O documento descreve a vida nos subúrbios do Rio de Janeiro no passado, retratando as precárias condições de moradia e a diversidade de ocupações exercidas pela população mais pobre. Também apresenta a figura do Conselheiro Antônio Vicente Mendes Maciel, líder religioso que fundou a cidade de Canudos e atraiu muitos seguidores com sua pregação.
1. Triste fim de Policarpo Quaresma
Lima Barreto
Veja aqui, no mesmo romance, a forma como o autor descreve a cidade do Rio de
Janeiro em um dia de domingo.
“O bonde tardou um pouco. Chegou.
Tomaram. Desceram no Largo da Carioca.
É bom ver-se a cidade nos dias de
descanso, com as suas lojas fechadas, as
suas estreitas ruas desertas, onde os
passos ressoam como em claustros
silenciosos. A cidade é como um esqueleto,
faltam-lhe as carnes, que são a agitação, o
movimento de carros, de carroças e gente.
Na porta de uma loja ou outra, os filhos do
negociante brincam em velocípedes, atiram
bolas e ainda mais se sente a diferença da
cidade do dia anterior.”
“Não havia ainda o hábito de procurar os
arrabaldes pitorescos e só encontravam,
por vezes, casais que iam apressadamente
a visitas, como eles agora. O Largo de São
Francisco estava silencioso e a estátua, no
centro daquele pequeno jardim que
desapareceu, parecia um simples enfeite.
Os bondes chegavam preguiçosamente ao
largo com poucos passageiros. Coleoni e
sua filha tomaram um que os levasse à
casa de Quaresma. Lá foram. A tarde se
aproximava e as toilettes domingueiras já
apareciam nas janelas. Pretos com roupas
claras e grandes charutos ou cigarros;
grupos de caixeiros com flores
estardalhantes; meninas em cassas bem
engomadas: cartolas antediluvianas ao
lado de vestidos pesados de cetim negro,
envergados em corpos fartos de matronas
sedentárias; e o domingo aparecia assim
decorado com a simplicidade dos humildes,
com a riqueza dos pobres e a ostentação
dos tolos.”
Veja também como ele descreve a vida nos subúrbios cariocas:
“Além disto, os subúrbios têm mais
aspectos interessantes, sem falar no
namoro epidêmico e no espiritismo
endêmico; as casas de cômodos (quem as
suporia lá!) constituem um deles bem
inédito. Casas que mal dariam para uma
pequena família, são divididas,
subdivididas, e os minúsculos aposentos
assim obtidos, alugados à população
miserável da cidade. Aí, nesses caixotins
humanos, é que se encontra a fauna
menos observada da nossa vida, sobre a
qual a miséria paira com um rigor londrino.
Não se podem imaginar profissões mais
tristes e mais inopinadas da gente que
habita tais caixinhas. Além dos serventes
de repartições, contínuos de escritórios,
podemos deparar velhas fabricantes de
rendas de bilros, compradores de garrafas
vazias, castradores de gatos, cães e galos,
mandingueiros, catadores de ervas
medicinais, enfim, uma variedade de
profissões miseráveis que as nossas
pequena e grande burguesias não podem
adivinhar. Às vezes num cubículo desses
se amontoa uma família, e há ocasiões em
que os seus chefes vão a pé para a cidade
por falta do níquel do trem.”
2. Urupês
Monteiro Lobato
Fragmentos do capítulo 1 de Urupês
Nada o esperta. Nenhuma ferretoada
o põe de pé. Social, como
individualmente, em todos os atos da
vida, antes de agir, acocora-se.
Jeca Tatu é um piraquara do Paraíba,
maravilhoso epítome de carne onde
se resumem todas as características
da espécie.
Ei-lo que vem falar ao patrão. Entrou,
saudou. Seu primeiro movimento
após prender entre os lábios a palha
de milho, sacar o rolete de fumo e
disparar a cusparada d’esqguicho, é
sentar-se jeitosamente sobre os
calcanhares. Só então destratava a
língua e a inteligência. (...) De pé ou
sentado as idéias se lhe entramam, a
língua emperra e não há de dizer
coisa com coisa. (...)Pobre Jeca Tatu!
Como és bonito no romance e feio na
realidade!
(...) Seu grande cuidado é espremer
todas as conseqüências da lei do
menor esforço — e nisto vai longe.
Começa na morada. Sua casa de
sapé e lama faz sorrir aos bichos que
moram em toca e gargalhar ao joão-
de-barro. Pura biboca de
bosquímano. (...) Às vezes se dá ao
luxo de um banquinho de três pernas
— para os hóspedes. Três pernas
permitem equilíbrio, inútil, portanto,
meter a quarta, que ainda o obrigaria
a nivelar com o chão. Para que
assentos, se a natureza os dotou de
sólidos, rachados calcanhares sobre
os quais se sentam?
Nenhum talher. Não é a munheca um
talher completo — colher, garfo e
faca a um tempo?
(...) Seus remotos avós não gozaram
de maiores comodidades. Seus netos
não meterão quarta perna ao banco.
Para quê? Vive-se bem sem isso. (...)
Remendo... Para quê? Se uma casa
dura dez anos e faltam “apenas” nove
para que ele abandone aquela? Esta
filosofia economiza reparos. (...) Todo
o inconsciente filosofar do caboclo
grulha nessa palavra atravessada de
fatalismo e modorra. Nada paga a
pena. Nem culturas, nem
comodidades. De qualquer jeito se
vive.
3. Eu e Outras Poesias -
Augusto dos Anjos
“Desde então para cá fiquei sombrio
Um penetrante e corrosivo frio
Anestesiou-me a sensibilidade
E a grandes golpes arrancou raízes
Que prendiam meus dias infelizes
A um sonho antigo de felicidade!”
“Meu coração, como um cristal, se
quebre,
O termômetro negue minha febre,
Torne-se gelo o sangue que me abrasa,
E eu me converta na cegonha triste
Que das ruínas duma casa assiste
Ao desmoronamento de outra casa!”
“Bati nas pedras dum tormento rude
E a minha mágoa de hoje é tão intensa
Que eu penso que a alegria é uma doença
E a tristeza é minha única saúde.”
"Dizes que sou feliz. Não mentes. Dizes
Tudo que sentes. A infelicidade
Parece às vezes com a felicidade
E os infelizes mostram ser felizes!"
"(...)
Ah! Se me ouvisses falando!
(E eu sei que às dores resiste)
Dir-te-ia coisas tão tristes
Que acabarias chorando.
Que mal o amor tem me feito!
Duvidas?! Pois, se duvidas,
Vem cá, olha estas feridas
Que o amor abriu em meu peito.
Passo longos dias, a esmo...
Não me queixo mais da sorte
Nem tenho medo da Morte
Que eu tenho a Morte em mim mesmo!
(...)"
"Homem, carne sem luz, criatura cega,
Realidade geográfica infeliz
O Universo calado te renega
E a tua própria boca te maldiz!
O nôumeno e o fenômeno, o alfa e o
ômega
Amarguram-te. Hebdômadas hostis
Passam... Teu coração te desagrega,
Sangram-te os olhos, e, entretanto, ris!
Fruto injustificável dentre os frutos,
Montão de estercorária argila,
Excrescência de terra singular.
Deixa a tua alegria aos seres brutos,
Porque, na superfície do planeta,
Tu só tens um direito: - o de chorar!"
4. Euclides da Cunha - parte II
O HOMEM
A segunda parte de Os Sertões é a mais
polêmica porque nela aparecem questões como
a da formação racial do sertanejo e a dos males
da mestiçagem. Euclides vê na mistura de raças
um retrocesso:
De sorte que o mestiço - traço de união
entre as raças, breve existência
individual em que se comprimem
esforços seculares - é quase sempre um
desequilibrado. (...) E o mestiço -
mulato, mameluco ou cafuzo - menos
que um intermediário, é um decaído,
sem a energia física dos ascendentes
selvagens, sem a altitude intelectual
dos ancestrais superiores.
Contrastando com esta quase
impossibilidade do mestiço para a
civilização moderna, os sertanejos
nordestinos (embora também
resultantes de amplo caldeamento
étnico) seriam diferentes por terem há
muito se isolado no grande interior do
país. Abandonados há três séculos, sem
contatos maiores com o litoral
desenvolvido, “nossos patrícios
retardatários” – inversamente aos
mestiços urbanos – não haviam sido
corrompidos:
O abandono em que jazeram teve
função benéfica. Libertou-os da
adaptação penosíssima a um estágio
social superior e, simultaneamente,
evitou que descambassem para as
aberrações e vícios dos meios mais
adiantados.
Por isso, apesar de seu atraso mental, o
sertanejo surge como um titã:
O sertanejo é, antes de tudo, um forte.
Não tem o raquitismo exaustivo dos
mestiços neurastênicos* do litoral.
A sua aparência, entretanto, ao
primeiro lance de vista revela o
contrário. Falta-lhe a plástica
impecável, o desempeno**, a estrutura
corretíssima das organizações atléticas.
É desgracioso, desengonçado, torto.
Hércules-Quasímodo, reflete no
aspecto a fealdade típica dos fracos. O
andar sem firmeza, sem aprumo, quase
gingante e sinuoso, aparenta a
translação de membros desarticulados.
Agrava-o a postura normalmente
abatida, num manifestar de displicência
que lhe dá um caráter de humildade
deprimente. (...)
É um homem permanentemente
fatigado.
Reflete a preguiça invencível, a atonia
muscular perene, em tudo: na palavra
remorada, no gesto contrafeito, no
andar desprumado, na cadência
langorosa das modinhas, na tendência
constante à imobilidade e à quietude.
Entretanto, toda esta aparência de
cansaço ilude.
Naquela organização combalida
operam-se, em segundos,
transmutações completas. Basta o
aparecimento de qualquer incidente
exigindo-lhe o desencadear das
energias adormidas. O homem
transfigura-se. Empertiga-se.
5. Euclides da Cunha - parte II
O HOMEM
“Antônio Conselheiro há vinte e
dois anos, desde 1874, era famoso
em todo o interior do Norte e
mesmo nas cidades do litoral até
onde chegavam, entretecidos de
exageros e quase lendários, os
episódios mais interessantes de sua
vida romanesca; dia a dia ampliara
o domínio sobre as gentes
sertanejas; vinha de uma
peregrinação incomparável, de um
quarto de século, por todos os
recantos do sertão, onde deixara
como enormes marcos,
demarcando-lhe a passagem, as
torres de dezenas de igrejas que
construíra; fundara o arraial de
Bom Jesus, quase uma cidade; de
Chorrochó à Vila do Conde, de
Itapicuru a Jeremoabo, não havia
uma só vila, ou lugarejo obscuro,
em que não contasse adeptos
fervorosos, e não lhe devesse a
reconstrução de um cemitério, a
posse de um templo ou a dádiva
providencial de um açude;
insurgira-se desde muito,
atrevidamente, contra a nova ordem
política e pisara, impune, sobre as
cinzas dos editais das câmaras de
cidades que invadira; destroçara
completamente, em 1893, forte
diligencia policial, em Macete, e
fizera voltar outra, de oitenta praças
de linha, que seguira até Serrinha;
em 1894, fora, nu Congresso
Estadual da Bahia, assunto de
calorosa discussão na qual,
impugnando a proposta de um
deputado, chamando a atenção dos
poderes públicos para a "parte dos
sertões perturbada pelo indivíduo
Antônio Conselheiro", outros
eleitos do povo, e entre eles um
sacerdote, apresentaram-no como
benemérito do qual os conselhos se
modelavam pela ortodoxia a cristã
mais rígida; fizera voltar, abortícia,
em 1895, a missão apostólica
planeada pelo arcebispo baiano, e
no relatório alarmante a propósito
escrito por frei João Evangelista
afirmara o missionário a existência,
em Canudos — excluídas as
mulheres, as crianças, os velhos e
os enfermos — de mil homens, mil
homens robustos e destemerosos
"armados até aos dentes"; por fim,
sabia-se que ele imperava sobre
extensa zona dificultando o acesso
à cidadela em que se entocara,
porque a dedicação dos seus
sequazes era incondicional, e fora
do círculo dos fiéis que o rodeavam
havia, em toda a parte, a
cumplicidade obrigatória dos que o
temiam... E achou-se suficiente
para debelar uma situação de tal
porte uma força de cem soldados.”
6. Canaã - Graça Aranha
A obra discute a situação em mim dos
imigrantes alemães no Espírito Santo,
bem como os conflitos decorrentes
desta colonização.
Fragmento:
Milkau, alemão, recém-chegado, o a uma
colônia de imigrantes europeus, no Espírito
Santo, aluga um cavalo para ir do Queimado à
cidade de Porto do Cachoeiro. Junto com ele vai
o guia, um menino de 9 anos, filho de um
alugador de animais, no Queimado. O imigrante
observa a paisagem e, ao passar por uma
fazenda abandonada, entregue aos poucos e
pobres escravos, nota o ritmo daquela gente
desamparada. Finalmente, chega ao sobrado do
comerciante alemão, Roberto Schultz, em
Cachoeiro. Na parte inferior do edifício fica o
armazém, onde é negociada toda sorte de
produtos, desde fazenda até instrumentos
agrícolas.
É apresentado a outro imigrante, von Lentz,
filho de um general alemão. Milkau deseja
arrematar um lote de terra para se estabelecer.
Schultz apresenta-lhe o agrimensor,
Sr.Felicíssimo, que está para ir ao Rio Doce
fazer medições de terra. Milkau, desejando aí se
estabelecer, decide se juntar ao agrimensor e
convida o indeciso Lentz para acompanhá-lo.
Pelo caminho, Lentz e Milkau discutem a
paisagem e a raça brasileiras. Milkau crê que o
progresso só se dá quando os povos se
misturam. Vê, na fusão das raças adiantadas
com as selvagens, o rejuvenescimento da
civilização. Enquanto acredita na humanidade,
pensa encontrar no Brasil Canaã, "a terra
prometida". Lentz só se ocupa da superioridade
germânica, ficando enaltecido com o triunfo dos
alemães sobre os mestiços. Para ele, a mistura
gera uma cultura inferior, uma civilização de
mulatos que serão sempre escravos e viverão em
meio a lutas e revoltas. Acrescenta que está no
Brasil, porque o estava forçando a se casar com
a filha de um general, amigo do pai. Preferiu
começar vida nova, longe dos deveres e
obrigações impostos por sua sociedade. Milkau
conta-lhe que também não encontrava graça no
viver, ansiava por uma vida mais independente,
em que pudesse dar vazão à sua individualidade.
À noite, reúnem-se a Felicíssimo e ouvem de
alguns homens da terra e dos trabalhadores
alemães lendas, evocando o Reno e despertando
saudades. Os planos dos dois imigrantes
diferem; Milkau deseja manter seu pedaço de
terra e anseia por uma justiça perfeita sem
ganâncias ou lutas. Lentz está determinado a
ampliar sua propriedade, ter muitos
trabalhadores sob seu comando. Sonha com o
domínio do branco sobre o mulato, numa
confirmação de seu poder.
Após as medidas tomadas por Felicíssimo,
Milkau pode levantar sua casa e Lentz deixa-se
ficar, triste e angustiado, incapaz de abandonar
o companheiro, dedicando-se às viagens e
compras da casa. No trajeto, encontra-se sempre
com um velho colono alemão taciturno, em
companhia de seus cães ferozes, mas fiéis. Mais
tarde, encontrará esse velho morto em casa,
guardado pelos animais e devorado pelos
urubus.
Um dia, ao retornar de Santa Teresa, Lentz traz
a notícia de que, em Jequitibá, o novo pastor vai
celebrar seu primeiro serviço. Os colonos
preparam uma festa e Milkau resolve juntar-se a
eles como forma de se familiarizar com os
costumes do povo. Pelo caminho, os amigos
encontram famílias inteiras de colonos. As
mulheres se vestem com o modelo usado na
partida para a nova terra, sendo possível fixar,
pelo vestuário, a época de cada imigração.
Felicíssimo os convida para, depois do culto,
festejarem no sobrado de Jacob Müller. Ouvem
música e vêem o povo dançando. Milkau diz a
Lentz que era isso o que buscava: uma vida
simples em meio à gente simples, matando o
ódio e esquecendo da dor. Os homens de outras
terras estavam possuídos pelo demônio,
devastando o mundo. Lentz vê em tudo aquilo
uma existência vazia e inútil.
Milkau conhece, nesse dia, no sobrado de
Müller, uma colona, Maria Perutz, que não
consegue mais esquecer o encontro com o
rapaz. A história de Maria é triste e solitária. O
pai morreu antes que ela pudesse conhecê-lo. A
mãe viúva, criada da casa do alemão Augusto
Kraus, logo falece e Maria fica sob os cuidados
de Augusto, seu verdadeiro amigo. Moravam
com o velho, seu filho, a nora Ema e o neto,
Moritz Kraus. Repentinamente, Kraus falece e a
situação na casa de Maria se modifica.
Ema e o esposo decidem separar a moça do
filho, temendo uma aproximação amorosa. A
família quer ver Moritz casado com a rica
Emília Schenker e o enviam para longe de
Jequitibá. O rapaz parte com certa alegria,
deixando Maria desgostosa, pois os dois já eram
amantes.
Franz Kraus é procurado por um Oficial de
Justiça que, desejando saber porque a morte do
velho não foi notificada, passa-lhe um
documento sobre a necessidade de arrolamento
dos bens de Augusto Kraus. Solicita que lhe
7. prepare alojamento e comida para cinco
pessoas, pois darão plantão em sua casa,
recebendo todos os que estiverem na mesma
situação de Franz.
O grupo se instala na casa e passa a chamar os
colonos, amedrontando-os com extorsões e
violências. Após a visita, cobram de Franz
Kraus a alta importância de quatrocentos mil
réis, além de demonstrarem certo interesse em
Maria, notadamente o procurador Brederodes.
Kraus sente-se ultrajado e roubado. A vida de
Maria por essa época piora. Dia-a-dia, teme que
seu estado se revele, por isso aguarda
desesperadamente o retorno de Moritz para lhe
contar sobre o filho que espera.
Os pais do rapaz não tardam perceber o que se
passa. Vendo-a mover-se pela casa
languidamente, sentem ódio e temem pelo
casamento do filho. Passam o dia a cochichar, a
tramar para se verem livres dela. Tratam-na com
mais rigor, não lhe dão quase comida, dobram-
lhe os trabalhos. Resignada, Maria resiste para
desespero dos velhos. Uma manhã, trêmula e
exausta deixa cair um prato. Encolerizada, Ema
grita para que ela abandone a casa. O marido
ameaça-lhe com um pedaço de madeira.
Amedrontada, arruma uma trouxa e sai. Pede
auxílio ao pastor, mas esse, dominado pela
cunhada, docemente afasta Maria que parte para
a vila em busca de abrigo.
Ao verem a triste figura, os colonos tomam-na
por louca, enxotando-a. Na floresta, seu único
refúgio, cai prostrada e adormece. No dia
seguinte, encontra uma estalagem, onde
empenha a trouxa de roupa em troca de comida
e abrigo. A dona do estabelecimento lhe dá dois
dias para encontrar um emprego, mas a busca é
em vão. Certo dia, na hora do almoço, Milkau
reconhece Maria na estalagem. Ao saber de sua
história, prontifica-se a ajudá-la, levando-a para
a casa de uns colonos. A moça é aceita, mas
tratada com desdém.
Um dia, trabalhando, solitariamente, no cafezal,
começa a sentir as dores do parto. Temendo
retornar à casa e ser maltratada, resiste até cair
e, esvaindo-se em sangue, dá luz ao bebê.
Alguns porcos, que estavam nas proximidades,
correm para lambê-los, mordendo o bebê que
falece. A filha dos patrões chega nesse instante
e, sem nada perguntar, volta à casa, dizendo que
Maria tinha matado o bebê e dado a criança aos
porcos. Dois dias depois, Perutz estava presa na
cadeia de Cachoeiro.
A população germânica, horrorizada com o
crime de Maria, prepara-se para a vingança e o
exemplo. Roberto Shultz procura os mesmos
representantes da Justiça que amedrontaram e
extorquiram os colonos, durante o arrolamento
de bens. Pede-lhes que deixem a punição da
mãe assassina para os alemães. O procurador
Brederodes, ignorado por Maria na época,
insiste em puni-la para que aprenda a não ser tão
orgulhosa. Chama todos os alemães de
hipócritas e parte, deixando Shultz
desmoralizado.
Milkau fica sabendo do destino de Perutz e o
encontro com ela em Cachoeiro choca-o. Maria
tinha a face lívida e os olhos cintilantes
dançavam ao sabor da loucura. Volta a vê-la
dias seguidos, passando a ser olhado com
desprezo e desconfiança, pois, talvez, fosse o
amante. Repelido pelos moradores, resigna-se
com a condição de inimigo, permanecendo ao
lado de Maria.
Certa manhã, estando em companhia de
Felicíssimo, Milkau encontra Maria, sendo
levada por dois soldados para o tribunal. Em
cada fase do julgamento, é apontada culpada.
Milkau acompanha todas as sessões, chegando a
ficar amigo do juiz Paulo Maciel. Este lhe diz
que o final não será feliz, pois os depoimentos
não deixam brecha para a inocência. O
imigrante e Maciel aproveitam os encontros
para analisar a justiça brasileira, os brasileiros e
seu patriotismo.
A avaliação não é das melhores. O juiz
impossibilitado de fazer justiça por uma série de
circunstâncias observa que a decadência ali
existente é um "misto doloroso de selvageria
dos povos que despontam para o mundo, e do
esgotamento das raças acabadas. Há uma
confusão geral". Milkau crê que se pode chegar
a algo melhor. Entretanto, à medida que
acompanha o definhar da amiga, vai se
deixando tomar pela tristeza.
Finalmente, numa noite, Milkau tira Maria da
prisão e foge com ela, correndo pelos campos
em busca de Canaã, "a terra prometida", onde os
homens vivem em harmonia.
8. Cidades Mortas
Um homem de consciência
Monteiro Lobato
Chamava-se João Teodoro, só. O mais pacato e
modesto dos homens. Honestíssimo e
lealíssimo, com um defeito apenas: não dar o
mínimo valor a si próprio. Para joão Teodoro, a
coisa de menos importância no mundo era João
Teodoro.
Nunca fora nada na vida, nem admitia a
hipótese de vir a ser alguma coisa. E por muito
tempo não quis nem sequer o que todos ali
queriam: mudar-se para terra melhor.
Mas João Teodoro acompanhava com aperto de
coração o deperecimento visível de sua Itaoca.
- Isto foi muito melhor, dizia consigo. Já teve
três médicos bem bons - agora só um e bem
ruinzote. Já teve seis advogados e hoje mal dá
serviço para um rábula ordinário como o
Tenório. Nem circo de cavalinhos bate mais por
aqui. A gente que presta se muda. Fica o
restolho. Decididamente, a minha Itaoca está se
acabando...
João Teodoro entrou a incubar a ideia de
também mudar-se, mas para isso necessitava
dum fato qualquer que o convencesse de
maneira absoluta de que Itaoca não tinha
mesmo conserto ou arranjo possível.
- É isso, deliberou lá por dentro. Quando eu
verificar que tudo está perdido, que Itaoca não
vale mais nada de nada de nada, então arrumo
a trouxa e boto-me fora daqui.
Um dia aconteceu a grande novidade: a
nomeação de João Teodoro para delegado.
Nosso homem recebeu a notícia como se fosse
uma porretada no crânio. Delegado, ele! Ele que
não era nada, nunca fora nada, não queria ser
nada, não se julgava capaz de nada...
Ser delegado numa cidadinha daquelas é coisa
seríssima. Não há cargo mais importante. É o
homem que prende os outros, que solta, que
manda dar sovas, que vai à capital falar com o
governo. Uma coisa colossal ser delegado - e
estava ele, João Teodoro, de-le-ga-do de Itaoca!
...
João Teodoro caiu em meditação profunda.
Passou a noite em claro, pensando e arrumando
as malas. Pela madrugada botou-as num burro,
montou num cavalo magro e partiu.
- Que é isso, João? Para onde se atira tão cedo,
assim de armas e bagagens?
- Vou-me embora, respondeu o retirante.
Verifiquei que Itaoca chegou mesmo ao fim.
- Mas , como? Agora que você está delegado?
- Justamente por isso. Terra em que João
Teodoro chega a delegado, eu não moro.
Adeus.
E sumiu.