainda não pronuncia a
Ailce deixou a casa dos pais aos 18 anos. Diante de suas ânsias palavra morte, usa a metáfora “cair”. “Eu não aceito cair.”
de mulher jovem, a cidade criara paredes. “Eu queria conhecer Aos 23 anos, ela tomou uma decisão pragmática. Casou-se com
coisas novas”, diz. “Ser independente.” Escorregou no mapa e de- um operário chamado Jaime, rapaz alinhado que não botava a ca-
sembarcou em Guarulhos, São Paulo, na casa de um irmão. E de beça fora de casa sem brilhantina, sem um lustro nos sapatos. “Eu
novo sentiu-se confinada. Mudara de geografia, mas não de sina, queria ter uma casa só minha”, diz Ailce. “Ele era honesto, trabalha-
e para ela os 60 não foram anos loucos. Costureira, moça de fá- dor, andava de terno e gravata, tinha uma família boa. Casei.” Ailce
brica, entre linhas, agulhas e bobinas teve as primeiras revelações não adivinhou que um moço tão distinto teria ganas de beber além
sobre sexo, quando ao voltar da lua-de-mel uma colega relatou da conta. Nem que uma parte do futuro seria gasta nas tribulações
que não só doía como jorrava um líquido branco do membro de mulher de alcoólatra. No caso dela sina ainda mais triste porque
do homem. Ailce arquivou a informação para não fazer cara de nada tinha da originalidade que planejara para si. Assinou o livro do
surpresa quando sua hora chegasse. cartório convencida de que romance era incompatível com a vida
Nessa época, Ailce se apaixonou por um rapaz de olhos verdes, adulta. E essa foi sua primeira capitulação diante de seus sonhos.
e ela, que sempre foi muito prática, deu para devaneios. Espremi- Esse marido “era da raça de espanhol, tinha sangue quente”. E esse
da na cama de armar que dividia com uma amiga, falava de amor fogo acabou incinerando Ailce, que já casou com o primeiro filho
e ria à toa. No sábado, anunciava: “Vamos ao baile de vestido aconchegado numa curva da barriga. Só mais tarde ela soube que
novo”. Costurava então uma saia bem rodada para cada uma, havia um nome para o que sentiu quando Marcos nasceu de cesa-
orgulhosa da cintura de 54 centímetros. Muito mais tarde, Ailce riana. “Eu não queria aquela vida, queria uma vida diferente”, ela diz.
vai esquecer os fios sintéticos fincados em seu “Então rejeitei.” Ailce chorou, envergonhada de
fígado ao lembrar de seu vestido de organza seus pensamentos. Só décadas depois, perdoou
azul. Mas o moço bonito não queria saber de
casamento, e Ailce chaveou o coração.
“Você acredita a si mesma ao descobrir que tivera uma depres-
são pós-parto, comum a muitas mulheres, e
Desde aqueles dias, Ailce jamais deixou de que, quanto não uma crise existencial em que questionava
sair de casa impecável. “Ailce vem à consulta
muito bonita, cabelos pintados, brincos, salto mais eu danço, o que fora feito de suas grandes esperanças.
Quando as primeiras semanas viraram meses,
alto”, escreve a médica Maria Goretti Maciel
no prontuário da Enfermaria de Cuidados mais sinto foi tomada por um amor tão grande por aquele
filho que, perto do fim, ainda acredita que nin-
Paliativos do Hospital do Servidor Público vontade de guém cuida tão bem dele quanto ela.
dançar?”
Estadual de São Paulo, em 2 de abril. Mais de Quando a segunda vida pediu passagem den-
uma vez Ailce entra no hospital com as per- tro dela, Ailce chorou de novo. O marido bebera
70 > época , 18 de agosto de 2008
EP535p068a074.indd 70 14/8/2008 01:42:54
12. cestral chamada Carmen que fala espanhol pela sua boca. Ailce
aceita o mistério. E ela, que nunca aprendeu espanhol, conversa
com a cigana como uma velha amiga.
Luciane dá à mãe essa dimensão mística da vida. Pelas mãos
dessa filha ela encontra significados para um estar no mundo que
para ela foi sempre tão concreto. Luciane lhe dá uma história que
avança além da sua, e lhe dá um lugar nessa história. Perto do fim,
sua pequena vida faz sentido numa trama maior. A cada novembro
é ela quem acende a fogueira da ancestralidade, vestindo saias
coloridas, e sua figura se reveste de uma solenidade que resiste ao
comezinho de uma vida de cartão de ponto. Depois, ela rodopia
ao som do violino cigano e ali, finalmente, apalpa com os pés no
ar uma liberdade que até então ela só pressentira. E, por ter um
passado antes do nascimento, terá um futuro depois da morte.
Do meu lugar de observadora de um quadro familiar, ora na
cena, ora fora dela, me pergunto se esses filhos, cada um a seu
modo, compreendem o tamanho do que dão à mãe. Ailce precisa
do que cada um deles pode dar, até o fim.
Ela só descobriu o tumor quando foi enviada para a Enfermaria
de Cuidados Paliativos, depois de enfrentar sete meses de tratamento
em outro setor do hospital. Ailce suspeitava do diagnóstico, mas pre-
feria não ter certeza. Na Enfermaria, a verdade a encurrala. “Antes,
os médicos falavam lá na língua deles. Eu escutava a palavra tumor,
mas não perguntava. No Paliativos, me contaram que eu tinha um
tumor num lugar que não podia ser mexido. Fizeram um desenho.
Eu pensei que faria quimioterapia e ficaria boa. Então disseram
que eu não poderia fazer. Me revoltei. Achei que Deus não existia.
Eu sempre quis ir além e agora não posso mais ir a lugar algum.”
Ailce conta – e imediatamente “esquece” o diagnóstico. Nas
demais e escalara a cama para deitar-se com ela. Ailce agarrou um visitas seguintes, ela me testa: “Acho que não tem nada dentro de
cobertor e enrolou-se no chão. Sentia-se presa numa teia que não mim”. Ela deseja muito que eu confirme seu pensamento mágico.
planejara tecer. “Chorei. Não era essa vida que eu queria pra mim”, Nessas horas, eu sinto dor na garganta, pelas palavras que não
diz. “Pensei então que meu bebê poderia ser uma menina e me acal- posso pronunciar, mas que gostaria muito de dizer.
mei.” Luciane nasceu miúda, alérgica a leite e com o gênio forte das
mulheres da família. Menina estranha, desde os 7 anos escondia-se na Incapaz de enfrentar meu silêncio, ela contemporiza.
cama da mãe para não ser assaltada por coisas do outro mundo. “Ainda bem que eu não tenho dor.” Lourdes, que limpa a casa, co-
Esses dois filhos dão a Ailce as duas pontas com as quais ela amar- zinha e cuida dela, a socorre: “Você não tem câncer. Eu tinha uma
ra o final de sua vida. Marcos, funcionário de escola como ela, cuida tia com câncer e ela gritava de dor. E tinha um cheiro tão horrível
das feridas do corpo. Aos 42 anos, é um homem quieto, que tranca que ninguém chegava perto. Você não tem cheiro nenhum”. São
as emoções em algum lugar entre o coração e o estômago. Ao entrar duas mulheres sozinhas na casa – e uma delas tem uma sentença de
numa sala, ocupa um canto. Quando a mãe adoece, ele aprende a morte. Elas me observam com o canto do olho, temerosas de que
fazer os curativos e a limpar os drenos, administra seus remédios e eu desmanche com palavras o frágil equilíbrio de seu milagre.
prepara o café-da-manhã. Quando ela se torna mais fraca, passa a É início de abril, e Ailce está feliz porque o apetite voltou. É re-
lhe dar banho. “Não fica com vergonha da mãe”, diz Ailce. “A mãe sultado do tratamento paliativo, que ameniza os sintomas. “Repeti
também deu muito banho em você.” É esse filho silencioso, com a o prato na hora do almoço”, anuncia. Ailce mima suas orquídeas,
coragem de enfrentar a carne da mãe, que transforma o horror da conversa com as plantas, comparece às festas de família, quer
doença num carinho cotidiano. Pelo toque, ele torna possível para comprar roupas novas. Suspira por atos banais, mas que agora
Ailce suportar um corpo em que a bile escorre no lado externo. se enchem de raridades: um banho de chuveiro sem preocupação
Ao igualar-se a um corpo infantil para vencer a interdição entre mãe com os fios; dormir de bruços, que já não pode mais. Ailce vive
e filho, Ailce assinala a perda do feminino nela. “O tumor me tirou dias ensolarados. Está comendo, está curada.
tudo. Eu perdi peito, bunda, cintura, tudo”, diz. Ailce agora se preo- E eu também preciso comer. Ela não permite que eu saia de
cupa cada vez menos com a nudez de um corpo que a trai de todas sua casa sem antes repetir o bolo. Criada no interior, esse é um ri-
as maneiras possíveis. E que parece pertencer somente à doença. tual que compreendo. Só mais tarde percebo que, para Ailce, ofe-
A figura miúda de Luciane está sempre no centro. Como a recer comida é a chave de uma vida. Ela tornou-se merendeira
mãe, ela encontra sentido na ação. Depois de crescida, apazi- de escola depois de passar num concurso público com nota 9,5.
guou-se com o sobrenatural virando mãe-de-santo no candom- Por 27 anos ela alimentou crianças carentes. Na segunda-feira, aco-
blé. Luciane vasculhou a história da família e descobriu que a lhia-as com uma caneca de leite, para que tivessem forças de entrar na
avó materna era cigana. No Rio de Janeiro, onde vive com o sala de aula. Era dela a missão de mantê-las vivas, era ela quem operava
marido, Jorge, faz uma festa anual em homenagem a uma an- o milagre de fazer crianças quase desmaiadas correr pelo pátio. s
18 de agosto de 2008, época > 71
EP535p068a074.indd 71 14/8/2008 01:42:55
13. Saúde e bem-eStar morte
Ailce adorava isso. Seu pai queria pagar seus estudos de professora, A médica abraça Ailce com carinho. O sol atravessa a janela e bate
ela não quis. Queria ser enfermeira, não conseguiu. Encher a barriga diretamente nas duas mulheres sentadas uma diante da outra, ilumina-
de crianças famintas emprestava grandeza a sua vida. “Nunca cheguei das como num palco. Ailce começa: “Eu não sei o que eu tenho” Goretti
.
atrasada, trabalhava doente porque precisavam de mim. Eu fazia sopa, Maciel responde:“Você não lembra a nossa primeira conversa?” Ailce não
.
leite com cacau, sagu. Às vezes, fazia seis caldeirões de 40 litros. E as lembra.“Eu lhe contei que tinha uma pedra no meio do caminho.”Ailce
crianças comiam tudo, com tanto gosto. Ficavam sábado e domingo ouve a explicação de novo – e de novo seus olhos acompanham a mão
sem se alimentar e na segunda-feira muitas desmaiavam. Eu não po- da médica riscando no papel a arquitetura da morte dentro dela. Ela diz:
dia fazer nada fora da escola, mas dentro elas comiam à vontade.” “Mas não dá para pular aqui por cima e juntar aqui?” Goretti diz:“Infeliz-
.
Antes de ser enviada para a Enfermaria de Cuidados Paliativos, mente não dá para fazer um viaduto” Dessa vez, Ailce não recua: “Então
.
um médico, sem coragem de contar a ela a verdade, lhe disse: “Você não tem cura? Então isso vai até quando...” E interrompe a frase.
.
precisa comer bastante para ganhar peso. Então, quando estiver mais Toca o celular da médica. A música é a trilha do filme Missão:
forte, vamos operá-la”. Ele não sabe o que fez. Comer, ficar forte e Impossível. Ela desliga.
melhorar é o mantra de Ailce. Entre um médico que lhe acenou com “Paliativo vem de palium, que quer dizer manto”, diz a médica. “É o
a possibilidade de cura e todos os outros que só têm a verdade para que a gente faz aqui: jogamos um manto sobre a doença. O tumor vai
dar, é óbvio que ela acredita no primeiro. lançando toxinas pelo corpo e isso provoca sintomas. Os medicamen-
Em meados de maio, Ailce piora. Os enjôos retornam, a comida tos disfarçam os sintomas. Mas um dia não vamos mais conseguir
não passa na garganta. A equipe de visita domiciliar do Serviço de amenizá-los. Quando esse dia chegar, meu compromisso é que a gente
Cuidados Paliativos é cada vez mais assídua. Desentope os drenos, nunca vai abandoná-la. Vamos cuidar de você até o fim.”
faz curativos, resolve o que é possível para que Ailce não gaste seus Ailce deixa o consultório ereta, os olhos secos. Está de salto alto.
dias no hospital. Os medicamentos são substituídos em consultas Dessa vez, se apóia no meu braço. Mas ainda é ela: “Será que se eu
ambulatoriais, mas ela está numa fase crítica. engordasse um pouco não daria para fazer ci-
O desespero por não conseguir comer a con- rurgia?”. Desta vez, me sinto autorizada a falar:
some, pede às médicas que lhe dêem remédio
“para abrir o apetite”. Mas nenhuma comida
“A história “Ouvi tudo o que a médica disse. Não importa se
a senhora está gorda ou magra. Não é culpa sua.
é preparada do jeito que ela instruiu, não há que você está O tumor é que está num lugar do qual não pode
tempero que não se torne amargo em sua boca.
Culpa então a mulher que ocupa seu lugar na escrevendo ser retirado”. Ela então me olha com a esquina
do olho e diz: “Acho que já tinham me contado.
cozinha por não conseguir fazer por ela o que
passou a vida fazendo pelas crianças desmaiadas. sobre mim Mas não dá pra lembrar de tudo”.
Em julho, Ailce não sai mais da cama, nem
Na intimidade da casa é um tempo de grandes está chegando mesmo abre a janela. Mergulhada numa escu-
ao fim?”
dramas para as duas mulheres. Ailce está num ridão que não depende da rotação do planeta, ela
lugar insuportável: ela, que sempre alimentou prefere deixar o sol do lado de fora. Usa fraldas
a todos, morrerá porque não consegue comer. porque não alcança o banheiro, tem frio mesmo
Ailce mede 1,40 metro, mas briga como se tivesse tamanho de joga- quando faz calor. Mas ainda conta histórias e não me deixa sair de
dora de vôlei. Em junho, é difícil para ela botar uma perna na frente sua casa sem repetir o bolo.
da outra. Mas caminha. Tremendo, cheia de fúria. “Tira a mão do meu Na segunda-feira 14 de julho, seu quarto tem cheiro de morte. E
braço que eu ando sozinha”, diz. “Mas a senhora cai”, preocupa-se a seu corpo parece menor sobre a cama. “Meu tempo está acabando”,
filha. “Não caio.” A filha tenta lhe dar café. Ela fecha a boca. “Eu mesma ela diz. E eu sei que é verdade porque ela parou de brigar. A revolta se
tenho de tomar.” Derruba, mas é ela quem segura a xícara. Pergunto extingue dentro dela, a voz se suaviza. Quando ela toma água, ainda
porque isso é tão importante. “Eu tenho de ser eu”, diz ela. segurando o copo, o gosto é amargo. Ela sempre temera a dor, e a dor
Nessa época, Ailce beira o impossível: tinha “esquecido” a doença, havia chegado. “Estou ferida por dentro. Sinto cheiro de podre.”
mas a doença não a esquecera. Culpa os médicos porque não vê Ailce descreve todas as mortes da família. Do pai, que morreu em
“progresso”. A família cogita consultar outros profissionais. Em casa, da mãe, no hospital, do marido, de doença de Chagas, do irmão,
seguida, desiste. Teme o que ouvirá no final da consulta. num acidente. Depois desse inventário do fim, ela conclui: “Agora sou
eu que estou no finzinho”.
Então a tempestade chegou. Na manhã de 19 de À noite, a dor aumenta. Ailce pede à filha que chame o Preto Velho.
junho, depois de uma noite de sonhos desencontrados, Ailce Quando a entidade que assume muitos nomes nas religiões afro-
anuncia que quer morrer. Não acredito que queira. O que está brasileiras se manifesta, pela boca de Luciane, Ailce pede: “Me leva.
dizendo, pelo avesso, é que quer viver. Do jeito dela, pede ajuda. Nada mais me prende neste mundo”. O Preto Velho brinca com ela.
Nos encontramos na lanchonete do hospital. Ela tem os olhos “Não é tão fácil assim, minha filha. No céu tem fila. Vou ver se consigo
cheios de lágrimas, as mãos tremem. Duas desconhecidas lhe uma vaguinha para você cuidar das crianças.” Nesse contrato místico,
falam de Deus. Invocam o “deus do impossível”. PretoVelho promete a Ailce que a levará ainda naquela semana.
À espera da consulta no ambulatório, Ailce revolta-se: “Que- Pensei muito em como descrever essa noite. Cheguei à conclusão
ro uma definição. Não vejo melhora. Por que não amarram isso que a morte é dela. Ailce tem uma fé bem ecumênica. Desde que
dentro de mim?”. Ailce não só esquecera o que os médicos lhe adoecera, ela nunca recusou ajuda espiritual. Toda semana recebia
explicaram muito tempo antes, como esquecera também o que hóstia de voluntárias católicas, e sempre abriu a porta para padre
havia contado a mim menos de dois meses atrás. Pela primeira e pastor. Mas é quem ela chama de Preto Velho que a conforta na
vez, interfiro: “Fale tudo o que está sentindo nessa consulta. Tire noite mais longa de sua vida. “Eu vou, mas volto”, diz. “Vou segu-
todas as suas dúvidas”. rar sua mão e preparar um caminho de lírios pra você passar. s
72 > época , 18 de agosto de 2008
EP535p068a074.indd 72 14/8/2008 01:42:55
14. cenaS do viver
Ailce passou seus
últimos meses
circunscrita à casa
que construiu com
sacrifício. Às vezes,
a casa se torna uma
prisão, como na
foto à esquerda. Em
outras, testemunha
pequenas
delicadezas, como
nas duas fotos logo
abaixo: a filha,
Luciane, dança
para a mãe num
ritual cigano em sua
homenagem, e
Ailce cozinha para o
único neto, Ramom
cenaS do morrer Em 14 de julho, Ailce
percebeu que seu tempo tinha acabado. No dia
seguinte, foi levada ao Hospital do Servidor Público
Estadual para morrer sem dor na Enfermaria de
Cuidados Paliativos. Na foto abaixo, seu filho,
Marcos, mostra a imagem da mãe num espelho. Ao
lado, parentes e amigos contam histórias de sua vida
18 de agosto de 2008, época > 73
EP535p068a074.indd 73 14/8/2008 01:43:53
15. Saúde e bem-eStar morte
morte Enquanto a filha lhe sussurra palavras de amor, ela fixa o olhar em sua última cena. Às 15h50 de 18 de julho, o tempo de Ailce acaba
Nós estamos velhinhos. Empresto minha bengala e meu banquinho. Ela abre os olhos, balbucia: “Eu também te amo”. E volta a dormir.
Quando eu cansar, você levanta e eu sento. Quando você cansar, eu “A gente dormia na mesma cama de armar, na cozinha”, conta uma
levanto e você senta. Seu corpo está doente, sua alma está limpa. amiga. “Eu namorava um rapaz que era a cara do Elvis Presley e ela
Você é uma flor.” namorava o Maurício, um loiro de olhos claros.” Ri e chora. “Meu
Na manhã seguinte, Ailce despede-se de sua casa. Desce a escada pai era muito apaixonado por ela”, diz Luciane.
carregada, seus pés estão descalços e não mais encostam no chão. Uma fotografia desse momento mostra Ailce na cama e a família
Lourdes soluça. E promete fechar bem a porta. A papagaia já não ao redor. Há um movimento em cada um deles, nela nenhum. Eles
come. E o cachorro Dunga, chorando, se esconde dentro da casinha. falam dela, mas ela não está lá. Ailce se retira do palco, e a vida de
Na despedida da mulher que a habitava, a casa parece agonizar. todos seguirá sem ela. Fragmentos de sua vida esvoaçam a seu redor
No hospital, Ailce me pede que arranque suas meias do pé. “Não em forma de lembranças enquanto ela morre. Mas Ailce ainda es-
gosto de me sentir presa”, afirma. Ela está morrendo e suas unhas cuta. Abre os olhos sempre que alguém pronuncia o nome do neto.
estão pintadas de cor-de-rosa. Pergunta: “A história que você está E, quando ficamos sozinhas, eu digo: “Muito obrigada por ter me
escrevendo sobre mim está chegando ao fim?”. Eu me acovardo: “Não contado sua história. Eu vou escrever uma história linda sobre sua
sei”. Seus olhos amarelos me perfuram. “Não sabe?” Eu minto: “Acho vida. E nunca vou me esquecer de você”. Percebo então que ninguém
que não falta mais nada”. Ambas sabemos que falta a morte. confiara tanto em mim. Muitas vezes eu fui a única testemunha de
Eu preciso dizer: “E é uma vida bonita”. Ela pede confirmação: sua vida. Eu escreveria sua história, e ela estaria morta.
“Você acha?”. Eu asseguro: “A senhora brigou pelo que queria, criou Na sexta-feira 18 de julho, Ailce desperta depois do banho. Está
seus filhos, construiu sua casa, matou a fome de tantas crianças. A inquieta. É difícil entender o que diz. Pede água, mas agora é preciso
senhora viveu”. Ela conclui: “E nunca pedi nada para ninguém”. umedecer um pedaço de gaze e colocar entre seus lábios. Já não
há movimento nos drenos, seu corpo está parando de funcionar.
Os remédios fazem efeito e ela escorrega para um sono Ailce se contorce, começa a arrancar a roupa. Fica nua. No final da
tranqüilo. A médica Veruska Hatanaka esforça-se para que ela manhã, a médica Juliana Barros a liberta dos fios sintéticos de sua
não sinta dor, mas que consiga se despedir. É uma arquitetura vida, agora inúteis. Ailce finalmente está livre.
química delicada. Luciane tem 40 graus de febre, Marcos traz Quando os filhos chegam, Ailce os reconhece. Ela esperava por eles.
a mulher para se reconciliar com a sogra. Ailce pergunta pelo Então volta a dormir. Às 15h50 ela abre os olhos de repente. Está lúcida.
único neto, Ramom. Às vezes, acorda para pedir água e faz ques- Enquanto seus olhos erram pelo quarto, Luciane diz: “Vamos dançar,
tão de segurar o copo. “A água está mais doce agora”, diz. Ailce mãe. Vamos botar nossa roupa pra gente dançar. A senhora está linda
já não come. E isso não mais a machuca. Mas, ao abrir os olhos, vestida de cigana. Já curou, mãe. Não tenha medo, eu estou segurando
tarde da noite, ela pergunta se eu comi. a sua mão. Vou lhe ajudar a atravessar. Está todo mundo esperando
Na quarta e na quinta-feira, Ailce quase só dorme. Ao redor dela se pela senhora. Eu te amo tanto, mãe. Muito obrigada por tudo”.
alternam os irmãos, os vizinhos, os amigos. Eles contam histórias da A filha desenha com pétalas brancas o contorno do corpo da
vida dela. Seu irmão caçula coloca uma mão grande sobre seu rosto e mãe. O olhar de Ailce é de infinita tristeza. Seus olhos vagam pelo
chora: “Eu te amo muito. Você quer que eu traga um café para você?”. quarto e se cravam na câmera. E sua respiração apaga devagar. u
74 > época , 18 de agosto de 2008
EP535p068a074.indd 74 14/8/2008 01:44:08