SlideShare ist ein Scribd-Unternehmen logo
1 von 383
Downloaden Sie, um offline zu lesen
ANTON TCHEKHOV
UM DRAMA NA CAÇA
&
Outros Contos
Tradução: J. Ferreira Mezes
ANTON TCHEKHOV
UM DRAMA NA CAÇA
© 1936 by Tchekhov, Anton
Classificação: Rússia – Séculos XIX e XX - Ficção
Título Da Edição Francesa: Un Drame À La Chasse
Publicado em: 2004
Tradução: J. Ferreira Mezes
Anton Pavlovitch Tchecov nasceu em Taganrog, 29 de janeiro de 1860 faleceu — Badenweiler, 15 de julho de 1904
Foi um médico, dramaturgo e escritor russo, considerado um dos maiores contistas de todos os tempos.
Em sua carreira como dramaturgo criou quatro clássicos e seus contos têm sidos aclamados por escritores e críticos.Tchecov foi
médico durante a maior parte de sua carreira literária, e em uma de suas cartas ele escreve a respeito:
"A medicina é a minha legítima esposa; a literatura é apenas minha amante."
Tchecov renunciou do teatro e deixou de escrever obras teatrais após a péssima recepção de A Gaivota em 1896, mas a obra foi
reencenada e aclamada em 1898, interpretada pela companhia Teatro de Arte de Moscou de Constantin Stanislavski que
interpretaria também Tio Vânia , As Três Irmãs e O Jardim das Cerejeiras.
Conversão & Formatação:
Fonte usadas no eBook: ContreraMinionPro - HelveticaNeueLT Std - Corpo 12
Requisitos do sistema:
Adobe Digital Editions Download: Adobe Digital Editions
- Readers for ePub3 Extensão para o Google Chrome:Download
ISBN 972-38-2720-4 (recurso eletrônico)
1. Romance Russo. 2. Livros eletrônicos.
ANTON TCHEKHOV
ROMANCISTA POLICIAL
É desnecessário apresentar seja a quem for, em qualquer parte do mundo, o grande contista, novelista e dramaturgo russo que foi
Anton Pavlovitch Tchekhov (1860-1904).
Descendente de servos libertados, filho de um merceeiro - que, na sua loja, também vendia bebidas a copo e medicamentos -,
Anton, nascido em Taganrog, na costa do Mar de Azov, licenciou-se em Medicina aos 24 anos e, logo após, dedicou-se a escrever
pequenos contos. O seu enorme talento não tardou a ser reconhecido e, admitido como colaborador de um dos mais prestigiosos
jornais literários da Rússia (o Novie Vremia), a fama de Tchekhov não parou de crescer. Entre as suas obras mais divulgadas
contam-se "a Estepe" 1888) e as peças "A Gaivota" (1896), "O Tio Vânia" (1897) e " O Jardim das Cerejeiras" (1903).
"Um Drama na Caça" - tido por alguns como o único romance escrito por Tchekhov - é uma das suas primeiras produções
publicadas. Foi servido aos leitores do Nôvosti Dnia, em folhetins, no ano de 1884 e 1885 e, para assinar a obra, o autor serviu-se
de dois pseudónimos: "Ante" e, Depois, "Antone Tchekonnte".
O romance ficou esquecido durante vários anos, tendo sido omitido pelo próprio Tchekhov quando, em 1899, cedeu ao (bem
nomeado) editor Marx os escritos das suas "Obras Completas", em dez volumes. A reedição, dita "da Niva", de 1903, embora
agregasse novos textos e compreendesse 16 tomos, também não acolheu "Um Drama na Caça". Em 1930, o Governo da URSS
descobriu a narrativa e, finalmente, incluiu-a em novas "Obras", desta vez verdadeiramente "completas", se bem que comprimidas
em 13 volumes.
Ao Ocidente, o romance só chegou em 1936, quando a "Librairie Plou" editou Un Drame à la Chasse (Histoire vraie), como
apêndice, hors série, nos vinte volumes das "Oeuvres Completes d'Anton Tchékov" e, como aqueles, traduzido por Denis Roche.
Se bem que o romance exiba já as características que iam tornar ímpar a obra de Tchekhov, é manifesta a influência exercida
sobre o autor pela produção de outro folhetinista, então muito em voga: Émile Gaboriau, "pai"
do roman policiair. Logo numa das páginas iniciais, é
nomeado o agente Lecoq que, como se sabe, protagonizou várias obras de Gaboriau e é considerado, ainda hoje, como principal
candidato à sucessão, em termos cronológicos, do chevalier Dupin, de Edgar Poe.
Com a publicação desta obra - que por si só enobrece a Ficção Policial -, a colecção Vampiro homenageia Tchekhov no
centenário da sua morte.
Deixemos o leitor deliciar-se com a narrativa deste grande nome da Literatura Universal. Depois de dobrada a última folha - mas,
adverte-se, só depois - quem quiser saber mais sobre "Um Drama na Caça" poderá consultar o posfácio dedicado ao seu
pioneirismo.
Sumário
Anton tchekhov
Livro
(Extractos Das Memóriasde Um Juiz De Instrução Criminal)
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Comentário
Posfácio
A Aposta
I
II
A Condecoração
A Corista
A Enfermaria Número Seis
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII
XIV
XV
XVI
XVII
XVIII
XIX
A Esposa
A Feiticeira
A Jóia Roubada
A Morte do Funcionário
A Mulher Do Farmacêutico
A NOIVA
I
II
III
IV
V
VI
ANGÚSTIA
A OBRA DE ARTE
Borboleta
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
Brincadeira
Dô-doce(1)
Livro de Reclamações
No Mar da Criméia
I
II
III
IV
V
O Adulador
O Bilhete De Loteria
O Bispo
I
II
III
IV
O Caçador
O Monge Negro
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
O Orador
O Sapateiro e a Força Maligna
O Vingador
Olhos Mortos De Sono
Os Nervos
Pamonha>
Um Assassinato
I
II
III
IV
V
VI
VII
Um Caso Médico
Vanka
Vizinhos
LIVRO
(EXTRACTOS DAS MEMÓRIASDE UM JUIZ DE INSTRUÇÃO
CRIMINAL)
-Q
PRÓLOGO
k
ual é o assunto da sua obra? - perguntei, com displicência, ao cavalheiro elegante,
extremamente ágil e desembaraçado, chamado Ivan Kamichov que, com di culdades
nanceiras e embora se confessasse um principiante, viera propor-me a publicação de um
volumoso manuscrito.
— Que posso dizer-lhe?... O tema não é novo... Amor...
assassínio... Leia-o e o senhor mesmo verá... São ; memórias de um juiz de instrução criminal...
Devo ter franzido as sobrancelhas porque Kamichov pestanejou, teve um sobressalto e
acrescentou, de pronto:
- A minha história está escrita em velho estilo . policial, mas relata um facto real... verdadeiro.
Tudo o que evoco passou-se perante os meus olhos, desde o princípio até ao m. Fui testemunha
do sucedido e cheguei mesmo a tomar parte no caso...
- O importante não é a verdade e tão-pouco é indispensável ter visto um acontecimento para o
descrever de forma adequada. O nosso público está farto dos romances de Gaboriau e de
Chkliarevski. Farto de assassínios misteriosos, de detectives perspicazes e de sagazes juízes de
instrução. E claro que há leitores e leitores; falo dos que lêem o nosso jornal e os seus folhetins.
Qual é o título da sua história?
— "Um Drama na Caça".
— Ora, meu caro senhor, isso não é um título que se veja!... E, na verdade, tenho já tantos
originais para publicar que me é praticamente impossível aceitar outros, por melhores que sejam.
— Apesar de tudo, senhor, que com o meu manuscrito... Disse não ser coisa que se veja, mas
pode quali cá-lo dessa forma, antes de o ter lido?... E por que razão não quer admitir que até os
juízes de instrução saibam escrever a sério?
Kamichov gaguejava, fazia girar um lápis entre os dedos e tinha o olhar xo nas biqueiras dos
sapatos.
Acabei por sentir pena dele.
— Muito bem... Deixe-me, então, o seu manuscrito, mas não posso prometer-lhe lê-lo
imediatamente. Vai ter de esperar...
— Por muito tempo?
— Não sei ao certo... Volte dentro de dois ou três meses...
— Oh, tanto tempo! Bom, não me atrevo a insistir...
Esperarei.
Levantou-se e pegou no seu gorro, um gorro de funcionário público.
— Agradeço-lhe por me ter recebido - acrescentou.
— Tenho de alimentar esperanças... esperanças durante três meses... Não quero, contudo,
roubar-lhe mais tempo...
Queira aceitar os meus cumprimentos.
— Um momento! - exclamei, depois de ter folheado o grosso maço de folhas manuscritas com
letra miúda.
— A sua narrativa está escrita na primeira pessoa.
O juiz de instrução é o senhor mesmo?
— Sou, sim, mas sob nome suposto. O meu papel, neste caso, foi um tanto confuso... Teria sido
desagradável figurar nele com o meu nome verdadeiro... Daqui a três meses, não foi o que disse?
— Sim, pelo menos.
— Despeço-me, desejando-lhe as maiores felicidades.
O ex-juiz de instrução saudou-me com um cortês aceno de cabeça, fez girar delicadamente o
fecho da porta e desapareceu, deixando o seu manuscrito em cima da minha secretária. Guardei-o
numa gaveta e ali permaneceu durante dois meses.
Por ocasião de uma viagem que tive de fazer, lembrei-me dele e levei-o comigo. No comboio,
comecei a leitura a meio e o que li despertou a minha atenção. Nessa mesma tarde, se bem que me
escasseasse o tempo, li toda a narrativa desde as primeiras linhas até à palavra "Fim", escrita em
letra gorda e com notória energia. A noite, voltei a ler a história e a madrugada surpreendeu-me a
passear pela varanda, esfregando as frontes como que para afastar do espírito um pensamento
inesperado e a itivo... Era, com efeito, uma ideia dolorosa, quase insuportável... Embora não seja
juiz de instrução nem doutorado em Psicologia julgava haver descoberto um segredo atroz, um
segredo em relação ao qual não sabia o que fazer. Perturbado, passeei pela varanda, de um lado
para o outro, procurando persuadir-me de que não devia atribuir exagerada importância ao que,
segundo pensava, havia deduzido.
A história acabou por ser publicada no jornal que dirijo pelos motivos que, mais adiante,
revelarei aos leitores. Por agora proponho apenas que leiam a obra de Kamichov.
Não é, decerto, nada de extraordinário e nem sequer está isenta de redundâncias e de
imperfeições... O autor preocupa-se, por vezes, com frases de impacto... Vê-se que escreve pela
primeira vez e que não é particular mente destro no uso da pena, mas o seu relato é de fácil leitura.
Há um tema, uma ideia mestra e, o que é original, trata-se de uma narrativa "sui generis"... Em
resumo, vale a pena lê-la. Aqui fica.
k
-O
CAPÍTULO 1
k
marido matou a mulher! Ah, que estúpidos são vocês!... Passem-me o açucareiro!
Aquelas exclamações acordaram-me. Espreguicei-me e senti um certo mal-estar e os
membros tolhidos... Pode sentir-se um braço dormente, ou uma perna, mas, daquela vez,
parecia-me que todo o meu corpo estava tolhido, da cabeça aos calcanhares. Uma sesta num
ambiente sufocante, de estufa, no meio dos zumbidos das moscas e mosquitos acaba por nos
enfraquecer, em vez de nos recompor.
Alquebrado, banhado em suor, levantei-me e dirigi-me para a janela. O Sol, ainda alto,
queimava com o mesmo ardor de três horas antes. Faltava bastante tempo para que se ocultasse por
detrás do horizonte, dando lugar à frescura da noite...
— O marido matou a mulher! - gritei, dando um ligeiro piparote no bico do papagaio. - Pára de
mentir!...
Os maridos, meu caro, só matam nas novelas ou nos trópicos, onde fervem paixões africanas!
Quanto a nós, bastam-nos os horrores dos roubos por arrombamento ou das falsi cações de
identidade!
— Roubos por arrombamento! - repetiu Ivan Demianitch com o seu bico adunco. -Ah, que
estúpidos são vocês!
— Que queres, meu amigo? Que culpa temos se o nosso cérebro é tão limitado? Não é nenhum
crime, Ivan Demianitch, ser estúpido com um calor tão sufocante.
Tu és muito esperto, meu caro, mas o teu cérebro também se derreteu. O calor pôs-te idiota.
Toda a gente trata o meu papagaio por Ivan Demianitch. Adquiriu esse nome por casualidade
no dia em que o meu criado Policarpe, ao limpar a gaiola, fez uma descoberta sem a qual o meu
nobre pássaro continuaria a chamar-se simplesmente "o papagaio"...
Policarpe apercebeu-se, de súbito, que o bico da ave era assombrosamente parecido com o nariz
de Ivan Demianitch, o merceeiro da terra.
E, a partir desse dia, o nome e o apelido do comerciante de nariz grande caram para sempre
ligados ao papagaio. A descoberta de Policarpe incorporou o animal no género humano e, ao
mesmo tempo, o merceeiro, perdendo o nome, passou a ser, na boca da gente da aldeia, o
"papagaio do senhor juiz de instrução".
Comprei Ivan Demianitch à mãe do meu antecessor, o juiz de instrução Pospielov, juntamente
com a velha mobília de carvalho, a bateria de cozinha e todos os artefactos de Pospielov, falecido
pouco tempo antes da minha nomeação. Ainda agora as paredes da minha casa estão ornadas com
fotogra as dos seus parentes e, por cima da cama, encontra-se pendurado o retrato do anterior
proprietário. Não cessa de me tar, quando estou deitado... Em resumo: não tirei nenhuma
fotogra a das paredes e o apartamento encontra-se tal como no dia em que o tomei de
arrendamento. Sou demasiado preguiçoso para me preocupar com o conforto e não estou
minimamente interessado em negar, seja aos mortos seja aos vivos - se for essa a sua vontade -, o
privilégio de continuarem pendurados nas paredes da minha casa.
O papagaio achava-se tão incomodado com o calor como eu. Espanejava a plumagem, abria as
asas e repetia as frases que lhe haviam sido ensinadas pelo meu antecessor e por Policarpe.
Para me entreter pus-me a observar os movimentos do pássaro, procurando, como podia, evitar
o tormento do calor e dos insectos que se haviam introduzido nas suas penas. Parecia muito infeliz.
Da antecâmara chegou-me aos ouvidos uma voz grave.
— A que horas acorda?
— Depende - respondeu Policarpe. - Por vezes, às cinco, mas em outras ocasiões, ca a dormir
até de manhã... É natural. Não tem nada que fazer...
— O senhor trabalha para ele?
— Sou o seu criado. Mas basta de conversas... Estás a incomodar-me. Não vês que estou a ler?
Dirigi-me à antecâmara. Sobre a grande arca encarnada, Policarpe, como de costume, lia um
livro.
Com os olhos semicerrados, muito próximo das páginas impressas, movia os lábios e franzia as
sobrancelhas.
A presença de um estranho, um mujique barbudo, de alta estatura, que procurava em vão
prolongar a conversa, enfastiava-o visivelmente. Ao ver-me, o campónio afastou-se da arca, e
assumiu uma atitude ] reverente. Sem tirar os olhos do livro, Policarpe, com ar aborrecido,
soergueu-se.
- Que queres? - perguntei ao mujique.
- Venho da parte do senhor conde, Excelência. O
senhor conde dignou-se enviar os seus cumprimentos a Vossa Excelência, informando-o de que
deve apresentar-se imediatamente em sua casa.
- O conde já regressou? - perguntei, surpreendido.
- Exactamente, Excelência... Regressou ontem à
noite. Aqui tem uma carta dele.
— Foi o Diabo que o trouxe de volta! - grunhiu Policarpe. - Enquanto esteve longe passámos
dois Verões tranquilos. Agora que regressou, vai reabrir a sua pocilga. Que pouca vergonha!
— Cala-te! Ninguém pediu a tua opinião.
— Mesmo assim, digo o que tenho a dizer! Vão voltar as bebedeiras! Vão voltar os banhos no
lago, com a roupa vestida!... E depois: "Policarpe, limpa!" É trabalho para três dias, pelo menos...
— Que faz hoje o senhor conde? - perguntei ao campónio.
— Encontrava-se à mesa, quando me ordenou que viesse até aqui. E, antes de ir comer, esteve a
pescar à
linha, no pavilhão dos banhos... Que resposta deseja que lhe transmita? : : ; Abri a carta e li: : . )
Meu caro Lecoq: (1)
, Se ainda estás vivo e de saúde, e se não te esqueceste do teu sedento amigo, sai do claustro em
que vives e corre para minha casa. Regressei esta ; noite e já morro de tédio. A impaciência com que
te ; aguardo é in nita. Gostaria de ir, eu próprio, buscar- -te e trazer-te até ao meu covil, mas este
calor deixa- -me sem forças. Sofro e fico a abanar-me com o leque.
Como está o teu engenhoso Ivan Demianitch? E tu?
: Continuas em guerra perpétua com o irascível Policarpe? Vem, tão depressa quanto possível,
para me dares as respostas.
Teu A. K.
(1)
O agente Lecoq, um dos mais notáveis detectives dos primórdios da Ficção Policial, divide, com o
Père Tabaret e o chefe Gevrol a investigação de L'Affaire Lerouge (1863). Em seguida, assumiu-se como
principal personagem dos restantes romans policiers de Émile Gaboriau, desde Le Dossier 113 (1867) a La Corde
au Cou (1873). (N. do T.)
Não era necessário decifrar a assinatura para que eu reconhecesse a caligra a grande e fria
traçada pela mão insegura do alcoólico inveterado Alexei Karnieiev.
A brevidade da carta e a sua aparente jovialidade levaram-me a pensar que o meu pouco
inteligente amigo havia rasgado muitas folhas de papel, antes de conseguir escrever aquele texto.
Com astúcia, havia evitado as formas gramaticais e as palavras não conseguidas à
primeira vez.
— Que resposta deseja que eu transmita ao senhor conde? - insistiu o mujique.
Pensei durante uns momentos; qualquer homem honesto, no meu lugar, teria também
hesitado.
O conde gostava de mim e buscava sinceramente a minha amizade; comigo passava-se o
contrário. Por conseguinte, teria sido mais honesto romper, de uma vez por todas, tal relação de
amizade, não levando por diante aquele jogo hipócrita. Ir visitá-lo equivaleria, decerto, a mergulhar
de novo naquela maneira de vida que Policarpe equiparara a uma pocilga e que, antes da ida do
conde para São Petersburgo, havia minado a minha saúde, em regra perfeita, e debilitado o meu
cérebro.
Essa vida desregrada e insólita, embora não me tivesse arruinado de nitivamente o organismo,
granjeara-me, contudo, uma nefasta celebridade na religião. A consciência não me iludia e, ao
recordar o passado, corei de vergonha. Apesar disso, a minha hesitação não durou muito.
— Cumprimenta o senhor conde e agradece-lhe da minha parte o facto de se ter lembrado de
mim - respondi.
- Diz-lhe que estou muito ocupado e que... Diz-lhe que...
No momento em que os meus lábios iam proferir um "não" fui assaltado por uma lembrança
penosa: a da angústia e solidão de um homem jovem e cheio de vida que as circunstâncias haviam
obrigado a enterrar-se numa zona rústica e sem atractivos.
Recordei-me dos jardins do conde com os seus sumptuosos jardins de Inverno e os seus
carreiros estreitos e poéticos. Conhecia bem esses carreiros protegidos do sol por uma abóbada de
velhas tílias cuja folhagem se entrelaçava. Conhecia também algumas mulheres que haviam
procurado dar-me o seu amor naquela penumbra...
Recordei-me igualmente do salão luxuoso e do delicioso conforto dos seus sofás de veludo, dos
pesados reposteiros e das alcatifas fofas; recordei-me de tudo isto com a languidez de um animal
jovem e saudável. E, por fim, recordei-me da ousadia que me dava a embriaguez, acompanhada por
uma satânica soberba e por um profundo desprezo pela vida.
E todo o meu corpo, fatigado de tanto dormir, aspirou de novo à agitação de outrora...
— Diz-lhe que irei visitá-lo.
O mujique inclinou-se e saiu.
— Se tivesse sabido ao que vinha :- resmungou Policarpe, folheando precipitadamente o seu
livro - não teria deixado entrar esse diabo!
— Põe o livro de lado e vai preparar a Zorka - ordenei, em tom severo. - E depressa!
— Depressa? Não querem lá ver? Julga que vou a correr? Ainda se fosse para alguma coisa de
útil... mas não, é para levar uma alma de volta ao Inferno...
A última frase foi dita entre dentes, mas com a nitidez su ciente para que eu a ouvisse. Depois
de articular aquela insolência, o meu criado levantou-se com um sorriso, como se esperasse
desdenhosamente um comentário enérgico da minha parte.
Eu, porém, z de conta que não ouvira as suas palavras. Nas minhas escaramuças com
Policarpe, o silêncio é a minha melhor arma e a mais contundente, porque o atinge com maior
eficácia do que uma pancada na nuca ou um chorrilho de palavras insultuosas.
Enquanto Policarpe saía para pôr a sela e os arreios na minha égua Zorka, deitei uma olhadela
ao livro que a minha ordem o impedira de continuar a ler. Era O Conde de Monte Cristo, esse
terrível romance de Dumas...
Aquele idiota civilizado lia tudo desde os anúncios dos jornais até August Comte, cujas obras
guardo no meu baú entre outros livros que nunca li e que renunciei a ler.
Dessa babilónia escrita e impressa, a Policarpe apenas interessavam as novelas de acção vigorosa
e terrí ca, com "cavalheiros" distintos, com venenos, com subterrâneos... Tudo o mais só lhe
inspirava desprezo.
Mas agora era necessário partir...
Um quarto de hora mais tarde, as patas de Zorka levantavam a poeira do caminho que leva da
minha casa até à casa do conde. O Sol estava prestes a esconder-se mas o calor pesado ainda se fazia
sentir. A atmosfera, em ignição, estava seca, embora o carreiro corresse ao lado de um grande lago.
À direita, havia a água, à
esquerda, um bosque de carvalhos e, apesar disso, o meu rosto parecia atravessar o deserto do
Sara.
"Vem aí uma trovoada", disse para mim próprio, antevendo, com delícia, uma boa chuvada.
O lago dormia, tranquilo. Nenhum ruído respondia ao barulho que faziam os cascos de Zorka.
Só de vez em quando o grito agudo de uma galinhola quebrava o fúnebre silêncio do gigante
imóvel.
Em certos pontos Zorka levava-me a atravessar espessas nuvens de mosquitos e, ao longe,
apenas via moverem-se os três barquitos do velho Michei, concessionário da pesca no lago.
Tive de contornar a curva da margem do lago; só de barco é possível seguir em linha recta.
Quem vai por terra é obrigado a fazer um enorme desvio que alonga o percurso em cerca de oito
quilómetros. Sem perder de vista o lago, divisava todo o caminho: a argila branca da margem
oposta, as cerejeiras em or e, mais ao longe, o pombal do conde, repleto de pombos de várias
cores; podia lobrigar também a mancha branca do pequeno campanário da igreja.
Durante o trajecto pensei no estranho relacionamento que tivera com o conde. Teria gostado
de analisá-lo melhor, pondo em ordem as minhas ideias, mas, infelizmente era questão que
ultrapassava as minhas capacidades de momento.
Aqueles que nos conheciam explicavam de diferentes maneiras o meu relacionamento com
Alexei Karnieiev.
Os espíritos mais mesquinhos a rmavam que o ilustre conde via na pessoa de um pobre juiz de
instrução criminal, de origem humilde, um mero companheiro de bebedeiras. Segundo eles, eu
aproximava-me a rastejar da mesa do meu an trião, à espera de algumas migalhas e de ossos para
roer. Julgavam que o dalgo rico, terror e inveja do distrito, era muito engenhoso e liberal. Nunca
poderiam entender, de outro modo, a sua graciosa condescendência para com o juiz pobre e a sua
magnanimidade, aceitando que eu o tratasse por tu.
As pessoas mais sensatas, contudo, viam na nossa amizade uma comunhão de "interesses
intelectuais".
Tenho a mesma idade e estudámos na mesma Universidade. Ambos seguimos o curso de
Direito, domínio em que os nossos conhecimentos são bastante escassos. Os meus são medíocres e
o conde já se esqueceu de tudo ou afogou em álcool quanto aprendeu. Somos ambos orgulhosos e,
por razões que só nós sabemos, evitamos a convivência social, como dois selvagens. Não nos
importamos com o que os outros pensam, isto é, com o que possam pensar os habitantes do distrito
de S.
Somos imorais, um e outro, e havemos de acabar mal.
: Aí têm os "interesses intelectuais" que nos unem.
; Quem nos conhece não consegue adiantar outras , explicações. Teriam dito algo mais se
soubessem como é ! suave, débil e submissa a natureza do conde e como a minha é forte e
obstinada. E teriam acrescentado ainda mais se estivessem ao corrente de quanto aquele homem
fraco me estimava e quão escassa era a minha simpatia por ele. O conde propôs-me a sua amizade
e eu fui o primeiro a tratá-lo por tu; ele veio a fazer o mesmo, mas que diferença de tom! Ele,
numa efusão de bons sentimentos, abraçou-me e pediu-me timidamente que fosse seu amigo; eu,
um dia, cheio de nojo e de desprezo, disse-lhe:
- Deixa-te de parvoíces!
Acolheu aquela forma de tratamento como expressão da minha amizade e aproveitou o ensejo
para me pagar com um honesto e fraterno "tu".
Sim, teria sido mais correcto puxar as rédeas e regressar para junto de Policarpe e do meu
papagaio.
Teria sido, na verdade, muito melhor.
Mais tarde, pensei nisso inúmeras vezes. De quantas ; desgraças me teria livrado e que bem
teria feito ao meu ; amigo se, naquela tarde, eu houvesse tido a coragem de voltar para trás ou se a
minha Zorka, tomando o freio : nos dentes, me conduzisse para longe do terrível lago!
Quantas recordações dolorosas deixariam de assaltar-me, agora, obrigando-me, em todos os
momentos, a deixar cair a pena para levar as mãos à cabeça!
No entanto, não quero antecipar-me até porque, mais por diante, terei ocasião de evocar
lembranças dolorosas e amargas do passado. Por agora, falemos só de coisas alegres.
k
Z
CAPÍTULO 2
k
orka levou-me até à porta-cocheira da casa do conde. Ao chegar, tropeçou e eu perdi o
estribo e estive em risco de cair.
— Mau sinal, cavalheiro! - gritou-me um campónio que se encontrava perto da estrebaria.
Acredito que um homem, ao cair dum cavalo possa partir a cabeça, mas não acredito em
superstições.
Entreguei as rédeas ao mujique, sacudi com a chibata o pó das botas e dirigi-me
apressadamente para a residência.
Ninguém veio ao meu encontro. As janelas e as portas achavam-se abertas de par em par e,
apesar disso, utuava no ar um odor estranho e pesado. Era o cheiro a ba o de velhos aposentos
abandonados misturado com o agradável - mas forte e narcotizante - aroma de plantas de estufa
colhidas recentemente.
No salão nobre, sobre um dos divãs cobertos de seda de cor celeste, havia dois almofadões
amarrotados e, sobre uma mesa redonda, um copo em que restavam algumas gotas de um líquido
com forte odor a licor de Riga.
Tudo isto revelava que a casa estava habitada, mas, apesar disso, percorri as onze divisões e não
encontrei vivalma. A casa achava-se tão deserta como as margens do lago.
A grande porta envidraçada do salão - o "salão dos azulejos" - dava para o jardim. Abri-a com
força e desci para o terraço de mármore. Havia dado alguns passos no carreiro do jardim quando se
me deparou a velha Nastasia, a ama do conde. Olhando para aquela velhinha cheia de rugas,
esquecida pela Morte, calva e de olhos penetrantes, recordei-me involuntariamente da alcunha que
lhe havia a demais criadagem: Sitchikka (a coruja).
Ao ver-me, a Coruja estremeceu e por pouco não derramou o conteúdo de um copo que
segurava com as duas mãos.
— Bom dia, Sitchikka - disse-lhe.
A velhota olhou-me de través e, sem pronunciar uma palavra, seguiu o seu caminho. Agarrei-a
pelo ombro e acrescentei:
— Não tenhas medo, tonta. Onde está o conde?
Apontou para os ouvidos e fez um gesto para mostrar que não havia compreendido o que eu
lhe dissera.
— Estás surda? Desde quando?
Apesar da sua idade, a velha vê e ouve perfeitamente, mas quando lhe convém não hesita em
caluniar os seus cinco sentidos.
Ameacei com o dedo indicador e deixei-a partir.
Avancei mais alguns passos e ouvi vozes masculinas.
No sítio em que o carreiro se alargava, formando um terreiro rodeado de bancos de ferro, à
sombra de grandes acácias, fora colocada uma mesa sobre a qual refulgia um samovar. A volta da
mesa, três homens conversavam.
Aproximei-me sorrateiramente e, oculto por um maciço de lilases, procurei o conde com os
olhos.
O conde Karnieiev tomava o chá, sentado sobre almofadões. Vestia um roupão colorido - que
eu já conhecia - e na cabeça colocara um chapéu de palha de Itália. O seu rosto contraído
demonstrava inquietação, de tal forma que quem não conhecesse Karnieiev poderia supor que uma
ideia fixa ou qualquer preocupação o atormentava.
Desde a sua partida, o conde não havia mudado em nada.
O mesmo corpo franzino, magro e esguio. Os mesmos ombros estreitos, de tísico, e a mesma
cabeça pequena e ruiva. Tal como antes, o nariz vermelho e as faces ácidas que mais pareciam
trapos... Nada, na sua aparência, de ousado, de forte, de varonil... Tudo débil, apático, murcho.
Quando muito podia considerar-se ligeiramente sugestivo o seu grande bigode, de pontas
pendentes.
Alguém havia dito que lhe cava bem e o conde deixara crescê-lo; havia acreditado e, todas as
manhãs, o media para veri car quanto crescera a vegetação que sombreava os seus lábios pálidos.
Parecia um gato jovem e de grandes bigodes, se bem que demasiado débil e enfermiço.
Perto do conde estava sentado um indivíduo obeso, que eu não conhecia, de grande cabeça
rapada e com sobrancelhas negras. O rosto gordo reluzia como um melão maduro. Tinha um
bigode maior do que o do conde, testa estreita e lábios delgados. Olhava indolentemente para o céu
e a sua sionomia, se bem que jovem, era vincada e rude, tão áspera como a pele ressequida. Não
parecia ser russo. Sem casaco nem colete, o obeso indivíduo estava em mangas de camisa e
transpirava abundantemente. Em vez de chá bebia água de Seltz.
A distância respeitosa, mantinha-se uma terceira personagem: um homem encurvado,
rechonchudo, com orelhas separadas do crânio e nuca avermelhada. Era Orbenine, o administrador
das propriedades do conde.
Em honra da chegada de Sua Excelência vestira um casaco novo, de cor preta, que agora o
atormentava.
O suor escorria-lhe pelo rosto curtido. A seu lado encontrava-se o mujique que me transmitira
a mensagem do conde. Só então me apercebi de que era vesgo. Direito como um poste, hirto como
uma estátua, esperava que o interrogassem.
— Kuzma! - dizia o administrador com voz enérgica e persuasiva. - Merecias que te açoitasse
com o teu próprio chicote! É assim que cumpres as ordens do patrão? Devias ter-lhe pedido que
viesse imediatamente ou, pelo menos, averiguar quando podia vir.
— Sim, sim... - confirmou o conde, com nervosismo.
— Devias ter procurado saber tudo. Ele disse-te que viria, mas isso não basta. Preciso dele já!
Pediste-lhe que o fizesse, mas ele não compreendeu. Preciso dele imediatamente, sem tardança!
— Que necessidade tão urgente é essa? - perguntou o homem gordo.
— Preciso de vê-lo.
— Só isso? Quanto a mim, era melhor, Alexis, que esse tal juiz, permanecesse na sua casa. Não
me interessa ter visitas.
Fiquei atónito. Que significava aquele "não me interessa ter visitas" tão autoritário e paternal?
— Mas não se trata de uma visita! - exclamou o meu amigo com voz suplicante. - Não vai
impedir que repouses da tua viagem. Também não precisas de fazer cerimónia com ele. Já vais ver
que género de homem é...
Estou certo de que vão ficar amigos.
Saí detrás dos lilases e aproximei-me da mesa. O conde viu-me, reconheceu-me, e o seu rosto
abriu-se num sorriso.
— Aqui está ele! - gritou, corando de satisfação e levantando-se - Foste muito amável em vir
tão depressa.
Corri para ele, aos saltos, e o seu grande bigode arranhou-me as faces. Aos abraços seguiram-se
prolongados apertos de mão e olhares fraternos.
— Sergei! Não estás nada mudado! Sempre o mesmo belo rapaz! Agradeço-te por teres vindo...
Logo que me libertei das suas efusões cumprimentei o administrador, que já conhecia, e sentei-
me.
— Ah, meu caro - prosseguiu o conde, emocionado e contente -, se soubesses como me sinto
feliz por voltar a ver o teu rosto sisudo. Mas... não conheces este cavalheiro? Apresento-te o meu
amigo Gaetan Casimirovitch Pschekhotski. E este - continuou, apresentando-me ao sujeito gordo -
, é Sergei Petrovitch Zinoviev, juiz de instrução do distrito.
O obeso indivíduo de sobrancelhas espessas estendeu-me a sua mão enorme e suada.
— Encantado - resmungou, examinando-me de cima a baixo. - Tenho muito gosto em
conhecê-lo.
Terminados os cumprimentos, o conde serviu-me uma chávena de chá frio, avermelhado, e
colocou à minha frente uma lata de biscoitos.
— Prova... Comprei-os em Einem, quando fui a Moscovo. Estou zangado contigo, Serioja (1),
tanto que nem pretendia voltar a ver-te. Durante estes dois anos não só não me escreveste uma
linha sequer como ainda deixaste sempre sem resposta todas as cartas que te enviei.
(1)Nesta obra abundam as abreviaturas e tratamentos familiares e afectuosos, compostos a partir dos
nomes das personagens: "Serioja" por Sergei; "Olenka" ou "Olia" por Olga; "Nadenka" ou "Nadajda" por Nadia, etc.
(N. do T.).
— Não sei escrever cartas - repliquei - e, aliás, escrever-te para quê?
— Para quê?
— Sim. Só admito três espécies de cartas: as de amor, as de felicitações e as de negócios. Não
podia escrever-te as primeiras porque não sou mulher e não estou apaixonado por ti. Das segundas,
não precisas, e as terceiras têm de ser postas de parte porque não temos negócios em comum.
— No fundo, tens razão - admitiu o conde que compartilhava sempre a opinião dos demais. -
Apesar disso, porém, podias ter-me escrito duas ou três palavras.
Acresce que, segundo me disse Piotre Iegoritch, nunca passaste por cá, como se vivesses a mil
quilómetros de distância ou sentisses nojo pela minha propriedade.
Podias ter vindo até cá para caçar... Quantas coisas podiam ter acontecido aqui, durante a
minha ausência!...
O conde discorreu longamente. Uma vez lançado sobre qualquer tema, era tão infatigável a
emitir sons como o meu papagaio Ivan Demianitch. Suportei com alguma impaciência a exibição
dos seus dotes oratórios.
O que o fez parar desta vez foi o aparecimento da Ilia, o mordomo, com a sua libré velha e suja,
que, numa salva de prata, trouxe um cálice de vodca e um copo de água. O conde bebeu a vodca de
um trago, fez o mesmo com a água e, depois, esboçou uma careta e meneou a cabeça, como se
sentisse a garganta em fogo.
— Ao que vejo ainda não perdeste o hábito de te enfrascares em álcool - observei.
— Ainda não, Serioja.
— Pelo menos, evita esses ademanes de bêbedo quando bebes um copo. É absurdo!
— Vou deixar tudo isso, meu velho. Os médicos proibiram-me o álcool. Se ainda bebo é porque
faz mal parar de repente... Deve proceder-se de forma progressiva.
Examinei o rosto fatigado e enfermiço do conde, o copo vazio, o criado com os seus sapatos
amarelos, o polaco de sobrancelhas negras - que, à primeira vista e sem saber a razão, me deu a
impressão de ser um vigarista - e, por m, o mujique estrábico, hirto e silencioso e tudo aquilo
provocou em mim um sentimento de profunda angústia. Assaltou-me, de imediato, o desejo de
afastar-me daquele ambiente crapuloso, manifestando ao conde a minha imensa aversão. Estive
quase a levantar-me e a ir-me embora...
Não o fiz, contudo, talvez por simples preguiça física e agora envergonho-me desta confissão.
— Traz-me também um copo de vodca - disse ao criado.
Sobre as áleas e o terreiro começavam a estender-se as sombras. O grasnar das rãs, o crocitar
dos corvos e os silvos dos verdilhões anunciavam o pôr-do-sol. Era um entardecer de Primavera...
— Diz a Orbenine que se sente - segredei ao conde.
— Está ali, especado como uma estátua.
— Ah, não me havia apercebido disso. Piotre Iegoritch, senta-te, se quiseres. Já estás aí de pé há
muito tempo.
Orbenine sentou-se, lançando-me um olhar de gratidão. Em regra saudável e bem disposto,
naquele dia parecia adoentado e aborrecido. Tinha o rosto como que crispado e os olhos,
dormentes, pareciam revelar preguiça.
— Que novidades há por cá? - quis saber Karnieiev.
— Nada de especial?
— Nada de especial, Excelência.
— Hum! Nenhuma rapariga nova?
O administrador, envergonhado, corou.
— Não sei, Excelência... Não é coisa que me diga respeito.
— Há, sim, Excelência - disse o mujique vesgo, com a sua voz grossa, falando pela primeira vez.
- E até algumas bem interessantes.
— Bonitas?
— De todo o género, Excelência, e para todos os gostos. Morenas, loiras...
— Espera, recordo-me de ti... Leporelo, secretário para certos assuntos... Chamas-te Kuzma,
segundo creio.
— Sim, Excelência.
— Ora aí está! Lembro-me agora... E quem tens em mira? Camponesas, não é assim?
— Sobretudo camponesas, mas também há coisa melhor.
— Ah, sim? Onde descobriste tu isso? - perguntou Ilia, fitando Kuzma.
— Pela Páscoa chegou Nastasia Ivana, cunhada do guarda- orestal... Uma rapariga de belas
formas... Teria gostado de experimentá-la, mas, para isso, era preciso ter dinheiro... O seu rosto
corado e o resto... Mas há ainda coisa melhor e pode dizer-se que está à sua espera, Excelência...
Muito nova, aveludada, vivaça... Nem em Petersburgo podia encontrar outra mais perfeita.
— Quem é ela?
— Olenka, a filha do guarda-florestal Skvortsov.
A cadeira de Orbenine emitiu um estalido. Com as mãos apoiadas sobre a mesa e o rosto
congestionado, o administrador ergueu-se devagar e tou o vesgo. A sua cólera aumentava a cada
momento.
— Cala-te, miserável! - vociferou. - Fala do que quiseres mas não te metas com gente honrada!
— Não estou a falar de si, Piotre Iegoritch - replicou Kuzma, impassível.
— Não se trata de mim, imbecil! - berrou Orbenine que logo acrescentou: - Suplico a Vossa
Excelência que proíba o seu Leporelo, como apropriadamente lhe chama, de exercer a sua
actividade em relação a pessoas dignas de toda a consideração!
— Não percebo porque repreendê-lo - murmurou ingenuamente o conde. - Kuzma não disse
nada de ofensivo.
Exaltado, Orbenine afastou-se da mesa. Com os braços cruzados e a piscar os olhos, foi
esconder o rosto congestionado atrás de uns ramos.
Teria ele o pressentimento de que, num futuro próximo, o sentido da moralidade iria sofrer
ofensas muito mais contundentes?
— Não compreendo porque cou ofendido - segredou-me o conde. - Que homem estranho!
Não foi dito nada que pudesse magoá-lo.
Depois de dois anos de vida sóbria, o copo de vodca entonteceu-me levemente. Uma sensação
de bem-estar e de prazer insinuou-se no meu cérebro e no meu corpo.
Ao mesmo tempo apercebi-me da brisa fresca que, pouco a pouco, substituía o calor do dia.
Propus um passeio.
Trouxeram da casa o casaco do conde e o do seu novo amigo polaco, e partimos. Orbenine veio
atrás de nós.
O jardim é tão belo que merece descrição particular.
De todos os pontos de vista é o mais rico e grandioso de quantos tenho visto. Há grutas quase
destruídas e cobertas de musgo, fontes, pequenos lagos cheios de peixes, montanhas russas, bosques
em miniatura, estufas... Concebida pelos avós e pelos pais do conde, aquela rara profusão de
enormes roseirais, de grutas poéticas e de intermináveis carreiros foi progressivamente
abandonada, cando à mercê das ervas daninhas, dos machados dos ladrões e dos corvos que
fazem ninho nas árvores exóticas.
O legítimo proprietário do jardim caminhava a meu lado, sem que nenhum músculo da sua
cara, deformada pelo álcool, se contraísse perante tão lamentável displicência.
Só por uma vez, para dizer alguma coisa, fez notar a Orbenine que seria bom pôr areia nos
carreiros. Notava a falta de areia, mas não reparava nas árvores secas, mortas durante o Inverno
nem nas vacas que pastavam no jardim. Em resposta à observação feita pelo conde, Orbenine
respondeu que para tratar convenientemente do jardim era necessária uma dezena de homens e
que, como sua Excelência não residia ali, essa despesa constituiria um luxo desnecessário. Como era
de esperar, o conde concordou de imediato.
— Aliás - acrescentou Orbenine, com ademanes de superioridade. -, não tenho tempo para tal
coisa. No Verão, os campos, no Inverno, a cidade, para vender o trigo. Não co com tempo para
mais nada.
A principal álea do jardim, ladeada por altas e velhas tílias e maciços de magnólias, terminava
ao longe numa mancha amarelada. Era um pavilhão de pedra, onde, em tempos, houvera um
bufete e um bilhar, um chinquilho e um jogo chinês.
Sem propósito determinado, dirigimo-nos para o pavilhão. A entrada fomos recebidos por algo
que fez estremecer os meus não muito corajosos companheiros.
— Uma víbora! - gritou o conde, agarrando-me o braço. - Olha!
O polaco deu um passo atrás e cou parado a agitar os braços como para afugentar um
fantasma. Sobre um dos degraus de pedra semidestruídos vi uma pequena cobra vulgar. Ao ver-
nos, ergueu a cabeça e fez um movimento. O conde soltou outro grito e escondeu-se atrás de mim.
— Não tenha medo, Excelência - disse Orbenine, sem se alterar e pondo o pé no primeiro
degrau do pavilhão.
— E se nos morde?
— Não nos morderá. Aliás, tem-se exagerado o perigo das mordeduras de cobras. Certo dia fui
mordido por uma velha serpente e, como podem ver, não morri. As picadas dos homens são mais
perigosas do que as das cobras - moralizou Orbenine.
Com efeito, logo que o administrador pôs o pé no segundo ou terceiro degrau, a cobra esticou-
se e desapareceu, como um raio, por entre as pedras. No entanto, ao entrar no pavilhão, deparou-
se-nos outro ser vivo.
Sobre um velho bilhar, de pano rasgado e puído, achava-se um velhote de camisa azul, calças
listadas e boné de jóquei. Dormia suave e sossegadamente. As moscas voavam por cima da sua boca
sem dentes, que lembrava um buraco de árvore, e sobre o seu nariz a lado. De magreza esquelética
e com a boca aberta dava a impressão de ser um cadáver pronto para a autópsia.
Orbenine tocou-lhe no cotovelo e chamou:
— Frantz!Frantz!
Ao quinto ou sexto toque Frantz fechou a boca, ergueu o tronco, olhou para nós e, em
segundos, voltou a deitar-se. Um minuto depois a sua boca tornou a abrir-se e as moscas que
voavam à volta do nariz foram, de novo, espantadas pela trepidação do ressonar.
— Como dorme, este porco depravado! - exclamou Orbenine.
— É Trischer, o jardineiro, não é assim? - perguntou o conde.
— Ele próprio... Faz sempre o mesmo. Dorme durante o dia inteiro e, à noite, joga às cartas, Na
noite passada deve ter jogado até de manhã...
— A que joga ele?
— A dinheiro. Em regra, ao stoss. (2)
— Quer dizer que esta gente trabalha pouco ou mesmo nada mas recebe pontualmente o
salário.
— Não o digo para me queixar, Excelência - a rmou Orbenine em tom vivo. - Limito-me a
comprovar um facto. É com pena que vejo este homem escravizado por tão grande paixão. Apesar
disso, ele trabalha; não rouba o que ganha...
Olhámos novamente para o jogador e saímos.
Do pavilhão dirigimo-nos para o portão do jardim que dá para os campos circundantes.
Quase não há novela em que o portão do jardim não desempenhe um papel importante. Se
ainda não o notaram, perguntem a Policarpe que, durante a vida, tem devorado tantas novelas,
terríficas ou não. Ele pode confirmar certamente este facto assaz característico.
(2) - Jogo de azar russo semelhante ao "monte". (N. do T.)
A minha novela tão-pouco prescindirá do portão do jardim, mas diferenciar-se-á das outras
pela circunstância de a minha pena, ao contrário do que sucede às dos demais autores, ser forçada
a fazer passar por ele muitas desgraças e poucas venturas. E o pior é que não vou descrever esses
acontecimentos como novelista mas sim como juiz de instrução. Por esse portão passarão mais
criminosos do que namorados.
k
A
CAPÍTULO 3
k
poiados às nossas bengalas chegámos, um quarto de hora mais tarde, a uma colina conhecida
como o "Túmulo de Pedra".
Este montículo, solitário no meio dos campos, parece um boné invertido. Do cimo podíamos
ver o lago com toda a sua maravilhosa serenidade e a sua indescritível beleza. O Sol já se pusera,
mas deixara atrás de si uma púrpura que tingia o céu e a água com uma agradável cor alaranjada.
Só eu e o conde trepámos ao cume da colina.
Orbenine e o polaco, mais pesados, preferiram ficar à nossa espera no caminho.
— Quem é aquele emplastro? - perguntei ao conde, apontando para o polaco. - Onde foste
buscá-lo?
— Meu velho Sergei - respondeu, com certo alarme.
— Trata-se de um homem muito amável. Tu e ele ficarão amigos dentro em pouco.
— Duvido. Porque fala tão pouco?
— É calado por natureza. Mais tarde carás a saber tudo, meu velho Sergei, mas por agora não
me perguntes mais nada. Vamos descer?
Descemos e encaminhámo-nos para o bosque. A tarde atingia o seu termo. Do bosque vinham
o grito do cuco e o canto trémulo de um rouxinol jovem e extenuado.
Ao chegar à orla do bosque ouvimos a voz aguda de uma criança que gritava:
— Hei! Hei! Não consegues apanhar-me!
Uma menina de cerca de cinco anos, de cabelo cor de linho e com um vestido azul-claro, saiu
do bosque. Ao ver-nos, correu para Orbenine e agarrou-se aos seus joelhos, soltando grandes
gargalhadas. Orbenine tomou-a nos braços e beijou-a na face.
— É a minha pequena Sacha - disse, apresentando-nos a criança.
Um estudante dos seus onze anos, lho do administrador, perseguia a irmã. Quando nos viu,
hesitou, tirou o boné e, depois, voltou a pô-lo na cabeça para, logo de seguida, o tirar de novo.
Atrás do estudante, caminhando lentamente, surgiu uma gura vermelha que logo atraiu a nossa
atenção.
O conde pegou-me no braço.
— Que magní ca aparição! Olha! - exclamou. - Que maravilha! Quem é esta rapariga? Não
sabia que no bosque havia náiades assim!
Voltei-me para Orbenine a m de lhe perguntar quem era a rapariga e só então me apercebi de
que estava completamente embriagado.
— Sergei Petrovitch, suplico-lhe - sussurrou-me ao ouvido, exalando vapores de álcool -,
impeça que o seu amigo faça outros comentários acerca daquela rapariga.
É uma pessoa digna de toda a consideração. Como de costume, o conde é capaz de dizer
alguma inconveniência e eu não quero que ela as escute.
A pessoa digna de toda a consideração devia rondar os dezoito anos e tinha uma deliciosa
cabeça com bondosos olhos azuis e cabelo loiro, comprido e ondulado.
Entre menina e adolescente, trazia um vestido escarlate.
Os pés, nos como agulhas, estavam calçados com meias vermelhas e sapatos quase infantis. Vi
que os seus ombros estremeceram quando neles xei os olhos, como se a rapariga, coquete, tivesse
sentido um calafrio ou o meu olhar lhe tivesse mordido a pele.
— Que contraste! - extasiou-se o conde. - Um rosto tão jovem e formas tão perfeitas...
Desde muito novo havia perdido a faculdade de olhar para as mulheres de outra maneira que
não fosse a de um bicho sensual.
Pelo contrário, lembro-me de que aquela visão despertou em mim um sentimento de ternura
que me aqueceu a alma. Continuava a ser um poeta e, no meio do bosque, num crepúsculo de
Maio, sob o tímido cintilar das estrelas, não podia contemplar uma mulher senão como um poeta.
Fitei a rapariga com o mesmo enlevo com que costumava observar os bosques, as montanhas, o azul
do céu... Ainda restavam, dentro do meu ser, vestígios do sentimentalismo que herdara da minha
mãe, alemã.
— Quem é? - quis saber o conde.
— Excelência - disse Orbenine -, é a filha do guarda-florestal Skvortsov.
— É a tal Olenka de que falou o zarolho?
— É, sim - respondeu o administrador, lançando-me um olhar suplicante.
A rapariga de vermelho deixou-nos passar junto dela sem nos conceder a menor atenção. Os
seus olhos estavam voltados para outro lado, mas eu, que conheço as mulheres, apercebi-me de que
nos observava furtivamente.
Ouvi-a perguntar, enquanto nos afastávamos:
— Qual deles é o conde?
— O do bigode comprido - respondeu o estudante.
Escutei o seu sorriso sonoro, um riso de decepção.
Por certo, a rapariga havia julgado que o conde, proprietário daqueles imensos bosques e do
grande lago, era eu e não o pigmeu com rosto de alcoólico e bigodes caídos.
Do peito de Orbenine saiu um profundo suspiro. O homem quase não era capaz de andar.
— Manda embora o administrador - segredei ao conde. - Está doente e embriagado.
— Estás doente, Piotre Iegoritch? - perguntou. - Já não preciso de ti. Podes retirar-te.
— Não se preocupe, Excelência. Agradeço o cuidado mas não estou doente.
Olhei para trás. A figura escarlate, imóvel, seguia-nos com o olhar.
Pobre cabecita loura! Como poderia eu adivinhar, naquele entardecer suave e tranquilo de
Maio, que ela ia ser a protagonista de minha atormentada narrativa.
Escrevo estas linhas enquanto a chuva bate nos vidros e o vento ulula. Olho para a janela negra
e, sobre aquele fundo de trevas, esforço-me por evocar a imagem da minha gentil heroína... Vejo o
seu rosto infantil, ingénuo, e os seus olhos cheios de ternura. Assaltam-me desejos de pôr a pena de
lado e de queimar quanto escrevi. De que serve recordar aquela criatura jovem e inocente?
Junto do tinteiro, à minha frente, está a fotogra a de Olenka. Vejo-lhe o rosto formoso em
toda a frívola grandeza da mulher que se aviltou. Os olhos, lânguidos mas orgulhosos da sua
perversidade, estão imóveis. É a serpente cuja peçonha Orbenine desprezara. Provocante, tentou a
tempestade e o furacão destroçou a flor.
Recebeu muito, mas pagou bem caro. Que o leitor possa perdoar-lhe...
k
C
CAPÍTULO 4
k
aminhávamos através da silenciosa monotonia do pinhal.
— E se regressássemos? - propôs o conde.
Ninguém lhe respondeu. Ao polaco era indiferente estar ali ou em outro local, Orbenine sabia
que a sua voz não contava e, quanto a mim, a frescura do bosque e o aroma a resina cativavam-me
demasiado para querer voltar para trás. De qualquer maneira, havia que matar o tempo até a noite
cair.
A perspectiva de uma selvagem noitada de copos excitava-me deliciosamente. Envergonho-me
de confessá-lo: gozava o prazer antecipadamente. O conde, impaciente, olhava amiúde para o
relógio, sinal de que o consumia idêntico desejo. Creio que naquele momento nos compreendíamos
íntima e mutuamente.
Perto da casa do guarda- orestal, erigida numa clareira quadrada rodeada de pinheiros, fomos
recebidos pelos latidos agudos de dois cães de pêlo amarelo e raça que eu desconhecia. Eram ágeis e
reluzentes como enguias. Compreendi que Orbenine visitava aquela casa com frequência porque os
cães saltaram à sua volta, ladrando alegremente. Ali perto encontrava-se um rapazote descalço, com
cara apalermada e cheia de sardas. Olhou-nos por momentos, em silêncio e, em seguida,
certamente por reconhecer o conde, soltou uma exclamação e pôs-se a correr em direcção à casa.
— Sei porque vai a correr - declarou o conde, sorrindo. - Lembro-me dele; é Mitka.
Não se enganou. Não havia decorrido um minuto quando o rapaz reapareceu trazendo consigo
uma bandeja com um copo de água e outro de vodca.
— A sua saúde, Excelência - disse ele, abrindo a cara aparvalhada num largo sorriso.
O conde engoliu a vodca e lavou a boca com a água e, desta vez, reprimiu a habitual careta.
A cerca de cem passos da casa havia um banco de ferro tão velho como os pinheiros. Sentámo-
nos e cámos a contemplar a beleza tranquila daquele entardecer de Maio. Mesmo em tais
circunstâncias, nas quais a voz humana é a coisa mais desagradável que existe, o conde não
conseguiu ficar calado.
— Não sei se vais gostar da ceia - adiantou. - Mandei preparar sopa de percas e uma lebre...
Depois, para acompanhar a vodca, esturjão frio e leitão com rabanetes.
Os pinheiros agitaram-se, como que ofendidos por aquele discurso, e um murmúrio surdo
correu por todo o pinhal. Levantou-se uma brisa fresca que fez voar as folhas caídas no solo e
balouçar os ramos das árvores.
— Basta! Basta! -gritou Orbenine, dirigindo-se aos cães que, com as suas festas, o impediam de
acender um cigarro. - Parece-me que vai chover. Durante o dia faz um calor tão sufocante que não
é preciso ser um grande sábio para profetizar chuva. Vai ser bom para o trigo.
"Que importa o trigo", pensei eu, "se o conde gasta todo o seu rendimento em bebida? A chuva
perde o seu tempo".
O bosque foi atravessado por um vento mais fresco.
Os pinheiros e os arbustos aumentaram os seus murmúrios.
— Vamos para casa. Levantámo-nos e iniciámos, indolentemente, o caminho de regresso.
— Vale mais ser a loura Olenka - disse eu a Orbenine - e viver aqui, entre os animais, do que
ser juiz de instrução e viver entre os homens. É bem mais repousante. Não concorda, Piotre
legoritch?
— Tudo está bem quando se tem a consciência tranquila, Sergei Petrovitch.
—A consciência da formosa Olenka estará tranquila?
— Só Deus vê os corações humanos, mas, segundo me parece, ela não tem qualquer razão para
se inquietar.
Poucos desgostos, não mais pecados do que uma criança.
E boa rapariga... Aí vem a chuva.
Ouviu-se um ruído como o do rodado de um carro ou de um jogo de chinquilho. O trovão
surgiu por cima das copas. Mitka, que não nos perdia de vista, estremeceu e benzeu-se.
— A trovoada! - exclamou o conde. -A chuva vai apanhar-nos no caminho! E é quase noite.
Bem te disse que devíamos regressar, mas tu teimaste em vir até aqui.
— Vamos acolher-nos na casa do guarda-florestal, à espera de que passe a chuva - propus eu.
— Para quê? - comentou Orbenine, piscando os olhos de forma estranha. - Vai chover toda a
noite e não poderão dormir aqui. Mas não se preocupem.
Continuem o vosso passeio. Mitka irá a casa, e pedirá que mandem um carro para os levar de
volta.
— Não é preciso - contrapus. - Não vai chover torrencialmente durante toda a noite. Em regra,
as nuvens da trovoada passam depressa... E, a propósito, não conheço ainda o novo guarda- orestal
e também gostaria de conversar com Olenka para ficar a saber qual o seu temperamento...
— Acho bem - concordou o conde.
— O quê? Vamos car aqui? - balbuciou Orbenine, muito inquieto. - Para quê permanecer
num ambiente sufocante, Excelência, se, em sua casa, pode estar muito melhor? Não compreendo
que vantagem há nisso...
Acresce que não me parece correcto ir visitar o guarda- orestal precisamente quando se
encontra adoentado...
Era manifesto que Orbenine não desejava de modo algum que entrássemos naquela casa.
Chegou ao ponto de estender os braços como se pretendesse impedir a nossa passagem.
Compreendi que devia ter razões para querer afastar-nos. Respeito as razões e os segredos alheios,
mas sentia-me espicaçado por uma forte curiosidade. Acabámos por entrar na casa do guarda-
florestal.
— Façam o favor de ir para a sala - gaguejou o rapazote descalço, doido de alegria.
Imaginem a mais pequena "sala" possível, com os seus tabiques de madeira sem pintura; como
decoração, fotogra as em molduras com cascas de caracóis e conchas, atestados e gravuras
recortadas da revista Niva. Um dos atestados manifestava a gratidão de certo barão por não sei que
serviço; os outros referiam-se a cavalos. Aqui e além, a hera trepava pelos tabiques. Uma pequena
chama ardia suavemente em frente de um ícone, a um canto, e re ectia-se levemente numa
moldura prateada. Encostadas às paredes havia cadeiras, em quantidade excessiva para o tamanho
da saleta; embora as mais velhas já fossem bastantes, tinham comprado outras havia pouco tempo,
sem razão aparente.
Apertados uns contra os outros viam-se ainda uns cadeirões e um canapé com cobertas brancas
adornadas com folhos e rendas. Havia também uma mesa redonda, bem envernizada... Sobre o
canapé dormia uma lebre domesticada... A divisão era confortável, agradável. Em tudo aquilo era
notória a presença de uma mulher. Até a pequena estante, cheia de livros, dava a impressão de algo
inocente e feminino, como se contivesse apenas novelas ingénuas e poesias pouco transcendentes.
Não é na Primavera que pode aperceber-se todo o encanto de uma saleta como aquela; é no
Outono, quando procuramos abrigo contra a humidade e o frio...
Mitka, a fungar, riscou um fósforo energicamente e acendeu duas velas que, com grande
cuidado, colocou à nossa frente, sobre a mesa.
Sentámo-nos nas poltronas e, ao olhar uns para os outros, não pudemos conter o riso.
— Nicolas E mitch está de cama, doente, e a lha decerto foi passear com as crianças -
adiantou Orbenine como que para explicar o que se passava naquela casa.
Do quarto vizinho chegou uma voz débil:
— Mitka, fechaste as portas?
— Fechei, sim, Nicolas E mitch - respondeu Mitka com voz rouca, correndo para o aposento
contíguo.
— Está bem - disse a mesma voz. - Certifica-te de que estão bem fechadas à chave. Se os ladrões
quiserem entrar, diz-me... Vamos recebê-los a tiro... Malvados...
— Claro que sim, Nicolas Efimitch.
Rimo-nos e olhámos interrogativamente para Orbenine. Que queria aquilo dizer? Sorriu-se e,
para disfarçar o seu embaraço, aproximou-se da janela e começou a mexer numa cortina. Que
signi cava tal atitude? Olhámos de novo uns para os outros, mas a nossa perplexidade cedo se
desvaneceu. Do exterior chegou o ruído de passos ágeis e apressados e a porta e o guarda-vento
bateram. A rapariga de vermelho irrompeu bruscamente na sala.
Vinha a cantar com voz de soprano mas, ao ver-nos, calou-se de súbito e, depois, esboçou um
sorriso.
Perturbada, tímida como uma gazela, esgueirou-se para o quarto de onde viera a voz do pai.
— Ficou surpreendida! - disse Orbenine, sorrindo.
Algum tempo depois, a rapariga reapareceu; foi sentar-se, em silêncio, na cadeira mais próxima
da porta e começou a observar-nos. Olhou-nos com insistente atrevimento, como se não fôssemos
pessoas estranhas mas, sim, exemplares num jardim zoológico. Por momentos, também a olhámos.
Estava tão formosa naquele m de tarde que eu seria capaz de car a olhá-la um ano inteiro. A
sua pele tinha a frescura da água ou da brisa, o peito erguia-se-lhe suavemente quando respirava e
os cabelos, ondulados sobre a testa e caídos sobre os ombros, cobriam-lhe as mãos com que
comprimia a gola do vestido. Os seus olhos, muito grandes, brilhavam. E tudo isto num corpo
airoso e miúdo que eu apreciava com um só olhar. Naquele pequeno espaço era possível ver mais
coisas, numa só vez, do que a contemplação durante séculos de um horizonte sem m... A rapariga
examinou-me de alto a baixo com ar sério e curioso, mas, quando desviou a vista para o conde e
para o polaco, não pôde conter um sorriso.
Fui o primeiro a falar.
— Apresento-me - disse, aproximando-me. - O meu nome é Zinoviev e apresento-lhe, também,
o conde Karnieiev. Pedimos desculpa por termos entrado na sua bonita casa sem sermos
convidados. Não o teríamos feito se a trovoada não nos houvesse forçado...
— A nossa casa não vai desabar só por isso - replicou ela, estendendo a mão.
Sorriu, pondo a descoberto os seus dentes admiráveis.
Sentei-me junto dela. Princípio de todos os princípios, o tempo foi o primeiro tema. Enquanto
conversávamos Mitka serviu vodca, de novo, e o meu amigo, aproveitando o facto de eu não estar a
olhar para ela, depois de cada gole fazia a sua careta preferida e meneava a cabeça.
— Quer tomar alguma coisa? - perguntou-me Odenka.
E, sem esperar a minha resposta, saiu da sala.
As primeiras gotas de chuva bateram contra a vidraça. Aproximei-me da janela e só consegui
vislum- brar a água que escorria pelo vidro e o re exo do meu nariz. Brilhou um relâmpago,
iluminando os pinheiros mais próximos.
— As portas estão todas fechadas? - voltou a perguntar a voz do enfermo. - Mitka, maldito
rapaz, vai fechar as portas! Oh, Senhor, que tormento!
Uma camponesa, de grande barriga e rosto inquieto e aparvalhado, entrou na sala.
Cumprimentou o conde timidamente e estendeu uma toalha branca sobre a mesa. Por detrás dela,
Mitka, com muita cautela, trazia diversos pratos. Em pouco tempo, havia na mesa vodca, rum,
queijo e não sei que ave assada.
O conde bebeu outro copo de vodca, sem ligar à comida. O polaco, pelo contrário, começou a
trinchar a peça de caça, depois de a haver cheirado.
— Já está a chover - disse eu a Olenka, quando esta regressou. - Veja.
Aproximámo-nos da janela e, nesse mesmo instante, fomos iluminados por um grande clarão
azul. Estalou um trovão, dando a impressão de que algo, enorme e pesado, se havia desprendido do
céu e rolava sobre a Terra. A vidraça e os copos tremeram com um ruído cristalino. O estampido
fora tremendo.
— Tem medo das trovoadas? - perguntei a Olenka.
Inclinou um pouco a cabeça sobre o ombro e fitou-me com expressão infantil e confiante.
— Sim, tenho medo - murmurou, passados uns momentos. - A minha mãe foi fulminada por
um raio.
Foi até noticiado nos jornais... Ia a atravessar um descampado, a chorar... Teve uma vida muito
infeliz...
Deus teve pena dela e matou-a com a electricidade do céu...
— Como sabe que há electricidade no céu?
— Estou certa disso... Não sabe? Os que morrem fulminados por um raio, os homens que
morrem na guerra e as mulheres que morrem ao dar à luz vão para o Paraíso... Não vem nas
Escrituras, mas é verdade...
A minha mãe, agora, está no Paraíso... Pressinto que também eu vou morrer fulminada por um
raio e que irei igualmente para o Paraíso... O senhor tem lido muitos livros?
— Muitos.
— Então, não se ria de mim... Sabe como eu gostaria de morrer? Vestida com as roupas mais
belas e mais caras, segundo a última moda, como as da senhora Scheˉer, a milionária... Traria os
braços cheios de lindas pulseiras, subiria ao cume do "Túmulo de Pedra" e pronto! Vinha um raio e
fulminava-me de maneira a que todos vissem... Um tremendo trovão e tudo ficaria consumado...
— Que fantasia macabra! - comentei, sorrindo e tando os olhos da rapariga de vermelho,
onde se reflectia o sagrado terror provocado por aquela imagem de um fim atroz mas espectacular. -
Não deseja, então, morrer com um vestido trivial.
— Não - garantiu Olenka, com tom obstinado. - Gostava que todos vissem.
— O vestido que hoje traz é mais belo do que qualquer outro, por mais caro e mais na moda
que seja...
Fica-lhe maravilhosamente bem... Parece uma flor silvestre, vermelha e bela!
— Não, não é verdade! - suspirou Olenka, ingenuamente.
- Um vestido barato nunca pode ficar-me bem...
Com manifesto desejo de falar com Olenka, o conde aproximou-se. Se bem que domine três
idiomas, nunca sabe como falar com as mulheres. Postado, sem qualquer graça, junto de nós,
esboçava um sorriso aparvalhado e só conseguiu grunhir "Olá", voltando, de seguida, à sua garrafa
de vodca.
— Quando entrou em casa vinha a cantar "Gosto das Tempestades de Verão". Há alguma
cantiga com essas palavras? - perguntei a Olenka.
— Não - respondeu ela. - Sou eu que ponho em música, à minha maneira, todos os versos que
sei.
Distraidamente, virei a cabeça e vi que Orbenine nos observava xamente. Li-lhe nos olhos um
ressentimento e um ódio que não condiziam com o seu rosto plácido. "Deve estar com ciúmes",
pensei.
Ao ver-se surpreendido, levantou-se e, muito agitado, encaminhou-se para o vestíbulo. Os
trovões eram cada vez mais frequentes e ruidosos. Os relâmpagos iluminavam o céu, os pinheiros e
a terra molhada. Ia chover durante muito tempo. Acerquei-me da estante e passei em revista a
biblioteca de Olenka."Diz-me o que lês..." No entanto, do que vi, não pude extrair conclusões sobre
o nível mental da rapariga.
No momento em que começava a folhear um dos livros, abriu-se a porta do quarto vizinho e
surgiu uma singular criatura que logo despertou a nossa atenção.
Era um homem alto e magro, com um roupão de algodão adornado com desenhos indianos;
nos pés trazia pantufas esgaçadas. O bigode e as suíças, de talhe militar, davam-lhe o aspecto de
um pássaro. A cabeça pequena baloiçava sobre o pescoço alto e a maçã de Adão agitava-se como
um ninho de estorninhos sacudido pelo vento. A estranha personagem tou-nos com os seus olhos
verdes que, de seguida, se fixaram no conde.
— Fecharam as portas? - perguntou com voz suplicante.
O conde olhou para mim, surpreendido.
— Não se inquiete, pai - disse Olenka. - Está tudo bem fechado. Volte para o seu quarto.
— E fecharam também o... barracão?
— Às vezes, ca um tanto perturbado - murmurou Orbenine, regressando do vestíbulo. - Tem
muito medo dos ladrões e só pensa nas portas. Nicolas E mitch - continuou, voltando-se para o
dono da casa -, volta para o teu quarto e deita-te. Nada receies. Está tudo bem fechado.
— E as janelas também?
O homem dirigiu-se às janelas e veri cou os fechos de todas elas. Depois, sem nos prestar
atenção, desapareceu no interior do quarto.
— Que tristeza - comentou Orbenine. - É bom homem mas, quase todos os anos, quando se
aproxima o Verão, a sua mente fica transtornada...
Olenka, embaraçada, procurou esconder o rosto e começou a pôr no lugar os livros que eu
desarrumara.
Era patente que se envergonhava da loucura do pai.
— Excelência - disse, então, Orbenine. - Chegou a carruagem. Já pode partir.
— Quem mandou vir a carruagem? - perguntei.
— Fui eu quem a mandou buscar...
Minutos mais tarde, sentado na carruagem ao lado do meu amigo, resmunguei, enquanto ouvia
bramir o temporal:
— Foi Piotre Iegoritch quem nos pôs fora daquela casa! Que o Diabo o carregue! Nem sequer
nos deu tempo para examinar Olenka! Estúpido! Não íamos comê-la!
Rebentava de ciúmes! Creio que está apaixonado por ela.
— Está, claro que está, já me apercebi disso. Por ciúmes não queria que entrássemos, e por
ciúmes fez-nos sair dela... Ah, Ah!
— De barba já grisalha e ainda com o Diabo no corpo!
É certo que não é difícil a qualquer homem enamorar-se daquela rapariga, se a vir todos os dias
tal como a vimos hoje. É extremamente formosa. Mas não é para os dentes do asqueroso Orbenine.
Ele devia dar-se conta disso e não ser tão egoísta. Que a adore à distância, vá que não vá, mas que
não impeça os outros de a admirar. Além do mais, devia saber que não é mulher para ele... Velho
imbecil!
— Lembras-te - fez notar o conde, com uma risada de troça - de como cou enfurecido
quando, ao chá, Kuzma se referiu a ela? Parecia que queria bater em todos nós... Não se assume
daquela forma a defesa de uma mulher que nos é indiferente...
— Sim, pode-se fazê-lo, mas isso não importa... Se hoje nos gritou daquela maneira, imagina o
que fará com os pobres tipos sob as suas ordens. O amor e o ciúme tornam-nos injustos e
misantropos. Ia jurar que, por causa de Olenka, já converteu num inferno a vida de grande número
de servidores. Creio que deves tomar isso em consideração quando ele zer queixa de algum
criado. Modera os seus poderes, nem que seja por uns tempos. O entusiasmo vai passar-lhe e as
coisas melhorarão... Apesar de tudo é um bom homem.
— E o papá da rapariga? Que tal o achaste?
— É um louco que devia estar no manicómio e não na casa do guarda- orestal. À tua porta
devias mandar pôr o letreiro "Hospício". Não falta nada: o guarda, a Coruja, o jogador Franz, um
velho apaixonado, uma moça exaltada e, para terminar, tu, perdido pelo álcool. Que mais é preciso?
— Mas o guarda ganha um salário. Para que pode servir-me se está doido?
— Orbenine conserva-o certamente por causa da lha. Alega que o velho só tem estas crises no
Verão... É
pouco provável, Estou convencido de que o guarda está doente durante o ano inteiro.
Felizmente, o teu Piotre Iegoritch só mente de vez em quando, porque, quando o faz, logo o
demonstra.
O carro entrou no pátio e parou junto da porta principal. Descemos. A chuva cessara.
Iluminadas por relâmpagos, as nuvens da tempestade afastavam-se agora para Nordeste, deixando
a descoberto uma porção cada vez maior de céu estrelado. Entrámos na casa, onde nos aguardava
um género bem diferente de "poesia".
k
-A
CAPÍTULO 5
k
inda bem que não comeste em casa do guarda-florestal.
Terias perdido o apetite - disse-me o conde, quando entrámos. - Hoje, vamos saborear
uma ceia magní ca, como nos bons velhos tempos... Podes servi-la - rematou, voltando-se
para Ilia, que o ajudara a tirar o casaco e a vestir o roupão.
Dirigimo-nos à sala de jantar.
Sobre a mesa, alinhadas como no bufete de um teatro, garrafas de todas as cores e tamanhos
re ectiam a luz dos candeeiros. Aperitivos salgados, de escabeche e de muitas outras espécies
esperavam numa segunda mesa, junto de uma garrafa de vodka e outra de aguardente inglesa.
Perto das garrafas, havia dois pratos com leitão e esturjão frios.
— A vossa saúde, meus senhores! - exclamou o conde, enquanto, com mãos trementes, enchia
três cálices. -Aqui tens o teu, Gaetan Casimirovitch.
Eu bebi, mas o polaco abanou a cabeça. Aproximou o nariz do esturjão, aspirou o seu cheiro e
começou a comer.
Peço desculpa ao leitor por descrever coisas tão pouco românticas.
— Vamos! - convidou o conde. - Sigamos o que diz o poema: E beberam o segundo...
Quando me encheu o copo, pela segunda vez, acrescentou:
— Toma, Lecoq.
Peguei no copo, examinei-o e voltei a colocá-lo sobre a mesa.
— Diabos me levem - disse. - Há muito que não bebo. Façamos como nos velhos tempos.
E, sem hesitar, enchi mais quatro cálices e bebi os cinco, uns atrás dos outros. Não sabia beber
de outra maneira. Os estudantes aprendem com os mais velhos a fumar os primeiros cigarros. O
conde, como um caloiro, seguiu o meu exemplo; encheu também cinco cálices e, curvado em arco,
de sobrancelhas franzidas e a sacudir a cabeça, emborcou-os de rajada. Os meus cinco cálices
pareceram-lhe um desa o, mas sem razão. Eu não bebera daquele modo por bravata de bebedor
mas, sim, para me embriagar, para apanhar uma valente bebedeira, como não acontecia havia
muito, perdido como estava na pasmaceira daquela vilória.
Depois de beber, sentei-me à mesa e comecei a comer leitão.
O álcool não tardou a produzir os seus efeitos. Pouco depois, senti uma ligeira vertigem. No
meu peito espalhou-se uma agradável frescura, prelúdio de um estado expansivo e feliz. Sem
transição, quei, de repente, extremamente eufórico, Uma sensação de enorme alegria tomou o
lugar do vazio e do tédio que experimentara até então. Sorri e, num instante, tive vontade de
conversar, de rir, de ver gente. A comer e a beber, senti a plenitude da vida, quase a alegria de
viver, quase a felicidade completa.
— Porque não bebe? - perguntei ao polaco.
— Nunca bebe - declarou o conde. - Não insistas.
— Beba um copo, ao menos!
,:! O polaco, a mastigar uma grande posta de esturjão, abanou a cabeça.
O seu silêncio irritou-me.
— Ouça lá, Gaetan... Desculpe, mas não me lembro do seu apelido... Porque ca sempre
calado? Até agora, ainda não tive o prazer de lhe ouvir a voz...
As sobrancelhas ergueram-se, como andorinhas que levantam voo, e o homem fitou-me.
— O senhor quer que eu fale? - perguntou, com forte sotaque polaco.
— Claro.
— Porquê?
— Porque é mais natural. Nos barcos e nos hotéis, os estranhos que se sentam à mesma mesa
metem conversa uns com os outros. Nós, que nos conhecemos há já várias horas, olhamo-nos
mutuamente sem trocar palavra. Que significa isso?
O polaco manteve-se calado.
— Porque não responde? - perguntei, passados instantes. - Diga alguma coisa!
— Não quero responder-lhe. Vejo que quer troçar de mim e não gosto disso.
— Não está a troçar de ti, Gaetan! - interveio o conde, assustado, - Onde foste buscar tal ideia?
Está a falar amistosamente contigo.
— Nem condes nem príncipes me falaram jamais em semelhante tom. - replicou Gaetan,
franzindo as sobrancelhas. - E é um tom que não me agrada.
— Quer dizer que me nega o prazer de conversar comigo - continuei eu, espicaçando-o ainda
mais.
— Sabes porque regressei? - atalhou o conde, tentando mudar o rumo da conversa. - Fui
consultar o meu médico em São Petersburgo e ele, depois de me auscultar, perguntou-me: "O
senhor é cobarde?" Embora não seja, empalideci e respondi: "Não, não sou".
— Deixa-te de rodeios, meu velho, porque começas a maçar-me...
— A rmou que eu não duraria muito, se não saísse rapidamente da cidade... Tenho o fígado
desfeito... Sabes?
Por causa da bebida... Era uma estupidez continuar em São Petersburgo... Disponho desta
propriedade que é magní ca... E o clima, aqui, é excelente! Além disso, sempre posso entreter-me a
fazer qualquer coisa. O trabalho é o melhor remédio, não te parece, Gaetan? Vou tratar das minhas
terras e deixarei de beber... O médico proibiu-me de tomar nem que seja um copo de vinho...
— Bom, então não bebas!
— E vou mesmo deixar de beber! Hoje é a última vez e só o faço por teres vindo visitar-me... -
a rmou o conde, enquanto se arrastava até mim e me beijava na face. - Por teres vindo visitar-me,
tu, meu querido e bom amigo. Mas, a partir de amanhã, nem uma só gota!
Dou férias a Baco até à eternidade. Vamos despedir-nos dele com conhaque, Serioja...
Bebemos conhaque.
— Vou curar-me, Serioja, e tratar das minhas terras.
Cultura racional! Orbenine é bom, afável, sabe de tudo, mas não passa de um pateta. É
rotineiro. Vou assinar revistas agrícolas, olhar por tudo, tomar parte em exposições rurais... Ele não
serve para isso... Mas há Olenka... É possível que esteja apaixonado por ela... Ah!
Ah! Serei eu a tratar de tudo... Participarei nas eleições, darei festas. Creio que aqui poderei ser
feliz... Não achas?
Ah, lá estás tu a rir... Estás sempre a rir... Na verdade, não se pode falar contigo de coisas
sérias!...
Sentia-me alegre e de bom humor. Tudo me fazia rir: o conde, as luzes, as garrafas, as lebres e
os patos esculpidos que ornavam as paredes da sala de jantar.
A única coisa que me entristecia era a cara sisuda de Gaetan Casimirovitch. A presença daquele
homem tinha o condão de me irritar.
— Não podes mandar para o diabo este fidalgote polaco? - sussurrei ao conde.
— Que se passa contigo? Pelo amor de Deus, deixa-o em paz! - murmurou, agarrando-me o
braço, como se eu tivesse intenção de agredir o polaco.
— Não posso com ele. Ouça! - exclamei, dirigindo-me a Pchekotski. - O senhor recusa-se a
falar comigo mas ainda não perdi a esperança de travar mais amplo conhecimento com as suas
faculdades oratórias.
— Deixa-o - suplicou de novo o conde, puxando-me o braço.
— Vou colar-me a si - continuei -, até que me responda. Porque franze as sobrancelhas? Terá a
coragem de afirmar, outra vez, que quero troçar de si?
— Se tivesse bebido tanto como o senhor, poderíamos falar - resmungou o polaco -, mas assim
não estamos em igualdade de condições.
—Aí tem! Aí tem o que eu queria demonstrar... Um ganso não pode ser boa companhia para
um porco, um bêbado não pode andar de braço dado com um homem sóbrio...
O bêbado incomoda o sóbrio e o sóbrio incomoda o bêbado.
Veja! No salão há uns magní cos sofás, muito macios, onde uma pessoa pode estender-se
depois de ter enchido a barriga com esturjão e rabanetes. Lá não se ouve a minha voz. Não quer ir
para lá?
O conde, estupefacto, ergueu os braços, pestanejou e pôs-se a andar de um lado para o outro.
Cobarde como era, temia as discussões acaloradas... Eu, pelo contrário, quando bebo, adoro as
altercações e as controvérsias.
— Não te percebo - gemeu, não sabendo o que dizer ou fazer. - Não te percebo.
Sabia que era difícil acalmar-me.
— Ainda não o conheço bem - prossegui. - Pode acontecer até que seja um excelente homem.
Por isso mesmo não queria discutir consigo, neste momento.
E não o farei. Limito-me a fazer-lhe ver que, entre bêbados, as pessoas sóbrias estão a mais. Um
homem sóbrio irrita o organismo de um bêbado. Meta isso na cabeça.
— Diga o que quiser, jovem - suspirou Pchekotski.
— Nada me fará perder a calma.
— Tem a certeza disso? Nada? E se eu lhe chamar "porco teimoso", não se sente ofendido?
O polaco corou e nada mais. O conde, muito pálido, aproximou-se de mim em atitude
suplicante e abriu os braços.
— Por favor! Modera a tua linguagem!
Bem compenetrado do meu papel de bêbado, teria continuado os meus ataques ao polaco, mas,
por sorte para ele e para o conde, ouviram-se uns passos e Orbenine entrou no salão.
— Bom proveito! - saudou. - Vossa Excelência tem alguma ordem a dar-me?
— Por enquanto, não, mas alegro-me por ter vindo, Piotre Iegoritch. Sente-se. Vai cear
connosco e falaremos das culturas.
O administrador sentou-se. Enquanto comia e bebia conhaque, o seu patrão expôs-lhe os seus
planos de cultura racional. Falou de maneira cansativa, repetindo-se e saltando de uma ideia para
outra. Orbenine escutava-o com atenção indolente, tal como os adultos escutam a fala incoerente
de uma criança. Tomava a sopa e ficava a olhar para o prato com tristeza.
— Trouxe comigo uns projectos magníficos - declarou o conde. - Quer vê-los?
Karnieiev levantou-se e correu para ir buscar os tais projectos. Orbenine aproveitou a sua
ausência para servir-se de vodca, que despejou numa chávena e bebeu de um só trago.
— Que asquerosa bebida! - disse, olhando horrorizado para o garrafão.
— Porque não bebe na presença do conde? - perguntei-lhe. - Tem medo dele?
— É melhor, Sergei Petrovitch, passar por hipócrita e beber às escondidas do que beber diante
dele. Como sabe, o conde tem um temperamento esquisito. Se eu lhe roubasse descaradamente
vinte mil rublos, ele, por preguiça, não diria nada, mas se me esquecesse de lhe prestar contas de
uma despesa de dez copeques, ou se bebesse à sua frente, era capaz de chamar-me as piores coisas.
Orbenine serviu-se outra vez de vodca e engoliu-o de seguida.
— Creio que antigamente não bebia, Orbenine.
— É exacto. E, actualmente, bebo em excesso.
O conde nunca bebeu tanto como eu bebo agora. Sempre tive grande consideração por si,
Sergei Petrovitch, e vou ser franco para consigo: gostava de ter coragem para me enforcar.
— Que ideia! Porquê?
— Por causa das minhas parvoíces. Não só as crianças são patetas. Há imbecis de cinquenta
anos que...
Por favor, não pergunte mais nada!
O regresso do conde pôs um ponto final nas efusões de Orbenine.
— Um excelente licor - proclamou, colocando sobre a mesa, em lugar dos "magníficos"projectos,
uma garrafa bojuda com o lacre da Bénédictine. - Comprei-o na loja Desprès, em Moscovo. Queres
prová-lo, Serioja?
— Não tinhas ido buscar uns projectos? - perguntei.
— Eu? Que projectos?... Ah, sim... Não os encontrei.
Nem o Diabo era capaz de se entender com as minhas malas. Procurei por toda a parte e acabei
por desistir...
É óptimo, este licor. Não queres prová-lo?
Orbenine pediu licença para retirar-se e saiu.
Bebemos mais vinho tinto - e esse vinho acabou comigo.
Vi acercar-se a bebedeira por que tanto ansiava desde que me decidira a visitar o conde. Sentia-
me cada vez mais alegre e atrevido. Desejava fazer algo de extraordinário, de grotesco, de
assombroso... Em momentos como aquele, julgo-me capaz de atravessar o lago a nado, de resolver
os casos mais complicados, de subjugar qualquer mulher... Tinha vontade de me pegar com outra
pessoa, de cobri-la de insultos, de irritar, com palavras acerbas, o polaco e o próprio conde. Queria
reduzi-los a pó.
— Porque estão calados? - comecei. - Falem! Todo eu sou ouvidos. Ah, ah! Adoro ouvir
aqueles que dizem os maiores disparates com cara muito séria. É uma ironia, uma terrível
brincadeira da natureza humana.
Rostos que não correspondem aos cérebros! Para não enganar os outros, vocês dois deviam ter
caras de idiotas e não de filósofos gregos...
Tomara o freio nos dentes. Não acabei. Viera-me à cabeça a ideia de que não mereciam sequer
que lhes dirigisse a palavra. Do que eu precisava, naquela altura, era de uma sala cheia de belas
mulheres inteligentes e carregadas de jóias.
Levantei-me, peguei num copo e pus-me a passear pela casa. Quando organizávamos uma festa
não nos confinávamos a uma sala só; invadíamos toda a casa e, às vezes, até toda a propriedade.
No salão dos azulejos escolhi o sofá turco para nele me entregar ao império da fantasia. O meu
cérebro foi tomado por mirabolantes divagações alcoólicas. Dei comigo num mundo novo, cheio de
exaltações, encanto e de cores indescritíveis. Só me faltava fazer versos e ter alucinações.
k
O
CAPÍTULO 6
k
conde veio sentar-se no sofá, a meu lado. Queria dizer-me alguma coisa. Adivinhava-lhe
nos olhos o desejo de me fazer uma con dência muito especial, logo após haver emborcado
os seus cálices de que já falei. E eu sabia do que se tratava.
— Quanto bebi! - confessou. - Isto, para mim, é pior do que um veneno, mas será a última vez.
Palavra, vai ser a última vez. Estou decidido e a minha vontade é muito forte...
— Basta! Já sei tudo isso.
— A última vez, Serioja. E a propósito, não seria melhor telegrafarmos para a cidade?
— Se quiseres telegrafa.
— Vamos fazer uma pândega pela derradeira vez.
Levanta-te e redige o telegrama.
O conde não sabe escrever telegramas. Ficam prolixos mas incompletos. Levantei-me e escrevi:
Para o chefe do coro Karpov, Restaurante Londres.
Deixe tudo e venha imediatamente no comboio das duas.
Conde Karnieiev - São duas menos um quarto - disse o conde. - Em três quartos de hora, no
máximo uma hora, o mensageiro estará na estação. Karpov terá tempo de apanhar o comboio... Se o
perder, poderá vir no de mercadorias, não achas?
Kuzma, o vesgo, levou o telegrama e foi ordenado a Ilia que mandasse o carro à estação, daí a
uma hora.
Para passar o tempo pus-me a acender lentamente todos os candeeiros da casa. Abri o piano e
experimentei o teclado.
Em seguida, deitei-me no sofá, sem pensar fosse o que fosse, procurando evitar o conde que me
incomodava com as suas histórias. Entrei num estado de sonolência, numa disposição de espírito
feliz e tranquila, não vendo mais nada do que a luz das velas... Passou-me em frente dos olhos a
imagem da rapariga de vermelho, com a sua cabeça inclinada sobre o ombro, o seu olhar cheio de
terror perante a ideia de uma morte sensacional e o gesto de leve ameaça que me zera com o
dedo. Também me xei noutra imagem: a de uma rapariga altiva e pálida, vestida de preto, que me
fitava com ar de súplica e, ao mesmo tempo de desprezo.
Nesse momento ouvi um barulho de vozes e correrias... Dois olhos negros velaram. Apercebi-
me de que alguém se ria junto de mim e de uns lábios frescos que se abriam alegremente. Era Tina,
a minha cigana favorita.
— Estás a dormir? - perguntou - Levanta-te, querido... Há quanto tempo não te via!
- Apertei-lhe a mão, em silêncio, e puxei-a para mim.
— Vem ter connosco - pediu. - Já chegaram todos.
— Fica comigo, Tina. Sinto-me bem aqui.
— Mas... há luz a mais. Pode aparecer alguém...
— - Se aparecer alguém, torço-lhe o pescoço. Sinto-me bem aqui, Tina. Dois anos sem te ver...
Na sala, o piano começou a tocar e um coro de vozes entoou Ah, Moscovo! Moscovo das pedras
brancas.
— Vês? Já estão a cantar. Não virá ninguém incomodar-nos.
— Sim... sim...
A chegada de Tina tirou-me do meu torpor. Dez minutos mais tarde, levou-me para a sala,
onde um coro de ciganas estava instalado em semicírculo. Escarranchado numa cadeira, o conde
fazia de maestro e o polaco, de pé, olhava tudo aquilo com olhos esgazeados. Tirei a balalaica das
mãos de Karpov e, com um trejeito, comecei a cantar: Navegando sobre o rio, que é como a nossa
mãe, o Volga...
— Vo-o-olga! - acompanhou o coro.
— Ah! Arde...fala...fala...
Fiz novo trejeito e, com a velocidade de um raio, passou-se para outra cantiga: Oh! Que noites
de loucura, noites de prazer...
Nada me excitava tanto os nervos como aquelas mudanças bruscas de ritmo e de melodia.
Estremeci, em êxtase, e, agarrando Tina pela cintura com uma das mãos e brandindo a balalaica na
outra, acabei de cantar As noites de loucura. A balalaica escapou-se-me das mãos, caindo no chão
e, com fragor, quebrou-se em mil pedaços.
— Vinho!
Daí em diante, as minhas recordações penetram num caos. Tudo se mistura e confunde...
Lembro-me do céu cinzento da madrugada. Encontramo-nos num pequeno barco. O lago está
levemente agitado, como que indignado com os nossos excessos. De pé, no meio do barco, faço-o
baloiçar. Tina grita, dizendo que vou cair à água e pedindo que me sente. Em alta voz, lastimando
que o lago não tenha ondas tão altas como o "Túmulo de Pedra", a minha gritaria assusta as
gaivotas que aparecem e desaparecem, em manchas brancas sobre o azul das águas.
Vem depois um dia longo e quente, com as suas intermináveis refeições, os seus licores,
conhaques e ponches. Recordo-me apenas de alguns momentos.
Vejo-me com Tina, no jardim, sobre uma prancha de baloiço. Estou sentado numa das
extremidades e Tina na outra. Subo e desço, com vigorosos impulsos, e não sei o que quero: que
Tina caia e morra ou que suba até às nuvens. A cigana está muito pálida, mas, por amor próprio,
aperta os lábios para não dar mostras do medo que sente. Subimos cada vez mais alto, mais alto... e
não me recordo como acabou aquela brincadeira.
Vem em seguida um passeio com Tina ao longo de um caminho arborizado. As copas verdes
das árvores unem-se ao alto, ocultando o sol. Uma penumbra poética, as negras tranças de Tina, os
seus lábios húmidos, um murmúrio... depois, caminha a meu lado uma rapariga loura, de nariz
arrebitado, olhos de criança e cintura na - é contralto no coro. Passeio na sua companhia até ao
momento em que Tina, que nos seguiu, faz uma cena de ciúmes. Está pálida, furiosa; chama-me
"maldito"
e quer voltar para a cidade. O conde, também pálido e com as mãos trémulas, corre para nós e,
como de costume, não encontra palavras para acalmar Tina. A cigana, no auge da sua excitação,
esbofeteia-me. Eu, que me enfureço perante a primeira palavra menos própria de qualquer homem,
fico de todo indiferente às agressões de uma mulher.
Ao cair da tarde, eu e Tina reconciliamo-nos. E chega a noite, tão agitada como a anterior, com
música, cantigas endiabradas... e nem um segundo de sono reparador.
— É um suicídio - murmurou Orbenine, que entrara, durante uns instantes, para ouvir os
ciganos Obviamente, tem razão... Recordo-me de certa altura, no jardim, em que eu discutia com o
conde.
O polaco de sobrancelhas negras rondava por perto. Em momento algum tomou parte nas
nossas efusões, embora nos seguisse por toda a parte, como uma sombra, sem fechar os olhos por
um momento.
O céu começou a aclarar-se e as copas das árvores voltaram a dourar-se com os primeiros raios
de sol. Ao redor iniciou-se o alvoroço dos pardais e o canto dos estorninhos - ruídos sedosos, golpes
de asas entorpecidas pela noite. Ouviu-se o mugir dos rebanhos acompanhado pelos gritos dos
pastores. Perto de nós, sobre um alto castiçal de mármore, ardia uma vela Chandor com a sua
chama pálida. O solo está coberto de pontas de cigarros, invólucros de bombons, copos partidos,
cascas de laranjas...
— Toma lá! - disse ao conde, entregando-lhe um maço de notas. - Tens de aceitar!
— Fui eu quem os convidei e não tu - contrapôs o conde com energia, agarrando-me pelo
casaco. - Sou eu o anfitrião. Mandei-te buscar. Por que razão hás-de ser tu a pagar? Não vês que me
ofendes?
— Eu também os convidei - retorqui. - Quero pagar a minha parte. Não queres aceitar o meu
dinheiro? Pois eu não aceito os teus favores! Julgas que por seres rico podes impor-me a tua
vontade? Diabos me levem. Fui eu quem convidou Karpov e serei eu a pagar-lhe. Eu é que redigi o
telegrama.
— Num restaurante, Serioja, podes pagar o que quiseres, mas a minha casa não é um
restaurante. E não compreendo porque te exaltas assim. Tens pouco dinheiro enquanto eu tenho-o
de sobra. Amais elementar equidade obriga-me a pagar toda a despesa.
— Então não queres o meu dinheiro? Não o queres, pois não?
Aproximei as notas da chama da vela, peguei-lhes fogo e atirei-as ao chão. Gaetan soltou um
gemido. Abriu os olhos, empalideceu e lançou-se por terra, procurando apagar as chamas com as
mãos. Os seus esforços foram coroados de êxito.
— Queimar dinheiro! - exclamou, en ando no bolso as notas chamuscadas. - Não posso
compreender tal coisa! Como se fosse o trigo do ano passado ou cartas de amor. É melhor dá-lo aos
pobres.
Encaminhei-me para casa. Em todas as divisões, sobre os sofás e os tapetes, dormiam os
cantores, esgotados. Tina dormia no sofá do salão dos azulejos.
Respirava com di culdade, de dentes cerrados e rosto pálido. Provavelmente via, em sonhos, o
baloiço...
A Coruja percorria os quartos espreitando, com os seus olhos penetrantes, as pessoas que
tinham perturbado o silêncio sepulcral daquela casa desabitada. Não era sem uma razão válida que
assim deambulava e cansava as pernas.
Eis o que me cou na memória daquelas duas noites de tremenda orgia - mas creio que é
su ciente. Tudo o mais esvaiu-se do meu cérebro perturbado pelo álcool ou não é próprio para ser
contado. E, por agora, basta!
k
Z
CAPÍTULO 7
k
orka nunca me transportou para casa com tanta energia como naquela manhã, depois do
episódio das notas... Parecia que também a égua tinha urgência em regressar.
As ondas espumantes do lago re ectiam o nascer do Sol. É difícil descrever o que ia dentro de
mim naquele momento. Direi somente, sem insistir, que me sentia inegavelmente feliz e, ao mesmo
tempo, corava de vergonha ao ver, na margem do lago, o velho Michei, esgotado pelo trabalho
honesto e pelas maleitas. A sua aparência fazia lembrar a dos pescadores da Bíblia.
Fiz estacar Zorka e estendi a mão ao velhote, como para me puri car, tocando na sua mão
calejada. Michei ergueu para mim os seus olhos espertos e sorriu.
— Bom dia, meu senhor - disse, acanhado e estendendo-me a mão. - Vem a cavalo. Quer dizer
que o vadio já regressou. Leio-o na sua cara. Eu observo sempre o que se passa à minha volta. O
mundo será sempre o mundo. Vaidade das vaidades. Olhe, o alemão está quase a morrer, mas
agora preocupa-se com futilidades. Veja-o.
O velhote, com o seu cajado, apontou para o pavilhão de banhos do conde, de onde saiu, num
bote, um homem com boné de jóquei e casaco azul: o jardineiro Frantz.
— Todas as manhãs vai à ilha para lá esconder dinheiro. O imbecil não compreende que, para
ele, o dinheiro e a areia têm o mesmo valor. Não o levará consigo, quando morrer. Dê-me um
cigarro, senhor.
Estendi-lhe a cigarreira e ele tirou três cigarros que guardou no bolso da camisa.
— São para o meu sobrinho... Ele gosta de fumar...
Impaciente, Zorka retomou a marcha. Despedi-me do velho, agradecido por me ter dado a
oportunidade de repousar os olhos no seu rosto. Michei cou a observar-me até eu desaparecer da
sua vista.
Em casa, Policarpe estava à minha espera. Mediu-me de alto a baixo, com um olhar de
desdém, como se quisesse certificar-se de que, também daquela vez, tomara banho vestido.
— Felicito-o - grunhiu. - Divertiu-se muito?
— Cala-te, idiota!
O seu ar estúpido irritou-me. Despi-me rapidamente, enterrei a cabeça na almofada e fechei os
olhos.
A cabeça andou-me à roda. Como que trazidas por uma bruma vaga, chegaram ao meu espírito
imagens familiares e recentes. Ouvi o grito "O marido matou a mulher... Ah, que estúpidos são
vocês!" A rapariga do vestido vermelho ameaçou-me com o dedo. Tina veio ensombrar o quarto
com os seus olhos negros e eu adormeci.
— Que sono delicioso e inocente! Dir-se-ia que nesta almofada repousa a consciência mais
sossegada deste mundo, que o conde não regressou ainda, que não houve nenhuma orgia nem
ciganos, que à beira do lago não se produziu qualquer escândalo... Levante-se homem maligno!
Não merece as delícias de um sono tranquilo.
Levante-se!
Entreabri os olhos e espreguicei-me com delícia. Da janela chegava um raio de sol em que
utuava o pó branco do quarto. Esse raio tão depressa desaparecia dos meus olhos como voltava a
incidir neles, consoante se interpunha ou não, diante de mim, o Dr. Pavel Ivanovitch Voznessenskí,
meu simpático vizinho.
O seu largo jaquetão desabotoado utuava-lhe sobre o corpo como se este fosse um cabide.
Com as mãos en adas nos bolsos das calças, exageradamente largas, ia de uma mesa para a outra
ou de um retrato para o seguinte, observando, com olhos de míope, tudo o que encontrava no
caminho.
Cedendo ao seu hábito de meter o nariz em quanto podia, inclinou-se para a frente para
examinar o lavatório, as pregas dos cortinados, as fendas das portas e o candeeiro, como se quisesse
assegurar-se de que tudo estava em ordem.
Examinando atentamente, através dos óculos colocados na ponta do nariz comprido, a menor
racha, a mais pequena mancha no papel de parede, assumia ar preocupado, resfolgava
ruidosamente e alisava as imperfeições que descobria com a ponta da unha e com o maior cuidado.
Fazia tudo aquilo maquinalmente, passando, com presteza, de um objecto para outro, como um
perito que procede a uma análise minuciosa.
— Já lhe disse que se levantasse! - repetiu com a sua suave voz cantante, enquanto
inspeccionava a saboneteira e extraía, com a unha, um cabelo colado ao sabão.
— Ah, bom dia, Sr. "Olhos piscos"! - disse eu, bocejando. - Quantos Outonos e quantas
Primaveras sem nos vermos!
Tal como eu, toda a gente do distrito conhece o médico pela alcunha de "Olhos piscos" porque,
na verdade, os seus olhos piscam constantemente. Ao ver-me acordado, Voznessenski aproximou-
se da cama, sentou-se nela e, de imediato, dirigiu a vista para uma caixa de fósforos.
— Só os preguiçosos e as pessoas de consciência tranquila dormem assim e, como você não é
uma coisa nem outra, convém que se levante quanto antes. , - Que horas são? — Passa das onze.
— Vá para o diabo! Ninguém lhe pediu que me acordasse tão cedo! Sabe que não consegui
dormir até às seis? Se não fosse você poderia ter dormido até ao fim da tarde.
— Pois claro! - protestou Policarpe do quarto vizinho. -Ainda não dormiu o su ciente. Há dois
dias que está a dormir e ainda não chega? Sabe que dia é hoje? - perguntou em seguida, entrando
no meu quarto e olhando para mim como os sãos de espírito olham para os loucos.
— Quarta-feira - respondi.
— Pois claro! - repetiu. - Esta semana teve duas quartas-feiras.
— Hoje é quinta-feira - declarou o médico. - Com que então deu-se ao luxo de dormir durante
todo o dia de ontem. Muito bonito! Que diabo bebeu você?
— Passei duas noites sem dormir, mas não me recordo do que bebi.
Mandei embora Policarpe e comecei a vestir-me, enquanto relatava ao médico as "noites loucas"
que acabara de viver, tão aliciantes nas novelas e tão desagradáveis na vida real. Procurei adoptar
um tom ligeiro, limitando-me a narrar os acontecimentos, sem extrair a moral da história, embora a
natureza humana seja dada a tirar conclusões de tudo quanto acontece.
Parecia que estava a contar ninharias a que era de todo alheio e, conhecendo a sua aversão por
Karnieiev, omiti inúmeros pormenores, mas, apesar do meu tom contido, não logrei que Pavel
Ivanovitch deixasse de me tar com ar muito sério, abanando a cabeça e demonstrando a sua
impaciência. Era evidente que o meu "tom ligeiro" não o convencia.
— Porque não se ri, meu caro "Olhos piscos"? - perguntei, quando dei por findo o relato.
— Se não fosse você a contar-me isso e também se eu não soubesse de outro episódio
confirmativo, não acreditaria no que ouvi. É por demais escandaloso, meu amigo.
— A que episódio se refere?
— Ontem de tarde, um mujique chamado Ivan Ossipov veio ver-me... Lembra-se? Você
agrediu-o de forma muito pouco delicada.
— Ivan Ossipov? - exclamei, levantando-me, - É
a primeira vez que ouço esse nome.
— Um homem alto, arruivado, sardento... Veja se consegue recordar-se... Você deu-lhe com
um remo na cabeça!
— Não me lembro. Não conheço nenhum Ivan Ossipov e não dei com um remo na cabeça de
ninguém.
Deve ser confusão sua...
— Quem me dera que assim fosse... Ossipov trazia um mandado administrativo para que eu
elaborasse um atestado médico. O mandado dizia que foi você quem o agrediu. Ainda não se
lembra? Ferida contusa na parte superior da testa, junto do couro cabeludo... Golpeou-o até ao
osso, meu caro.
— Não me lembro - murmurei. - Quem é ele?
O que faz?
— É um trabalhador ao serviço do conde. Andava a remar no lago, enquanto os senhores se
divertiam.
— Hum, pode ser, mas não me recordo! Muito provavelmente estava embriagado e z
inadvertidamente algo que o feriu...
— Não houve nada de involuntário nem de acidental neste caso. O homem garante que você se
irritou com ele, que o injuriou grosseiramente e, por m, enfurecido, se atirou a ele, na presença de
testemunhas, e o golpeou, enquanto gritava: "Vou matar-te, canalha!"
Corei e pus-me a caminhar de um lado para o outro.
— Que me enforquem se consigo recordar-me! - exclamei, fazendo um esforço sobre-humano
para me recordar do episódio. - Não me lembro! "Enfurecido", não foi o que disse? Na verdade,
quando me embriago, torno-me bastante odioso!
— Como pensa resolver este assunto?
— É manifesto que o homem quer armar escândalo, mas isso é o menos... O pior é o
ferimento... Como foi possível ter-lhe batido dessa maneira? Porque iria eu agredir esse pobre
mujique?
— Aí é que reside o problema, meu amigo. Não pude recusar-lhe o atestado, mas não deixei de
o aconselhar a vir falar consigo... Veja se chega a acordo com ele, seja de que maneira for... Aferida
é pequena, mas, aqui entre nós que ninguém nos ouve, um golpe na cabeça que chega até ao osso é
coisa muito séria. Não é raro que uma ferida dessas, que parece benigna, evolua para uma necrose
dos ossos cranianos com a fatal viagem ad patres no fim...
Entusiasmado, "Olhos piscos" levantou-se, dirigiu-se até à parede, a agitar os braços, e começou
a debitar os seus conhecimentos de patologia cirúrgica.
— Por favor, não me entonteça! - disse eu, interrompendo-o. - Não vê que tudo isto é muito
desagradável para mim?
— Não vai dar em nada, acredite... Siga o meu conselho, peça-lhe desculpas e chegue a acordo
com ele...
E da próxima vez seja mais circunspecto e não cometa disparates como este. Se não chegar a
acordo com esse tinhoso Ossipov, pode vir a perder o seu cargo. Um sacerdote de Temis acusado de
ofensas corporais voluntárias! Que belo escândalo!
Pavel Ivanovitch é o único homem de quem aceito uma advertência sem franzir o sobrolho, a
única pessoa que, se quiser, pode tar-me com ar interrogatório ou levar as suas investigações até às
profundezas da minha alma. Somos amigos, no melhor sentido da palavra, nutrindo profunda
estima mútua, embora subsista por saldar entre nós uma conta antiga de natureza delicada e
desagradável.
Entre ele e eu, como agente de discórdia, passou certa vez uma mulher. Este eterno casus belli
criou embaraços, mas não nos levou a cortar relações. Pavel Ivanovitch é um excelente homem.
Gosto da sua cara simples, que nada deve à beleza; gosto do seu enorme nariz, dos seus olhos
piscos, da sua barbicha ruiva, do seu escasso cabelo.
Usa calças mal talhadas, muito largas e enrugadas nos joelhos. A gravata branca nunca está
bem posta.
A sua negligência, contudo, é compreensível. Não tem tempo para ocupar-se de si próprio nem
sabe fazê-lo.
Não fuma, não bebe e não gasta com mulheres os dois mil rublos que ganha por mês. No
entanto, há duas paixões que o arruínam: a mania de emprestar dinheiro sem garantias e sem
reclamar o reembolso e a de comprar tudo quanto vem anunciado nos jornais: livros, binóculos de
teatro, revistas humorísticas, serviços de mesa "composto por cem peças", cronómetros, etc. Por essa
razão, não admira que os seus pacientes confundam a casa do médico com um arsenal ou com um
museu. Em conclusão: é um bom rapaz e iremos encontrá-lo, amiúdo, nas páginas desta novela.
— Oh! Já perdi demasiado tempo consigo! - exclamou, olhando para o seu relógio barato, de
tampo duplo, garantido por cinco anos e já com dois consertos no activo. - Tenho de ir-me embora,
meu amigo! Adeus e cuide de si. Esses excessos em casa do conde vão acabar mal... Ah, a propósito,
amanhã vai a Tenieievo?
— Amanhã? Porquê?
— É a festa da paróquia! Toda a gente estará presente e você também deve fazer o mesmo. Não
se esqueça de ir! Disse que você não faltaria e dei a minha palavra. Não me deixe ficar mal!
Não carecia de perguntar a quem dera ele a sua palavra. Ambos o sabíamos. Despediu-se,
envergou o sobretudo já muito usado e saiu.
k
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov
Contos policiais de Tchekhov

Weitere ähnliche Inhalte

Was ist angesagt?

Emotion worksheet
Emotion worksheetEmotion worksheet
Emotion worksheetRaja Muein
 
Aku sebuah basikal
Aku sebuah basikalAku sebuah basikal
Aku sebuah basikallizahmerah
 
ESL: Classroom Objects
ESL: Classroom Objects ESL: Classroom Objects
ESL: Classroom Objects A. Simoes
 
Welcome - what´s your name
Welcome - what´s your nameWelcome - what´s your name
Welcome - what´s your namejuankii18
 
Telling the time, tell the time esl efl
Telling the time, tell the time esl eflTelling the time, tell the time esl efl
Telling the time, tell the time esl eflIrenya S
 
Clothes ppt
Clothes pptClothes ppt
Clothes pptafofi
 
kuiz pendidikan kesihatan tahun 1
kuiz pendidikan kesihatan tahun 1kuiz pendidikan kesihatan tahun 1
kuiz pendidikan kesihatan tahun 1PAKLONG CIKGU
 
Latihan soal
Latihan soalLatihan soal
Latihan soaldewiangga
 
Suku kata v + kv
Suku kata v + kvSuku kata v + kv
Suku kata v + kvAngel Kok
 
Memindah maklumat 04
Memindah maklumat 04Memindah maklumat 04
Memindah maklumat 04Kathleen Ong
 
Uts semester 1 matematika kelas 5 tahun tahun pelajaran 2015/2016
Uts semester 1 matematika kelas 5 tahun tahun pelajaran  2015/2016Uts semester 1 matematika kelas 5 tahun tahun pelajaran  2015/2016
Uts semester 1 matematika kelas 5 tahun tahun pelajaran 2015/2016Terry Brengost
 
22636056 bahasa-malaysia-tahun-1
22636056 bahasa-malaysia-tahun-122636056 bahasa-malaysia-tahun-1
22636056 bahasa-malaysia-tahun-1Ravin Ravi
 
Greetings and introductions 1eso
Greetings and introductions 1esoGreetings and introductions 1eso
Greetings and introductions 1esoMaría Valeije
 
Slide Alat Muzik Tradisional
Slide Alat Muzik TradisionalSlide Alat Muzik Tradisional
Slide Alat Muzik TradisionalErwina Masir
 
Latihan asas menulis karangan isi tempat kosong
Latihan asas menulis karangan isi tempat kosongLatihan asas menulis karangan isi tempat kosong
Latihan asas menulis karangan isi tempat kosongZamri Ghani
 
Things in the classroom2
Things in the classroom2Things in the classroom2
Things in the classroom2SUE
 
Adjectives to describe the weather
Adjectives to describe the weatherAdjectives to describe the weather
Adjectives to describe the weatherHussain Al-ghawi
 

Was ist angesagt? (20)

Latihan kvkv
Latihan kvkvLatihan kvkv
Latihan kvkv
 
Emotion worksheet
Emotion worksheetEmotion worksheet
Emotion worksheet
 
Aku sebuah basikal
Aku sebuah basikalAku sebuah basikal
Aku sebuah basikal
 
Describing famous people
Describing famous peopleDescribing famous people
Describing famous people
 
ESL: Classroom Objects
ESL: Classroom Objects ESL: Classroom Objects
ESL: Classroom Objects
 
Welcome - what´s your name
Welcome - what´s your nameWelcome - what´s your name
Welcome - what´s your name
 
Telling the time, tell the time esl efl
Telling the time, tell the time esl eflTelling the time, tell the time esl efl
Telling the time, tell the time esl efl
 
Clothes ppt
Clothes pptClothes ppt
Clothes ppt
 
kuiz pendidikan kesihatan tahun 1
kuiz pendidikan kesihatan tahun 1kuiz pendidikan kesihatan tahun 1
kuiz pendidikan kesihatan tahun 1
 
Latihan soal
Latihan soalLatihan soal
Latihan soal
 
Suku kata v + kv
Suku kata v + kvSuku kata v + kv
Suku kata v + kv
 
Memindah maklumat 04
Memindah maklumat 04Memindah maklumat 04
Memindah maklumat 04
 
Uts semester 1 matematika kelas 5 tahun tahun pelajaran 2015/2016
Uts semester 1 matematika kelas 5 tahun tahun pelajaran  2015/2016Uts semester 1 matematika kelas 5 tahun tahun pelajaran  2015/2016
Uts semester 1 matematika kelas 5 tahun tahun pelajaran 2015/2016
 
22636056 bahasa-malaysia-tahun-1
22636056 bahasa-malaysia-tahun-122636056 bahasa-malaysia-tahun-1
22636056 bahasa-malaysia-tahun-1
 
Greetings and introductions 1eso
Greetings and introductions 1esoGreetings and introductions 1eso
Greetings and introductions 1eso
 
Slide Alat Muzik Tradisional
Slide Alat Muzik TradisionalSlide Alat Muzik Tradisional
Slide Alat Muzik Tradisional
 
Latihan KV KV
Latihan KV KVLatihan KV KV
Latihan KV KV
 
Latihan asas menulis karangan isi tempat kosong
Latihan asas menulis karangan isi tempat kosongLatihan asas menulis karangan isi tempat kosong
Latihan asas menulis karangan isi tempat kosong
 
Things in the classroom2
Things in the classroom2Things in the classroom2
Things in the classroom2
 
Adjectives to describe the weather
Adjectives to describe the weatherAdjectives to describe the weather
Adjectives to describe the weather
 

Andere mochten auch

O inimigo
O inimigoO inimigo
O inimigoLRede
 
A mulher do farmacêutico
A mulher do farmacêuticoA mulher do farmacêutico
A mulher do farmacêuticoLRede
 
A obra de arte
A obra de arteA obra de arte
A obra de arteLRede
 
O bilhete premiado
O bilhete premiadoO bilhete premiado
O bilhete premiadoLRede
 
Cronologia viva
Cronologia vivaCronologia viva
Cronologia vivaLRede
 
As três irmãs - Anton Tchekhov
As três irmãs - Anton TchekhovAs três irmãs - Anton Tchekhov
As três irmãs - Anton TchekhovLRede
 

Andere mochten auch (6)

O inimigo
O inimigoO inimigo
O inimigo
 
A mulher do farmacêutico
A mulher do farmacêuticoA mulher do farmacêutico
A mulher do farmacêutico
 
A obra de arte
A obra de arteA obra de arte
A obra de arte
 
O bilhete premiado
O bilhete premiadoO bilhete premiado
O bilhete premiado
 
Cronologia viva
Cronologia vivaCronologia viva
Cronologia viva
 
As três irmãs - Anton Tchekhov
As três irmãs - Anton TchekhovAs três irmãs - Anton Tchekhov
As três irmãs - Anton Tchekhov
 

Ähnlich wie Contos policiais de Tchekhov

Noite na Taverna
Noite na TavernaNoite na Taverna
Noite na TavernaKauan_ts
 
Tchekhov
TchekhovTchekhov
TchekhovFuturi
 
Tchekhov
TchekhovTchekhov
TchekhovFuturi
 
Tchekhov
TchekhovTchekhov
TchekhovFuturi
 
A última quimera 2
A última quimera 2A última quimera 2
A última quimera 2sergios3rgio
 
Tchekhov
TchekhovTchekhov
TchekhovFuturi
 
Historias Em Quadrinhos
Historias Em QuadrinhosHistorias Em Quadrinhos
Historias Em QuadrinhosMarcos Silva
 
Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis
Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de AssisMemórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis
Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assisjasonrplima
 
Aula memórias póstumas de brás cubas machado de assis
Aula memórias póstumas de brás cubas   machado de assisAula memórias póstumas de brás cubas   machado de assis
Aula memórias póstumas de brás cubas machado de assisB Vidal
 
Machado um contista desconhecido
Machado um contista desconhecidoMachado um contista desconhecido
Machado um contista desconhecidoPriscila Silva
 
Literatura aula 16 - machado de assis
Literatura   aula 16 - machado de assisLiteratura   aula 16 - machado de assis
Literatura aula 16 - machado de assismfmpafatima
 
Os Memoráveis de Lídia Jorge
Os Memoráveis de Lídia JorgeOs Memoráveis de Lídia Jorge
Os Memoráveis de Lídia JorgeCarolina Sobrenome
 

Ähnlich wie Contos policiais de Tchekhov (20)

85
8585
85
 
A crônica
A crônicaA crônica
A crônica
 
Noite na Taverna
Noite na TavernaNoite na Taverna
Noite na Taverna
 
Cronicas futuro
Cronicas futuroCronicas futuro
Cronicas futuro
 
Tchekhov
TchekhovTchekhov
Tchekhov
 
Tchekhov
TchekhovTchekhov
Tchekhov
 
Tchekhov
TchekhovTchekhov
Tchekhov
 
Tchekhov
TchekhovTchekhov
Tchekhov
 
Tchekhov
TchekhovTchekhov
Tchekhov
 
Tchekhov
TchekhovTchekhov
Tchekhov
 
A última quimera 2
A última quimera 2A última quimera 2
A última quimera 2
 
Tchekhov
TchekhovTchekhov
Tchekhov
 
A tribuna alma
A tribuna almaA tribuna alma
A tribuna alma
 
Historias Em Quadrinhos
Historias Em QuadrinhosHistorias Em Quadrinhos
Historias Em Quadrinhos
 
Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis
Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de AssisMemórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis
Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis
 
Aula memórias póstumas de brás cubas machado de assis
Aula memórias póstumas de brás cubas   machado de assisAula memórias póstumas de brás cubas   machado de assis
Aula memórias póstumas de brás cubas machado de assis
 
Proust
ProustProust
Proust
 
Machado um contista desconhecido
Machado um contista desconhecidoMachado um contista desconhecido
Machado um contista desconhecido
 
Literatura aula 16 - machado de assis
Literatura   aula 16 - machado de assisLiteratura   aula 16 - machado de assis
Literatura aula 16 - machado de assis
 
Os Memoráveis de Lídia Jorge
Os Memoráveis de Lídia JorgeOs Memoráveis de Lídia Jorge
Os Memoráveis de Lídia Jorge
 

Mehr von LRede

Livro do Projeto Mulheres Mil
Livro do Projeto Mulheres MilLivro do Projeto Mulheres Mil
Livro do Projeto Mulheres MilLRede
 
Histórias para oficina simpósio
Histórias para oficina simpósioHistórias para oficina simpósio
Histórias para oficina simpósioLRede
 
Era uma vez... Não foi bem assim!
Era uma vez... Não foi bem assim!Era uma vez... Não foi bem assim!
Era uma vez... Não foi bem assim!LRede
 
Um drama na caca & outros contos anton tchekhov
Um drama na caca & outros contos   anton tchekhovUm drama na caca & outros contos   anton tchekhov
Um drama na caca & outros contos anton tchekhovLRede
 
A ceia-dos-mortos-salma-ferraz
A ceia-dos-mortos-salma-ferrazA ceia-dos-mortos-salma-ferraz
A ceia-dos-mortos-salma-ferrazLRede
 
O ateu-ambulante-salma-ferraz
O ateu-ambulante-salma-ferrazO ateu-ambulante-salma-ferraz
O ateu-ambulante-salma-ferrazLRede
 
Encarnação
EncarnaçãoEncarnação
EncarnaçãoLRede
 
O navio negreiro
O navio negreiroO navio negreiro
O navio negreiroLRede
 
Ultimos sonetos
Ultimos sonetosUltimos sonetos
Ultimos sonetosLRede
 

Mehr von LRede (9)

Livro do Projeto Mulheres Mil
Livro do Projeto Mulheres MilLivro do Projeto Mulheres Mil
Livro do Projeto Mulheres Mil
 
Histórias para oficina simpósio
Histórias para oficina simpósioHistórias para oficina simpósio
Histórias para oficina simpósio
 
Era uma vez... Não foi bem assim!
Era uma vez... Não foi bem assim!Era uma vez... Não foi bem assim!
Era uma vez... Não foi bem assim!
 
Um drama na caca & outros contos anton tchekhov
Um drama na caca & outros contos   anton tchekhovUm drama na caca & outros contos   anton tchekhov
Um drama na caca & outros contos anton tchekhov
 
A ceia-dos-mortos-salma-ferraz
A ceia-dos-mortos-salma-ferrazA ceia-dos-mortos-salma-ferraz
A ceia-dos-mortos-salma-ferraz
 
O ateu-ambulante-salma-ferraz
O ateu-ambulante-salma-ferrazO ateu-ambulante-salma-ferraz
O ateu-ambulante-salma-ferraz
 
Encarnação
EncarnaçãoEncarnação
Encarnação
 
O navio negreiro
O navio negreiroO navio negreiro
O navio negreiro
 
Ultimos sonetos
Ultimos sonetosUltimos sonetos
Ultimos sonetos
 

Contos policiais de Tchekhov

  • 1.
  • 2. ANTON TCHEKHOV UM DRAMA NA CAÇA & Outros Contos Tradução: J. Ferreira Mezes
  • 3. ANTON TCHEKHOV UM DRAMA NA CAÇA © 1936 by Tchekhov, Anton Classificação: Rússia – Séculos XIX e XX - Ficção Título Da Edição Francesa: Un Drame À La Chasse Publicado em: 2004 Tradução: J. Ferreira Mezes Anton Pavlovitch Tchecov nasceu em Taganrog, 29 de janeiro de 1860 faleceu — Badenweiler, 15 de julho de 1904 Foi um médico, dramaturgo e escritor russo, considerado um dos maiores contistas de todos os tempos. Em sua carreira como dramaturgo criou quatro clássicos e seus contos têm sidos aclamados por escritores e críticos.Tchecov foi médico durante a maior parte de sua carreira literária, e em uma de suas cartas ele escreve a respeito: "A medicina é a minha legítima esposa; a literatura é apenas minha amante." Tchecov renunciou do teatro e deixou de escrever obras teatrais após a péssima recepção de A Gaivota em 1896, mas a obra foi reencenada e aclamada em 1898, interpretada pela companhia Teatro de Arte de Moscou de Constantin Stanislavski que interpretaria também Tio Vânia , As Três Irmãs e O Jardim das Cerejeiras. Conversão & Formatação: Fonte usadas no eBook: ContreraMinionPro - HelveticaNeueLT Std - Corpo 12 Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Download: Adobe Digital Editions - Readers for ePub3 Extensão para o Google Chrome:Download ISBN 972-38-2720-4 (recurso eletrônico) 1. Romance Russo. 2. Livros eletrônicos.
  • 4. ANTON TCHEKHOV ROMANCISTA POLICIAL É desnecessário apresentar seja a quem for, em qualquer parte do mundo, o grande contista, novelista e dramaturgo russo que foi Anton Pavlovitch Tchekhov (1860-1904). Descendente de servos libertados, filho de um merceeiro - que, na sua loja, também vendia bebidas a copo e medicamentos -, Anton, nascido em Taganrog, na costa do Mar de Azov, licenciou-se em Medicina aos 24 anos e, logo após, dedicou-se a escrever pequenos contos. O seu enorme talento não tardou a ser reconhecido e, admitido como colaborador de um dos mais prestigiosos jornais literários da Rússia (o Novie Vremia), a fama de Tchekhov não parou de crescer. Entre as suas obras mais divulgadas contam-se "a Estepe" 1888) e as peças "A Gaivota" (1896), "O Tio Vânia" (1897) e " O Jardim das Cerejeiras" (1903). "Um Drama na Caça" - tido por alguns como o único romance escrito por Tchekhov - é uma das suas primeiras produções publicadas. Foi servido aos leitores do Nôvosti Dnia, em folhetins, no ano de 1884 e 1885 e, para assinar a obra, o autor serviu-se de dois pseudónimos: "Ante" e, Depois, "Antone Tchekonnte". O romance ficou esquecido durante vários anos, tendo sido omitido pelo próprio Tchekhov quando, em 1899, cedeu ao (bem nomeado) editor Marx os escritos das suas "Obras Completas", em dez volumes. A reedição, dita "da Niva", de 1903, embora agregasse novos textos e compreendesse 16 tomos, também não acolheu "Um Drama na Caça". Em 1930, o Governo da URSS descobriu a narrativa e, finalmente, incluiu-a em novas "Obras", desta vez verdadeiramente "completas", se bem que comprimidas em 13 volumes. Ao Ocidente, o romance só chegou em 1936, quando a "Librairie Plou" editou Un Drame à la Chasse (Histoire vraie), como apêndice, hors série, nos vinte volumes das "Oeuvres Completes d'Anton Tchékov" e, como aqueles, traduzido por Denis Roche. Se bem que o romance exiba já as características que iam tornar ímpar a obra de Tchekhov, é manifesta a influência exercida sobre o autor pela produção de outro folhetinista, então muito em voga: Émile Gaboriau, "pai" do roman policiair. Logo numa das páginas iniciais, é nomeado o agente Lecoq que, como se sabe, protagonizou várias obras de Gaboriau e é considerado, ainda hoje, como principal candidato à sucessão, em termos cronológicos, do chevalier Dupin, de Edgar Poe. Com a publicação desta obra - que por si só enobrece a Ficção Policial -, a colecção Vampiro homenageia Tchekhov no centenário da sua morte. Deixemos o leitor deliciar-se com a narrativa deste grande nome da Literatura Universal. Depois de dobrada a última folha - mas, adverte-se, só depois - quem quiser saber mais sobre "Um Drama na Caça" poderá consultar o posfácio dedicado ao seu pioneirismo.
  • 5. Sumário Anton tchekhov Livro (Extractos Das Memóriasde Um Juiz De Instrução Criminal) Prólogo Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Capítulo 10 Capítulo 11 Capítulo 12 Capítulo 13 Capítulo 14 Capítulo 15 Capítulo 16 Capítulo 17 Capítulo 18 Capítulo 19 Capítulo 20 Capítulo 21 Capítulo 22 Capítulo 23 Capítulo 24 Capítulo 25 Capítulo 26 Capítulo 27 Comentário Posfácio A Aposta I II A Condecoração A Corista A Enfermaria Número Seis I II III IV V VI VII VIII IX X XI XII XIII XIV XV
  • 6. XVI XVII XVIII XIX A Esposa A Feiticeira A Jóia Roubada A Morte do Funcionário A Mulher Do Farmacêutico A NOIVA I II III IV V VI ANGÚSTIA A OBRA DE ARTE Borboleta I II III IV V VI VII VIII Brincadeira Dô-doce(1) Livro de Reclamações No Mar da Criméia I II III IV V O Adulador O Bilhete De Loteria O Bispo I II III IV O Caçador O Monge Negro I II III IV V VI VII VIII IX O Orador O Sapateiro e a Força Maligna O Vingador Olhos Mortos De Sono
  • 8. LIVRO (EXTRACTOS DAS MEMÓRIASDE UM JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL)
  • 9. -Q PRÓLOGO k ual é o assunto da sua obra? - perguntei, com displicência, ao cavalheiro elegante, extremamente ágil e desembaraçado, chamado Ivan Kamichov que, com di culdades nanceiras e embora se confessasse um principiante, viera propor-me a publicação de um volumoso manuscrito. — Que posso dizer-lhe?... O tema não é novo... Amor... assassínio... Leia-o e o senhor mesmo verá... São ; memórias de um juiz de instrução criminal... Devo ter franzido as sobrancelhas porque Kamichov pestanejou, teve um sobressalto e acrescentou, de pronto: - A minha história está escrita em velho estilo . policial, mas relata um facto real... verdadeiro. Tudo o que evoco passou-se perante os meus olhos, desde o princípio até ao m. Fui testemunha do sucedido e cheguei mesmo a tomar parte no caso... - O importante não é a verdade e tão-pouco é indispensável ter visto um acontecimento para o descrever de forma adequada. O nosso público está farto dos romances de Gaboriau e de Chkliarevski. Farto de assassínios misteriosos, de detectives perspicazes e de sagazes juízes de instrução. E claro que há leitores e leitores; falo dos que lêem o nosso jornal e os seus folhetins. Qual é o título da sua história? — "Um Drama na Caça". — Ora, meu caro senhor, isso não é um título que se veja!... E, na verdade, tenho já tantos originais para publicar que me é praticamente impossível aceitar outros, por melhores que sejam. — Apesar de tudo, senhor, que com o meu manuscrito... Disse não ser coisa que se veja, mas pode quali cá-lo dessa forma, antes de o ter lido?... E por que razão não quer admitir que até os juízes de instrução saibam escrever a sério? Kamichov gaguejava, fazia girar um lápis entre os dedos e tinha o olhar xo nas biqueiras dos sapatos. Acabei por sentir pena dele. — Muito bem... Deixe-me, então, o seu manuscrito, mas não posso prometer-lhe lê-lo imediatamente. Vai ter de esperar... — Por muito tempo? — Não sei ao certo... Volte dentro de dois ou três meses... — Oh, tanto tempo! Bom, não me atrevo a insistir... Esperarei. Levantou-se e pegou no seu gorro, um gorro de funcionário público. — Agradeço-lhe por me ter recebido - acrescentou. — Tenho de alimentar esperanças... esperanças durante três meses... Não quero, contudo, roubar-lhe mais tempo... Queira aceitar os meus cumprimentos. — Um momento! - exclamei, depois de ter folheado o grosso maço de folhas manuscritas com letra miúda. — A sua narrativa está escrita na primeira pessoa.
  • 10. O juiz de instrução é o senhor mesmo? — Sou, sim, mas sob nome suposto. O meu papel, neste caso, foi um tanto confuso... Teria sido desagradável figurar nele com o meu nome verdadeiro... Daqui a três meses, não foi o que disse? — Sim, pelo menos. — Despeço-me, desejando-lhe as maiores felicidades. O ex-juiz de instrução saudou-me com um cortês aceno de cabeça, fez girar delicadamente o fecho da porta e desapareceu, deixando o seu manuscrito em cima da minha secretária. Guardei-o numa gaveta e ali permaneceu durante dois meses. Por ocasião de uma viagem que tive de fazer, lembrei-me dele e levei-o comigo. No comboio, comecei a leitura a meio e o que li despertou a minha atenção. Nessa mesma tarde, se bem que me escasseasse o tempo, li toda a narrativa desde as primeiras linhas até à palavra "Fim", escrita em letra gorda e com notória energia. A noite, voltei a ler a história e a madrugada surpreendeu-me a passear pela varanda, esfregando as frontes como que para afastar do espírito um pensamento inesperado e a itivo... Era, com efeito, uma ideia dolorosa, quase insuportável... Embora não seja juiz de instrução nem doutorado em Psicologia julgava haver descoberto um segredo atroz, um segredo em relação ao qual não sabia o que fazer. Perturbado, passeei pela varanda, de um lado para o outro, procurando persuadir-me de que não devia atribuir exagerada importância ao que, segundo pensava, havia deduzido. A história acabou por ser publicada no jornal que dirijo pelos motivos que, mais adiante, revelarei aos leitores. Por agora proponho apenas que leiam a obra de Kamichov. Não é, decerto, nada de extraordinário e nem sequer está isenta de redundâncias e de imperfeições... O autor preocupa-se, por vezes, com frases de impacto... Vê-se que escreve pela primeira vez e que não é particular mente destro no uso da pena, mas o seu relato é de fácil leitura. Há um tema, uma ideia mestra e, o que é original, trata-se de uma narrativa "sui generis"... Em resumo, vale a pena lê-la. Aqui fica. k
  • 11. -O CAPÍTULO 1 k marido matou a mulher! Ah, que estúpidos são vocês!... Passem-me o açucareiro! Aquelas exclamações acordaram-me. Espreguicei-me e senti um certo mal-estar e os membros tolhidos... Pode sentir-se um braço dormente, ou uma perna, mas, daquela vez, parecia-me que todo o meu corpo estava tolhido, da cabeça aos calcanhares. Uma sesta num ambiente sufocante, de estufa, no meio dos zumbidos das moscas e mosquitos acaba por nos enfraquecer, em vez de nos recompor. Alquebrado, banhado em suor, levantei-me e dirigi-me para a janela. O Sol, ainda alto, queimava com o mesmo ardor de três horas antes. Faltava bastante tempo para que se ocultasse por detrás do horizonte, dando lugar à frescura da noite... — O marido matou a mulher! - gritei, dando um ligeiro piparote no bico do papagaio. - Pára de mentir!... Os maridos, meu caro, só matam nas novelas ou nos trópicos, onde fervem paixões africanas! Quanto a nós, bastam-nos os horrores dos roubos por arrombamento ou das falsi cações de identidade! — Roubos por arrombamento! - repetiu Ivan Demianitch com o seu bico adunco. -Ah, que estúpidos são vocês! — Que queres, meu amigo? Que culpa temos se o nosso cérebro é tão limitado? Não é nenhum crime, Ivan Demianitch, ser estúpido com um calor tão sufocante. Tu és muito esperto, meu caro, mas o teu cérebro também se derreteu. O calor pôs-te idiota. Toda a gente trata o meu papagaio por Ivan Demianitch. Adquiriu esse nome por casualidade no dia em que o meu criado Policarpe, ao limpar a gaiola, fez uma descoberta sem a qual o meu nobre pássaro continuaria a chamar-se simplesmente "o papagaio"... Policarpe apercebeu-se, de súbito, que o bico da ave era assombrosamente parecido com o nariz de Ivan Demianitch, o merceeiro da terra. E, a partir desse dia, o nome e o apelido do comerciante de nariz grande caram para sempre ligados ao papagaio. A descoberta de Policarpe incorporou o animal no género humano e, ao mesmo tempo, o merceeiro, perdendo o nome, passou a ser, na boca da gente da aldeia, o "papagaio do senhor juiz de instrução". Comprei Ivan Demianitch à mãe do meu antecessor, o juiz de instrução Pospielov, juntamente com a velha mobília de carvalho, a bateria de cozinha e todos os artefactos de Pospielov, falecido pouco tempo antes da minha nomeação. Ainda agora as paredes da minha casa estão ornadas com fotogra as dos seus parentes e, por cima da cama, encontra-se pendurado o retrato do anterior proprietário. Não cessa de me tar, quando estou deitado... Em resumo: não tirei nenhuma fotogra a das paredes e o apartamento encontra-se tal como no dia em que o tomei de arrendamento. Sou demasiado preguiçoso para me preocupar com o conforto e não estou minimamente interessado em negar, seja aos mortos seja aos vivos - se for essa a sua vontade -, o privilégio de continuarem pendurados nas paredes da minha casa. O papagaio achava-se tão incomodado com o calor como eu. Espanejava a plumagem, abria as asas e repetia as frases que lhe haviam sido ensinadas pelo meu antecessor e por Policarpe.
  • 12. Para me entreter pus-me a observar os movimentos do pássaro, procurando, como podia, evitar o tormento do calor e dos insectos que se haviam introduzido nas suas penas. Parecia muito infeliz. Da antecâmara chegou-me aos ouvidos uma voz grave. — A que horas acorda? — Depende - respondeu Policarpe. - Por vezes, às cinco, mas em outras ocasiões, ca a dormir até de manhã... É natural. Não tem nada que fazer... — O senhor trabalha para ele? — Sou o seu criado. Mas basta de conversas... Estás a incomodar-me. Não vês que estou a ler? Dirigi-me à antecâmara. Sobre a grande arca encarnada, Policarpe, como de costume, lia um livro. Com os olhos semicerrados, muito próximo das páginas impressas, movia os lábios e franzia as sobrancelhas. A presença de um estranho, um mujique barbudo, de alta estatura, que procurava em vão prolongar a conversa, enfastiava-o visivelmente. Ao ver-me, o campónio afastou-se da arca, e assumiu uma atitude ] reverente. Sem tirar os olhos do livro, Policarpe, com ar aborrecido, soergueu-se. - Que queres? - perguntei ao mujique. - Venho da parte do senhor conde, Excelência. O senhor conde dignou-se enviar os seus cumprimentos a Vossa Excelência, informando-o de que deve apresentar-se imediatamente em sua casa. - O conde já regressou? - perguntei, surpreendido. - Exactamente, Excelência... Regressou ontem à noite. Aqui tem uma carta dele. — Foi o Diabo que o trouxe de volta! - grunhiu Policarpe. - Enquanto esteve longe passámos dois Verões tranquilos. Agora que regressou, vai reabrir a sua pocilga. Que pouca vergonha! — Cala-te! Ninguém pediu a tua opinião. — Mesmo assim, digo o que tenho a dizer! Vão voltar as bebedeiras! Vão voltar os banhos no lago, com a roupa vestida!... E depois: "Policarpe, limpa!" É trabalho para três dias, pelo menos... — Que faz hoje o senhor conde? - perguntei ao campónio. — Encontrava-se à mesa, quando me ordenou que viesse até aqui. E, antes de ir comer, esteve a pescar à linha, no pavilhão dos banhos... Que resposta deseja que lhe transmita? : : ; Abri a carta e li: : . ) Meu caro Lecoq: (1) , Se ainda estás vivo e de saúde, e se não te esqueceste do teu sedento amigo, sai do claustro em que vives e corre para minha casa. Regressei esta ; noite e já morro de tédio. A impaciência com que te ; aguardo é in nita. Gostaria de ir, eu próprio, buscar- -te e trazer-te até ao meu covil, mas este calor deixa- -me sem forças. Sofro e fico a abanar-me com o leque. Como está o teu engenhoso Ivan Demianitch? E tu? : Continuas em guerra perpétua com o irascível Policarpe? Vem, tão depressa quanto possível, para me dares as respostas. Teu A. K.
  • 13. (1) O agente Lecoq, um dos mais notáveis detectives dos primórdios da Ficção Policial, divide, com o Père Tabaret e o chefe Gevrol a investigação de L'Affaire Lerouge (1863). Em seguida, assumiu-se como principal personagem dos restantes romans policiers de Émile Gaboriau, desde Le Dossier 113 (1867) a La Corde au Cou (1873). (N. do T.) Não era necessário decifrar a assinatura para que eu reconhecesse a caligra a grande e fria traçada pela mão insegura do alcoólico inveterado Alexei Karnieiev. A brevidade da carta e a sua aparente jovialidade levaram-me a pensar que o meu pouco inteligente amigo havia rasgado muitas folhas de papel, antes de conseguir escrever aquele texto. Com astúcia, havia evitado as formas gramaticais e as palavras não conseguidas à primeira vez. — Que resposta deseja que eu transmita ao senhor conde? - insistiu o mujique. Pensei durante uns momentos; qualquer homem honesto, no meu lugar, teria também hesitado. O conde gostava de mim e buscava sinceramente a minha amizade; comigo passava-se o contrário. Por conseguinte, teria sido mais honesto romper, de uma vez por todas, tal relação de amizade, não levando por diante aquele jogo hipócrita. Ir visitá-lo equivaleria, decerto, a mergulhar de novo naquela maneira de vida que Policarpe equiparara a uma pocilga e que, antes da ida do conde para São Petersburgo, havia minado a minha saúde, em regra perfeita, e debilitado o meu cérebro. Essa vida desregrada e insólita, embora não me tivesse arruinado de nitivamente o organismo, granjeara-me, contudo, uma nefasta celebridade na religião. A consciência não me iludia e, ao recordar o passado, corei de vergonha. Apesar disso, a minha hesitação não durou muito. — Cumprimenta o senhor conde e agradece-lhe da minha parte o facto de se ter lembrado de mim - respondi. - Diz-lhe que estou muito ocupado e que... Diz-lhe que... No momento em que os meus lábios iam proferir um "não" fui assaltado por uma lembrança penosa: a da angústia e solidão de um homem jovem e cheio de vida que as circunstâncias haviam obrigado a enterrar-se numa zona rústica e sem atractivos. Recordei-me dos jardins do conde com os seus sumptuosos jardins de Inverno e os seus carreiros estreitos e poéticos. Conhecia bem esses carreiros protegidos do sol por uma abóbada de velhas tílias cuja folhagem se entrelaçava. Conhecia também algumas mulheres que haviam procurado dar-me o seu amor naquela penumbra... Recordei-me igualmente do salão luxuoso e do delicioso conforto dos seus sofás de veludo, dos pesados reposteiros e das alcatifas fofas; recordei-me de tudo isto com a languidez de um animal jovem e saudável. E, por fim, recordei-me da ousadia que me dava a embriaguez, acompanhada por uma satânica soberba e por um profundo desprezo pela vida. E todo o meu corpo, fatigado de tanto dormir, aspirou de novo à agitação de outrora... — Diz-lhe que irei visitá-lo. O mujique inclinou-se e saiu. — Se tivesse sabido ao que vinha :- resmungou Policarpe, folheando precipitadamente o seu livro - não teria deixado entrar esse diabo! — Põe o livro de lado e vai preparar a Zorka - ordenei, em tom severo. - E depressa! — Depressa? Não querem lá ver? Julga que vou a correr? Ainda se fosse para alguma coisa de
  • 14. útil... mas não, é para levar uma alma de volta ao Inferno... A última frase foi dita entre dentes, mas com a nitidez su ciente para que eu a ouvisse. Depois de articular aquela insolência, o meu criado levantou-se com um sorriso, como se esperasse desdenhosamente um comentário enérgico da minha parte. Eu, porém, z de conta que não ouvira as suas palavras. Nas minhas escaramuças com Policarpe, o silêncio é a minha melhor arma e a mais contundente, porque o atinge com maior eficácia do que uma pancada na nuca ou um chorrilho de palavras insultuosas. Enquanto Policarpe saía para pôr a sela e os arreios na minha égua Zorka, deitei uma olhadela ao livro que a minha ordem o impedira de continuar a ler. Era O Conde de Monte Cristo, esse terrível romance de Dumas... Aquele idiota civilizado lia tudo desde os anúncios dos jornais até August Comte, cujas obras guardo no meu baú entre outros livros que nunca li e que renunciei a ler. Dessa babilónia escrita e impressa, a Policarpe apenas interessavam as novelas de acção vigorosa e terrí ca, com "cavalheiros" distintos, com venenos, com subterrâneos... Tudo o mais só lhe inspirava desprezo. Mas agora era necessário partir... Um quarto de hora mais tarde, as patas de Zorka levantavam a poeira do caminho que leva da minha casa até à casa do conde. O Sol estava prestes a esconder-se mas o calor pesado ainda se fazia sentir. A atmosfera, em ignição, estava seca, embora o carreiro corresse ao lado de um grande lago. À direita, havia a água, à esquerda, um bosque de carvalhos e, apesar disso, o meu rosto parecia atravessar o deserto do Sara. "Vem aí uma trovoada", disse para mim próprio, antevendo, com delícia, uma boa chuvada. O lago dormia, tranquilo. Nenhum ruído respondia ao barulho que faziam os cascos de Zorka. Só de vez em quando o grito agudo de uma galinhola quebrava o fúnebre silêncio do gigante imóvel. Em certos pontos Zorka levava-me a atravessar espessas nuvens de mosquitos e, ao longe, apenas via moverem-se os três barquitos do velho Michei, concessionário da pesca no lago. Tive de contornar a curva da margem do lago; só de barco é possível seguir em linha recta. Quem vai por terra é obrigado a fazer um enorme desvio que alonga o percurso em cerca de oito quilómetros. Sem perder de vista o lago, divisava todo o caminho: a argila branca da margem oposta, as cerejeiras em or e, mais ao longe, o pombal do conde, repleto de pombos de várias cores; podia lobrigar também a mancha branca do pequeno campanário da igreja. Durante o trajecto pensei no estranho relacionamento que tivera com o conde. Teria gostado de analisá-lo melhor, pondo em ordem as minhas ideias, mas, infelizmente era questão que ultrapassava as minhas capacidades de momento. Aqueles que nos conheciam explicavam de diferentes maneiras o meu relacionamento com Alexei Karnieiev. Os espíritos mais mesquinhos a rmavam que o ilustre conde via na pessoa de um pobre juiz de instrução criminal, de origem humilde, um mero companheiro de bebedeiras. Segundo eles, eu aproximava-me a rastejar da mesa do meu an trião, à espera de algumas migalhas e de ossos para roer. Julgavam que o dalgo rico, terror e inveja do distrito, era muito engenhoso e liberal. Nunca poderiam entender, de outro modo, a sua graciosa condescendência para com o juiz pobre e a sua
  • 15. magnanimidade, aceitando que eu o tratasse por tu. As pessoas mais sensatas, contudo, viam na nossa amizade uma comunhão de "interesses intelectuais". Tenho a mesma idade e estudámos na mesma Universidade. Ambos seguimos o curso de Direito, domínio em que os nossos conhecimentos são bastante escassos. Os meus são medíocres e o conde já se esqueceu de tudo ou afogou em álcool quanto aprendeu. Somos ambos orgulhosos e, por razões que só nós sabemos, evitamos a convivência social, como dois selvagens. Não nos importamos com o que os outros pensam, isto é, com o que possam pensar os habitantes do distrito de S. Somos imorais, um e outro, e havemos de acabar mal. : Aí têm os "interesses intelectuais" que nos unem. ; Quem nos conhece não consegue adiantar outras , explicações. Teriam dito algo mais se soubessem como é ! suave, débil e submissa a natureza do conde e como a minha é forte e obstinada. E teriam acrescentado ainda mais se estivessem ao corrente de quanto aquele homem fraco me estimava e quão escassa era a minha simpatia por ele. O conde propôs-me a sua amizade e eu fui o primeiro a tratá-lo por tu; ele veio a fazer o mesmo, mas que diferença de tom! Ele, numa efusão de bons sentimentos, abraçou-me e pediu-me timidamente que fosse seu amigo; eu, um dia, cheio de nojo e de desprezo, disse-lhe: - Deixa-te de parvoíces! Acolheu aquela forma de tratamento como expressão da minha amizade e aproveitou o ensejo para me pagar com um honesto e fraterno "tu". Sim, teria sido mais correcto puxar as rédeas e regressar para junto de Policarpe e do meu papagaio. Teria sido, na verdade, muito melhor. Mais tarde, pensei nisso inúmeras vezes. De quantas ; desgraças me teria livrado e que bem teria feito ao meu ; amigo se, naquela tarde, eu houvesse tido a coragem de voltar para trás ou se a minha Zorka, tomando o freio : nos dentes, me conduzisse para longe do terrível lago! Quantas recordações dolorosas deixariam de assaltar-me, agora, obrigando-me, em todos os momentos, a deixar cair a pena para levar as mãos à cabeça! No entanto, não quero antecipar-me até porque, mais por diante, terei ocasião de evocar lembranças dolorosas e amargas do passado. Por agora, falemos só de coisas alegres. k
  • 16. Z CAPÍTULO 2 k orka levou-me até à porta-cocheira da casa do conde. Ao chegar, tropeçou e eu perdi o estribo e estive em risco de cair. — Mau sinal, cavalheiro! - gritou-me um campónio que se encontrava perto da estrebaria. Acredito que um homem, ao cair dum cavalo possa partir a cabeça, mas não acredito em superstições. Entreguei as rédeas ao mujique, sacudi com a chibata o pó das botas e dirigi-me apressadamente para a residência. Ninguém veio ao meu encontro. As janelas e as portas achavam-se abertas de par em par e, apesar disso, utuava no ar um odor estranho e pesado. Era o cheiro a ba o de velhos aposentos abandonados misturado com o agradável - mas forte e narcotizante - aroma de plantas de estufa colhidas recentemente. No salão nobre, sobre um dos divãs cobertos de seda de cor celeste, havia dois almofadões amarrotados e, sobre uma mesa redonda, um copo em que restavam algumas gotas de um líquido com forte odor a licor de Riga. Tudo isto revelava que a casa estava habitada, mas, apesar disso, percorri as onze divisões e não encontrei vivalma. A casa achava-se tão deserta como as margens do lago. A grande porta envidraçada do salão - o "salão dos azulejos" - dava para o jardim. Abri-a com força e desci para o terraço de mármore. Havia dado alguns passos no carreiro do jardim quando se me deparou a velha Nastasia, a ama do conde. Olhando para aquela velhinha cheia de rugas, esquecida pela Morte, calva e de olhos penetrantes, recordei-me involuntariamente da alcunha que lhe havia a demais criadagem: Sitchikka (a coruja). Ao ver-me, a Coruja estremeceu e por pouco não derramou o conteúdo de um copo que segurava com as duas mãos. — Bom dia, Sitchikka - disse-lhe. A velhota olhou-me de través e, sem pronunciar uma palavra, seguiu o seu caminho. Agarrei-a pelo ombro e acrescentei: — Não tenhas medo, tonta. Onde está o conde? Apontou para os ouvidos e fez um gesto para mostrar que não havia compreendido o que eu lhe dissera. — Estás surda? Desde quando? Apesar da sua idade, a velha vê e ouve perfeitamente, mas quando lhe convém não hesita em caluniar os seus cinco sentidos. Ameacei com o dedo indicador e deixei-a partir. Avancei mais alguns passos e ouvi vozes masculinas. No sítio em que o carreiro se alargava, formando um terreiro rodeado de bancos de ferro, à sombra de grandes acácias, fora colocada uma mesa sobre a qual refulgia um samovar. A volta da mesa, três homens conversavam. Aproximei-me sorrateiramente e, oculto por um maciço de lilases, procurei o conde com os olhos.
  • 17. O conde Karnieiev tomava o chá, sentado sobre almofadões. Vestia um roupão colorido - que eu já conhecia - e na cabeça colocara um chapéu de palha de Itália. O seu rosto contraído demonstrava inquietação, de tal forma que quem não conhecesse Karnieiev poderia supor que uma ideia fixa ou qualquer preocupação o atormentava. Desde a sua partida, o conde não havia mudado em nada. O mesmo corpo franzino, magro e esguio. Os mesmos ombros estreitos, de tísico, e a mesma cabeça pequena e ruiva. Tal como antes, o nariz vermelho e as faces ácidas que mais pareciam trapos... Nada, na sua aparência, de ousado, de forte, de varonil... Tudo débil, apático, murcho. Quando muito podia considerar-se ligeiramente sugestivo o seu grande bigode, de pontas pendentes. Alguém havia dito que lhe cava bem e o conde deixara crescê-lo; havia acreditado e, todas as manhãs, o media para veri car quanto crescera a vegetação que sombreava os seus lábios pálidos. Parecia um gato jovem e de grandes bigodes, se bem que demasiado débil e enfermiço. Perto do conde estava sentado um indivíduo obeso, que eu não conhecia, de grande cabeça rapada e com sobrancelhas negras. O rosto gordo reluzia como um melão maduro. Tinha um bigode maior do que o do conde, testa estreita e lábios delgados. Olhava indolentemente para o céu e a sua sionomia, se bem que jovem, era vincada e rude, tão áspera como a pele ressequida. Não parecia ser russo. Sem casaco nem colete, o obeso indivíduo estava em mangas de camisa e transpirava abundantemente. Em vez de chá bebia água de Seltz. A distância respeitosa, mantinha-se uma terceira personagem: um homem encurvado, rechonchudo, com orelhas separadas do crânio e nuca avermelhada. Era Orbenine, o administrador das propriedades do conde. Em honra da chegada de Sua Excelência vestira um casaco novo, de cor preta, que agora o atormentava. O suor escorria-lhe pelo rosto curtido. A seu lado encontrava-se o mujique que me transmitira a mensagem do conde. Só então me apercebi de que era vesgo. Direito como um poste, hirto como uma estátua, esperava que o interrogassem. — Kuzma! - dizia o administrador com voz enérgica e persuasiva. - Merecias que te açoitasse com o teu próprio chicote! É assim que cumpres as ordens do patrão? Devias ter-lhe pedido que viesse imediatamente ou, pelo menos, averiguar quando podia vir. — Sim, sim... - confirmou o conde, com nervosismo. — Devias ter procurado saber tudo. Ele disse-te que viria, mas isso não basta. Preciso dele já! Pediste-lhe que o fizesse, mas ele não compreendeu. Preciso dele imediatamente, sem tardança! — Que necessidade tão urgente é essa? - perguntou o homem gordo. — Preciso de vê-lo. — Só isso? Quanto a mim, era melhor, Alexis, que esse tal juiz, permanecesse na sua casa. Não me interessa ter visitas. Fiquei atónito. Que significava aquele "não me interessa ter visitas" tão autoritário e paternal? — Mas não se trata de uma visita! - exclamou o meu amigo com voz suplicante. - Não vai impedir que repouses da tua viagem. Também não precisas de fazer cerimónia com ele. Já vais ver que género de homem é... Estou certo de que vão ficar amigos. Saí detrás dos lilases e aproximei-me da mesa. O conde viu-me, reconheceu-me, e o seu rosto
  • 18. abriu-se num sorriso. — Aqui está ele! - gritou, corando de satisfação e levantando-se - Foste muito amável em vir tão depressa. Corri para ele, aos saltos, e o seu grande bigode arranhou-me as faces. Aos abraços seguiram-se prolongados apertos de mão e olhares fraternos. — Sergei! Não estás nada mudado! Sempre o mesmo belo rapaz! Agradeço-te por teres vindo... Logo que me libertei das suas efusões cumprimentei o administrador, que já conhecia, e sentei- me. — Ah, meu caro - prosseguiu o conde, emocionado e contente -, se soubesses como me sinto feliz por voltar a ver o teu rosto sisudo. Mas... não conheces este cavalheiro? Apresento-te o meu amigo Gaetan Casimirovitch Pschekhotski. E este - continuou, apresentando-me ao sujeito gordo - , é Sergei Petrovitch Zinoviev, juiz de instrução do distrito. O obeso indivíduo de sobrancelhas espessas estendeu-me a sua mão enorme e suada. — Encantado - resmungou, examinando-me de cima a baixo. - Tenho muito gosto em conhecê-lo. Terminados os cumprimentos, o conde serviu-me uma chávena de chá frio, avermelhado, e colocou à minha frente uma lata de biscoitos. — Prova... Comprei-os em Einem, quando fui a Moscovo. Estou zangado contigo, Serioja (1), tanto que nem pretendia voltar a ver-te. Durante estes dois anos não só não me escreveste uma linha sequer como ainda deixaste sempre sem resposta todas as cartas que te enviei. (1)Nesta obra abundam as abreviaturas e tratamentos familiares e afectuosos, compostos a partir dos nomes das personagens: "Serioja" por Sergei; "Olenka" ou "Olia" por Olga; "Nadenka" ou "Nadajda" por Nadia, etc. (N. do T.). — Não sei escrever cartas - repliquei - e, aliás, escrever-te para quê? — Para quê? — Sim. Só admito três espécies de cartas: as de amor, as de felicitações e as de negócios. Não podia escrever-te as primeiras porque não sou mulher e não estou apaixonado por ti. Das segundas, não precisas, e as terceiras têm de ser postas de parte porque não temos negócios em comum. — No fundo, tens razão - admitiu o conde que compartilhava sempre a opinião dos demais. - Apesar disso, porém, podias ter-me escrito duas ou três palavras. Acresce que, segundo me disse Piotre Iegoritch, nunca passaste por cá, como se vivesses a mil quilómetros de distância ou sentisses nojo pela minha propriedade. Podias ter vindo até cá para caçar... Quantas coisas podiam ter acontecido aqui, durante a minha ausência!... O conde discorreu longamente. Uma vez lançado sobre qualquer tema, era tão infatigável a emitir sons como o meu papagaio Ivan Demianitch. Suportei com alguma impaciência a exibição dos seus dotes oratórios. O que o fez parar desta vez foi o aparecimento da Ilia, o mordomo, com a sua libré velha e suja, que, numa salva de prata, trouxe um cálice de vodca e um copo de água. O conde bebeu a vodca de um trago, fez o mesmo com a água e, depois, esboçou uma careta e meneou a cabeça, como se sentisse a garganta em fogo.
  • 19. — Ao que vejo ainda não perdeste o hábito de te enfrascares em álcool - observei. — Ainda não, Serioja. — Pelo menos, evita esses ademanes de bêbedo quando bebes um copo. É absurdo! — Vou deixar tudo isso, meu velho. Os médicos proibiram-me o álcool. Se ainda bebo é porque faz mal parar de repente... Deve proceder-se de forma progressiva. Examinei o rosto fatigado e enfermiço do conde, o copo vazio, o criado com os seus sapatos amarelos, o polaco de sobrancelhas negras - que, à primeira vista e sem saber a razão, me deu a impressão de ser um vigarista - e, por m, o mujique estrábico, hirto e silencioso e tudo aquilo provocou em mim um sentimento de profunda angústia. Assaltou-me, de imediato, o desejo de afastar-me daquele ambiente crapuloso, manifestando ao conde a minha imensa aversão. Estive quase a levantar-me e a ir-me embora... Não o fiz, contudo, talvez por simples preguiça física e agora envergonho-me desta confissão. — Traz-me também um copo de vodca - disse ao criado. Sobre as áleas e o terreiro começavam a estender-se as sombras. O grasnar das rãs, o crocitar dos corvos e os silvos dos verdilhões anunciavam o pôr-do-sol. Era um entardecer de Primavera... — Diz a Orbenine que se sente - segredei ao conde. — Está ali, especado como uma estátua. — Ah, não me havia apercebido disso. Piotre Iegoritch, senta-te, se quiseres. Já estás aí de pé há muito tempo. Orbenine sentou-se, lançando-me um olhar de gratidão. Em regra saudável e bem disposto, naquele dia parecia adoentado e aborrecido. Tinha o rosto como que crispado e os olhos, dormentes, pareciam revelar preguiça. — Que novidades há por cá? - quis saber Karnieiev. — Nada de especial? — Nada de especial, Excelência. — Hum! Nenhuma rapariga nova? O administrador, envergonhado, corou. — Não sei, Excelência... Não é coisa que me diga respeito. — Há, sim, Excelência - disse o mujique vesgo, com a sua voz grossa, falando pela primeira vez. - E até algumas bem interessantes. — Bonitas? — De todo o género, Excelência, e para todos os gostos. Morenas, loiras... — Espera, recordo-me de ti... Leporelo, secretário para certos assuntos... Chamas-te Kuzma, segundo creio. — Sim, Excelência. — Ora aí está! Lembro-me agora... E quem tens em mira? Camponesas, não é assim? — Sobretudo camponesas, mas também há coisa melhor. — Ah, sim? Onde descobriste tu isso? - perguntou Ilia, fitando Kuzma. — Pela Páscoa chegou Nastasia Ivana, cunhada do guarda- orestal... Uma rapariga de belas formas... Teria gostado de experimentá-la, mas, para isso, era preciso ter dinheiro... O seu rosto corado e o resto... Mas há ainda coisa melhor e pode dizer-se que está à sua espera, Excelência... Muito nova, aveludada, vivaça... Nem em Petersburgo podia encontrar outra mais perfeita. — Quem é ela?
  • 20. — Olenka, a filha do guarda-florestal Skvortsov. A cadeira de Orbenine emitiu um estalido. Com as mãos apoiadas sobre a mesa e o rosto congestionado, o administrador ergueu-se devagar e tou o vesgo. A sua cólera aumentava a cada momento. — Cala-te, miserável! - vociferou. - Fala do que quiseres mas não te metas com gente honrada! — Não estou a falar de si, Piotre Iegoritch - replicou Kuzma, impassível. — Não se trata de mim, imbecil! - berrou Orbenine que logo acrescentou: - Suplico a Vossa Excelência que proíba o seu Leporelo, como apropriadamente lhe chama, de exercer a sua actividade em relação a pessoas dignas de toda a consideração! — Não percebo porque repreendê-lo - murmurou ingenuamente o conde. - Kuzma não disse nada de ofensivo. Exaltado, Orbenine afastou-se da mesa. Com os braços cruzados e a piscar os olhos, foi esconder o rosto congestionado atrás de uns ramos. Teria ele o pressentimento de que, num futuro próximo, o sentido da moralidade iria sofrer ofensas muito mais contundentes? — Não compreendo porque cou ofendido - segredou-me o conde. - Que homem estranho! Não foi dito nada que pudesse magoá-lo. Depois de dois anos de vida sóbria, o copo de vodca entonteceu-me levemente. Uma sensação de bem-estar e de prazer insinuou-se no meu cérebro e no meu corpo. Ao mesmo tempo apercebi-me da brisa fresca que, pouco a pouco, substituía o calor do dia. Propus um passeio. Trouxeram da casa o casaco do conde e o do seu novo amigo polaco, e partimos. Orbenine veio atrás de nós. O jardim é tão belo que merece descrição particular. De todos os pontos de vista é o mais rico e grandioso de quantos tenho visto. Há grutas quase destruídas e cobertas de musgo, fontes, pequenos lagos cheios de peixes, montanhas russas, bosques em miniatura, estufas... Concebida pelos avós e pelos pais do conde, aquela rara profusão de enormes roseirais, de grutas poéticas e de intermináveis carreiros foi progressivamente abandonada, cando à mercê das ervas daninhas, dos machados dos ladrões e dos corvos que fazem ninho nas árvores exóticas. O legítimo proprietário do jardim caminhava a meu lado, sem que nenhum músculo da sua cara, deformada pelo álcool, se contraísse perante tão lamentável displicência. Só por uma vez, para dizer alguma coisa, fez notar a Orbenine que seria bom pôr areia nos carreiros. Notava a falta de areia, mas não reparava nas árvores secas, mortas durante o Inverno nem nas vacas que pastavam no jardim. Em resposta à observação feita pelo conde, Orbenine respondeu que para tratar convenientemente do jardim era necessária uma dezena de homens e que, como sua Excelência não residia ali, essa despesa constituiria um luxo desnecessário. Como era de esperar, o conde concordou de imediato. — Aliás - acrescentou Orbenine, com ademanes de superioridade. -, não tenho tempo para tal coisa. No Verão, os campos, no Inverno, a cidade, para vender o trigo. Não co com tempo para mais nada. A principal álea do jardim, ladeada por altas e velhas tílias e maciços de magnólias, terminava ao longe numa mancha amarelada. Era um pavilhão de pedra, onde, em tempos, houvera um
  • 21. bufete e um bilhar, um chinquilho e um jogo chinês. Sem propósito determinado, dirigimo-nos para o pavilhão. A entrada fomos recebidos por algo que fez estremecer os meus não muito corajosos companheiros. — Uma víbora! - gritou o conde, agarrando-me o braço. - Olha! O polaco deu um passo atrás e cou parado a agitar os braços como para afugentar um fantasma. Sobre um dos degraus de pedra semidestruídos vi uma pequena cobra vulgar. Ao ver- nos, ergueu a cabeça e fez um movimento. O conde soltou outro grito e escondeu-se atrás de mim. — Não tenha medo, Excelência - disse Orbenine, sem se alterar e pondo o pé no primeiro degrau do pavilhão. — E se nos morde? — Não nos morderá. Aliás, tem-se exagerado o perigo das mordeduras de cobras. Certo dia fui mordido por uma velha serpente e, como podem ver, não morri. As picadas dos homens são mais perigosas do que as das cobras - moralizou Orbenine. Com efeito, logo que o administrador pôs o pé no segundo ou terceiro degrau, a cobra esticou- se e desapareceu, como um raio, por entre as pedras. No entanto, ao entrar no pavilhão, deparou- se-nos outro ser vivo. Sobre um velho bilhar, de pano rasgado e puído, achava-se um velhote de camisa azul, calças listadas e boné de jóquei. Dormia suave e sossegadamente. As moscas voavam por cima da sua boca sem dentes, que lembrava um buraco de árvore, e sobre o seu nariz a lado. De magreza esquelética e com a boca aberta dava a impressão de ser um cadáver pronto para a autópsia. Orbenine tocou-lhe no cotovelo e chamou: — Frantz!Frantz! Ao quinto ou sexto toque Frantz fechou a boca, ergueu o tronco, olhou para nós e, em segundos, voltou a deitar-se. Um minuto depois a sua boca tornou a abrir-se e as moscas que voavam à volta do nariz foram, de novo, espantadas pela trepidação do ressonar. — Como dorme, este porco depravado! - exclamou Orbenine. — É Trischer, o jardineiro, não é assim? - perguntou o conde. — Ele próprio... Faz sempre o mesmo. Dorme durante o dia inteiro e, à noite, joga às cartas, Na noite passada deve ter jogado até de manhã... — A que joga ele? — A dinheiro. Em regra, ao stoss. (2) — Quer dizer que esta gente trabalha pouco ou mesmo nada mas recebe pontualmente o salário. — Não o digo para me queixar, Excelência - a rmou Orbenine em tom vivo. - Limito-me a comprovar um facto. É com pena que vejo este homem escravizado por tão grande paixão. Apesar disso, ele trabalha; não rouba o que ganha... Olhámos novamente para o jogador e saímos. Do pavilhão dirigimo-nos para o portão do jardim que dá para os campos circundantes. Quase não há novela em que o portão do jardim não desempenhe um papel importante. Se ainda não o notaram, perguntem a Policarpe que, durante a vida, tem devorado tantas novelas, terríficas ou não. Ele pode confirmar certamente este facto assaz característico. (2) - Jogo de azar russo semelhante ao "monte". (N. do T.)
  • 22. A minha novela tão-pouco prescindirá do portão do jardim, mas diferenciar-se-á das outras pela circunstância de a minha pena, ao contrário do que sucede às dos demais autores, ser forçada a fazer passar por ele muitas desgraças e poucas venturas. E o pior é que não vou descrever esses acontecimentos como novelista mas sim como juiz de instrução. Por esse portão passarão mais criminosos do que namorados. k
  • 23. A CAPÍTULO 3 k poiados às nossas bengalas chegámos, um quarto de hora mais tarde, a uma colina conhecida como o "Túmulo de Pedra". Este montículo, solitário no meio dos campos, parece um boné invertido. Do cimo podíamos ver o lago com toda a sua maravilhosa serenidade e a sua indescritível beleza. O Sol já se pusera, mas deixara atrás de si uma púrpura que tingia o céu e a água com uma agradável cor alaranjada. Só eu e o conde trepámos ao cume da colina. Orbenine e o polaco, mais pesados, preferiram ficar à nossa espera no caminho. — Quem é aquele emplastro? - perguntei ao conde, apontando para o polaco. - Onde foste buscá-lo? — Meu velho Sergei - respondeu, com certo alarme. — Trata-se de um homem muito amável. Tu e ele ficarão amigos dentro em pouco. — Duvido. Porque fala tão pouco? — É calado por natureza. Mais tarde carás a saber tudo, meu velho Sergei, mas por agora não me perguntes mais nada. Vamos descer? Descemos e encaminhámo-nos para o bosque. A tarde atingia o seu termo. Do bosque vinham o grito do cuco e o canto trémulo de um rouxinol jovem e extenuado. Ao chegar à orla do bosque ouvimos a voz aguda de uma criança que gritava: — Hei! Hei! Não consegues apanhar-me! Uma menina de cerca de cinco anos, de cabelo cor de linho e com um vestido azul-claro, saiu do bosque. Ao ver-nos, correu para Orbenine e agarrou-se aos seus joelhos, soltando grandes gargalhadas. Orbenine tomou-a nos braços e beijou-a na face. — É a minha pequena Sacha - disse, apresentando-nos a criança. Um estudante dos seus onze anos, lho do administrador, perseguia a irmã. Quando nos viu, hesitou, tirou o boné e, depois, voltou a pô-lo na cabeça para, logo de seguida, o tirar de novo. Atrás do estudante, caminhando lentamente, surgiu uma gura vermelha que logo atraiu a nossa atenção. O conde pegou-me no braço. — Que magní ca aparição! Olha! - exclamou. - Que maravilha! Quem é esta rapariga? Não sabia que no bosque havia náiades assim! Voltei-me para Orbenine a m de lhe perguntar quem era a rapariga e só então me apercebi de que estava completamente embriagado. — Sergei Petrovitch, suplico-lhe - sussurrou-me ao ouvido, exalando vapores de álcool -, impeça que o seu amigo faça outros comentários acerca daquela rapariga. É uma pessoa digna de toda a consideração. Como de costume, o conde é capaz de dizer alguma inconveniência e eu não quero que ela as escute. A pessoa digna de toda a consideração devia rondar os dezoito anos e tinha uma deliciosa cabeça com bondosos olhos azuis e cabelo loiro, comprido e ondulado. Entre menina e adolescente, trazia um vestido escarlate. Os pés, nos como agulhas, estavam calçados com meias vermelhas e sapatos quase infantis. Vi
  • 24. que os seus ombros estremeceram quando neles xei os olhos, como se a rapariga, coquete, tivesse sentido um calafrio ou o meu olhar lhe tivesse mordido a pele. — Que contraste! - extasiou-se o conde. - Um rosto tão jovem e formas tão perfeitas... Desde muito novo havia perdido a faculdade de olhar para as mulheres de outra maneira que não fosse a de um bicho sensual. Pelo contrário, lembro-me de que aquela visão despertou em mim um sentimento de ternura que me aqueceu a alma. Continuava a ser um poeta e, no meio do bosque, num crepúsculo de Maio, sob o tímido cintilar das estrelas, não podia contemplar uma mulher senão como um poeta. Fitei a rapariga com o mesmo enlevo com que costumava observar os bosques, as montanhas, o azul do céu... Ainda restavam, dentro do meu ser, vestígios do sentimentalismo que herdara da minha mãe, alemã. — Quem é? - quis saber o conde. — Excelência - disse Orbenine -, é a filha do guarda-florestal Skvortsov. — É a tal Olenka de que falou o zarolho? — É, sim - respondeu o administrador, lançando-me um olhar suplicante. A rapariga de vermelho deixou-nos passar junto dela sem nos conceder a menor atenção. Os seus olhos estavam voltados para outro lado, mas eu, que conheço as mulheres, apercebi-me de que nos observava furtivamente. Ouvi-a perguntar, enquanto nos afastávamos: — Qual deles é o conde? — O do bigode comprido - respondeu o estudante. Escutei o seu sorriso sonoro, um riso de decepção. Por certo, a rapariga havia julgado que o conde, proprietário daqueles imensos bosques e do grande lago, era eu e não o pigmeu com rosto de alcoólico e bigodes caídos. Do peito de Orbenine saiu um profundo suspiro. O homem quase não era capaz de andar. — Manda embora o administrador - segredei ao conde. - Está doente e embriagado. — Estás doente, Piotre Iegoritch? - perguntou. - Já não preciso de ti. Podes retirar-te. — Não se preocupe, Excelência. Agradeço o cuidado mas não estou doente. Olhei para trás. A figura escarlate, imóvel, seguia-nos com o olhar. Pobre cabecita loura! Como poderia eu adivinhar, naquele entardecer suave e tranquilo de Maio, que ela ia ser a protagonista de minha atormentada narrativa. Escrevo estas linhas enquanto a chuva bate nos vidros e o vento ulula. Olho para a janela negra e, sobre aquele fundo de trevas, esforço-me por evocar a imagem da minha gentil heroína... Vejo o seu rosto infantil, ingénuo, e os seus olhos cheios de ternura. Assaltam-me desejos de pôr a pena de lado e de queimar quanto escrevi. De que serve recordar aquela criatura jovem e inocente? Junto do tinteiro, à minha frente, está a fotogra a de Olenka. Vejo-lhe o rosto formoso em toda a frívola grandeza da mulher que se aviltou. Os olhos, lânguidos mas orgulhosos da sua perversidade, estão imóveis. É a serpente cuja peçonha Orbenine desprezara. Provocante, tentou a tempestade e o furacão destroçou a flor. Recebeu muito, mas pagou bem caro. Que o leitor possa perdoar-lhe... k
  • 25. C CAPÍTULO 4 k aminhávamos através da silenciosa monotonia do pinhal. — E se regressássemos? - propôs o conde. Ninguém lhe respondeu. Ao polaco era indiferente estar ali ou em outro local, Orbenine sabia que a sua voz não contava e, quanto a mim, a frescura do bosque e o aroma a resina cativavam-me demasiado para querer voltar para trás. De qualquer maneira, havia que matar o tempo até a noite cair. A perspectiva de uma selvagem noitada de copos excitava-me deliciosamente. Envergonho-me de confessá-lo: gozava o prazer antecipadamente. O conde, impaciente, olhava amiúde para o relógio, sinal de que o consumia idêntico desejo. Creio que naquele momento nos compreendíamos íntima e mutuamente. Perto da casa do guarda- orestal, erigida numa clareira quadrada rodeada de pinheiros, fomos recebidos pelos latidos agudos de dois cães de pêlo amarelo e raça que eu desconhecia. Eram ágeis e reluzentes como enguias. Compreendi que Orbenine visitava aquela casa com frequência porque os cães saltaram à sua volta, ladrando alegremente. Ali perto encontrava-se um rapazote descalço, com cara apalermada e cheia de sardas. Olhou-nos por momentos, em silêncio e, em seguida, certamente por reconhecer o conde, soltou uma exclamação e pôs-se a correr em direcção à casa. — Sei porque vai a correr - declarou o conde, sorrindo. - Lembro-me dele; é Mitka. Não se enganou. Não havia decorrido um minuto quando o rapaz reapareceu trazendo consigo uma bandeja com um copo de água e outro de vodca. — A sua saúde, Excelência - disse ele, abrindo a cara aparvalhada num largo sorriso. O conde engoliu a vodca e lavou a boca com a água e, desta vez, reprimiu a habitual careta. A cerca de cem passos da casa havia um banco de ferro tão velho como os pinheiros. Sentámo- nos e cámos a contemplar a beleza tranquila daquele entardecer de Maio. Mesmo em tais circunstâncias, nas quais a voz humana é a coisa mais desagradável que existe, o conde não conseguiu ficar calado. — Não sei se vais gostar da ceia - adiantou. - Mandei preparar sopa de percas e uma lebre... Depois, para acompanhar a vodca, esturjão frio e leitão com rabanetes. Os pinheiros agitaram-se, como que ofendidos por aquele discurso, e um murmúrio surdo correu por todo o pinhal. Levantou-se uma brisa fresca que fez voar as folhas caídas no solo e balouçar os ramos das árvores. — Basta! Basta! -gritou Orbenine, dirigindo-se aos cães que, com as suas festas, o impediam de acender um cigarro. - Parece-me que vai chover. Durante o dia faz um calor tão sufocante que não é preciso ser um grande sábio para profetizar chuva. Vai ser bom para o trigo. "Que importa o trigo", pensei eu, "se o conde gasta todo o seu rendimento em bebida? A chuva perde o seu tempo". O bosque foi atravessado por um vento mais fresco. Os pinheiros e os arbustos aumentaram os seus murmúrios. — Vamos para casa. Levantámo-nos e iniciámos, indolentemente, o caminho de regresso. — Vale mais ser a loura Olenka - disse eu a Orbenine - e viver aqui, entre os animais, do que
  • 26. ser juiz de instrução e viver entre os homens. É bem mais repousante. Não concorda, Piotre legoritch? — Tudo está bem quando se tem a consciência tranquila, Sergei Petrovitch. —A consciência da formosa Olenka estará tranquila? — Só Deus vê os corações humanos, mas, segundo me parece, ela não tem qualquer razão para se inquietar. Poucos desgostos, não mais pecados do que uma criança. E boa rapariga... Aí vem a chuva. Ouviu-se um ruído como o do rodado de um carro ou de um jogo de chinquilho. O trovão surgiu por cima das copas. Mitka, que não nos perdia de vista, estremeceu e benzeu-se. — A trovoada! - exclamou o conde. -A chuva vai apanhar-nos no caminho! E é quase noite. Bem te disse que devíamos regressar, mas tu teimaste em vir até aqui. — Vamos acolher-nos na casa do guarda-florestal, à espera de que passe a chuva - propus eu. — Para quê? - comentou Orbenine, piscando os olhos de forma estranha. - Vai chover toda a noite e não poderão dormir aqui. Mas não se preocupem. Continuem o vosso passeio. Mitka irá a casa, e pedirá que mandem um carro para os levar de volta. — Não é preciso - contrapus. - Não vai chover torrencialmente durante toda a noite. Em regra, as nuvens da trovoada passam depressa... E, a propósito, não conheço ainda o novo guarda- orestal e também gostaria de conversar com Olenka para ficar a saber qual o seu temperamento... — Acho bem - concordou o conde. — O quê? Vamos car aqui? - balbuciou Orbenine, muito inquieto. - Para quê permanecer num ambiente sufocante, Excelência, se, em sua casa, pode estar muito melhor? Não compreendo que vantagem há nisso... Acresce que não me parece correcto ir visitar o guarda- orestal precisamente quando se encontra adoentado... Era manifesto que Orbenine não desejava de modo algum que entrássemos naquela casa. Chegou ao ponto de estender os braços como se pretendesse impedir a nossa passagem. Compreendi que devia ter razões para querer afastar-nos. Respeito as razões e os segredos alheios, mas sentia-me espicaçado por uma forte curiosidade. Acabámos por entrar na casa do guarda- florestal. — Façam o favor de ir para a sala - gaguejou o rapazote descalço, doido de alegria. Imaginem a mais pequena "sala" possível, com os seus tabiques de madeira sem pintura; como decoração, fotogra as em molduras com cascas de caracóis e conchas, atestados e gravuras recortadas da revista Niva. Um dos atestados manifestava a gratidão de certo barão por não sei que serviço; os outros referiam-se a cavalos. Aqui e além, a hera trepava pelos tabiques. Uma pequena chama ardia suavemente em frente de um ícone, a um canto, e re ectia-se levemente numa moldura prateada. Encostadas às paredes havia cadeiras, em quantidade excessiva para o tamanho da saleta; embora as mais velhas já fossem bastantes, tinham comprado outras havia pouco tempo, sem razão aparente. Apertados uns contra os outros viam-se ainda uns cadeirões e um canapé com cobertas brancas adornadas com folhos e rendas. Havia também uma mesa redonda, bem envernizada... Sobre o canapé dormia uma lebre domesticada... A divisão era confortável, agradável. Em tudo aquilo era
  • 27. notória a presença de uma mulher. Até a pequena estante, cheia de livros, dava a impressão de algo inocente e feminino, como se contivesse apenas novelas ingénuas e poesias pouco transcendentes. Não é na Primavera que pode aperceber-se todo o encanto de uma saleta como aquela; é no Outono, quando procuramos abrigo contra a humidade e o frio... Mitka, a fungar, riscou um fósforo energicamente e acendeu duas velas que, com grande cuidado, colocou à nossa frente, sobre a mesa. Sentámo-nos nas poltronas e, ao olhar uns para os outros, não pudemos conter o riso. — Nicolas E mitch está de cama, doente, e a lha decerto foi passear com as crianças - adiantou Orbenine como que para explicar o que se passava naquela casa. Do quarto vizinho chegou uma voz débil: — Mitka, fechaste as portas? — Fechei, sim, Nicolas E mitch - respondeu Mitka com voz rouca, correndo para o aposento contíguo. — Está bem - disse a mesma voz. - Certifica-te de que estão bem fechadas à chave. Se os ladrões quiserem entrar, diz-me... Vamos recebê-los a tiro... Malvados... — Claro que sim, Nicolas Efimitch. Rimo-nos e olhámos interrogativamente para Orbenine. Que queria aquilo dizer? Sorriu-se e, para disfarçar o seu embaraço, aproximou-se da janela e começou a mexer numa cortina. Que signi cava tal atitude? Olhámos de novo uns para os outros, mas a nossa perplexidade cedo se desvaneceu. Do exterior chegou o ruído de passos ágeis e apressados e a porta e o guarda-vento bateram. A rapariga de vermelho irrompeu bruscamente na sala. Vinha a cantar com voz de soprano mas, ao ver-nos, calou-se de súbito e, depois, esboçou um sorriso. Perturbada, tímida como uma gazela, esgueirou-se para o quarto de onde viera a voz do pai. — Ficou surpreendida! - disse Orbenine, sorrindo. Algum tempo depois, a rapariga reapareceu; foi sentar-se, em silêncio, na cadeira mais próxima da porta e começou a observar-nos. Olhou-nos com insistente atrevimento, como se não fôssemos pessoas estranhas mas, sim, exemplares num jardim zoológico. Por momentos, também a olhámos. Estava tão formosa naquele m de tarde que eu seria capaz de car a olhá-la um ano inteiro. A sua pele tinha a frescura da água ou da brisa, o peito erguia-se-lhe suavemente quando respirava e os cabelos, ondulados sobre a testa e caídos sobre os ombros, cobriam-lhe as mãos com que comprimia a gola do vestido. Os seus olhos, muito grandes, brilhavam. E tudo isto num corpo airoso e miúdo que eu apreciava com um só olhar. Naquele pequeno espaço era possível ver mais coisas, numa só vez, do que a contemplação durante séculos de um horizonte sem m... A rapariga examinou-me de alto a baixo com ar sério e curioso, mas, quando desviou a vista para o conde e para o polaco, não pôde conter um sorriso. Fui o primeiro a falar. — Apresento-me - disse, aproximando-me. - O meu nome é Zinoviev e apresento-lhe, também, o conde Karnieiev. Pedimos desculpa por termos entrado na sua bonita casa sem sermos convidados. Não o teríamos feito se a trovoada não nos houvesse forçado... — A nossa casa não vai desabar só por isso - replicou ela, estendendo a mão. Sorriu, pondo a descoberto os seus dentes admiráveis. Sentei-me junto dela. Princípio de todos os princípios, o tempo foi o primeiro tema. Enquanto
  • 28. conversávamos Mitka serviu vodca, de novo, e o meu amigo, aproveitando o facto de eu não estar a olhar para ela, depois de cada gole fazia a sua careta preferida e meneava a cabeça. — Quer tomar alguma coisa? - perguntou-me Odenka. E, sem esperar a minha resposta, saiu da sala. As primeiras gotas de chuva bateram contra a vidraça. Aproximei-me da janela e só consegui vislum- brar a água que escorria pelo vidro e o re exo do meu nariz. Brilhou um relâmpago, iluminando os pinheiros mais próximos. — As portas estão todas fechadas? - voltou a perguntar a voz do enfermo. - Mitka, maldito rapaz, vai fechar as portas! Oh, Senhor, que tormento! Uma camponesa, de grande barriga e rosto inquieto e aparvalhado, entrou na sala. Cumprimentou o conde timidamente e estendeu uma toalha branca sobre a mesa. Por detrás dela, Mitka, com muita cautela, trazia diversos pratos. Em pouco tempo, havia na mesa vodca, rum, queijo e não sei que ave assada. O conde bebeu outro copo de vodca, sem ligar à comida. O polaco, pelo contrário, começou a trinchar a peça de caça, depois de a haver cheirado. — Já está a chover - disse eu a Olenka, quando esta regressou. - Veja. Aproximámo-nos da janela e, nesse mesmo instante, fomos iluminados por um grande clarão azul. Estalou um trovão, dando a impressão de que algo, enorme e pesado, se havia desprendido do céu e rolava sobre a Terra. A vidraça e os copos tremeram com um ruído cristalino. O estampido fora tremendo. — Tem medo das trovoadas? - perguntei a Olenka. Inclinou um pouco a cabeça sobre o ombro e fitou-me com expressão infantil e confiante. — Sim, tenho medo - murmurou, passados uns momentos. - A minha mãe foi fulminada por um raio. Foi até noticiado nos jornais... Ia a atravessar um descampado, a chorar... Teve uma vida muito infeliz... Deus teve pena dela e matou-a com a electricidade do céu... — Como sabe que há electricidade no céu? — Estou certa disso... Não sabe? Os que morrem fulminados por um raio, os homens que morrem na guerra e as mulheres que morrem ao dar à luz vão para o Paraíso... Não vem nas Escrituras, mas é verdade... A minha mãe, agora, está no Paraíso... Pressinto que também eu vou morrer fulminada por um raio e que irei igualmente para o Paraíso... O senhor tem lido muitos livros? — Muitos. — Então, não se ria de mim... Sabe como eu gostaria de morrer? Vestida com as roupas mais belas e mais caras, segundo a última moda, como as da senhora Scheˉer, a milionária... Traria os braços cheios de lindas pulseiras, subiria ao cume do "Túmulo de Pedra" e pronto! Vinha um raio e fulminava-me de maneira a que todos vissem... Um tremendo trovão e tudo ficaria consumado... — Que fantasia macabra! - comentei, sorrindo e tando os olhos da rapariga de vermelho, onde se reflectia o sagrado terror provocado por aquela imagem de um fim atroz mas espectacular. - Não deseja, então, morrer com um vestido trivial. — Não - garantiu Olenka, com tom obstinado. - Gostava que todos vissem. — O vestido que hoje traz é mais belo do que qualquer outro, por mais caro e mais na moda
  • 29. que seja... Fica-lhe maravilhosamente bem... Parece uma flor silvestre, vermelha e bela! — Não, não é verdade! - suspirou Olenka, ingenuamente. - Um vestido barato nunca pode ficar-me bem... Com manifesto desejo de falar com Olenka, o conde aproximou-se. Se bem que domine três idiomas, nunca sabe como falar com as mulheres. Postado, sem qualquer graça, junto de nós, esboçava um sorriso aparvalhado e só conseguiu grunhir "Olá", voltando, de seguida, à sua garrafa de vodca. — Quando entrou em casa vinha a cantar "Gosto das Tempestades de Verão". Há alguma cantiga com essas palavras? - perguntei a Olenka. — Não - respondeu ela. - Sou eu que ponho em música, à minha maneira, todos os versos que sei. Distraidamente, virei a cabeça e vi que Orbenine nos observava xamente. Li-lhe nos olhos um ressentimento e um ódio que não condiziam com o seu rosto plácido. "Deve estar com ciúmes", pensei. Ao ver-se surpreendido, levantou-se e, muito agitado, encaminhou-se para o vestíbulo. Os trovões eram cada vez mais frequentes e ruidosos. Os relâmpagos iluminavam o céu, os pinheiros e a terra molhada. Ia chover durante muito tempo. Acerquei-me da estante e passei em revista a biblioteca de Olenka."Diz-me o que lês..." No entanto, do que vi, não pude extrair conclusões sobre o nível mental da rapariga. No momento em que começava a folhear um dos livros, abriu-se a porta do quarto vizinho e surgiu uma singular criatura que logo despertou a nossa atenção. Era um homem alto e magro, com um roupão de algodão adornado com desenhos indianos; nos pés trazia pantufas esgaçadas. O bigode e as suíças, de talhe militar, davam-lhe o aspecto de um pássaro. A cabeça pequena baloiçava sobre o pescoço alto e a maçã de Adão agitava-se como um ninho de estorninhos sacudido pelo vento. A estranha personagem tou-nos com os seus olhos verdes que, de seguida, se fixaram no conde. — Fecharam as portas? - perguntou com voz suplicante. O conde olhou para mim, surpreendido. — Não se inquiete, pai - disse Olenka. - Está tudo bem fechado. Volte para o seu quarto. — E fecharam também o... barracão? — Às vezes, ca um tanto perturbado - murmurou Orbenine, regressando do vestíbulo. - Tem muito medo dos ladrões e só pensa nas portas. Nicolas E mitch - continuou, voltando-se para o dono da casa -, volta para o teu quarto e deita-te. Nada receies. Está tudo bem fechado. — E as janelas também? O homem dirigiu-se às janelas e veri cou os fechos de todas elas. Depois, sem nos prestar atenção, desapareceu no interior do quarto. — Que tristeza - comentou Orbenine. - É bom homem mas, quase todos os anos, quando se aproxima o Verão, a sua mente fica transtornada... Olenka, embaraçada, procurou esconder o rosto e começou a pôr no lugar os livros que eu desarrumara. Era patente que se envergonhava da loucura do pai. — Excelência - disse, então, Orbenine. - Chegou a carruagem. Já pode partir.
  • 30. — Quem mandou vir a carruagem? - perguntei. — Fui eu quem a mandou buscar... Minutos mais tarde, sentado na carruagem ao lado do meu amigo, resmunguei, enquanto ouvia bramir o temporal: — Foi Piotre Iegoritch quem nos pôs fora daquela casa! Que o Diabo o carregue! Nem sequer nos deu tempo para examinar Olenka! Estúpido! Não íamos comê-la! Rebentava de ciúmes! Creio que está apaixonado por ela. — Está, claro que está, já me apercebi disso. Por ciúmes não queria que entrássemos, e por ciúmes fez-nos sair dela... Ah, Ah! — De barba já grisalha e ainda com o Diabo no corpo! É certo que não é difícil a qualquer homem enamorar-se daquela rapariga, se a vir todos os dias tal como a vimos hoje. É extremamente formosa. Mas não é para os dentes do asqueroso Orbenine. Ele devia dar-se conta disso e não ser tão egoísta. Que a adore à distância, vá que não vá, mas que não impeça os outros de a admirar. Além do mais, devia saber que não é mulher para ele... Velho imbecil! — Lembras-te - fez notar o conde, com uma risada de troça - de como cou enfurecido quando, ao chá, Kuzma se referiu a ela? Parecia que queria bater em todos nós... Não se assume daquela forma a defesa de uma mulher que nos é indiferente... — Sim, pode-se fazê-lo, mas isso não importa... Se hoje nos gritou daquela maneira, imagina o que fará com os pobres tipos sob as suas ordens. O amor e o ciúme tornam-nos injustos e misantropos. Ia jurar que, por causa de Olenka, já converteu num inferno a vida de grande número de servidores. Creio que deves tomar isso em consideração quando ele zer queixa de algum criado. Modera os seus poderes, nem que seja por uns tempos. O entusiasmo vai passar-lhe e as coisas melhorarão... Apesar de tudo é um bom homem. — E o papá da rapariga? Que tal o achaste? — É um louco que devia estar no manicómio e não na casa do guarda- orestal. À tua porta devias mandar pôr o letreiro "Hospício". Não falta nada: o guarda, a Coruja, o jogador Franz, um velho apaixonado, uma moça exaltada e, para terminar, tu, perdido pelo álcool. Que mais é preciso? — Mas o guarda ganha um salário. Para que pode servir-me se está doido? — Orbenine conserva-o certamente por causa da lha. Alega que o velho só tem estas crises no Verão... É pouco provável, Estou convencido de que o guarda está doente durante o ano inteiro. Felizmente, o teu Piotre Iegoritch só mente de vez em quando, porque, quando o faz, logo o demonstra. O carro entrou no pátio e parou junto da porta principal. Descemos. A chuva cessara. Iluminadas por relâmpagos, as nuvens da tempestade afastavam-se agora para Nordeste, deixando a descoberto uma porção cada vez maior de céu estrelado. Entrámos na casa, onde nos aguardava um género bem diferente de "poesia". k
  • 31. -A CAPÍTULO 5 k inda bem que não comeste em casa do guarda-florestal. Terias perdido o apetite - disse-me o conde, quando entrámos. - Hoje, vamos saborear uma ceia magní ca, como nos bons velhos tempos... Podes servi-la - rematou, voltando-se para Ilia, que o ajudara a tirar o casaco e a vestir o roupão. Dirigimo-nos à sala de jantar. Sobre a mesa, alinhadas como no bufete de um teatro, garrafas de todas as cores e tamanhos re ectiam a luz dos candeeiros. Aperitivos salgados, de escabeche e de muitas outras espécies esperavam numa segunda mesa, junto de uma garrafa de vodka e outra de aguardente inglesa. Perto das garrafas, havia dois pratos com leitão e esturjão frios. — A vossa saúde, meus senhores! - exclamou o conde, enquanto, com mãos trementes, enchia três cálices. -Aqui tens o teu, Gaetan Casimirovitch. Eu bebi, mas o polaco abanou a cabeça. Aproximou o nariz do esturjão, aspirou o seu cheiro e começou a comer. Peço desculpa ao leitor por descrever coisas tão pouco românticas. — Vamos! - convidou o conde. - Sigamos o que diz o poema: E beberam o segundo... Quando me encheu o copo, pela segunda vez, acrescentou: — Toma, Lecoq. Peguei no copo, examinei-o e voltei a colocá-lo sobre a mesa. — Diabos me levem - disse. - Há muito que não bebo. Façamos como nos velhos tempos. E, sem hesitar, enchi mais quatro cálices e bebi os cinco, uns atrás dos outros. Não sabia beber de outra maneira. Os estudantes aprendem com os mais velhos a fumar os primeiros cigarros. O conde, como um caloiro, seguiu o meu exemplo; encheu também cinco cálices e, curvado em arco, de sobrancelhas franzidas e a sacudir a cabeça, emborcou-os de rajada. Os meus cinco cálices pareceram-lhe um desa o, mas sem razão. Eu não bebera daquele modo por bravata de bebedor mas, sim, para me embriagar, para apanhar uma valente bebedeira, como não acontecia havia muito, perdido como estava na pasmaceira daquela vilória. Depois de beber, sentei-me à mesa e comecei a comer leitão. O álcool não tardou a produzir os seus efeitos. Pouco depois, senti uma ligeira vertigem. No meu peito espalhou-se uma agradável frescura, prelúdio de um estado expansivo e feliz. Sem transição, quei, de repente, extremamente eufórico, Uma sensação de enorme alegria tomou o lugar do vazio e do tédio que experimentara até então. Sorri e, num instante, tive vontade de conversar, de rir, de ver gente. A comer e a beber, senti a plenitude da vida, quase a alegria de viver, quase a felicidade completa. — Porque não bebe? - perguntei ao polaco. — Nunca bebe - declarou o conde. - Não insistas. — Beba um copo, ao menos! ,:! O polaco, a mastigar uma grande posta de esturjão, abanou a cabeça. O seu silêncio irritou-me. — Ouça lá, Gaetan... Desculpe, mas não me lembro do seu apelido... Porque ca sempre
  • 32. calado? Até agora, ainda não tive o prazer de lhe ouvir a voz... As sobrancelhas ergueram-se, como andorinhas que levantam voo, e o homem fitou-me. — O senhor quer que eu fale? - perguntou, com forte sotaque polaco. — Claro. — Porquê? — Porque é mais natural. Nos barcos e nos hotéis, os estranhos que se sentam à mesma mesa metem conversa uns com os outros. Nós, que nos conhecemos há já várias horas, olhamo-nos mutuamente sem trocar palavra. Que significa isso? O polaco manteve-se calado. — Porque não responde? - perguntei, passados instantes. - Diga alguma coisa! — Não quero responder-lhe. Vejo que quer troçar de mim e não gosto disso. — Não está a troçar de ti, Gaetan! - interveio o conde, assustado, - Onde foste buscar tal ideia? Está a falar amistosamente contigo. — Nem condes nem príncipes me falaram jamais em semelhante tom. - replicou Gaetan, franzindo as sobrancelhas. - E é um tom que não me agrada. — Quer dizer que me nega o prazer de conversar comigo - continuei eu, espicaçando-o ainda mais. — Sabes porque regressei? - atalhou o conde, tentando mudar o rumo da conversa. - Fui consultar o meu médico em São Petersburgo e ele, depois de me auscultar, perguntou-me: "O senhor é cobarde?" Embora não seja, empalideci e respondi: "Não, não sou". — Deixa-te de rodeios, meu velho, porque começas a maçar-me... — A rmou que eu não duraria muito, se não saísse rapidamente da cidade... Tenho o fígado desfeito... Sabes? Por causa da bebida... Era uma estupidez continuar em São Petersburgo... Disponho desta propriedade que é magní ca... E o clima, aqui, é excelente! Além disso, sempre posso entreter-me a fazer qualquer coisa. O trabalho é o melhor remédio, não te parece, Gaetan? Vou tratar das minhas terras e deixarei de beber... O médico proibiu-me de tomar nem que seja um copo de vinho... — Bom, então não bebas! — E vou mesmo deixar de beber! Hoje é a última vez e só o faço por teres vindo visitar-me... - a rmou o conde, enquanto se arrastava até mim e me beijava na face. - Por teres vindo visitar-me, tu, meu querido e bom amigo. Mas, a partir de amanhã, nem uma só gota! Dou férias a Baco até à eternidade. Vamos despedir-nos dele com conhaque, Serioja... Bebemos conhaque. — Vou curar-me, Serioja, e tratar das minhas terras. Cultura racional! Orbenine é bom, afável, sabe de tudo, mas não passa de um pateta. É rotineiro. Vou assinar revistas agrícolas, olhar por tudo, tomar parte em exposições rurais... Ele não serve para isso... Mas há Olenka... É possível que esteja apaixonado por ela... Ah! Ah! Serei eu a tratar de tudo... Participarei nas eleições, darei festas. Creio que aqui poderei ser feliz... Não achas? Ah, lá estás tu a rir... Estás sempre a rir... Na verdade, não se pode falar contigo de coisas sérias!... Sentia-me alegre e de bom humor. Tudo me fazia rir: o conde, as luzes, as garrafas, as lebres e os patos esculpidos que ornavam as paredes da sala de jantar.
  • 33. A única coisa que me entristecia era a cara sisuda de Gaetan Casimirovitch. A presença daquele homem tinha o condão de me irritar. — Não podes mandar para o diabo este fidalgote polaco? - sussurrei ao conde. — Que se passa contigo? Pelo amor de Deus, deixa-o em paz! - murmurou, agarrando-me o braço, como se eu tivesse intenção de agredir o polaco. — Não posso com ele. Ouça! - exclamei, dirigindo-me a Pchekotski. - O senhor recusa-se a falar comigo mas ainda não perdi a esperança de travar mais amplo conhecimento com as suas faculdades oratórias. — Deixa-o - suplicou de novo o conde, puxando-me o braço. — Vou colar-me a si - continuei -, até que me responda. Porque franze as sobrancelhas? Terá a coragem de afirmar, outra vez, que quero troçar de si? — Se tivesse bebido tanto como o senhor, poderíamos falar - resmungou o polaco -, mas assim não estamos em igualdade de condições. —Aí tem! Aí tem o que eu queria demonstrar... Um ganso não pode ser boa companhia para um porco, um bêbado não pode andar de braço dado com um homem sóbrio... O bêbado incomoda o sóbrio e o sóbrio incomoda o bêbado. Veja! No salão há uns magní cos sofás, muito macios, onde uma pessoa pode estender-se depois de ter enchido a barriga com esturjão e rabanetes. Lá não se ouve a minha voz. Não quer ir para lá? O conde, estupefacto, ergueu os braços, pestanejou e pôs-se a andar de um lado para o outro. Cobarde como era, temia as discussões acaloradas... Eu, pelo contrário, quando bebo, adoro as altercações e as controvérsias. — Não te percebo - gemeu, não sabendo o que dizer ou fazer. - Não te percebo. Sabia que era difícil acalmar-me. — Ainda não o conheço bem - prossegui. - Pode acontecer até que seja um excelente homem. Por isso mesmo não queria discutir consigo, neste momento. E não o farei. Limito-me a fazer-lhe ver que, entre bêbados, as pessoas sóbrias estão a mais. Um homem sóbrio irrita o organismo de um bêbado. Meta isso na cabeça. — Diga o que quiser, jovem - suspirou Pchekotski. — Nada me fará perder a calma. — Tem a certeza disso? Nada? E se eu lhe chamar "porco teimoso", não se sente ofendido? O polaco corou e nada mais. O conde, muito pálido, aproximou-se de mim em atitude suplicante e abriu os braços. — Por favor! Modera a tua linguagem! Bem compenetrado do meu papel de bêbado, teria continuado os meus ataques ao polaco, mas, por sorte para ele e para o conde, ouviram-se uns passos e Orbenine entrou no salão. — Bom proveito! - saudou. - Vossa Excelência tem alguma ordem a dar-me? — Por enquanto, não, mas alegro-me por ter vindo, Piotre Iegoritch. Sente-se. Vai cear connosco e falaremos das culturas. O administrador sentou-se. Enquanto comia e bebia conhaque, o seu patrão expôs-lhe os seus planos de cultura racional. Falou de maneira cansativa, repetindo-se e saltando de uma ideia para outra. Orbenine escutava-o com atenção indolente, tal como os adultos escutam a fala incoerente de uma criança. Tomava a sopa e ficava a olhar para o prato com tristeza.
  • 34. — Trouxe comigo uns projectos magníficos - declarou o conde. - Quer vê-los? Karnieiev levantou-se e correu para ir buscar os tais projectos. Orbenine aproveitou a sua ausência para servir-se de vodca, que despejou numa chávena e bebeu de um só trago. — Que asquerosa bebida! - disse, olhando horrorizado para o garrafão. — Porque não bebe na presença do conde? - perguntei-lhe. - Tem medo dele? — É melhor, Sergei Petrovitch, passar por hipócrita e beber às escondidas do que beber diante dele. Como sabe, o conde tem um temperamento esquisito. Se eu lhe roubasse descaradamente vinte mil rublos, ele, por preguiça, não diria nada, mas se me esquecesse de lhe prestar contas de uma despesa de dez copeques, ou se bebesse à sua frente, era capaz de chamar-me as piores coisas. Orbenine serviu-se outra vez de vodca e engoliu-o de seguida. — Creio que antigamente não bebia, Orbenine. — É exacto. E, actualmente, bebo em excesso. O conde nunca bebeu tanto como eu bebo agora. Sempre tive grande consideração por si, Sergei Petrovitch, e vou ser franco para consigo: gostava de ter coragem para me enforcar. — Que ideia! Porquê? — Por causa das minhas parvoíces. Não só as crianças são patetas. Há imbecis de cinquenta anos que... Por favor, não pergunte mais nada! O regresso do conde pôs um ponto final nas efusões de Orbenine. — Um excelente licor - proclamou, colocando sobre a mesa, em lugar dos "magníficos"projectos, uma garrafa bojuda com o lacre da Bénédictine. - Comprei-o na loja Desprès, em Moscovo. Queres prová-lo, Serioja? — Não tinhas ido buscar uns projectos? - perguntei. — Eu? Que projectos?... Ah, sim... Não os encontrei. Nem o Diabo era capaz de se entender com as minhas malas. Procurei por toda a parte e acabei por desistir... É óptimo, este licor. Não queres prová-lo? Orbenine pediu licença para retirar-se e saiu. Bebemos mais vinho tinto - e esse vinho acabou comigo. Vi acercar-se a bebedeira por que tanto ansiava desde que me decidira a visitar o conde. Sentia- me cada vez mais alegre e atrevido. Desejava fazer algo de extraordinário, de grotesco, de assombroso... Em momentos como aquele, julgo-me capaz de atravessar o lago a nado, de resolver os casos mais complicados, de subjugar qualquer mulher... Tinha vontade de me pegar com outra pessoa, de cobri-la de insultos, de irritar, com palavras acerbas, o polaco e o próprio conde. Queria reduzi-los a pó. — Porque estão calados? - comecei. - Falem! Todo eu sou ouvidos. Ah, ah! Adoro ouvir aqueles que dizem os maiores disparates com cara muito séria. É uma ironia, uma terrível brincadeira da natureza humana. Rostos que não correspondem aos cérebros! Para não enganar os outros, vocês dois deviam ter caras de idiotas e não de filósofos gregos... Tomara o freio nos dentes. Não acabei. Viera-me à cabeça a ideia de que não mereciam sequer que lhes dirigisse a palavra. Do que eu precisava, naquela altura, era de uma sala cheia de belas mulheres inteligentes e carregadas de jóias.
  • 35. Levantei-me, peguei num copo e pus-me a passear pela casa. Quando organizávamos uma festa não nos confinávamos a uma sala só; invadíamos toda a casa e, às vezes, até toda a propriedade. No salão dos azulejos escolhi o sofá turco para nele me entregar ao império da fantasia. O meu cérebro foi tomado por mirabolantes divagações alcoólicas. Dei comigo num mundo novo, cheio de exaltações, encanto e de cores indescritíveis. Só me faltava fazer versos e ter alucinações. k
  • 36. O CAPÍTULO 6 k conde veio sentar-se no sofá, a meu lado. Queria dizer-me alguma coisa. Adivinhava-lhe nos olhos o desejo de me fazer uma con dência muito especial, logo após haver emborcado os seus cálices de que já falei. E eu sabia do que se tratava. — Quanto bebi! - confessou. - Isto, para mim, é pior do que um veneno, mas será a última vez. Palavra, vai ser a última vez. Estou decidido e a minha vontade é muito forte... — Basta! Já sei tudo isso. — A última vez, Serioja. E a propósito, não seria melhor telegrafarmos para a cidade? — Se quiseres telegrafa. — Vamos fazer uma pândega pela derradeira vez. Levanta-te e redige o telegrama. O conde não sabe escrever telegramas. Ficam prolixos mas incompletos. Levantei-me e escrevi: Para o chefe do coro Karpov, Restaurante Londres. Deixe tudo e venha imediatamente no comboio das duas. Conde Karnieiev - São duas menos um quarto - disse o conde. - Em três quartos de hora, no máximo uma hora, o mensageiro estará na estação. Karpov terá tempo de apanhar o comboio... Se o perder, poderá vir no de mercadorias, não achas? Kuzma, o vesgo, levou o telegrama e foi ordenado a Ilia que mandasse o carro à estação, daí a uma hora. Para passar o tempo pus-me a acender lentamente todos os candeeiros da casa. Abri o piano e experimentei o teclado. Em seguida, deitei-me no sofá, sem pensar fosse o que fosse, procurando evitar o conde que me incomodava com as suas histórias. Entrei num estado de sonolência, numa disposição de espírito feliz e tranquila, não vendo mais nada do que a luz das velas... Passou-me em frente dos olhos a imagem da rapariga de vermelho, com a sua cabeça inclinada sobre o ombro, o seu olhar cheio de terror perante a ideia de uma morte sensacional e o gesto de leve ameaça que me zera com o dedo. Também me xei noutra imagem: a de uma rapariga altiva e pálida, vestida de preto, que me fitava com ar de súplica e, ao mesmo tempo de desprezo. Nesse momento ouvi um barulho de vozes e correrias... Dois olhos negros velaram. Apercebi- me de que alguém se ria junto de mim e de uns lábios frescos que se abriam alegremente. Era Tina, a minha cigana favorita. — Estás a dormir? - perguntou - Levanta-te, querido... Há quanto tempo não te via! - Apertei-lhe a mão, em silêncio, e puxei-a para mim. — Vem ter connosco - pediu. - Já chegaram todos. — Fica comigo, Tina. Sinto-me bem aqui. — Mas... há luz a mais. Pode aparecer alguém... — - Se aparecer alguém, torço-lhe o pescoço. Sinto-me bem aqui, Tina. Dois anos sem te ver... Na sala, o piano começou a tocar e um coro de vozes entoou Ah, Moscovo! Moscovo das pedras brancas. — Vês? Já estão a cantar. Não virá ninguém incomodar-nos.
  • 37. — Sim... sim... A chegada de Tina tirou-me do meu torpor. Dez minutos mais tarde, levou-me para a sala, onde um coro de ciganas estava instalado em semicírculo. Escarranchado numa cadeira, o conde fazia de maestro e o polaco, de pé, olhava tudo aquilo com olhos esgazeados. Tirei a balalaica das mãos de Karpov e, com um trejeito, comecei a cantar: Navegando sobre o rio, que é como a nossa mãe, o Volga... — Vo-o-olga! - acompanhou o coro. — Ah! Arde...fala...fala... Fiz novo trejeito e, com a velocidade de um raio, passou-se para outra cantiga: Oh! Que noites de loucura, noites de prazer... Nada me excitava tanto os nervos como aquelas mudanças bruscas de ritmo e de melodia. Estremeci, em êxtase, e, agarrando Tina pela cintura com uma das mãos e brandindo a balalaica na outra, acabei de cantar As noites de loucura. A balalaica escapou-se-me das mãos, caindo no chão e, com fragor, quebrou-se em mil pedaços. — Vinho! Daí em diante, as minhas recordações penetram num caos. Tudo se mistura e confunde... Lembro-me do céu cinzento da madrugada. Encontramo-nos num pequeno barco. O lago está levemente agitado, como que indignado com os nossos excessos. De pé, no meio do barco, faço-o baloiçar. Tina grita, dizendo que vou cair à água e pedindo que me sente. Em alta voz, lastimando que o lago não tenha ondas tão altas como o "Túmulo de Pedra", a minha gritaria assusta as gaivotas que aparecem e desaparecem, em manchas brancas sobre o azul das águas. Vem depois um dia longo e quente, com as suas intermináveis refeições, os seus licores, conhaques e ponches. Recordo-me apenas de alguns momentos. Vejo-me com Tina, no jardim, sobre uma prancha de baloiço. Estou sentado numa das extremidades e Tina na outra. Subo e desço, com vigorosos impulsos, e não sei o que quero: que Tina caia e morra ou que suba até às nuvens. A cigana está muito pálida, mas, por amor próprio, aperta os lábios para não dar mostras do medo que sente. Subimos cada vez mais alto, mais alto... e não me recordo como acabou aquela brincadeira. Vem em seguida um passeio com Tina ao longo de um caminho arborizado. As copas verdes das árvores unem-se ao alto, ocultando o sol. Uma penumbra poética, as negras tranças de Tina, os seus lábios húmidos, um murmúrio... depois, caminha a meu lado uma rapariga loura, de nariz arrebitado, olhos de criança e cintura na - é contralto no coro. Passeio na sua companhia até ao momento em que Tina, que nos seguiu, faz uma cena de ciúmes. Está pálida, furiosa; chama-me "maldito" e quer voltar para a cidade. O conde, também pálido e com as mãos trémulas, corre para nós e, como de costume, não encontra palavras para acalmar Tina. A cigana, no auge da sua excitação, esbofeteia-me. Eu, que me enfureço perante a primeira palavra menos própria de qualquer homem, fico de todo indiferente às agressões de uma mulher. Ao cair da tarde, eu e Tina reconciliamo-nos. E chega a noite, tão agitada como a anterior, com música, cantigas endiabradas... e nem um segundo de sono reparador. — É um suicídio - murmurou Orbenine, que entrara, durante uns instantes, para ouvir os ciganos Obviamente, tem razão... Recordo-me de certa altura, no jardim, em que eu discutia com o conde.
  • 38. O polaco de sobrancelhas negras rondava por perto. Em momento algum tomou parte nas nossas efusões, embora nos seguisse por toda a parte, como uma sombra, sem fechar os olhos por um momento. O céu começou a aclarar-se e as copas das árvores voltaram a dourar-se com os primeiros raios de sol. Ao redor iniciou-se o alvoroço dos pardais e o canto dos estorninhos - ruídos sedosos, golpes de asas entorpecidas pela noite. Ouviu-se o mugir dos rebanhos acompanhado pelos gritos dos pastores. Perto de nós, sobre um alto castiçal de mármore, ardia uma vela Chandor com a sua chama pálida. O solo está coberto de pontas de cigarros, invólucros de bombons, copos partidos, cascas de laranjas... — Toma lá! - disse ao conde, entregando-lhe um maço de notas. - Tens de aceitar! — Fui eu quem os convidei e não tu - contrapôs o conde com energia, agarrando-me pelo casaco. - Sou eu o anfitrião. Mandei-te buscar. Por que razão hás-de ser tu a pagar? Não vês que me ofendes? — Eu também os convidei - retorqui. - Quero pagar a minha parte. Não queres aceitar o meu dinheiro? Pois eu não aceito os teus favores! Julgas que por seres rico podes impor-me a tua vontade? Diabos me levem. Fui eu quem convidou Karpov e serei eu a pagar-lhe. Eu é que redigi o telegrama. — Num restaurante, Serioja, podes pagar o que quiseres, mas a minha casa não é um restaurante. E não compreendo porque te exaltas assim. Tens pouco dinheiro enquanto eu tenho-o de sobra. Amais elementar equidade obriga-me a pagar toda a despesa. — Então não queres o meu dinheiro? Não o queres, pois não? Aproximei as notas da chama da vela, peguei-lhes fogo e atirei-as ao chão. Gaetan soltou um gemido. Abriu os olhos, empalideceu e lançou-se por terra, procurando apagar as chamas com as mãos. Os seus esforços foram coroados de êxito. — Queimar dinheiro! - exclamou, en ando no bolso as notas chamuscadas. - Não posso compreender tal coisa! Como se fosse o trigo do ano passado ou cartas de amor. É melhor dá-lo aos pobres. Encaminhei-me para casa. Em todas as divisões, sobre os sofás e os tapetes, dormiam os cantores, esgotados. Tina dormia no sofá do salão dos azulejos. Respirava com di culdade, de dentes cerrados e rosto pálido. Provavelmente via, em sonhos, o baloiço... A Coruja percorria os quartos espreitando, com os seus olhos penetrantes, as pessoas que tinham perturbado o silêncio sepulcral daquela casa desabitada. Não era sem uma razão válida que assim deambulava e cansava as pernas. Eis o que me cou na memória daquelas duas noites de tremenda orgia - mas creio que é su ciente. Tudo o mais esvaiu-se do meu cérebro perturbado pelo álcool ou não é próprio para ser contado. E, por agora, basta! k
  • 39. Z CAPÍTULO 7 k orka nunca me transportou para casa com tanta energia como naquela manhã, depois do episódio das notas... Parecia que também a égua tinha urgência em regressar. As ondas espumantes do lago re ectiam o nascer do Sol. É difícil descrever o que ia dentro de mim naquele momento. Direi somente, sem insistir, que me sentia inegavelmente feliz e, ao mesmo tempo, corava de vergonha ao ver, na margem do lago, o velho Michei, esgotado pelo trabalho honesto e pelas maleitas. A sua aparência fazia lembrar a dos pescadores da Bíblia. Fiz estacar Zorka e estendi a mão ao velhote, como para me puri car, tocando na sua mão calejada. Michei ergueu para mim os seus olhos espertos e sorriu. — Bom dia, meu senhor - disse, acanhado e estendendo-me a mão. - Vem a cavalo. Quer dizer que o vadio já regressou. Leio-o na sua cara. Eu observo sempre o que se passa à minha volta. O mundo será sempre o mundo. Vaidade das vaidades. Olhe, o alemão está quase a morrer, mas agora preocupa-se com futilidades. Veja-o. O velhote, com o seu cajado, apontou para o pavilhão de banhos do conde, de onde saiu, num bote, um homem com boné de jóquei e casaco azul: o jardineiro Frantz. — Todas as manhãs vai à ilha para lá esconder dinheiro. O imbecil não compreende que, para ele, o dinheiro e a areia têm o mesmo valor. Não o levará consigo, quando morrer. Dê-me um cigarro, senhor. Estendi-lhe a cigarreira e ele tirou três cigarros que guardou no bolso da camisa. — São para o meu sobrinho... Ele gosta de fumar... Impaciente, Zorka retomou a marcha. Despedi-me do velho, agradecido por me ter dado a oportunidade de repousar os olhos no seu rosto. Michei cou a observar-me até eu desaparecer da sua vista. Em casa, Policarpe estava à minha espera. Mediu-me de alto a baixo, com um olhar de desdém, como se quisesse certificar-se de que, também daquela vez, tomara banho vestido. — Felicito-o - grunhiu. - Divertiu-se muito? — Cala-te, idiota! O seu ar estúpido irritou-me. Despi-me rapidamente, enterrei a cabeça na almofada e fechei os olhos. A cabeça andou-me à roda. Como que trazidas por uma bruma vaga, chegaram ao meu espírito imagens familiares e recentes. Ouvi o grito "O marido matou a mulher... Ah, que estúpidos são vocês!" A rapariga do vestido vermelho ameaçou-me com o dedo. Tina veio ensombrar o quarto com os seus olhos negros e eu adormeci. — Que sono delicioso e inocente! Dir-se-ia que nesta almofada repousa a consciência mais sossegada deste mundo, que o conde não regressou ainda, que não houve nenhuma orgia nem ciganos, que à beira do lago não se produziu qualquer escândalo... Levante-se homem maligno! Não merece as delícias de um sono tranquilo. Levante-se! Entreabri os olhos e espreguicei-me com delícia. Da janela chegava um raio de sol em que utuava o pó branco do quarto. Esse raio tão depressa desaparecia dos meus olhos como voltava a
  • 40. incidir neles, consoante se interpunha ou não, diante de mim, o Dr. Pavel Ivanovitch Voznessenskí, meu simpático vizinho. O seu largo jaquetão desabotoado utuava-lhe sobre o corpo como se este fosse um cabide. Com as mãos en adas nos bolsos das calças, exageradamente largas, ia de uma mesa para a outra ou de um retrato para o seguinte, observando, com olhos de míope, tudo o que encontrava no caminho. Cedendo ao seu hábito de meter o nariz em quanto podia, inclinou-se para a frente para examinar o lavatório, as pregas dos cortinados, as fendas das portas e o candeeiro, como se quisesse assegurar-se de que tudo estava em ordem. Examinando atentamente, através dos óculos colocados na ponta do nariz comprido, a menor racha, a mais pequena mancha no papel de parede, assumia ar preocupado, resfolgava ruidosamente e alisava as imperfeições que descobria com a ponta da unha e com o maior cuidado. Fazia tudo aquilo maquinalmente, passando, com presteza, de um objecto para outro, como um perito que procede a uma análise minuciosa. — Já lhe disse que se levantasse! - repetiu com a sua suave voz cantante, enquanto inspeccionava a saboneteira e extraía, com a unha, um cabelo colado ao sabão. — Ah, bom dia, Sr. "Olhos piscos"! - disse eu, bocejando. - Quantos Outonos e quantas Primaveras sem nos vermos! Tal como eu, toda a gente do distrito conhece o médico pela alcunha de "Olhos piscos" porque, na verdade, os seus olhos piscam constantemente. Ao ver-me acordado, Voznessenski aproximou- se da cama, sentou-se nela e, de imediato, dirigiu a vista para uma caixa de fósforos. — Só os preguiçosos e as pessoas de consciência tranquila dormem assim e, como você não é uma coisa nem outra, convém que se levante quanto antes. , - Que horas são? — Passa das onze. — Vá para o diabo! Ninguém lhe pediu que me acordasse tão cedo! Sabe que não consegui dormir até às seis? Se não fosse você poderia ter dormido até ao fim da tarde. — Pois claro! - protestou Policarpe do quarto vizinho. -Ainda não dormiu o su ciente. Há dois dias que está a dormir e ainda não chega? Sabe que dia é hoje? - perguntou em seguida, entrando no meu quarto e olhando para mim como os sãos de espírito olham para os loucos. — Quarta-feira - respondi. — Pois claro! - repetiu. - Esta semana teve duas quartas-feiras. — Hoje é quinta-feira - declarou o médico. - Com que então deu-se ao luxo de dormir durante todo o dia de ontem. Muito bonito! Que diabo bebeu você? — Passei duas noites sem dormir, mas não me recordo do que bebi. Mandei embora Policarpe e comecei a vestir-me, enquanto relatava ao médico as "noites loucas" que acabara de viver, tão aliciantes nas novelas e tão desagradáveis na vida real. Procurei adoptar um tom ligeiro, limitando-me a narrar os acontecimentos, sem extrair a moral da história, embora a natureza humana seja dada a tirar conclusões de tudo quanto acontece. Parecia que estava a contar ninharias a que era de todo alheio e, conhecendo a sua aversão por Karnieiev, omiti inúmeros pormenores, mas, apesar do meu tom contido, não logrei que Pavel Ivanovitch deixasse de me tar com ar muito sério, abanando a cabeça e demonstrando a sua impaciência. Era evidente que o meu "tom ligeiro" não o convencia. — Porque não se ri, meu caro "Olhos piscos"? - perguntei, quando dei por findo o relato. — Se não fosse você a contar-me isso e também se eu não soubesse de outro episódio
  • 41. confirmativo, não acreditaria no que ouvi. É por demais escandaloso, meu amigo. — A que episódio se refere? — Ontem de tarde, um mujique chamado Ivan Ossipov veio ver-me... Lembra-se? Você agrediu-o de forma muito pouco delicada. — Ivan Ossipov? - exclamei, levantando-me, - É a primeira vez que ouço esse nome. — Um homem alto, arruivado, sardento... Veja se consegue recordar-se... Você deu-lhe com um remo na cabeça! — Não me lembro. Não conheço nenhum Ivan Ossipov e não dei com um remo na cabeça de ninguém. Deve ser confusão sua... — Quem me dera que assim fosse... Ossipov trazia um mandado administrativo para que eu elaborasse um atestado médico. O mandado dizia que foi você quem o agrediu. Ainda não se lembra? Ferida contusa na parte superior da testa, junto do couro cabeludo... Golpeou-o até ao osso, meu caro. — Não me lembro - murmurei. - Quem é ele? O que faz? — É um trabalhador ao serviço do conde. Andava a remar no lago, enquanto os senhores se divertiam. — Hum, pode ser, mas não me recordo! Muito provavelmente estava embriagado e z inadvertidamente algo que o feriu... — Não houve nada de involuntário nem de acidental neste caso. O homem garante que você se irritou com ele, que o injuriou grosseiramente e, por m, enfurecido, se atirou a ele, na presença de testemunhas, e o golpeou, enquanto gritava: "Vou matar-te, canalha!" Corei e pus-me a caminhar de um lado para o outro. — Que me enforquem se consigo recordar-me! - exclamei, fazendo um esforço sobre-humano para me recordar do episódio. - Não me lembro! "Enfurecido", não foi o que disse? Na verdade, quando me embriago, torno-me bastante odioso! — Como pensa resolver este assunto? — É manifesto que o homem quer armar escândalo, mas isso é o menos... O pior é o ferimento... Como foi possível ter-lhe batido dessa maneira? Porque iria eu agredir esse pobre mujique? — Aí é que reside o problema, meu amigo. Não pude recusar-lhe o atestado, mas não deixei de o aconselhar a vir falar consigo... Veja se chega a acordo com ele, seja de que maneira for... Aferida é pequena, mas, aqui entre nós que ninguém nos ouve, um golpe na cabeça que chega até ao osso é coisa muito séria. Não é raro que uma ferida dessas, que parece benigna, evolua para uma necrose dos ossos cranianos com a fatal viagem ad patres no fim... Entusiasmado, "Olhos piscos" levantou-se, dirigiu-se até à parede, a agitar os braços, e começou a debitar os seus conhecimentos de patologia cirúrgica. — Por favor, não me entonteça! - disse eu, interrompendo-o. - Não vê que tudo isto é muito desagradável para mim? — Não vai dar em nada, acredite... Siga o meu conselho, peça-lhe desculpas e chegue a acordo com ele...
  • 42. E da próxima vez seja mais circunspecto e não cometa disparates como este. Se não chegar a acordo com esse tinhoso Ossipov, pode vir a perder o seu cargo. Um sacerdote de Temis acusado de ofensas corporais voluntárias! Que belo escândalo! Pavel Ivanovitch é o único homem de quem aceito uma advertência sem franzir o sobrolho, a única pessoa que, se quiser, pode tar-me com ar interrogatório ou levar as suas investigações até às profundezas da minha alma. Somos amigos, no melhor sentido da palavra, nutrindo profunda estima mútua, embora subsista por saldar entre nós uma conta antiga de natureza delicada e desagradável. Entre ele e eu, como agente de discórdia, passou certa vez uma mulher. Este eterno casus belli criou embaraços, mas não nos levou a cortar relações. Pavel Ivanovitch é um excelente homem. Gosto da sua cara simples, que nada deve à beleza; gosto do seu enorme nariz, dos seus olhos piscos, da sua barbicha ruiva, do seu escasso cabelo. Usa calças mal talhadas, muito largas e enrugadas nos joelhos. A gravata branca nunca está bem posta. A sua negligência, contudo, é compreensível. Não tem tempo para ocupar-se de si próprio nem sabe fazê-lo. Não fuma, não bebe e não gasta com mulheres os dois mil rublos que ganha por mês. No entanto, há duas paixões que o arruínam: a mania de emprestar dinheiro sem garantias e sem reclamar o reembolso e a de comprar tudo quanto vem anunciado nos jornais: livros, binóculos de teatro, revistas humorísticas, serviços de mesa "composto por cem peças", cronómetros, etc. Por essa razão, não admira que os seus pacientes confundam a casa do médico com um arsenal ou com um museu. Em conclusão: é um bom rapaz e iremos encontrá-lo, amiúdo, nas páginas desta novela. — Oh! Já perdi demasiado tempo consigo! - exclamou, olhando para o seu relógio barato, de tampo duplo, garantido por cinco anos e já com dois consertos no activo. - Tenho de ir-me embora, meu amigo! Adeus e cuide de si. Esses excessos em casa do conde vão acabar mal... Ah, a propósito, amanhã vai a Tenieievo? — Amanhã? Porquê? — É a festa da paróquia! Toda a gente estará presente e você também deve fazer o mesmo. Não se esqueça de ir! Disse que você não faltaria e dei a minha palavra. Não me deixe ficar mal! Não carecia de perguntar a quem dera ele a sua palavra. Ambos o sabíamos. Despediu-se, envergou o sobretudo já muito usado e saiu. k