SlideShare ist ein Scribd-Unternehmen logo
1 von 21
Revista Brasileira de Educação 5
Elaborar uma proposta curricular obriga a par-
ticipar da reflexão sobre que tipo de cidadãos e ci-
dadãs e de sociedade queremos construir. Essa é, sem
dúvida, uma das questões mais importantes que cabe
colocar no âmbito da educação e que nos obriga a
realizar uma série de tarefas prévias destinadas a ana-
lisar o presente, averiguar como são hoje nossas so-
ciedades, que problemas aparecem como mais urgen-
tes, quais são as causas das situações injustas que
detectamos.
Esse tipo de informação a respeito do mundo
em que vivemos é vital para qualquer professora ou
professor. Nas salas de aula, uma das tarefas real-
mente importantes que o professorado leva a cabo
é oferecer ao alunado parcelas da realidade para sua
análise e conhecimento; daí a urgência de se man-
ter atento e fomentar um constante espírito crítico
perante esse tipo de processos seletivos e escolhas
com finalidade exemplificativa com que as institui-
ções escolares operam. Ninguém desconhece que,
para o coletivo docente, esse é um dever já compli-
cado por si só e ao qual há ainda que se acrescen-
tar todo um grande conglomerado de tarefas e ro-
Política educativa, multiculturalismo e práticas
culturais democráticas nas salas de aula
Jurjo Torres Santomé
Universidade de Coruña
Tradução de Sonali Bertuol
Trabalho apresentado na XIX Reunião Anual da ANPEd, Caxambu, setembro de 1996.
tinas que são consubstanciais com a função didáti-
ca nas salas de aula, com a criação de um ambien-
te que estimule processos de ensino e aprendizagem.
Poucos trabalhos profissionais precisam atender a
tantos focos de atenção como o da docência.
Desenvolver projetos curriculares nas salas de
aula obriga a estar alerta a um sem-número de ques-
tões: as tarefas que cada um dos meninos e meni-
nas executam, o acompanhamento de suas realiza-
ções, do que sabem e do que ainda é ininteligível
para eles; detectar suas percepções da realidade,
valorações, expectativas e pré-julgamentos; a apre-
ciação de seu desenvolvimento social e emocional
e das situações problemáticas que afetam suas inte-
rações sociais. O professorado precisa se dedicar a
esse tipo de investigação nas salas de aula e, ao mes-
mo tempo, tem de destinar tempo a leituras, semi-
nários de atualização constante, trabalho em equi-
pe de planejamento, acompanhamento e avaliação
dos projetos curriculares com os quais está neces-
sariamente comprometido.
Mas, além de tudo isso, tem de estar muito
bem informado sobre questões culturais, trabalhis-
6 Jan/Fev/Mar/Abr 1997 Nº 4
tas, econômicas e políticas que são imprescindíveis
para alcançar uma compreensão adequada da co-
munidade e do mundo em que vive.
Perante tal acúmulo de deveres, o professora-
do tende a ser seletivo em seus focos de atenção.
Todavia, nos últimos anos, a forte pressão dos dis-
cursos e políticas tecnocráticas estão tratando de
convencê-lo de que seu trabalho profissional é ape-
nas uma questão de aprender determinadas técnicas
didáticas, tais como realizar programações, adap-
tar projetos curriculares elaborados pelas editoras
de livros-texto até fazê-los parecer projetos curri-
culares de centro educacional e de sala de aula, ela-
borar controles ou provas de avaliação para detec-
tar o rendimento de cada um dos meninos e meni-
nas da classe, estabelecer uma série de normas dis-
ciplinares etc.
Um constante bombardeio de propaganda
ideológica neoliberal e decisões políticas conserva-
doras pretendem menosprezar a função de inte-
lectuais que compete às professoras e professores
exercer. Essa negligência para com seu papel como
intelectuais é favorecida (ainda que muitas vezes
não seja essa a pretensão) por certos discursos psi-
cológicos e didáticos que, com a idéia de apresen-
tar novas conceitualizações, modelos ou metodo-
logias, recorrem à estréia contínua de novos jar-
gões, que para nada servem além de desviar a aten-
ção do professorado para questões pouco relevan-
tes e fazer as autenticamente importantes parece-
rem fora de moda.
Vivemos momentos de mudança, profundas
transformações sociais estão em curso na maioria
das sociedades, em grande medida como conseqüên-
cia das inovações e transformações nas estruturas
produtivas e de consumo. Idéias e utopias que até
há pouco orientavam e serviam de eixo vertebrador
a discursos e práticas libertadoras vêm sendo rifa-
das quase sem que se disponha de argumentos vá-
lidos para isso. Estes são momentos de perplexida-
de e é também agora que a reflexão e o debate co-
letivo se tornam inevitáveis.
Urge recuperar para a função docente a con-
cepção gramsciana de intelectual, neste momento
em que os discursos e epistemologias dominantes
pretendem recortar seu papel até deixá-la reduzida
a dimensões técnicas e de gestão burocrática.
Intelectual é alguém dotado de faculdades para
representar, organizar e articular mensagens, visões
da realidade, atitudes, filosofias e opiniões de, assim
como para, um determinado público (Said, 1994, p.
11). O exercício da função de intelectual pode ser
feito, logicamente, em diversas direções; ou com o
objetivo de tornar razoável, natural, inevitável e neu-
tro os interesses dos grupos que estão em situações
vantajosas, em posições hegemônicas, ou para des-
montar essas metas particulares e parciais. Aqueles
que colaboram na primeira modalidade de trabalho
intelectual costumam receber a denominação de in-
telectuais hegemônicos, em conformidade com o tra-
balho de vigilância e legitimação das atuações dos
grupos hegemônicos de poder.
Ao contrário, intelectuais contra-hegemônicos
são aquelas pessoas que manifestam um maior com-
promisso com as classes e grupos sociais mais des-
favorecidos e cooperam na detecção de práticas,
metodologias e discursos que funcionam tratando
de facilitar e justificar sua dominação e opressão.
São também aqueles que contribuem para confor-
mar práticas libertadoras, a serviço dos coletivos
sociais explorados e marginalizados, estimulando
entre estes a análise de seus atuais modos e condi-
ções de vida e provocando uma tomada de consciên-
cia capaz de permitir que elaborem e coloquem em
ação respostas para fazer frente à sua subjugação.
Tais intelectuais possuem uma responsabilidade es-
pecial como criadores e fomentadores de situações
de deliberação e debate democrático no seio dos
grupos sociais mais desfavorecidos, com os quais
compartilham sua vida e ideais.
Não é aceitável renunciar a pôr a serviço des-
ses grupos todas as habilidades e conhecimentos que
os professores e professoras foram construindo co-
mo intelectuais. O exercício da crítica e da investi-
gação é algo que define sua formação e a função de
seu trabalho. Nessa direção, mecanismos com mai-
or poder democratizador como a investigação-ação
democrática e crítica são fundamentais para levar
Jurjo Torres Santomé
Revista Brasileira de Educação 7
a cabo a revisão das práticas e discursos que, tanto
no sistema educativo como em outras esferas so-
ciais, não costumam levar em consideração a his-
tória, vozes e interesses de grupos sociais silencia-
dos como as mulheres, a classe trabalhadora, me-
ninos, meninas e adolescentes, as pessoas idosas, os
povos, etnias e nações oprimidas.
O fato de realizarem esse trabalho de debate
e análise não equivale a serem os únicos responsá-
veis por tal análise e pela formulação ou sugestão
de linhas de ação; muito pelo contrário. É trabalho
de intelectuais ir favorecendo que um número cada
vez maior de pessoas possa exercer essa tarefa de
análise e reflexão a respeito do que aconteceu e está
acontecendo e sobre qual pode ser o futuro. Com-
partilhar e divulgar esse trabalho entre os membros
desses coletivos sociais mais desfavorecidos, poten-
cializar suas capacidades de reflexão, análise e ação
é tarefa indissociável da função de intelectuais.
Convém, no entanto, que sejam suficientemen-
te precavidos para não cair em simplistas categori-
zações dualistas do tipo “eles”/“nós”, “bons”/
“maus”; o que levaria implicitamente a construir
categorias pouco sérias e reais de “inimigos”/“ami-
gos”. A complexidade da vida humana é algo que
algumas óticas pós-modernas estão ajudando a des-
velar e a que se deve prestar atenção. Assim, já faz
anos que os movimentos feministas deixaram claro
que é possível atuar ao mesmo tempo como opres-
sores e oprimidos. É o caso, por exemplo, de ho-
mens da classe trabalhadora que sofrem situações
de dominação e opressão em seus lugares de traba-
lho fora do lar, mas que atuam como opressores
sobre as mulheres no âmbito familiar.
Nesse sentido, o conceito de “assincronismo”
pode vir a ser de grande utilidade. Nem sempre os
diferentes grupos e movimentos sociais coincidem
entre si em suas reivindicações e/ou nas prioridades
pelas quais se organizar para combater formas e
situações de dominação. Como destaca Cameron
McCarthy (1994, p. 108), existem descontinuidades
nas dimensões em torno às quais se agrupar e co-
laborar, “que derivam do choque de interesses, ne-
cessidades e desejos assincrônicos, que separam en-
tre si diversos setores de grupos minoritários e os
atores pertencentes a minorias dos da maioria”.
Essa dificuldade para coincidir na definição e
concreção do que se considera que é prioritário
atender é também sublinhada por Michel Foucault
(1979) quando indica que não existe um único
eixo em torno do qual todas as relações de poder
e dominação, luta e resistência, possam se agrupar,
“mas antes uma produção multiforme de relações
de dominação que são parcialmente integráveis em
estratégias de conjunto” (p. 171). Essas lutas sociais
descontínuas costumam acontecer, por sua vez, em
âmbitos espaciais locais e regionais, mais do que
em âmbitos muito maiores que requerem modali-
dades de coordenação mais complexas.
Existem múltiplos espaços, formas e momen-
tos nos quais diferentes grupos humanos se compro-
metem com questões de liberdade, dignidade, jus-
tiça, realização pessoal etc.
O exercício da crítica, típico do trabalho inte-
lectual, tem de aprender a levar em consideração essa
dinâmica de contradições, tensões e assincronias que
se produzem na vida que tem lugar nas instituições
escolares, no seio familiar, nos locais de trabalho,
espaços de ócio, instituições culturais e políticas. Des-
sa maneira, é possível que seja mais fácil detectar e
fazer frente às situações de injustiça e dominação que
sofrem os coletivos sociais com menor poder.
Recuperar para o coletivo docente uma certa
capacidade de “agitação social”, submetendo-se
sempre à crítica por parte dos coletivos com os quais
se encontra comprometido, não equivale a convertê-
lo em líder e dirigente nem, evidentemente, nas úni-
cas pessoas capacitadas para orientar ações, mas
antes em promotoras, animadoras das vozes dos
grupos silenciados e com menor poder. Trata-se de
contribuir para que os que integram esses coletivos
falem; que reflitam sobre sua situação e sejam eles
que decidam e se comprometam com a direção de
alternativas de atuação.
Creio que esteja patente uma coincidência do
avanço da direita política com um momento de forte
crise nos setores intelectuais, que parecem domina-
dos por um certo “pânico” em refletir em voz alta.
Política educativa, multiculturalismo e práticas culturais democráticas nas salas de aula
8 Jan/Fev/Mar/Abr 1997 Nº 4
É como se o medo se tivesse apoderado das mentes
das pessoas que têm obrigação moral, espaços e pos-
sibilidades de refletir sobre o momento atual. Tem-
se a sensação de que se quer renunciar a criar con-
dições para fomentar maiores cotas de debate e de
análise; em resumo, é como se existisse uma rendi-
ção nos setores intelectuais não hegemônicos, quan-
do não também uma certa sensação, que é pior, de
se passar para o outro lado, contribuindo para con-
formar discursos legitimadores dos atuais modos e
condições de exploração. Não ajudar expressamen-
te a criar discursos libertadores é uma forma de
colaboracionismo oculto com o poder estabelecido.
As professoras e professores intelectuais, a ser-
viço da democracia e da justiça social, têm de con-
tribuir para o estabelecimento de condições para
que, nos centros escolares e nas salas de aula, o alu-
nado possa chegar a descobrir o que se esconde por
trás dos véus do “saber oficial”; que aspectos não
estão sendo levados em consideração, de que ma-
neira pode estar manipulada e distorcida a informa-
ção com que os meninos e meninas são bombarde-
ados pelos meios de comunicação de massa e demais
fontes informativas com as quais entram e, muitas
vezes, são forçados a entrar em contato.
Ajudar a desmascarar os pré-julgamentos e
estereótipos do conhecimento no qual se apóiam as
práticas e discursos classistas, racistas e sexistas é
tarefa vinculada à função das professoras e profes-
sores como intelectuais. É preciso favorecer que as
pessoas possam discutir a aparição de imagens, dis-
cursos e narrativas, que nada mais pretendem a não
ser fechar as portas ao futuro, impedir, a um im-
portante número de coletivos sociais, de ser.
A educação, uma dimensão da
política cultural da sociedade
As questões curriculares, conseqüentemente,
devem ser consideradas como mais uma dimensão
de um projeto de maior envergadura, como é a po-
lítica cultural de cada sociedade. Toda proposta
curricular implica fazer opções entre as distintas
parcelas da realidade, supõe uma seleção cultural
que se oferece às novas gerações para facilitar sua
socialização, para ajudá-las a compreender o mun-
do que as rodeia, conhecer sua história, promover
valores e utopias. Assim, pois, surge já uma primeira
questão: quem são as pessoas que vão participar
dessa tomada de decisões a respeito de tal seleção
de conteúdos, e por quê?
Todas as investigações centradas nos conteú-
dos que vêm sendo trabalhados na maioria dos cen-
tros de ensino concluem que existe um forte viés nas
opções que são promovidas como “exemplifican-
tes”, que são silenciadas realidades daqueles que
não estão vinculados a expedientes de poder polí-
tico, econômico, cultural e religioso, isto é, das et-
nias e grupos sociais desfavorecidos e marginaliza-
dos (das mulheres, da classe trabalhadora, das pes-
soas de terceira idade, das pessoas pobres, desvali-
das, de homossexuais e lésbicas, do mundo rural e
marinheiro, dos meninos, meninas e adolescentes
etc.) e do Terceiro Mundo. Esse silêncio de coleti-
vos sociais importantes pode ser constatado de mo-
do especial nos materiais didáticos que fecham as
propostas curriculares, os livros-texto.
Mas quando se reflete sobre os porquês des-
sa censura e, até mesmo, manipulação da informa-
ção presentes em grande parte dos materiais cur-
riculares que circulam nas instituições escolares,
apenas encontramos explicações suficientemente
potentes quando expandimos o olhar para fora
das paredes das salas de aula e analisamos o que
está acontecendo nas demais esferas dessa socieda-
de da qual fazem parte.
A estrutura de classes e grupos sociais, os mo-
delos produtivos e de comercialização, de acesso,
divisão e organização do trabalho, os processos de
acumulação de capital, as políticas econômicas, tra-
balhistas, sociais e culturais são outros tantos fo-
cos de atenção nos quais encontram-se as chaves
potentes para entender o que está acontecendo na
comunidade e, portanto, os motivos que explicam
um sem-número de comportamentos grupais e in-
dividuais. É rastreando tramas semelhantes que che-
garemos a discernir o sentido da maioria das tare-
fas escolares que ocupam alunos e alunas, assim
Jurjo Torres Santomé
Revista Brasileira de Educação 9
como suas reações diante delas. É também nessa
rede, da qual faz parte o sistema educativo, que se
poderão explicar as atividades, rotinas e tarefas do
professorado. Assim, será mais factível, como é ur-
gente neste momento, elaborar linhas de ação com
probabilidades de incidir no curso dessa realidade
e condicionar o curso atual da história.
A desigualdade na distribuição
de recursos educativos e culturais,
sinal de sociedades injustas
Chama a atenção que o famoso lema em tor-
no do qual se organiza a Revolução Francesa, “li-
berdade, igualdade e fraternidade”, que os cidadãos
e cidadãs democratas convertem num dos objetivos
e premissas sobre os quais construir e governar as
sociedades modernas, pareça hoje um tanto anti-
quado e irreal. Especialmente se levarmos em con-
ta que uma das idéias básicas sobre as quais se as-
senta a direita política é a da crença na “desigual-
dade” entre as pessoas.
Um modelo de sociedade conservador, liberal
e neoliberal, como o que a estas alturas da história
vem se impondo na maioria dos países tecnologi-
camente mais desenvolvidos, que se assenta em pi-
lares como a defesa do “livre mercado”, precisa pro-
pagar filosofias e concepções que apresentem o ser
humano isolado socialmente. Dessa maneira, todas
as análises levam em consideração unicamente o in-
divíduo com capacidade para se autoformar, autode-
terminar, sem que nada nem ninguém de fora pos-
sa influenciar ou condicionar suas possibilidades ina-
tas. Todos seus êxitos e, logicamente, fracassos se-
rão de sua responsabilidade; nada nem ninguém vai
condicioná-lo. Todas as maneiras de pensar, a to-
mada de decisões sociopolíticas serão levadas a ter-
mo tendo-se em consideração perspectivas pessoais,
individuais, não coletivas. Os direitos que se formu-
lam e atendem acabam sendo pensados de modo in-
dividualista, do mesmo modo que as análises que são
realizadas sobre a realidade.
A aposta e a defesa de filosofias individualis-
tas, da competitividade e esforço pessoal são aspec-
tos indispensáveis para o bom êxito dos modelos
econômicos capitalistas e, agora, da globalização
dos mercados. Essa ideologia obriga a assumir que
as pessoas não precisam se agrupar em função de
condições de vida ou valores compartilhados; não
se contempla nada com capacidade suficiente para
circunscrever cada indivíduo como membro de um
grupo; não se deixam ver estratégias para vertebrar
modos de atuação mais coletivos com possibilida-
des de transformar modelos organizativos e estru-
turas sociais que ocasionam situações de injustiça
a grupos sociais concretos e, logicamente, a cada um
de seus membros.
Por outro lado, como conseqüência das polí-
ticas ultraliberais, insiste-se mais em mostrar as pes-
soas como consumidoras e em prestar atenção a
seus direitos de consumir do que à sua condição de
cidadãs e cidadãos; isso acarreta uma redução de
suas obrigações e deveres como seres humanos e um
menoscabo de suas possibilidades de ação e inter-
venção. A dimensão consumista implica mover-se
apenas num âmbito que permite realizar escolhas
entre o que nos oferecem, não no da definição de
suas necessidades e da realidade. Restringem-se as
ocasiões e níveis de autonomia para as pessoas cri-
arem modelos e orientações sobre como pode ou
deve ser sua comunidade; minimizam-se os espaços
e oportunidades de participar do estabelecimento
de direções de desenvolvimento para a sociedade a
que se pertence.
As novas sociedades de consumo estão tratan-
do de transformar as instituições escolares subme-
tendo-as às mesmas leis que regem o mercado de
Consumo (Whitty, Edwards e Gewirtz, 1993). Pre-
tende-se que as ofertas que os centros docentes rea-
lizem sejam feitas para satisfazer as demandas da-
queles que têm possibilidades de formulá-las, os
grupos empresariais. Nesse sentido, não podemos
deixar de lado a existência de um mercado em que
a manipulação da informação desempenha um im-
portante papel. A informação é na atualidade um
dos poderes mais decisivos, daí o grande interesse
e a luta por obter o controle das comunicações, por
possuir jornais, emissoras de rádio e televisão, re-
Política educativa, multiculturalismo e práticas culturais democráticas nas salas de aula
10 Jan/Fev/Mar/Abr 1997 Nº 4
des informáticas etc. É sobre a base desse controle
e manipulação da informação que podemos com-
preender que tanto as famílias como o próprio alu-
nado sintam maior urgência por determinados co-
nhecimentos e habilidades que, afirma-se, facilitam
o acesso a empregos e estão mais diretamente vin-
culados a saídas para o trabalho, e, o que é pior,
cheguem a considerar inúteis ou de escasso interesse
conteúdos culturais e valores relacionados à com-
preensão da realidade, da justiça, da solidariedade
e democracia.
O sistema educativo, portanto, aparece como
algo a consumir, como a via para obter credenci-
ais que, no futuro, facilitem entrar na demanda por
trabalhos e salários, que permitam participar das
escassas possibilidades de mobilidade social; não é
concebido como um conjunto de instituições coad-
juvantes na conquista de maiores cotas de justiça
social, na luta contra a desigualdade e a opressão.
Creio que um dos grandes perigos para nossas so-
ciedades está na maneira como se obscurecem o
sentido e a finalidade do sistema educativo.
Não obstante, como aponta R. W. Connel
(1993), temos três razões para considerar a exis-
tência de um forte nexo de união entre os sistemas
educativos e a conquista de maiores níveis de jus-
tiça social.
1. O sistema educativo é um dos maiores ati-
vos públicos. É uma das maiores empresas em qual-
quer economia moderna. Para nos convencermos de
que é uma das empresas mais importantes, basta
pensarmos nas cifras bilionárias que manejam os
ministérios da educação e da ciência da maioria dos
países. Dado que se trata de uma empresa pública,
é lógico perguntar quem obtém a maioria dos be-
nefícios. As análises quantitativas revelam rapida-
mente uma forte desigualdade nessa distribuição de
recursos e benefícios. Quando nos detemos em com-
provar as formas que assume a distribuição dos alu-
nos no sistema educativo, as formas piramidais se
impõem (há muitas alunas e alunos nos níveis ini-
ciais e, à medida que ascendemos no sistema edu-
cativo, vamos encontrando cada vez menos). Os
piores resultados, já o sabemos, são dos meninos e
meninas das classes trabalhadores, da etnia cigana,
dos núcleos rurais mais desfavorecidos etc.
2. O sistema educativo, atualmente, não ape-
nas é um dos principais ativos públicos, como tam-
bém é previsível que o seja ainda mais no futuro.
Convém ter presente que o conhecimento especia-
lizado tornou-se mais um dos componentes do sis-
tema de produção e comercialização.
Atualmente, é no âmbito do sistema educativo
que se dão as principais condições para a investi-
gação e a promoção de inovações tecnológicas. Isso
se comprova facilmente quando vemos, por exem-
plo, os fortes vínculos que se começaram a estabe-
lecer entre o mundo empresarial e as universidades.
Viver numa sociedade democrática implica que
os fundos públicos redundem em benefício de todas
as pessoas e não somente de algumas poucas; signi-
fica que, nessas investigações custeadas com dinheiro
público, os distintos grupos sociais devem ter parti-
cipação, especialmente no estabelecimento de linhas
prioritárias e urgentes de investigação; em outras
palavras, os diferentes grupos e coletivos sociais têm
de dispor de canais para participar da definição dos
problemas atuais e da determinação de quais den-
tre eles urge resolver de maneira mais peremptória.
Não é aceitável que todo o sistema público educati-
vo se mova apenas ao ritmo e na direção que os gru-
pos sociais com maior poder econômico e político
decidem. Uma boa prova dessa disfuncionalidade
está no fato de que a investigação de que os grupos
empresariais privados necessitam está sendo levada
a cabo, em grande parte, pelas universidades públi-
cas e institutos de pesquisa financiados com fundos
públicos.
Esse conhecimento que os sistemas educativos
constroem e distribuem não apenas desempenha um
papel importante na melhoria da produção e na
expansão de mercados, mas também na estratifica-
ção social e, portanto, na manutenção de hierarqui-
as sociais. Não esqueçamos que vivemos num mo-
delo de sociedade no qual o credencialismo é uma
de suas marcas idiossincráticas. O número de títu-
los profissionais alcançados e o prestígio da insti-
tuição que os expede decidem em grande medida as
Jurjo Torres Santomé
Revista Brasileira de Educação 11
possibilidades de trabalho e a circunscrição a uma
determinada classe e coletivo social.
Nesse sentido, é curioso como está sendo pro-
duzindo um maior crescimento da iniciativa priva-
da em todos os níveis do sistema educativo (desde
a educação infantil e primária até a própria univer-
sidade), mas com dinheiro público. Desde a déca-
da de 70, e em especial na de 80, a parcela orçamen-
tária do Estado e das comunidades autônomas des-
tinada às instituições escolares privadas não pára
de crescer.
Os sistemas educativos distribuem oportuni-
dades de participação e consumo nos atuais siste-
mas produtivos, bem como moldam os possíveis
modelos de sociedade do futuro. Preocupar-se com
uma maior democratização, participação e eqüida-
de para o futuro significa construir a partir de hoje
instituições escolares que preparem esses pilares de
apoio.
3. A terceira razão para se preocupar com o
sistema educativo, segundo R. W. Connel, estaria
na concepção do que é educar que essa sociedade
concreta à qual nos refiramos defende em cada mo-
mento histórico.
Educar é uma tarefa moral, uma vez que im-
plica levar em consideração dimensões morais. O
ensino e a aprendizagem, como práticas sociais,
sempre implicam questões acerca de propósitos e
critérios para a ação (sejam ou não compartilha-
dos), decisões sobre a aplicação de recursos (inclu-
indo autoridade e conhecimento) e acerca de res-
ponsabilidades e conseqüências dessas ações. Essas
implicações nunca podem ser eludidas, não é pos-
sível evitar esse tipo de questão. O fato de que não
estejamos conscientes delas não significa que essas
dimensões morais tenham sido relegadas; pelo con-
trário, tal como demonstram os estudos sobre o
currículo oculto (Torres Santomé, 1996), não é di-
fícil que, inclusive por não lhes prestar uma aten-
ção explícita, estejamos participando, colaboran-
do, na perpetuação de comportamentos morais
que de maneira consciente repudiamos (autorita-
rismo, acriticismo, egoísmo, individualismo, falta
de solidariedade, fanatismo, dogmatismo etc.).
No entanto, toda uma grande cultura conser-
vadora pretende reduzir essas questões ao silêncio,
criando estratégias e recursos didáticos que incor-
poram esses valores previamente decididos pelos
grupos de poder mais conservadores e, ao mesmo
tempo, tratando de despistar o professorado instan-
do-o a que se ocupe, por exemplo, de tarefas que o
impedem de levar em consideração esse tipo de ele-
mentos, tal como vem sucedendo nos últimos anos.
Ele é forçado a dedicar cada vez mais tempo a ques-
tões burocráticas; reclamam dele esboços de proje-
tos curriculares de centro educacional e de sala de
aula, mas sem estabelecer condições que facilitem
esse trabalho; pretende-se convencê-lo de que o mais
importante é seqüencializar conteúdos já definidos
e, o que é mais curioso, já hierarquizados pelos ma-
teriais curriculares mais dominantes, os livros-texto;
perseguem-no com questões de disciplina e estraté-
gias para “acalmar os estudantes”; sugerem-lhe que
faça mais e mais avaliações e controles; enviam-lhe
abundante legislação com terminologias constante-
mente renovadas etc.
Para a reprodução das atuais ideologias indi-
vidualistas e meritocráticas, é preciso que cada uma
das pessoas que compartilham um determinado es-
paço territorial seja convencida de tais valores, para
o qual os que detêm o poder se vêem na necessida-
de de gerar uma cultura que sirva para coesioná-las
e facilitar um grau importante de estabilidade so-
cial. Daí a pretensão que caracteriza os grupos he-
gemônicos conservadores e liberais de estabelecer
e controlar conteúdos culturais obrigatórios que
sirvam para reforçar a ideologia dominante. A bus-
ca de um “cânone” cultural para oferecer como le-
gítimo, sem possibilidades de submeter à discussão
e crítica, converte-se em estratégia indispensável
para a perpetuação das condições estruturais que
reforçam seu poder e hegemonia.
Portanto, falar e intervir no mundo da educa-
ção implica inevitavelmente considerar dimensões
de justiça social.
No momento de destinar recursos ao âmbito
educativo (dinheiro, pessoal, edifícios, recursos di-
dáticos etc.), a comunidade e aqueles que, em cada
Política educativa, multiculturalismo e práticas culturais democráticas nas salas de aula
12 Jan/Fev/Mar/Abr 1997 Nº 4
momento, têm responsabilidades políticas enfren-
tam-se em dilemas de partilha e distribuição, na
criação de condições que influirão decisivamente
para tornar realidade ou não o ideal democrático
da igualdade de oportunidades.
É óbvio que uma sociedade que distribui mal
seus recursos está favorecendo mais a determinados
coletivos sociais do que a outros.
As análises que vêm sendo efetuadas num nú-
mero muito importante de países não cessam de
colocar em relevo que alguns grupos sociais rece-
bem mais apoio do que outros. As denúncias de
imperialismo e colonização, classismo, racismo e
sexismo no âmbito educativo são contínuas. No
Estado espanhol é urgente e obrigatório enfatizar
concretamente a marginalização racista que um po-
vo como o cigano está sofrendo e suportando. Esse
é um tema que apenas começou a dar passos, com
exceção de alguns coletivos docentes que têm um
contato mais direto e cotidiano com pessoas dessa
etnia. Na prática, o mundo oficial, da administra-
ção, continua sem prestar-lhe a devida atenção.
Dimensões da discriminação
e do racismo na educação
Vivemos numa sociedade na qual, continua-
mente, um enorme volume de publicações e emis-
sões dos meios de comunicação de massa nos bom-
bardeiam tratando de nos informar e de nos fazer
participar da realidade; entre suas finalidades está
a de levar suas consumidoras e consumidores a in-
terpretar de uma maneira “correta” tudo que acon-
tece. É através da imprensa, do rádio e da televisão
que nos inteiramos de catástrofes, de fatos e acon-
tecimentos cotidianos, de façanhas, descobrimen-
tos etc., mas sempre de uma maneira seletiva. Os
meios de comunicação de massa “filtram as reali-
dades” de acordo com os interesses dos que detêm
sua propriedade e controle.
Nessa “realidade construída”, os atores e atri-
zes são desenhados seletivamente, de tal forma que
as minorias e grupos sociais sem poder acabam sem-
pre levando a pior parte. As tentativas de silenciar
“o diferente” e minoritário, ou mesmo optar por
convertê-lo em algo disparatado podem ser facil-
mente constatadas. Mas nos casos em que essas rea-
lidades não podem ser escondidas, a opção mais
usual é reelaborá-las, “reinterpretá-las” para apre-
sentá-los como culpáveis pelos seus próprios pro-
blemas e até daqueles que ocasionam a outros gru-
pos sociais majoritários e/ou com maior poder. Tra-
tar de demonstrar, primeiramente, que suas condu-
tas são “inadequadas” e, depois, procurar explicar
que são conseqüência de condicionamentos inatos
(sobre os quais os seres humanos não têm possibi-
lidade de controle), de aspirações inadequadas às
suas capacidades naturais ou são fruto de uma von-
tade de continuar aferrando-se a alguma de suas
tradições “defasadas” etc. Numa palavra, recorre-
se a estratégias de “naturalização” das situações de
injustiça, o que na atualidade é favorecido pela he-
gemonia das ideologias do individualismo e que,
obviamente, afeta também a maneira de realizar
muitas das análises sobre o que acontece no siste-
ma escolar.
Assim, quando se fala do fracasso e do êxito
escolar, de problemas disciplinares nas salas de aula,
do que o alunado sabe ou desconhece, a unidade
de análise é a pessoa considerada individualmente,
e o discurso utilizado tratará também de deixar cla-
ras as responsabilidades pessoais, individuais. Um
exemplo disso, encontramos no difundido livro de
Allan Bloom, The closing of the american mind
(1987), em que, a propósito do sistema político dos
Estados Unidos da América, destaca que “classe
social, raça, religião, origem nacional ou cultura
desaparecem ou chegam a ser algo sem interesse
quando são contemplados à luz dos direitos natu-
rais, que outorgam aos seres humanos interesses
comuns e os convertem realmente em irmãos” (p.
27). Frase que contém implicitamente uma aposta
na meritocracia como filosofia de vida. De modo
semelhante, podemos explicar a atualidade de nu-
merosas investigações que pretendem medir as ca-
pacidades mentais das pessoas, por exemplo, o quo-
ciente intelectual, para responsabilizá-las de modo
individual pelos seus feitos.
Jurjo Torres Santomé
Revista Brasileira de Educação 13
O êxito e as possibilidades de promoção são
vistos como atos de competitividade entre pessoas
que, mediante o esforço individual e suas capacida-
des naturais inatas, alcançam méritos com os quais
concorrer e demandar acesso a privilégios sociais de
maneira também individual.
Por outro lado, não convém cair em simplifi-
cações no momento de analisar e tratar de questões
de racismo e de discriminação, já que nem todas as
pessoas que compartilham alguma das marcas idios-
sincráticas de uma raça ou etnia sem poder sofre-
rão com a mesma intensidade as situações de opres-
são. Pode acontecer, até mesmo, que alguns dos
membros de um grupo social marginalizado che-
guem a ser muito respeitados e aceitos pelos gru-
pos dominantes.
Não poderemos compreender bem os proble-
mas raciais se não contemplarmos as dinâmicas de
classe e gênero que interagem em seu interior. É
óbvio, por exemplo, que ser uma mulher cigana
dedicada a tarefas domésticas e familiares é diferen-
te de ser uma mulher cigana que trabalha e triunfa
no mundo do espetáculo, da televisão ou do cine-
ma; ou ser um homem cigano dedicado a catar pa-
pelão de ser um ancião patriarca ou desempenhar
outro trabalho artístico ou profissional de maior
prestígio. Em nossas análises e estratégias de inter-
venção em relação a qualquer coletivo social, é pre-
ciso levar em consideração também essas variáveis.
As pessoas constroem esquemas conceituais através
dos quais sua experiência cobra sentido, analisam
e valoram as situações nas quais se vêem envolvi-
das, em resumo, percebem a realidade. Por conse-
guinte, qualquer evento no qual se vejam envolvi-
das terá um significado específico dependendo da
raça a que pertençam, da classe social, do gênero,
da idade, do território em que vivem etc. Tudo isso
obriga a que, nas propostas de trabalho para as
salas de aula e centros de ensino, se preste atenção
a tais dimensões no momento de ponderar o signi-
ficado ou relevância das tarefas que se planejam e
se executam.
Neste ponto, encontramos já duas implicações
para o trabalho nas aulas:
1. Tudo o que se programe como tarefa esco-
lar, como proposta de trabalho curricular, tem de
tornar visível suas conexões com as experiências
cotidianas e significativas para o coletivo estudan-
til ao qual é oferecido. É necessário que se permita
que os problemas, preocupações, aspirações e inte-
resses do alunado sejam acolhidos.
2. Toda proposta curricular tem de estar apoia-
da na cultura de procedência do alunado. E quan-
do falamos de cultura de origem não é como con-
ceito abstrato sem maior significado, mas sim esta-
mos nos referindo aos “diferentes e dinâmicos esti-
los de vida de sociedades e grupos humanos e às redes
de significados que as pessoas e grupos usam para
construir seus significados e comunicar-se entre si”
(Hall, 1992, p. 10).
Conteúdos culturais dos currículos e
reconstrução de identidades sociais
O problema das escolas tradicionais, apesar da
forte ênfase nos conteúdos culturais apresentados
em pacotes disciplinares, em forma de matérias, é
que não conseguem fazer que o alunado seja capaz
de ver esses conteúdos como parte de seu próprio
mundo. A física, a química, a história, a gramáti-
ca, a educação física, a matemática são dificilmen-
te visíveis; conseqüentemente, o que se trabalha nas
salas de aulas, para a maioria de nossos estudan-
tes, existe apenas como “estratégia” para enfastiá-
los, para que possam passar de curso a curso, com
a esperança de obter um título. A escola aparece
como o reino da artificialidade, um espaço em que
regem determinadas normas, fala-se de uma manei-
ra peculiar e onde é necessário realizar determina-
das rotinas, que servem somente para poder obter
felicitações ou sanções por parte do professorado
e mesmo de suas próprias famílias, mas a coisa só
vai até aí. É muito difícil estabelecer laços de cone-
xão entre os blocos de conteúdo dos quais se fala
nas aulas, entre as tarefas escolares e a vida real, os
problemas e realidades mais cotidianas.
Se há uma crítica comum e reiterada ao lon-
go da história das instituições educativas é a de sele-
Política educativa, multiculturalismo e práticas culturais democráticas nas salas de aula
14 Jan/Fev/Mar/Abr 1997 Nº 4
cionar, organizar e trabalhar com conteúdos culturais
pouco relevantes, de forma nada motivadora para
o alunado e, portanto, perdendo o contato com a
realidade em que se situam tais atividades docentes.
As situações e problemas da vida diária, as preocupa-
ções pessoais, ficam fora das paredes das salas de
aulas e dos centros de ensino em numerosas ocasiões.
Não é raro que o currículo tradicional acabe
mostrando uma notável semelhança com alguns jo-
gos de perguntas e respostas sobre assuntos trivi-
ais ou concursos de televisão de cunho nominalista.
Competições nas quais, para obter êxito, basta ser
capaz de recordar pequenos fragmentos de informa-
ção sem maior aprofundamento e, o que é mais gra-
ve, sem a devida compreensão dos conteúdos que
são verbalizados. Apenas é preciso saber aparentar
que se entende aquilo que se pronuncia, embora a
realidade seja outra.
Educar equivale a socializar os alunos e alu-
nas, torná-los participantes do legado cultural da
sociedade da qual são membros e dos principais
objetivos, problemas e peculiaridades do resto da
humanidade. A compreensão e a reflexão a respei-
to do que se trabalha, é óbvio dizer, é imprescindí-
vel. Mas, do mesmo modo, é indispensável ter em
conta que contribuir para uma compreensão críti-
ca da realidade obriga a assumir que quase todas
as matérias e temas tem dimensões controversas,
questões sem resolver. Essas perspectivas conflitivas
existem paralelamente às diferentes opiniões, valo-
res, prioridades e interesses patentes e ocultos em
toda a comunidade. Isso pode afetar questões como
as seguintes:
> a seleção e/ou definição de um proble-
ma a ser resolvido;
> a análise de suas causas, prognóstico e
conseqüências etc.;
> as ações, soluções e decisões que se pro-
pugnam;
> por quem, quando, como, onde serão
tomadas essas decisões corretoras ou resolu-
tivas etc.
Tentar preservar o alunado das dimensões con-
trovertidas da realidade equivale a introduzi-lo num
limbo, desligá-lo do mundo real.
Evidentemente, nessa tarefa, os recursos didá-
ticos através dos quais se veiculam conteúdos cul-
turais (livros-texto ou outro tipo de fontes de infor-
mação: monografias científicas, revistas especiali-
zadas, dicionários, documentários, vídeos, software
etc.) desempenham um papel crucial. O valor e o
rigor não será o mesmo para todos. Uma prova do
que dissemos já encontramos no momento de pro-
curar, nos livros-texto que circulam atualmente nas
instituições escolares, a presença de coletivos intei-
ros, como o povo cigano, e o que se diz deles. Cha-
ma poderosamente a atenção a pobreza documen-
tal e, o que é pior, a distorção e a manipulação in-
formativa que caracterizam muitas redações que
aparecem em tais livros-texto, o recurso ainda do-
minante nos centros de ensino (Calvo Buezas, 1989;
Torres Santomé, 1996a, 1996b).
De qualquer maneira, não gostaria de modo
algum de dar a impressão de que assumo que os
estudantes e docentes aceitam sem mais nem me-
nos tudo o que aparece nos livros-texto, sem opor
resistências, reinterpretar, revisar ou alterar a in-
formação ali contida. Alunas e alunos manifestam
resistências, umas intencionadas e outras não, dian-
te de seu conteúdo. Assim, vemos que algumas ve-
zes reinterpretam informação que lhes é apresen-
tada tendo em conta outras informações prévias
que possuem ou experimentaram, outras vezes as
rejeitam de múltiplas formas, por exemplo, man-
tendo-se indiferentes.
Repensando a aprendizagem escolar
Em muitas ocasiões, está sendo esquecida a
necessidade de reconsiderar a aprendizagem esco-
lar levando em consideração de uma maneira ex-
pressa o efeito das transformações estruturais que
fragmentam e desorganizam radicalmente a expe-
riência humana (Nixon et al., 1996, p. 29). Ultima-
mente, a ênfase está sendo posta mais em aspectos
economicistas e em considerações a partir de óticas
Jurjo Torres Santomé
Revista Brasileira de Educação 15
das políticas de mercado, enquanto as preocupações
morais e éticas são relegadas. Desse modo, já nem
o próprio fracasso escolar é considerado uma falha
dos mecanismos de justiça social que toda sociedade
democrática tem obrigatoriamente que se impor.
Propor-se a estimular processos de ensino e
aprendizagem, tal como é função das instituições
docentes, obriga também a não deixar à margem as
condições e filosofias subjacentes que caracterizam
esses processos. É a partir das finalidades dos cen-
tros de ensino, dos objetivos sociais de que estão in-
cumbidos, que se deve questionar o porquê dos con-
teúdos curriculares que são escolhidos ou promo-
vidos, as formas adotadas para desenvolver os pro-
cessos de aprendizagem e modelos organizativos
coerentes com as dimensões anteriores.
Aprender é desenvolver processos de com-
preensão sobre a realidade que induzem à partici-
pação nela e se originam a partir das tarefas esco-
lares com as quais alunas e alunos se comprome-
tem dia a dia na sala de aula. Aprender é partici-
par num clima de sala de aula que incita quem ali
participa a entrar em situações de diálogo e coo-
peração, servindo-se dos recursos materiais ade-
quados para chegar a maiores níveis de compreen-
são das situações sociais nas quais participa e con-
vive. Em tal concepção de aprendizagem, é óbvio
que não é apenas às peculiaridades psicológicas de
cada pessoa a que se deve recorrer para obter in-
formação a respeito da qualidade dos processos de
ensino e aprendizagem. São também, em meu mo-
do de ver, mais decisivos os valores éticos e mo-
rais, compartilhados de maneira reflexiva e explí-
cita, que servem de guia para a criação e avaliação
de ambientes educativos.
É imprescindível ter presentes as dimensões
morais nas tomadas de decisão sobre os modelos
organizativos de sala de aula e de centros educacio-
nais, assim como nos momentos de decidir a respei-
to das características dos conteúdos e recursos di-
dáticos a empregar, os papéis das figuras docentes
e os comportamentos do alunado e, logicamente,
das tarefas escolares e procedimentos de avaliação.
Partindo-se da aceitação da importância des-
sa dimensão filosófica e política no momento de
pensar nas estratégias de ensino e aprendizagem, é
indiscutível que o trabalho em equipe adquire um
significado especial. Este deixa de ser contemplado
como algo exclusivamente benéfico a título indivi-
dual, não apenas pelas habilidades interpessoais e
cognitivas que favorece, mas também pelas capa-
cidades de socialização que ajuda a construir (ver
Quadro I). São fomentados hábitos de respeito em
relação às demais pessoas, de colaboração e de com-
promisso com ideais coletivos e democráticos que
vão além de considerações e sucessos individuais.
Colabora-se na conformação de hábitos sociais de
participação e crítica, imprescindíveis numa socie-
dade democrática, justa e solidária.
É com propostas de trabalho planejadas de
maneira democrática entre estudantes e docentes,
desenvolvidas e avaliadas em equipe, que se contri-
bui também para valorar as diferenças pessoais e a
diversidade no seio de cada comunidade, assim co-
mo entre sociedades e países. Elas devem, por con-
seguinte, tornar possível o desenvolvimento de ati-
tudes de respeito, tolerância e cooperação.
Conteúdos culturais nas salas de
aula num mundo global e solidário
As situações de ensino e aprendizagem nas si-
tuações escolares devem facilitar a análise e a com-
preensão do modo de funcionamento das estrutu-
ras sociais que caracterizam e condicionam a vida
dos cidadãos e cidadãs. Desse modo, serão assen-
tadas as bases que os capacitarão a fazer frente e
atuar em defesa de seus legítimos interesses.
Para essa meta, é importante prestar atenção
aos conteúdos culturais que serão promovidos nas
salas de aula. Esses conteúdos, em teoria, referem-
se ao conhecimento, habilidades e aptidões que as
pessoas usam para construir e interpretar a vida
social. Atualmente, seria muito difícil afirmar que
as tarefas escolares com as quais enfrentamos o alu-
nado na sala de aula capacitem-no para refletir e
analisar criticamente a sociedade da qual faz par-
te, preparem-no para intervir e participar dela de
Política educativa, multiculturalismo e práticas culturais democráticas nas salas de aula
16 Jan/Fev/Mar/Abr 1997 Nº 4
maneira mais democrática, responsável e solidária.
Dificilmente se pode constatar que os atuais
processos de ensino e aprendizagem que têm lugar
nos centros escolares sirvam para motivar de cara
o alunado a se envolver mais ativamente em pro-
cessos de transformação social, influir consciente-
mente em processos tendentes a eliminar situações
de opressão. Em muito poucas situações, as alunas
e alunos são estimulados a examinar suas pressu-
posições, valores, a natureza do conhecimento com
o qual se defrontam dia a dia nas salas de aula, a
ideologia subjacente às distintas formas de constru-
ção e transmissão de conhecimento etc.
Uma educação humanística, científica e técnica
para uma sociedade pluralista precisa estimular e
favorecer uma maior atenção aos produtos cultu-
rais de cada sociedade, prestando atenção a suas
condições e processos de construção e à forma como
são percebidos e valorados, tanto dentro da própria
comunidade quanto por outras sociedades. Isso
obriga a levar em consideração os pontos de vista
dos diferentes grupos culturais, etnias e classes so-
ciais, assim como as variáveis de gênero e idade das
pessoas. Dessa maneira, facilita-se que as propos-
tas curriculares sejam coerentes com ideais sociais
de justiça, respeito e democracia, assim como se
Jurjo Torres Santomé
QUADRO I
Habilidades interpessoais e cognitivas no trabalho de equipe
Aprende-se a: Através de: Aprende-se a:
Facilitar a interação RESOLUÇÃO DE CONFLITOS Avaliar idéias
Respeitar as pessoas NEGOCIAÇÃO Analisar
Aceitar diferenças CRITICAR IDÉIAS Justificar opiniões
Usar o humor adequadamente ESCUTAR ATENTAMENTE Resumir
Participar com entusiasmo PEDIR AJUDA Comparar e contrastar
Falar por turnos Aprofundar-se nas idéias de outros
Mostrar discordâncias com cortesia Explorar idéias com maior rigor
Manter o autocontrole Gerar alternativas
Descrever sentimentos Elaborar idéias
Prestar atenção a outras pessoas Reconhecer outras idéias/perspectivas
Mostrar apreço e agradecimento Integrar idéias
Compartilhar espaços e recursos Aplicar soluções
Aprender a duvidar Esclarecer idéias
Integrar-se com outras pessoas Rever níveis de compreensão
Comunicar Verificar respostas
Evitar se negar a escutar Perguntar para esclarecer
Elogiar outras pessoas Estimar valor de idéias/soluções
Utilizar os silêncios Desenvolver idéias de outras pessoas
Estimular outras pessoas Estabelecer categorias
Agradecer e pedir desculpas Descrever conceitos
Nomear as pessoas Colocar questões
Identificar
Solicitar mais ampliação de idéias
Manter e continuar uma tarefa
Planejar
Elaborado com base em Philip C. Abrami et al., 1995.
Revista Brasileira de Educação 17
força a reconsideração de algumas das caracterís-
ticas do que comumente se vem entendendo como
qualidade do ensino.
O reconhecimento da diversidade cultural e de
sua importância político-moral são pontos de apoio
de qualquer luta em favor de uma maior democra-
tização e da garantia de maiores cotas de igualda-
de social. Mas também é necessário o reconheci-
mento da realidade híbrida e mestiça da imensa
maioria dos povos, nações e estados do mundo.
Prestar atenção, nas instituições escolares, a
todas as culturas possíveis, passadas e atuais, a to-
dos os países do planeta, coletivos sociais existen-
tes, produções culturais e científicas, fatos relevan-
tes, aspirações é sinceramente impossível. Portan-
to, também de uma perspectiva antidiscriminação
e de justiça social, é preciso estabelecer alguns cri-
térios de seleção dos conteúdos culturais que po-
dem ser incorporados ao trabalho curricular nas
salas de aula. Entre os numerosos critérios que
podem ser determinados, um que é decisivo é o de
prestar mais atenção às culturas e grupos desfa-
vorecidos. Os mais favorecidos já dispõem de uma
multiplicidade de canais informativos para se faze-
rem ver e notar. Num mundo global, convém não
esquecer que as condições e a qualidade de vida de
todos os povos são e serão num futuro iminente
cada vez mais interdependentes. Em muitas ocasiões,
as condições de vida de um povo dependem e re-
percutem sobre as dos demais.
Uma instituição como a escolar, que tem en-
tre suas finalidades principais preparar as novas ge-
rações, precisa obrigatoriamente construir hábitos
nos meninos e meninas que lhes permitam levar em
consideração outros povos e coletivos sociais nas
análises da realidade que levem a cabo e nas toma-
das de decisão nas quais se vejam implicados.
Detectar como as narrativas que foram sendo
divulgadas e promovidas estavam escritas unica-
mente a partir das vozes e interesses de uma mino-
ria, portanto, recorrendo a processos de silencia-
mento, manipulação e deformação, é uma tarefa em
que as instituições escolares também têm uma im-
portante missão.
Qualquer leitura atenta da maioria dos ma-
nuais escolares que circulam entre o alunado per-
mite constatar processos de censura e deformação
de importantes eventos históricos, culturais, cien-
tíficos e tecnológicos; tanto nas informações refe-
rentes às condições de produção de tais fenômenos
como em suas interpretações e valorações (Del-
fattore, 1992). Conseqüentemente, isso significa
que no processo de socialização das novas gera-
ções existem sinais de uma certa estafa intelectual
e moral que, infelizmente, pode funcionar no fu-
turo como estopim para comportamentos coletivos
e individuais de cunho racista, sexista, imperialis-
ta, classista etc. É preciso, no entanto, não esque-
cer que essas peculiaridades de determinada cultu-
ra escolar nada mais são do que conseqüência da
origem da educação institucionalizada, ou seja,
algo consubstancial com uma instituição como a
acadêmica, cuja finalidade, até o presente, não foi
outra senão preparar as futuras elites, não facili-
tando, por conseguinte, o acesso e/ou a permanên-
cia dos filhos e filhas das classes e grupos sociais
populares. Logicamente, essa filosofia continua vi-
gente em muitas práticas na atualidade, o que po-
demos comprovar na facilidade com que se justi-
fica o atraso escolar dos meninos e meninas do
mundo rural e de grupos sociais desfavorecidos.
Não deixa de ser curioso que um tema de tanta
importância como o do fracasso escolar tenha pas-
sado a ser de interesse secundário, de acordo com
a maioria das temáticas dos cursos, encontros e
conferências dirigidos ao professorado.
Se um observador de fora tratasse de averiguar
quais são as preocupações dominantes no sistema
educativo espanhol, recorrendo às temáticas esco-
lhidas para a atualização do professorado, poderia
chegar à conclusão de que no Estado espanhol não
existe fracasso escolar. Por outro lado, chamaria sua
atenção o interesse por aprender a avaliar e quali-
ficar com mais precisão, em como hierarquizar uma
série de conteúdos disciplinares ao longo de um ciclo
escolar, como elaborar Projetos Curriculares de
Centro, etc. No entanto, a realidade do fracasso das
instituições escolares em suas finalidades formativas
Política educativa, multiculturalismo e práticas culturais democráticas nas salas de aula
18 Jan/Fev/Mar/Abr 1997 Nº 4
é percebida com bastante unanimidade pelos cida-
dãos e cidadãs.
Convém não deixar à margem a análise das
novas formas de desvantagem social, cultural e eco-
nômica, especialmente quando informes de institui-
ções como a Caritas evidenciam que em nosso país
está crescendo o número de pessoas em situação de
pobreza, ou de organismos internacionais que apon-
tam como as distâncias entre grupos sociais são in-
crementadas; as pessoas pobres o são cada vez mais,
e núcleos importantes das classes médias perdem
poder e possibilidades a cada dia. Do mesmo modo,
é preocupante como a pobreza continua com um
processo notável de feminização; são as mulheres
que em maior porcentagem vivem em condições de
necessidade e pobreza.
Uma importante ajuda na capacitação para
compreender esse tipo de situação é a análise e re-
visão dos conteúdos culturais que são oferecidos
como exemplificantes ao alunado.
Todas as disciplinas possuem aspectos em seus
conteúdos que permitem prestar atenção às ques-
tões de justiça social e diversidade; tanto as chama-
das ciências sociais e humanas como as físico-na-
turais. No fundo, as diferentes disciplinas ou ciên-
cias não são outra coisa que a formalização e siste-
matização dos conhecimentos, habilidades e valo-
res que cada sociedade possui para sobreviver da
maneira mais satisfatória possível, para fazer fren-
te aos desafios de seu desenvolvimento e alcançar
maiores níveis de eqüidade e justiça. As diferentes
disciplinas, através dos tempos e em cada socieda-
de concreta, variam mais ou menos em função da
comunicação que tais povos mantém entre si. Ob-
viamente, em épocas históricas em que a comuni-
cação era mais difícil, cada povo ia gerando formas
mais idiossincráticas de resposta às necessidades que
detectava. Mas toda sociedade sempre construiu e
utilizou conhecimentos de física, química, econo-
mia, direito, tecnologia etc. para viver. À medida
que os povos se comunicam, intercambiam esses
conhecimentos e os conhecimentos adquiridos e re-
construídos vão se organizando para facilitar sua
aprendizagem pelas novas gerações. Nessa dinâmica
é que também vão surgindo as especialidades e os
especialistas.
Se atualmente ainda existem comunidades com
as quais as formas de comunicação não são suficien-
temente fluidas, nessa medida alguns conhecimen-
tos, habilidades e tecnologias aparecem como mais
idiossincráticos.
Trabalhar com essa concepção de fundo pres-
supõe planejar propostas curriculares integradas
(Torres Santomé, 1996b), nas quais os estudantes
e as estudantes se vejam obrigados a:
> Incorporar uma perspectiva global. As-
sumir a análise dos contextos socioculturais
nos quais se desenvolve sua vida, assim como
daqueles das questões e situações que subme-
tam a estudo; atender às dimensões culturais,
econômicas, políticas, religiosas, militares, eco-
lógicas, de gênero, étnicas, territoriais etc. (ante
uma educação mais tradicional em que a des-
contextualização é uma das peculiaridades da
maior parte de tudo que se aprende.)
> Pôr a descoberto as questões de poder
implicadas na construção da ciência e as pos-
sibilidades de participar de tal processo.
> Deixar patente a participação daqueles
que constroem a ciência e o conhecimento; não
silenciar quem são para demonstrar a histori-
cidade e condicionantes de tal construção.
> Incorporar a perspectiva histórica, as
controvérsias e variações que ocorreram até o
momento sobre o fenômeno objeto de estudo;
a que se deveram, a quem beneficiavam etc.
Incidir, portanto, na provisoriedade do conhe-
cimento.
> Integrar as experiências práticas em âm-
bitos cada vez mais gerais e integrados.
> Compreender todas as questões que são
objeto de estudo e investigação levando em
consideração dimensões de justiça e eqüidade.
Converter o trabalho escolar em algo que per-
mita pôr em prática e ajudar a compreensão
Jurjo Torres Santomé
Revista Brasileira de Educação 19
das implicações de diferentes posições éticas e
morais.
> Partir da valorização da experiência e
do conhecimento do próprio alunado. Facili-
tar a confrontação de suas convicções e pon-
tos de vistas pessoais com os de outras pessoas.
> Promover a discussão a respeito de di-
ferentes alternativas para resolver problemas
e conflitos, assim como dos efeitos colaterais
de cada uma das opções.
> Proporcionar possibilidades de avalia-
ção e reflexão das ações, valorações e conclu-
sões que são suscitadas ou nas quais se vêem
comprometidos.
> Aprender a comprometer-se com a acei-
tação de responsabilidades e a tomada de de-
cisões, a assumir riscos e a aprender com os
erros que cometam.
> Potencializar a personalidade específi-
ca de cada estudante, seus estilos e caracterís-
ticas pessoais. Chegar a convencer-se do valor
positivo da diversidade pessoal, algo impres-
cindível para chegar a assumir a de outros po-
vos e culturas.
> Empregar estratégias de ensino e apren-
dizagem flexíveis e participativas. Aprender
num âmbito organizativo flexível, participa-
tivo e democrático, no qual se preste especial
atenção à integração de estudantes de diferen-
tes grupos étnicos e níveis culturais, de distin-
tas capacidades e níveis de desenvolvimento,
no qual as tarefas escolares sejam levadas a
cabo em grupos cooperativos de trabalho.
No fundo, trata-se de educar as cidadãs e os
cidadãos com um “ceticismo informado” ou, o que
é a mesma coisa, com capacidades para o pensamen-
to crítico, como uma das estratégias perante uma so-
ciedade e um mundo no qual os fundamentalismos,
o pensamento dogmático, tendem a inundá-lo e a se
colocar como único parâmetro a perpetuar.
Pôr em ação essas estratégias nos ajudará na
conformação de cinco hábitos mentais que iremos
construindo com o trabalho curricular nas salas de
aula. Hábitos que ajudarão a obter uma capacitação
mais adequada para participar de um mundo em
que a diversidade é uma de suas marcas mais pe-
culiares. Procuraremos fazer que as alunas e os alu-
nos prestem atenção e se preocupem com:
1. Evidências. Como conhecemos o que conhe-
cemos? Que tipo de evidências consideramos sufi-
cientemente boas, válidas?
2. Pontos de vista. Que perspectivas, critérios
escutamos, vemos e lemos? Quem são seus autores
ou autoras, onde as elaboraram, quais eram suas
intenções ou finalidades?
3. Conexões. Como estão relacionadas umas
questões com outras? Como se encaixam entre si?
4. Conjecturas. O que acontece se...? Supon-
do que... Podemos imaginar alternativas?
5. Relevância. Que controvérsias se estabele-
cem? A quem se presta atenção? (Wood, 1992, p.
172).
Tal clima de aula estará, em meu modo de ver,
contribuindo para que o alunado desenvolva uma
consciência crítica que lhe permita analisar, valorar
e participar de tudo o que acontece e tem a ver com
seu entorno sociocultural e político.
Manipulações populistas
das filosofias progressistas
Algo que vem adquirindo grande peso em nos-
sa sociedade é o discurso populista. Nele se recor-
re ao emprego de um vocabulário que faz referên-
cia a conceitos muito interessantes e valiosos, mas
que são descarregados de significado, desvirtuados,
para aparentemente dar a sensação de que se enfren-
ta uma série de problemas sociais urgentes; mas é
só isso, aparência. Temos um exemplo disso nos
discursos populistas contra o racismo, a pobreza,
o desemprego etc. Neles são nomeadas realidades
e direitos como os do povo cigano, da mulheres, da
população negra, dos homossexuais e lésbicas etc.,
mas evitando considerar por que temos de nomeá-
Política educativa, multiculturalismo e práticas culturais democráticas nas salas de aula
20 Jan/Fev/Mar/Abr 1997 Nº 4
las, a razão pela qual se presta atenção a dimensões
idiossincráticas de etnia, raça, gênero, sexualidade
etc. Ocultam-se relações de poder existentes nas
sociedades em que convivem esses coletivos que so-
frem alguma forma de marginalização, as catego-
rias de classificação, sua valoração e os motivos
pelos quais foram sendo construídas essas situações
de marginalidade nessa determinada comunidade a
que nos referimos.
Evidentemente, essa estratégia de confusão
chegou também ao mundo da educação. As admi-
nistrações educativas, concretamente através das leis
que elaboram e dos decretos e normas que as de-
senvolvem, vêm manejando conceitos que foram
construídos por forças sociais progressistas, formu-
lados e reformulados mais de uma vez à medida que
eram melhoradas as análises sobre a realidade, mas
que agora se esvaziam de seu conteúdo social e,
portanto, se despolitizam ou “repolitizam” em sen-
tido inverso, conservador. Conceitos como globali-
zação, interdisciplinariedade, currículo integrado e
outros tão vinculados a estes, como socialização,
igualdade de oportunidades, democracia escolar,
participação e similares, passam a funcionar como
vocábulos vazios ou muletas de expressão, sem dar
conta de sua carga de significado e das conseqüên-
cias de seu uso. Outros, como atenção à diversida-
de, sofrem um forte reducionismo, deixando-os cir-
cunscritos a aspectos de índole exclusivamente pes-
soal, a dimensões de conduta ou a problemas psi-
cológicos que têm a ver apenas com alguns indiví-
duos concretos. O mesmo cabe dizer de termos pe-
dagógicos como profissionalização, projeto curri-
cular etc., conceitos para fazer figura, mas não para
ser conseqüente com eles e criar as condições admi-
nistrativas, de trabalho e de formação que possam
torná-los realidade na prática cotidiana das salas de
aulas e dos centros escolares.
Surgem, inclusive, novas figuras e estruturas
profissionais (psicopedagogos e psicopedagogas,
orientadores e orientadoras, equipes psicopedagó-
gicas de apoio, de atenção antecipada, de estimula-
ção precoce etc.), mas com uma formação e orien-
tação bastante enviesada: para atender unicamen-
te a aspectos de patologia individual, e não a pro-
blemas que afetam coletivos sociais e que requerem
prestar atenção a dimensões que condicionam sua
vida e, por conseguinte, o aprendizado de cada alu-
no ou aluna.
O construtivismo como estribilho
Os que promovem as novas ideologias conser-
vadoras não hesitam em tratar de esvaziar e “reo-
rientar” todos aqueles conceitos e filosofias que no
momento histórico presente tenham ganhado pre-
sença e prestígio. Uma boa mostra disso é seu apoio
e promoção dos atuais discursos em defesa do cons-
trutivismo, filosofia psicoeducativa que, em suas di-
vulgações pelas instâncias e personalidades vincu-
ladas ao poder, vem se mostrando demasiadamen-
te parcial.
Esse modelo teórico elabora seus argumentos
com demasiada ênfase em dimensões individualis-
tas ou excessivamente “universalistas”, abstraindo-
se das peculiaridades de cada comunidade e do mo-
mento sócio-histórico que está vivendo. Nesses dis-
cursos psicológicos, o ser humano aparece confina-
do à margem de aspectos essenciais, como suas di-
mensões socioculturais e histórico-geográficas. Ne-
les não se trata de pôr em relevo como essas variá-
veis jogam um papel decisivo na aquisição do co-
nhecimento, do sistema de valores e desenvolvimen-
to de habilidades, tanto em sua seleção como em sua
valoração, interpretação e aceitação.
Dificilmente poderíamos nos opor à atual cor-
rente epistemológica que promove que “o conhe-
cimento se constrói”. Mas não deixa de ser chama-
tivo que em muitos momentos esse discurso venha
a se esgotar em frases tão simples como uma mule-
ta de expressão ou um cacoete, deixando o apro-
fundamento de tal filosofia para o leitor ou ouvin-
te. No Estado espanhol, costuma ser freqüente, es-
pecialmente do ponto de vista da psicologia, que a
defesa das teses construtivistas entre o coletivo do-
cente acabe se resumindo em alguns slogans com os
quais todo o mundo concorda e assume, dada a
simplicidade de sua formulação. Ao final, fica ape-
Jurjo Torres Santomé
Revista Brasileira de Educação 21
nas a idéia um tanto abstrata de que tudo é ques-
tão de “construção”, essa sim revestida com frases
e conceitos que gozam de certo prestígio. Sem dúvi-
da, nos momentos da ação prática, muitos profes-
sores e professoras sentir-se-ão incapazes de trans-
por essa filosofia para situações reais nas salas de
aula. Todavia, uma análise mais minuciosa e críti-
ca mostrará, com relativa prontidão, que o constru-
tivismo não é algo do qual possamos falar no sin-
gular e com o qual concordem todas as pessoas que
assim se etiquetam. Existe conflito entre as concep-
ções e explicações subjacentes a tal perspectiva ou
âmbito explicativo, como detecta César Coll (1993,
p. 239) quando afirma que “por trás do termo
‘construtivismo’ escondem-se interpretações e ex-
plicações diversas e nem sempre coincidentes”.
Além disso, não deixa de ser curioso que, de-
pois de muitos anos em que as análises sociológi-
cas estiveram e continuam gozando de importante
aceitação no campo do ensino, de repente, muitos
dos discursos psicológicos pretendam silenciar es-
sas dimensões e características que foram sendo en-
fatizadas. As pessoas constroem conhecimentos, mas
quais? Quando? Onde? Em que condições? Com
que finalidades? A serviço de quem? Promovidos
por quem? É em torno de questões semelhantes a
essas que o silêncio de muitos construtivistas cha-
ma a atenção.
Não costuma ser freqüente que, nos discursos
sobre construtivismo, apareçam reflexões a respei-
to de quem orienta e promove o processo constru-
tivista e em que direção. Portanto, existe o perigo
de assumir tacitamente um certo “naturalismo”:
que todas as meninas e meninos deixados à sorte
constroem de uma maneira adequada.
Nos últimos anos, é visível a impregnação das
concepções individualistas em muitos momentos do
discurso construtivista psicológico, assim como nas
orientações práticas que derivam desse modelo. Um
exemplo disso temos no Brasil, no texto que o Mi-
nistério da Educação e Cultura divulga sobre “O
ensino fundamental: Parâmetros Curriculares Na-
cionais”. Documento muito impregnado de cons-
trutivismo e no qual, no momento de derivar pro-
postas práticas para as aulas, como no que diz res-
peito às formas de agrupamento do alunado, pode-
mos ler o seguinte:
Devem estar atentos às diferentes formas de agru-
pamento possíveis segundo uma variedade de aspec-
tos, por exemplo: desempenho diferenciado, desem-
penho próximo, gênero, afinidades para o trabalho,
afinidades afetivas, possibilidade de ajuda, possibili-
dade de cooperação, ritmo de trabalho etc.
Não existe “o melhor” critério de organização
de grupos para uma atividade, é necessário que o pro-
fessor decida em cada tipo de atividade, em cada mo-
mento do processo de ensino e aprendizagem, para
aqueles alunos específicos, qual é a melhor forma de
organização social.[...]
Os agrupamentos são medidas eficazes para fa-
cilitar a individualização do ensino, pois podem ser
consideradas as necessidades de cada aluno e garan-
tidas situações adequadas para o desenvolvimento de
certas aprendizagens.[...]
É possível pensar em grupos que não sejam es-
truturados por série e sim por objetivos a serem alcan-
çados, onde a diferenciação entre séries se dê pela exi-
gência adequada ao desempenho de cada um (p. 24).
Em explicações e propostas como as anterio-
res, penso que se pode constatar o predomínio de
uma concepção exclusivamente individualista da
aprendizagem. Cada aluno e aluna constrói seu pró-
prio conhecimento, exclusivamente pessoal. Os ou-
tros companheiros e companheiras são considera-
dos instrumento ou recurso para favorecer essas
aprendizagens em cada pessoa. Não existe uma só
linha de argumentação, num tema tão decisivo co-
mo o dos agrupamentos do alunado, que finque pé
na necessidade de desenvolver a solidariedade en-
tre os que compartilham uma sala de aula ou cen-
tro escolar, na exigência de trabalhar em grupo para
aprender a colaborar, conhecer as demais pessoas
que nos rodeiam, banir pré-julgamentos ou estere-
ótipos sobre aqueles que pertencem a coletivos so-
ciais marginalizados ou a etnias sem poder.
Quando se realiza a enumeração das modali-
dades de agrupamento de estudantes, isso é feito
Política educativa, multiculturalismo e práticas culturais democráticas nas salas de aula
22 Jan/Fev/Mar/Abr 1997 Nº 4
como se todas tivessem o mesmo valor, como se se
tratasse de uma tomada de decisão meramente téc-
nica, para favorecer o potencial inato de cada me-
nino ou menina, para construir um conhecimento
pessoal e que, podemos deduzir, terá conseqüênci-
as individuais. Esquece-se de mencionar as lutas que
o coletivo docente, juntamente com outros coleti-
vos sociais, levou e leva a cabo para contribuir para
banir o sexismo promovendo agrupamentos mistos,
de meninos e meninas; para favorecer a integração
das pessoas com discapacidades, conformando gru-
pos de estudantes de diferentes níveis de capacida-
des e conhecimentos; para colaborar na luta con-
tra o racismo, sobre a base de agrupar alunas e alu-
nos de diferentes etnias num mesmo grupo; para
educar pessoas mais solidárias, fomentando o tra-
balho em equipe no qual cada estudante se sinta útil
aos demais membros etc.
O professorado é muito mais do que promo-
tor de conflitos sociocognitivos e, por conseguinte,
precisa deter-se em pensar questões que ultrapas-
sam os aspectos puramente psicológicos, tais como
dimensões de valor, justiça, democracia, solidarie-
dade que acompanham a produção e utilização do
conhecimento e a tecnologia.
Um “sentido comum”, cuja construção este-
ve controlada pelos círculos de poder, pelos discur-
sos promovidos por todo um conjunto de intelec-
tuais oficialistas que gozam de todo o tipo de faci-
lidades para aceder aos meios de comunicação e
dirigir a produção do conhecimento e tecnologia,
pode, deixado a seu livre arbítrio, funcionar em
direções reproducionistas. A realidade não costu-
ma adornar-se com etiquetas explicativas, pelo con-
trário, é imprescindível esforçar-se para revelar seu
significado mais autêntico. Convém estar atento
para que o discurso “construtivista” não acabe con-
vertido em etiqueta que dissimule posições “repro-
ducionistas”, mas com roupagens e máscaras que
dificultem captar sua manipulação a serviço dos
mesmos interesses dos de sempre.
É preciso não esquecer que em cada época,
como se evidencia a partir da filosofia da ciência
(Kuhn, 1980; Toulmin, 1977; Lakatos, 1982) e ulti-
mamente no que se vem conceituando como pós-
modernidade (Foucault, 1990; Feyerabend, 1984;
Harding, 1993), toda uma série de condições, in-
fluências, pressões e normas vão tratar de avaliar
a validade dos conhecimentos, assim como favore-
cer e obstaculizar a aparição, divulgação e utiliza-
ção de determinados saberes e tecnologias.
Na ciência, a verdade está em disputa com mui-
tíssima freqüência, assim como seus fundamentos
metodológicos. Por conseguinte, podemos afirmar
que são distintas condições sociais, econômicas, po-
líticas, culturais, militares e religiosas, assim como
os conflitos de interesse entre os desafios que vão
se colocando para os distintos grupos sociais, etnias,
gêneros que entram em jogo na construção de con-
ceitos, categorias, procedimentos, metodologias,
valores e, portanto, nas soluções que as ciências e
os diferentes saberes vão poder enfrentar.
É imprescindível dar-se conta de que a cons-
ciência das pessoas historiadoras, cientistas, artis-
tas, políticas, literatas está sempre condicionada
pelo ambiente em que vivem, pelas práticas nas quais
se vêem envolvidas, pelas normas que possibilitam
o acesso a postos de trabalho e as condições de sua
realização, pelos sistemas de valores, modos de per-
ceber, saberes e racionalidades em que se apóiam.
Convém ter certa atitude de dúvida diante de
teorias que aparecem com demasiada arrogância,
escudando-se num excesso de frases feitas e slogans
que funcionam para despolitizar realidades sociais
conflitivas e acabam por se transformar em escudos
protetores ante análises e propostas mais liberta-
doras, minuciosas e críticas.
Com muita freqüência, esquece-se que, também
mediante processos discursivos e retóricos, contri-
bui-se para dar forma ao pensamento hegemônico,
à criação de um “sentido comum” que coopera para
apresentar e pensar como normal, lógico, natural e
único o que não passa de um modelo concreto de
atuar, governar, pensar etc., entre outros possíveis.
Isso já foi evidenciado por Michel Foucault (1990b,
p. 198) quando, ao se referir às “práticas discursi-
vas” deixa claro que estão sujeitas a “um conjunto
de regras anônimas, históricas, sempre determina-
Jurjo Torres Santomé
Revista Brasileira de Educação 23
das no tempo e no espaço, que definiram, numa dada
época e para uma dada área social, econômica, ge-
ográfica ou lingüística, as condições de exercício da
função enunciativa”; ou seja, condicionam e limitam
os temas a respeito dos quais se pode falar, analisar,
classificar, explicar, nomear; promovem um leque
limitado de significados.
É também mediante práticas discursivas que
conceitos que até um determinado momento têm
um determinado significado, uma vez que são fru-
tos de outros discursos que lhes conferiam esse sig-
nificado, ao intercalar-se em outras práticas diferen-
tes, podem chegar a alterar por completo seu sig-
nificado ou ficar reduzidos a meros slogans ou fra-
ses-fórmula. Em tais slogans “sua simplicidade pro-
porciona uma embalagem de idéias com traçado
verdadeiramente claro e sólido. Eles comunicam
paradigmas, idéias modelo que podem ser aplica-
das a novas ‘instâncias’, mas distanciando-se de seus
referentes originais” (Fowler, 1991, p. 177-179).
Não podemos esquecer que a instituição esco-
lar, através de suas práticas e ênfases, é coadjuvante
na construção das maneiras de pensar, atuar, per-
ceber e falar a respeito da realidade, do mundo de
cada estudante e, por isso mesmo, de cada cidadã
e cidadão. Na aprendizagem de matérias como his-
tória, matemática, física, geografia, literatura, idio-
mas etc., “constroem-se” possibilidades de perce-
ber, interpretar e valorar a realidade; fomentam-se
atitudes perante o mundo que nos rodeia e do qual
temos alguma noção; influi-se na conformação de
sentimentos e expectativas perante as pessoas com
as quais convivemos e compartilhamos este planeta.
O forte peso do conservadorismo atual con-
tribui para que as questões morais, políticas e socio-
econômicas sejam aspectos que tendem a desapa-
recer do vocabulário e, portanto, da práxis curri-
cular. Ainda se pode constatar o medo de reconhe-
cer e assumir que educar é uma ação política, não
um trabalho meramente técnico. Os discursos pro-
fissionalizadores, curiosamente, estão sendo utili-
zados como disfarce para despolitizar e desfigurar
grande parte do trabalho sociocultural e educativo.
Trata-se de discursos nos quais se faz notar que a
única coisa importante são as preocupações por
eficiência, controle, gestão, objetividade e “neutra-
lidade”, o que é coerente com os discursos hege-
mônicos, oficiais, sobre o fim das ideologias.
É preciso recuperar a capacidade de contextua-
lizar e historizar nossos discursos e práticas. Urge
voltar a retomar algo que já parece um slogan va-
zio: conectar a instituição escolar com o meio. Do
contrário, corremos o risco de construir um currí-
culo fundamentalista, uma proposta de trabalho na
qual se dá uma seleção fechada de conteúdos cul-
turais a serem trabalhados nas classes, possibilita-
se o acesso a uma única interpretação desses con-
teúdos culturais, uma só valoração e uma única res-
posta verdadeira.
Se as opções conservadoras continuam ganhan-
do cotas de poder, há um risco importante de que
os currículos fundamentalistas venham a se ver ainda
mais favorecidos. Currículos cujas diferenças esta-
rão no viés que desejam “vigiar” com maior aten-
ção; é previsível que apareçam projetos curriculares
obcecados por determinadas opções religiosas, eco-
nômicas (para promover um determinado modelo
produtivo e de relações de trabalho de interesse para
os grupos empresariais no poder), políticas, racistas,
sexistas etc. Estamos cada vez mais diante de insti-
tuições de ensino que apenas vendem o “conhecimen-
to oficial” (Apple, 1993). O que parece imperar é
uma cultura da “objetividade”, entendida como uni-
formismo, como ataque à diversidade, com a fina-
lidade de favorecer a articulação de sociedades “mo-
no”: monoculturais, monolingüísticas, monoétnicas,
monoideológicas etc. Pretende-se negar a diversidade
para impor uma única cultura que se anuncia e se
faz pública como “comum”, “consensual”, “valio-
sa” e “histórica (a de sempre)”.
Os coletivos de intelectuais, pesquisadoras e
pesquisadores, artistas e docentes têm uma impor-
tante tarefa a desempenhar, ajudando a construir,
a voltar a interpretar a história das sociedades levan-
do em consideração as percepções e interesses daque-
les que ficaram à margem e sofreram a história.
Apostar na democracia obriga a que conceitos
como “justiça social”, “responsabilidade ética”,
Política educativa, multiculturalismo e práticas culturais democráticas nas salas de aula
24 Jan/Fev/Mar/Abr 1997 Nº 4
“participação”, “igualdade” não se transformem em
fórmulas vazias, mas em modos de vida. Assim, a
pedagogia tem uma função dual: ajudar a propor-
cionar os meios através dos quais os coletivos sociais
oprimidos chegam a tomar consciência de sua opres-
são e servir como instrumento mediante o qual es-
sas mulheres e homens lutem para encontrar métodos
de transformação da realidade (Trend, 1995, p. 148).
É imprescindível estar atento a todo momen-
to para que esse trabalho de ação social em prol de
maiores cotas de democracia e justiça social se man-
tenha vinculado aos demais movimentos sociais que
estão comprometidos nessa mesma direção de redis-
tribuição de poder e dos recursos existentes na co-
munidade; movimentos que procuram em todos os
momentos tornar viável uma autêntica e informa-
da participação de todas as cidadãs e cidadãos nas
tomadas de decisão que servem para configurar e
determinar a sociedade. Isso está ficando cada vez
mais difícil, dado o forte individualismo que impe-
ra nas sociedades pós-modernas e da informação
que, por sua vez, facilita a reaparição de um notá-
vel culto às lideranças carismáticas. Uma prova dis-
so, e na verdade preocupante, é a apatia para com
o debate que surge no próprio seio de estruturas
como partidos políticos e sindicatos e que tem como
resultado o afloramento de apostas por uma espé-
cie de “cesarismo”. Diante de um importante grau
de atrofia dos mecanismos de participação e regu-
lação democrática da vida no interior de muitos
partidos políticos ou mesmo de governos, a figura
do dirigente capaz de tomar as rédeas e o controle
adquire um peso desmedido.
A constante denúncia de apatia com a qual se
etiqueta a imensa maioria da população das socie-
dades pós-industriais, fruto das experiências pseu-
dodemocráticas nas quais se encontram implicadas,
corre o risco de servir de situação embrionária de
novos fascismos ou autocracias mais invisíveis; nes-
tas a democracia fica minimizada numas tantas for-
mas e ritos externos, mas sem conteúdo. Os espa-
ços de participação e controle democráticos estão
tramados por figuras representativas do mundo eco-
nômico, militar e líderes do governo. Um panora-
ma semelhante é também percebido por Paulo Flo-
res D’Arcais (1996) quando escreve:
Estes são os dois modelos que aparecem no mo-
derno obscurecer-se da promessa democrática: a parti-
tocracia de partidos-máquina, cada vez mais pareci-
dos entre si, acompanhados de seus respectivos enge-
nheiros do consenso e o gigantismo de aparatos bu-
rocráticos e auto-referenciais. E o populismo tauma-
túrgico, com seus improváveis eleitos pelo senhor, seus
insolentes vendedores de felicidade e o néscio estron-
do do aplauso forçado. Os dois modelos não apenas
não se excluem, como antes parecem celebrar em des-
conexa mestiçagem as bacanais pós-modernas em ver-
são caótica. E assim em todo o mundo (p. 59-60).
Diante de uma perspectiva tão ameaçadora,
torna-se prioritário recuperar para o maior núme-
ro possível de cidadãos e cidadãs e, evidentemen-
te, para o trabalho docente os papéis de ativistas
contra-hegemônicos com fé no futuro; com suficien-
tes doses de utopia entremeadas de realismo para
configurar um futuro mais justo, democrático, nu-
ma palavra: humano.
JURJO TORRES SANTOMÉ é Catedrático de Didá-
tica e Organização Escolar na Universidade da Coruña, Es-
panha. Trabalha com temas relativos a Sociologia da Edu-
cação, Política Curricular e Currículo Integrado. Entre suas
obras se destacam: Globalización e interdisciplinariedad: el
curriculum integrado, Madrid, Morata, 1996, 2ª ed.; El cur-
riculum oculto, Madrid, Morata, 1991.
Referências bibliográficas
ABRAMI, Philip C. et al., (1995). Classroom connections:
understanding and using cooperative learning. Toronto:
Harcourt Brace.
APPLE, Michael W., (1993). Official knowledge: democratic
education in a conservative age. Nova York: Routledge.
BLOOM, Allan C., (1987). The closing of the american
mind. Nova York: Simon & Schuster.
CALVO BUEZAS, Tomás, (1989). Los racistas son los
otros: gitanos, minorías y derechos humanos en los tex-
tos escolares. Madri: Popular.
Jurjo Torres Santomé
Revista Brasileira de Educação 25
COLL, César, (1993). Psicología y didácticas: demarca-
ción e interconexión. Infancia y Aprendizaje, no 62-
62, p. 237-243.
CONNELL, R. W., (1993). Schools and social justice. Fi-
ladélfia: Temple University Press.
DELFATTORE, Joan, (1922). What Johnny shouldn’t read:
textbook censorship in America. New Haven: Yale Uni-
versity Press.
FEYERABEND, Paul, (1984). Adiós a la razón. Madri:
Tecnos.
FLORES D’ARCAIS, Paolo, (1996). Hannah Arendt. Una
actualidade anacrónica. Claves de Razón Práctica, no 65,
set., p. 56-61.
FOUCAULT, Michel, (1979). Microfísica del poder. 2a ed.
Madri: La Piqueta,.
__________, (1990). La arqueologia del saber. 14a ed. Mé-
xico: Siglo XXI.
FOWLER, Roger, (1991). Language in the news: discourse
and ideologie in the press. Londres: Routledge.
GARDNER, Howard, (1993). La mente no escolarizada.
Barcelona: Paidós.
GOODSON, Ivor, (1987). School subjects and curriculum
change: studies in curriculum history. Ed. ampliada. Lon-
dres: The Falmer Press.
HALL, Stuart, (1992). Race, culture and communications:
looking backward and forward at cultural studies. Re-
thinking Marxism, v. 5, no 1 (primavera), p. 10-18.
HARDING, Sandra, (1993). The science question in femi-
nis. 5a ed. Ithaca: Cornell University Press.
JACKSON, Philip W., (1994). La vida en las aulas. 3a ed.
Madri: Morata/Fundación Paideia.
KUHN, Thomas S., (1980). La estructura de las revolucio-
nes científicas. Madri: Fondo de Cultura Económica.
LAKATOS, Imre, (1982). Historia de la ciencia y sus re-
construcciones racionales. Madri: Tecnos.
McCARTHY, Cameron, (1994). Racismo y curriculum.
Madri: Morata/Fundación Paideia.
MESSER-DAVIDOW, Ellen, SHUMWAY, David R., SYL-
VAN, David J. (orgs.), (1993). Knowledges: historical and
critical studies in disciplinarity. Charlottesville: University
Press of Virginia.
NIXON, Jon, MARTIN, Jane, McKEOWN, Penny, RAN-
SON, Stewart, (1996). Encouraging learning: towards a
theory of learning school. Buckingham: Open University
Press.
POPKEWITZ, Thomas S., (org.), (1987). The formation of
school subjects: the struggle for crating na amerinan insti-
tution. Londres: The Falmer Press.
SAID, Edward, (1994). Representations of the intellectual.
(The 1993 Reith Lectures). Nova York: Pantheon Books.
TORRES SANTOMÉ, Jurjo, (1996a). El curriculum ocul-
to. 5a ed. Madri: Morata.
__________, (1996b). Globalización e interdisciplinariedad:
el curriculum integrado. 2a ed. Madri: Morata.
TOULMIM, Stephen, (1977). La comprensión humana.
Madri: Alianza.
TREND, David, (1995). The crisis os meaning in culturte
and education. Minneapolis: University of Minnesota
Press.
WHITTY, Geoff, EDWARDS, Tony, GEWIRTZ, Sharon,
(1993). Specialisation and choice in urban education: the
city technology college experiment. Londres: Routledge.
WOOD, George H., (1992). Schools that work: America’s
most innovative public education programs. Nova York:
Dutton.
Política educativa, multiculturalismo e práticas culturais democráticas nas salas de aula

Weitere ähnliche Inhalte

Was ist angesagt?

A autoridade do professor e a função da escola (2)
A autoridade do professor e a função da escola (2)A autoridade do professor e a função da escola (2)
A autoridade do professor e a função da escola (2)
Suellen87
 
Papel da educação no desenvolvimento sócio económico e na construção da cidad...
Papel da educação no desenvolvimento sócio económico e na construção da cidad...Papel da educação no desenvolvimento sócio económico e na construção da cidad...
Papel da educação no desenvolvimento sócio económico e na construção da cidad...
Alsone Jorge Guambe
 
Plano de aula manuela .
Plano de aula   manuela .Plano de aula   manuela .
Plano de aula manuela .
Gabriel Reis
 
Mutações sociais e sistemas educativos
Mutações sociais e sistemas educativosMutações sociais e sistemas educativos
Mutações sociais e sistemas educativos
Teresa Ramos
 
Políticas Públicas de Educação
Políticas Públicas de EducaçãoPolíticas Públicas de Educação
Políticas Públicas de Educação
Petianos
 
Desigualdade Social
Desigualdade SocialDesigualdade Social
Desigualdade Social
andreatlc
 

Was ist angesagt? (20)

EDUCAÇAO, POBREZA E DESIGUALDEADE SOCIAL.
EDUCAÇAO, POBREZA E DESIGUALDEADE SOCIAL.EDUCAÇAO, POBREZA E DESIGUALDEADE SOCIAL.
EDUCAÇAO, POBREZA E DESIGUALDEADE SOCIAL.
 
Saber academicosociedade
Saber academicosociedadeSaber academicosociedade
Saber academicosociedade
 
Turismo inclusivo
Turismo inclusivoTurismo inclusivo
Turismo inclusivo
 
O CONTRIBUTO DA EDUCAÇÃO NO DESENVOLVIMENTO
O CONTRIBUTO DA EDUCAÇÃO NO DESENVOLVIMENTOO CONTRIBUTO DA EDUCAÇÃO NO DESENVOLVIMENTO
O CONTRIBUTO DA EDUCAÇÃO NO DESENVOLVIMENTO
 
A autoridade do professor e a função da escola (2)
A autoridade do professor e a função da escola (2)A autoridade do professor e a função da escola (2)
A autoridade do professor e a função da escola (2)
 
Papel da educação no desenvolvimento sócio económico e na construção da cidad...
Papel da educação no desenvolvimento sócio económico e na construção da cidad...Papel da educação no desenvolvimento sócio económico e na construção da cidad...
Papel da educação no desenvolvimento sócio económico e na construção da cidad...
 
Educacao em Mocambique
Educacao em MocambiqueEducacao em Mocambique
Educacao em Mocambique
 
Plano de aula manuela .
Plano de aula   manuela .Plano de aula   manuela .
Plano de aula manuela .
 
ARQUIVO Claudete menegatt
ARQUIVO Claudete menegattARQUIVO Claudete menegatt
ARQUIVO Claudete menegatt
 
Mutações sociais e sistemas educativos
Mutações sociais e sistemas educativosMutações sociais e sistemas educativos
Mutações sociais e sistemas educativos
 
Políticas Públicas de Educação
Políticas Públicas de EducaçãoPolíticas Públicas de Educação
Políticas Públicas de Educação
 
A educação do Campo e a sua Legislação
A educação do Campo e a sua LegislaçãoA educação do Campo e a sua Legislação
A educação do Campo e a sua Legislação
 
Desigualdade Social
Desigualdade SocialDesigualdade Social
Desigualdade Social
 
Educação econômica
Educação econômicaEducação econômica
Educação econômica
 
Projeto educativo0001
Projeto educativo0001Projeto educativo0001
Projeto educativo0001
 
Guilherme carlos corrêa educação, comunicação, anarquia
Guilherme carlos corrêa educação, comunicação, anarquiaGuilherme carlos corrêa educação, comunicação, anarquia
Guilherme carlos corrêa educação, comunicação, anarquia
 
Keila01 projeto
Keila01 projetoKeila01 projeto
Keila01 projeto
 
Educação Online e Formação Contínua em Medicina
Educação Online e Formação Contínua em MedicinaEducação Online e Formação Contínua em Medicina
Educação Online e Formação Contínua em Medicina
 
O novo cidadão – debate sobre juventude, cidadania e TICs
O novo cidadão – debate sobre juventude, cidadania e TICsO novo cidadão – debate sobre juventude, cidadania e TICs
O novo cidadão – debate sobre juventude, cidadania e TICs
 
Livro etica e_cidadania
Livro etica e_cidadaniaLivro etica e_cidadania
Livro etica e_cidadania
 

Ähnlich wie Política educativa, multiculturalismo e práticas culturais democráticas nas salas de aula

Planejamento de ensino e aprendizagem 2 ano
Planejamento de ensino e aprendizagem 2 anoPlanejamento de ensino e aprendizagem 2 ano
Planejamento de ensino e aprendizagem 2 ano
Dany Pereira
 
A corrente pedagógica racional tecnológica e cibercultura libâneo
A corrente pedagógica racional tecnológica e cibercultura  libâneoA corrente pedagógica racional tecnológica e cibercultura  libâneo
A corrente pedagógica racional tecnológica e cibercultura libâneo
Haroldo Nunes
 
Planejamento de ensino e aprendizagem 1 ano daniela pereira
Planejamento de ensino e aprendizagem 1 ano daniela pereiraPlanejamento de ensino e aprendizagem 1 ano daniela pereira
Planejamento de ensino e aprendizagem 1 ano daniela pereira
Dany Pereira
 
Sacristan, josé e gomes, peres, a.i as funções sociais da
Sacristan, josé e gomes, peres, a.i   as funções sociais da Sacristan, josé e gomes, peres, a.i   as funções sociais da
Sacristan, josé e gomes, peres, a.i as funções sociais da
marcaocampos
 
São vários os problemas que se perpetuam e se intensificam nesse novo milênio
São vários os problemas que se perpetuam e se intensificam nesse novo milênioSão vários os problemas que se perpetuam e se intensificam nesse novo milênio
São vários os problemas que se perpetuam e se intensificam nesse novo milênio
Tania Braga
 
Disciplina E ViolêNcia
Disciplina E ViolêNciaDisciplina E ViolêNcia
Disciplina E ViolêNcia
PITUXA
 
7 piaget-psiclogiaepedagogia-paulodeloroso-091130223902-phpa
7 piaget-psiclogiaepedagogia-paulodeloroso-091130223902-phpa7 piaget-psiclogiaepedagogia-paulodeloroso-091130223902-phpa
7 piaget-psiclogiaepedagogia-paulodeloroso-091130223902-phpa
Ana Vanessa Paim
 

Ähnlich wie Política educativa, multiculturalismo e práticas culturais democráticas nas salas de aula (20)

Planejamento de ensino e aprendizagem 2 ano
Planejamento de ensino e aprendizagem 2 anoPlanejamento de ensino e aprendizagem 2 ano
Planejamento de ensino e aprendizagem 2 ano
 
A corrente pedagógica racional tecnológica e cibercultura libâneo
A corrente pedagógica racional tecnológica e cibercultura  libâneoA corrente pedagógica racional tecnológica e cibercultura  libâneo
A corrente pedagógica racional tecnológica e cibercultura libâneo
 
A corrente pedagógica racional tecnológica Libâneo e cibercultura
A corrente pedagógica racional tecnológica Libâneo e cibercultura  A corrente pedagógica racional tecnológica Libâneo e cibercultura
A corrente pedagógica racional tecnológica Libâneo e cibercultura
 
A corrente pedagógica racional tecnológica e cibercultura Libâneo
A corrente pedagógica racional tecnológica e cibercultura  LibâneoA corrente pedagógica racional tecnológica e cibercultura  Libâneo
A corrente pedagógica racional tecnológica e cibercultura Libâneo
 
ENFILEIRAMENTO ESCOLAR: CONSIDERAÇÕES SOBRE A FORMAÇÃO DA AUTONOMIA E CRITICI...
ENFILEIRAMENTO ESCOLAR: CONSIDERAÇÕES SOBRE A FORMAÇÃO DA AUTONOMIA E CRITICI...ENFILEIRAMENTO ESCOLAR: CONSIDERAÇÕES SOBRE A FORMAÇÃO DA AUTONOMIA E CRITICI...
ENFILEIRAMENTO ESCOLAR: CONSIDERAÇÕES SOBRE A FORMAÇÃO DA AUTONOMIA E CRITICI...
 
Planejamento de ensino e aprendizagem 1 ano daniela pereira
Planejamento de ensino e aprendizagem 1 ano daniela pereiraPlanejamento de ensino e aprendizagem 1 ano daniela pereira
Planejamento de ensino e aprendizagem 1 ano daniela pereira
 
Cultura estudantil
Cultura estudantilCultura estudantil
Cultura estudantil
 
Sacristan, josé e gomes, peres, a.i as funções sociais da
Sacristan, josé e gomes, peres, a.i   as funções sociais da Sacristan, josé e gomes, peres, a.i   as funções sociais da
Sacristan, josé e gomes, peres, a.i as funções sociais da
 
São vários os problemas que se perpetuam e se intensificam nesse novo milênio
São vários os problemas que se perpetuam e se intensificam nesse novo milênioSão vários os problemas que se perpetuam e se intensificam nesse novo milênio
São vários os problemas que se perpetuam e se intensificam nesse novo milênio
 
Preconceito Na Escola
Preconceito Na EscolaPreconceito Na Escola
Preconceito Na Escola
 
Preconceito Na Escola
Preconceito Na EscolaPreconceito Na Escola
Preconceito Na Escola
 
Disciplina: construção da disciplina consciente e interativa em sala de aula ...
Disciplina: construção da disciplina consciente e interativa em sala de aula ...Disciplina: construção da disciplina consciente e interativa em sala de aula ...
Disciplina: construção da disciplina consciente e interativa em sala de aula ...
 
O Currículo Integrado como campo possível de invenção de mundos plurais e ema...
O Currículo Integrado como campo possível de invenção de mundos plurais e ema...O Currículo Integrado como campo possível de invenção de mundos plurais e ema...
O Currículo Integrado como campo possível de invenção de mundos plurais e ema...
 
O que muda na educação com a cibercultura?
O que muda na educação com a cibercultura?O que muda na educação com a cibercultura?
O que muda na educação com a cibercultura?
 
Teoria pedagógica teoria sociocritica
Teoria pedagógica teoria sociocriticaTeoria pedagógica teoria sociocritica
Teoria pedagógica teoria sociocritica
 
Disciplina E ViolêNcia
Disciplina E ViolêNciaDisciplina E ViolêNcia
Disciplina E ViolêNcia
 
Pacto EM
Pacto EMPacto EM
Pacto EM
 
7 piaget-psiclogiaepedagogia-paulodeloroso-091130223902-phpa
7 piaget-psiclogiaepedagogia-paulodeloroso-091130223902-phpa7 piaget-psiclogiaepedagogia-paulodeloroso-091130223902-phpa
7 piaget-psiclogiaepedagogia-paulodeloroso-091130223902-phpa
 
Artigo
ArtigoArtigo
Artigo
 
Manual
ManualManual
Manual
 

Mehr von Jurjo Torres Santomé

"... cada macaco no seu galho". A participação democrática na escola pública....
"... cada macaco no seu galho". A participação democrática na escola pública...."... cada macaco no seu galho". A participação democrática na escola pública....
"... cada macaco no seu galho". A participação democrática na escola pública....
Jurjo Torres Santomé
 
«(Previsibles) consecuencias educativas y sociales de la ley orgánica de cal...
«(Previsibles) consecuencias educativas y sociales de la ley orgánica de cal...«(Previsibles) consecuencias educativas y sociales de la ley orgánica de cal...
«(Previsibles) consecuencias educativas y sociales de la ley orgánica de cal...
Jurjo Torres Santomé
 
Neoliberalismo y tergiversación de las finalidades de los sistemas educativos...
Neoliberalismo y tergiversación de las finalidades de los sistemas educativos...Neoliberalismo y tergiversación de las finalidades de los sistemas educativos...
Neoliberalismo y tergiversación de las finalidades de los sistemas educativos...
Jurjo Torres Santomé
 
La educación rural en el marco de la revolución en la estructura de las pob...
La educación rural en el marco de la revolución en la estructura de las pob...La educación rural en el marco de la revolución en la estructura de las pob...
La educación rural en el marco de la revolución en la estructura de las pob...
Jurjo Torres Santomé
 

Mehr von Jurjo Torres Santomé (20)

Educación en tiempos de neoliberalismo: profesoras y profesores como activist...
Educación en tiempos de neoliberalismo: profesoras y profesores como activist...Educación en tiempos de neoliberalismo: profesoras y profesores como activist...
Educación en tiempos de neoliberalismo: profesoras y profesores como activist...
 
Un curriculum más justo para otra globalización. Jurjo Torres Santomé
Un curriculum más justo para otra globalización. Jurjo Torres SantoméUn curriculum más justo para otra globalización. Jurjo Torres Santomé
Un curriculum más justo para otra globalización. Jurjo Torres Santomé
 
"Instituciones Educativas en el Marco de Sociedades Abiertas y Educadoras: La...
"Instituciones Educativas en el Marco de Sociedades Abiertas y Educadoras: La..."Instituciones Educativas en el Marco de Sociedades Abiertas y Educadoras: La...
"Instituciones Educativas en el Marco de Sociedades Abiertas y Educadoras: La...
 
"Xustiza curricular e sociedades informacionais e do coñecimento" - Jurjo Tor...
"Xustiza curricular e sociedades informacionais e do coñecimento" - Jurjo Tor..."Xustiza curricular e sociedades informacionais e do coñecimento" - Jurjo Tor...
"Xustiza curricular e sociedades informacionais e do coñecimento" - Jurjo Tor...
 
"Aportaciones pedagógicas a la educación infantil. Evolución histórica" - Jur...
"Aportaciones pedagógicas a la educación infantil. Evolución histórica" - Jur..."Aportaciones pedagógicas a la educación infantil. Evolución histórica" - Jur...
"Aportaciones pedagógicas a la educación infantil. Evolución histórica" - Jur...
 
El mundo del capitalismo cognitiva depende de la instrumentalización del sist...
El mundo del capitalismo cognitiva depende de la instrumentalización del sist...El mundo del capitalismo cognitiva depende de la instrumentalización del sist...
El mundo del capitalismo cognitiva depende de la instrumentalización del sist...
 
Entrevista a Jurjo Torres Santomé
Entrevista a Jurjo Torres SantoméEntrevista a Jurjo Torres Santomé
Entrevista a Jurjo Torres Santomé
 
"A escola tiña que ser o espazo para desmontar toda esa arquitectura da exclu...
"A escola tiña que ser o espazo para desmontar toda esa arquitectura da exclu..."A escola tiña que ser o espazo para desmontar toda esa arquitectura da exclu...
"A escola tiña que ser o espazo para desmontar toda esa arquitectura da exclu...
 
Entrevista a Jurjo Torres Santomé - TE (CCOO). Nº 365,  Marzo-Abril de 2018,...
 Entrevista a Jurjo Torres Santomé - TE (CCOO). Nº 365,  Marzo-Abril de 2018,... Entrevista a Jurjo Torres Santomé - TE (CCOO). Nº 365,  Marzo-Abril de 2018,...
Entrevista a Jurjo Torres Santomé - TE (CCOO). Nº 365,  Marzo-Abril de 2018,...
 
Reseña del libro "Políticas Educativas y construcción de personalidades neoli...
Reseña del libro "Políticas Educativas y construcción de personalidades neoli...Reseña del libro "Políticas Educativas y construcción de personalidades neoli...
Reseña del libro "Políticas Educativas y construcción de personalidades neoli...
 
"... cada macaco no seu galho". A participação democrática na escola pública....
"... cada macaco no seu galho". A participação democrática na escola pública...."... cada macaco no seu galho". A participação democrática na escola pública....
"... cada macaco no seu galho". A participação democrática na escola pública....
 
Prólogo. Nuevas posibilidades en la revisión de los discursos educativos. Ju...
Prólogo. Nuevas posibilidades en la revisión de los discursos educativos. Ju...Prólogo. Nuevas posibilidades en la revisión de los discursos educativos. Ju...
Prólogo. Nuevas posibilidades en la revisión de los discursos educativos. Ju...
 
Análisis de Libros de Texto (Enero 2017)
Análisis de Libros de Texto (Enero 2017)Análisis de Libros de Texto (Enero 2017)
Análisis de Libros de Texto (Enero 2017)
 
Red pública, red privada: lo que las hace distintas - Jurjo Torres Santomé
Red pública, red privada: lo que las hace distintas - Jurjo Torres SantoméRed pública, red privada: lo que las hace distintas - Jurjo Torres Santomé
Red pública, red privada: lo que las hace distintas - Jurjo Torres Santomé
 
«(Previsibles) consecuencias educativas y sociales de la ley orgánica de cal...
«(Previsibles) consecuencias educativas y sociales de la ley orgánica de cal...«(Previsibles) consecuencias educativas y sociales de la ley orgánica de cal...
«(Previsibles) consecuencias educativas y sociales de la ley orgánica de cal...
 
"Mercado y escuela" Jurjo Torres Santomé
"Mercado y escuela" Jurjo Torres Santomé "Mercado y escuela" Jurjo Torres Santomé
"Mercado y escuela" Jurjo Torres Santomé
 
Neoliberalismo y tergiversación de las finalidades de los sistemas educativos...
Neoliberalismo y tergiversación de las finalidades de los sistemas educativos...Neoliberalismo y tergiversación de las finalidades de los sistemas educativos...
Neoliberalismo y tergiversación de las finalidades de los sistemas educativos...
 
La educación rural en el marco de la revolución en la estructura de las pob...
La educación rural en el marco de la revolución en la estructura de las pob...La educación rural en el marco de la revolución en la estructura de las pob...
La educación rural en el marco de la revolución en la estructura de las pob...
 
Selección de contenidos en el currículo básico - Jurjo Torres Santomé, 2005
Selección de contenidos en el currículo básico -  Jurjo Torres Santomé, 2005Selección de contenidos en el currículo básico -  Jurjo Torres Santomé, 2005
Selección de contenidos en el currículo básico - Jurjo Torres Santomé, 2005
 
The presence of different cultures in schools: possibilities of dialogue and ...
The presence of different cultures in schools: possibilities of dialogue and ...The presence of different cultures in schools: possibilities of dialogue and ...
The presence of different cultures in schools: possibilities of dialogue and ...
 

Política educativa, multiculturalismo e práticas culturais democráticas nas salas de aula

  • 1. Revista Brasileira de Educação 5 Elaborar uma proposta curricular obriga a par- ticipar da reflexão sobre que tipo de cidadãos e ci- dadãs e de sociedade queremos construir. Essa é, sem dúvida, uma das questões mais importantes que cabe colocar no âmbito da educação e que nos obriga a realizar uma série de tarefas prévias destinadas a ana- lisar o presente, averiguar como são hoje nossas so- ciedades, que problemas aparecem como mais urgen- tes, quais são as causas das situações injustas que detectamos. Esse tipo de informação a respeito do mundo em que vivemos é vital para qualquer professora ou professor. Nas salas de aula, uma das tarefas real- mente importantes que o professorado leva a cabo é oferecer ao alunado parcelas da realidade para sua análise e conhecimento; daí a urgência de se man- ter atento e fomentar um constante espírito crítico perante esse tipo de processos seletivos e escolhas com finalidade exemplificativa com que as institui- ções escolares operam. Ninguém desconhece que, para o coletivo docente, esse é um dever já compli- cado por si só e ao qual há ainda que se acrescen- tar todo um grande conglomerado de tarefas e ro- Política educativa, multiculturalismo e práticas culturais democráticas nas salas de aula Jurjo Torres Santomé Universidade de Coruña Tradução de Sonali Bertuol Trabalho apresentado na XIX Reunião Anual da ANPEd, Caxambu, setembro de 1996. tinas que são consubstanciais com a função didáti- ca nas salas de aula, com a criação de um ambien- te que estimule processos de ensino e aprendizagem. Poucos trabalhos profissionais precisam atender a tantos focos de atenção como o da docência. Desenvolver projetos curriculares nas salas de aula obriga a estar alerta a um sem-número de ques- tões: as tarefas que cada um dos meninos e meni- nas executam, o acompanhamento de suas realiza- ções, do que sabem e do que ainda é ininteligível para eles; detectar suas percepções da realidade, valorações, expectativas e pré-julgamentos; a apre- ciação de seu desenvolvimento social e emocional e das situações problemáticas que afetam suas inte- rações sociais. O professorado precisa se dedicar a esse tipo de investigação nas salas de aula e, ao mes- mo tempo, tem de destinar tempo a leituras, semi- nários de atualização constante, trabalho em equi- pe de planejamento, acompanhamento e avaliação dos projetos curriculares com os quais está neces- sariamente comprometido. Mas, além de tudo isso, tem de estar muito bem informado sobre questões culturais, trabalhis-
  • 2. 6 Jan/Fev/Mar/Abr 1997 Nº 4 tas, econômicas e políticas que são imprescindíveis para alcançar uma compreensão adequada da co- munidade e do mundo em que vive. Perante tal acúmulo de deveres, o professora- do tende a ser seletivo em seus focos de atenção. Todavia, nos últimos anos, a forte pressão dos dis- cursos e políticas tecnocráticas estão tratando de convencê-lo de que seu trabalho profissional é ape- nas uma questão de aprender determinadas técnicas didáticas, tais como realizar programações, adap- tar projetos curriculares elaborados pelas editoras de livros-texto até fazê-los parecer projetos curri- culares de centro educacional e de sala de aula, ela- borar controles ou provas de avaliação para detec- tar o rendimento de cada um dos meninos e meni- nas da classe, estabelecer uma série de normas dis- ciplinares etc. Um constante bombardeio de propaganda ideológica neoliberal e decisões políticas conserva- doras pretendem menosprezar a função de inte- lectuais que compete às professoras e professores exercer. Essa negligência para com seu papel como intelectuais é favorecida (ainda que muitas vezes não seja essa a pretensão) por certos discursos psi- cológicos e didáticos que, com a idéia de apresen- tar novas conceitualizações, modelos ou metodo- logias, recorrem à estréia contínua de novos jar- gões, que para nada servem além de desviar a aten- ção do professorado para questões pouco relevan- tes e fazer as autenticamente importantes parece- rem fora de moda. Vivemos momentos de mudança, profundas transformações sociais estão em curso na maioria das sociedades, em grande medida como conseqüên- cia das inovações e transformações nas estruturas produtivas e de consumo. Idéias e utopias que até há pouco orientavam e serviam de eixo vertebrador a discursos e práticas libertadoras vêm sendo rifa- das quase sem que se disponha de argumentos vá- lidos para isso. Estes são momentos de perplexida- de e é também agora que a reflexão e o debate co- letivo se tornam inevitáveis. Urge recuperar para a função docente a con- cepção gramsciana de intelectual, neste momento em que os discursos e epistemologias dominantes pretendem recortar seu papel até deixá-la reduzida a dimensões técnicas e de gestão burocrática. Intelectual é alguém dotado de faculdades para representar, organizar e articular mensagens, visões da realidade, atitudes, filosofias e opiniões de, assim como para, um determinado público (Said, 1994, p. 11). O exercício da função de intelectual pode ser feito, logicamente, em diversas direções; ou com o objetivo de tornar razoável, natural, inevitável e neu- tro os interesses dos grupos que estão em situações vantajosas, em posições hegemônicas, ou para des- montar essas metas particulares e parciais. Aqueles que colaboram na primeira modalidade de trabalho intelectual costumam receber a denominação de in- telectuais hegemônicos, em conformidade com o tra- balho de vigilância e legitimação das atuações dos grupos hegemônicos de poder. Ao contrário, intelectuais contra-hegemônicos são aquelas pessoas que manifestam um maior com- promisso com as classes e grupos sociais mais des- favorecidos e cooperam na detecção de práticas, metodologias e discursos que funcionam tratando de facilitar e justificar sua dominação e opressão. São também aqueles que contribuem para confor- mar práticas libertadoras, a serviço dos coletivos sociais explorados e marginalizados, estimulando entre estes a análise de seus atuais modos e condi- ções de vida e provocando uma tomada de consciên- cia capaz de permitir que elaborem e coloquem em ação respostas para fazer frente à sua subjugação. Tais intelectuais possuem uma responsabilidade es- pecial como criadores e fomentadores de situações de deliberação e debate democrático no seio dos grupos sociais mais desfavorecidos, com os quais compartilham sua vida e ideais. Não é aceitável renunciar a pôr a serviço des- ses grupos todas as habilidades e conhecimentos que os professores e professoras foram construindo co- mo intelectuais. O exercício da crítica e da investi- gação é algo que define sua formação e a função de seu trabalho. Nessa direção, mecanismos com mai- or poder democratizador como a investigação-ação democrática e crítica são fundamentais para levar Jurjo Torres Santomé
  • 3. Revista Brasileira de Educação 7 a cabo a revisão das práticas e discursos que, tanto no sistema educativo como em outras esferas so- ciais, não costumam levar em consideração a his- tória, vozes e interesses de grupos sociais silencia- dos como as mulheres, a classe trabalhadora, me- ninos, meninas e adolescentes, as pessoas idosas, os povos, etnias e nações oprimidas. O fato de realizarem esse trabalho de debate e análise não equivale a serem os únicos responsá- veis por tal análise e pela formulação ou sugestão de linhas de ação; muito pelo contrário. É trabalho de intelectuais ir favorecendo que um número cada vez maior de pessoas possa exercer essa tarefa de análise e reflexão a respeito do que aconteceu e está acontecendo e sobre qual pode ser o futuro. Com- partilhar e divulgar esse trabalho entre os membros desses coletivos sociais mais desfavorecidos, poten- cializar suas capacidades de reflexão, análise e ação é tarefa indissociável da função de intelectuais. Convém, no entanto, que sejam suficientemen- te precavidos para não cair em simplistas categori- zações dualistas do tipo “eles”/“nós”, “bons”/ “maus”; o que levaria implicitamente a construir categorias pouco sérias e reais de “inimigos”/“ami- gos”. A complexidade da vida humana é algo que algumas óticas pós-modernas estão ajudando a des- velar e a que se deve prestar atenção. Assim, já faz anos que os movimentos feministas deixaram claro que é possível atuar ao mesmo tempo como opres- sores e oprimidos. É o caso, por exemplo, de ho- mens da classe trabalhadora que sofrem situações de dominação e opressão em seus lugares de traba- lho fora do lar, mas que atuam como opressores sobre as mulheres no âmbito familiar. Nesse sentido, o conceito de “assincronismo” pode vir a ser de grande utilidade. Nem sempre os diferentes grupos e movimentos sociais coincidem entre si em suas reivindicações e/ou nas prioridades pelas quais se organizar para combater formas e situações de dominação. Como destaca Cameron McCarthy (1994, p. 108), existem descontinuidades nas dimensões em torno às quais se agrupar e co- laborar, “que derivam do choque de interesses, ne- cessidades e desejos assincrônicos, que separam en- tre si diversos setores de grupos minoritários e os atores pertencentes a minorias dos da maioria”. Essa dificuldade para coincidir na definição e concreção do que se considera que é prioritário atender é também sublinhada por Michel Foucault (1979) quando indica que não existe um único eixo em torno do qual todas as relações de poder e dominação, luta e resistência, possam se agrupar, “mas antes uma produção multiforme de relações de dominação que são parcialmente integráveis em estratégias de conjunto” (p. 171). Essas lutas sociais descontínuas costumam acontecer, por sua vez, em âmbitos espaciais locais e regionais, mais do que em âmbitos muito maiores que requerem modali- dades de coordenação mais complexas. Existem múltiplos espaços, formas e momen- tos nos quais diferentes grupos humanos se compro- metem com questões de liberdade, dignidade, jus- tiça, realização pessoal etc. O exercício da crítica, típico do trabalho inte- lectual, tem de aprender a levar em consideração essa dinâmica de contradições, tensões e assincronias que se produzem na vida que tem lugar nas instituições escolares, no seio familiar, nos locais de trabalho, espaços de ócio, instituições culturais e políticas. Des- sa maneira, é possível que seja mais fácil detectar e fazer frente às situações de injustiça e dominação que sofrem os coletivos sociais com menor poder. Recuperar para o coletivo docente uma certa capacidade de “agitação social”, submetendo-se sempre à crítica por parte dos coletivos com os quais se encontra comprometido, não equivale a convertê- lo em líder e dirigente nem, evidentemente, nas úni- cas pessoas capacitadas para orientar ações, mas antes em promotoras, animadoras das vozes dos grupos silenciados e com menor poder. Trata-se de contribuir para que os que integram esses coletivos falem; que reflitam sobre sua situação e sejam eles que decidam e se comprometam com a direção de alternativas de atuação. Creio que esteja patente uma coincidência do avanço da direita política com um momento de forte crise nos setores intelectuais, que parecem domina- dos por um certo “pânico” em refletir em voz alta. Política educativa, multiculturalismo e práticas culturais democráticas nas salas de aula
  • 4. 8 Jan/Fev/Mar/Abr 1997 Nº 4 É como se o medo se tivesse apoderado das mentes das pessoas que têm obrigação moral, espaços e pos- sibilidades de refletir sobre o momento atual. Tem- se a sensação de que se quer renunciar a criar con- dições para fomentar maiores cotas de debate e de análise; em resumo, é como se existisse uma rendi- ção nos setores intelectuais não hegemônicos, quan- do não também uma certa sensação, que é pior, de se passar para o outro lado, contribuindo para con- formar discursos legitimadores dos atuais modos e condições de exploração. Não ajudar expressamen- te a criar discursos libertadores é uma forma de colaboracionismo oculto com o poder estabelecido. As professoras e professores intelectuais, a ser- viço da democracia e da justiça social, têm de con- tribuir para o estabelecimento de condições para que, nos centros escolares e nas salas de aula, o alu- nado possa chegar a descobrir o que se esconde por trás dos véus do “saber oficial”; que aspectos não estão sendo levados em consideração, de que ma- neira pode estar manipulada e distorcida a informa- ção com que os meninos e meninas são bombarde- ados pelos meios de comunicação de massa e demais fontes informativas com as quais entram e, muitas vezes, são forçados a entrar em contato. Ajudar a desmascarar os pré-julgamentos e estereótipos do conhecimento no qual se apóiam as práticas e discursos classistas, racistas e sexistas é tarefa vinculada à função das professoras e profes- sores como intelectuais. É preciso favorecer que as pessoas possam discutir a aparição de imagens, dis- cursos e narrativas, que nada mais pretendem a não ser fechar as portas ao futuro, impedir, a um im- portante número de coletivos sociais, de ser. A educação, uma dimensão da política cultural da sociedade As questões curriculares, conseqüentemente, devem ser consideradas como mais uma dimensão de um projeto de maior envergadura, como é a po- lítica cultural de cada sociedade. Toda proposta curricular implica fazer opções entre as distintas parcelas da realidade, supõe uma seleção cultural que se oferece às novas gerações para facilitar sua socialização, para ajudá-las a compreender o mun- do que as rodeia, conhecer sua história, promover valores e utopias. Assim, pois, surge já uma primeira questão: quem são as pessoas que vão participar dessa tomada de decisões a respeito de tal seleção de conteúdos, e por quê? Todas as investigações centradas nos conteú- dos que vêm sendo trabalhados na maioria dos cen- tros de ensino concluem que existe um forte viés nas opções que são promovidas como “exemplifican- tes”, que são silenciadas realidades daqueles que não estão vinculados a expedientes de poder polí- tico, econômico, cultural e religioso, isto é, das et- nias e grupos sociais desfavorecidos e marginaliza- dos (das mulheres, da classe trabalhadora, das pes- soas de terceira idade, das pessoas pobres, desvali- das, de homossexuais e lésbicas, do mundo rural e marinheiro, dos meninos, meninas e adolescentes etc.) e do Terceiro Mundo. Esse silêncio de coleti- vos sociais importantes pode ser constatado de mo- do especial nos materiais didáticos que fecham as propostas curriculares, os livros-texto. Mas quando se reflete sobre os porquês des- sa censura e, até mesmo, manipulação da informa- ção presentes em grande parte dos materiais cur- riculares que circulam nas instituições escolares, apenas encontramos explicações suficientemente potentes quando expandimos o olhar para fora das paredes das salas de aula e analisamos o que está acontecendo nas demais esferas dessa socieda- de da qual fazem parte. A estrutura de classes e grupos sociais, os mo- delos produtivos e de comercialização, de acesso, divisão e organização do trabalho, os processos de acumulação de capital, as políticas econômicas, tra- balhistas, sociais e culturais são outros tantos fo- cos de atenção nos quais encontram-se as chaves potentes para entender o que está acontecendo na comunidade e, portanto, os motivos que explicam um sem-número de comportamentos grupais e in- dividuais. É rastreando tramas semelhantes que che- garemos a discernir o sentido da maioria das tare- fas escolares que ocupam alunos e alunas, assim Jurjo Torres Santomé
  • 5. Revista Brasileira de Educação 9 como suas reações diante delas. É também nessa rede, da qual faz parte o sistema educativo, que se poderão explicar as atividades, rotinas e tarefas do professorado. Assim, será mais factível, como é ur- gente neste momento, elaborar linhas de ação com probabilidades de incidir no curso dessa realidade e condicionar o curso atual da história. A desigualdade na distribuição de recursos educativos e culturais, sinal de sociedades injustas Chama a atenção que o famoso lema em tor- no do qual se organiza a Revolução Francesa, “li- berdade, igualdade e fraternidade”, que os cidadãos e cidadãs democratas convertem num dos objetivos e premissas sobre os quais construir e governar as sociedades modernas, pareça hoje um tanto anti- quado e irreal. Especialmente se levarmos em con- ta que uma das idéias básicas sobre as quais se as- senta a direita política é a da crença na “desigual- dade” entre as pessoas. Um modelo de sociedade conservador, liberal e neoliberal, como o que a estas alturas da história vem se impondo na maioria dos países tecnologi- camente mais desenvolvidos, que se assenta em pi- lares como a defesa do “livre mercado”, precisa pro- pagar filosofias e concepções que apresentem o ser humano isolado socialmente. Dessa maneira, todas as análises levam em consideração unicamente o in- divíduo com capacidade para se autoformar, autode- terminar, sem que nada nem ninguém de fora pos- sa influenciar ou condicionar suas possibilidades ina- tas. Todos seus êxitos e, logicamente, fracassos se- rão de sua responsabilidade; nada nem ninguém vai condicioná-lo. Todas as maneiras de pensar, a to- mada de decisões sociopolíticas serão levadas a ter- mo tendo-se em consideração perspectivas pessoais, individuais, não coletivas. Os direitos que se formu- lam e atendem acabam sendo pensados de modo in- dividualista, do mesmo modo que as análises que são realizadas sobre a realidade. A aposta e a defesa de filosofias individualis- tas, da competitividade e esforço pessoal são aspec- tos indispensáveis para o bom êxito dos modelos econômicos capitalistas e, agora, da globalização dos mercados. Essa ideologia obriga a assumir que as pessoas não precisam se agrupar em função de condições de vida ou valores compartilhados; não se contempla nada com capacidade suficiente para circunscrever cada indivíduo como membro de um grupo; não se deixam ver estratégias para vertebrar modos de atuação mais coletivos com possibilida- des de transformar modelos organizativos e estru- turas sociais que ocasionam situações de injustiça a grupos sociais concretos e, logicamente, a cada um de seus membros. Por outro lado, como conseqüência das polí- ticas ultraliberais, insiste-se mais em mostrar as pes- soas como consumidoras e em prestar atenção a seus direitos de consumir do que à sua condição de cidadãs e cidadãos; isso acarreta uma redução de suas obrigações e deveres como seres humanos e um menoscabo de suas possibilidades de ação e inter- venção. A dimensão consumista implica mover-se apenas num âmbito que permite realizar escolhas entre o que nos oferecem, não no da definição de suas necessidades e da realidade. Restringem-se as ocasiões e níveis de autonomia para as pessoas cri- arem modelos e orientações sobre como pode ou deve ser sua comunidade; minimizam-se os espaços e oportunidades de participar do estabelecimento de direções de desenvolvimento para a sociedade a que se pertence. As novas sociedades de consumo estão tratan- do de transformar as instituições escolares subme- tendo-as às mesmas leis que regem o mercado de Consumo (Whitty, Edwards e Gewirtz, 1993). Pre- tende-se que as ofertas que os centros docentes rea- lizem sejam feitas para satisfazer as demandas da- queles que têm possibilidades de formulá-las, os grupos empresariais. Nesse sentido, não podemos deixar de lado a existência de um mercado em que a manipulação da informação desempenha um im- portante papel. A informação é na atualidade um dos poderes mais decisivos, daí o grande interesse e a luta por obter o controle das comunicações, por possuir jornais, emissoras de rádio e televisão, re- Política educativa, multiculturalismo e práticas culturais democráticas nas salas de aula
  • 6. 10 Jan/Fev/Mar/Abr 1997 Nº 4 des informáticas etc. É sobre a base desse controle e manipulação da informação que podemos com- preender que tanto as famílias como o próprio alu- nado sintam maior urgência por determinados co- nhecimentos e habilidades que, afirma-se, facilitam o acesso a empregos e estão mais diretamente vin- culados a saídas para o trabalho, e, o que é pior, cheguem a considerar inúteis ou de escasso interesse conteúdos culturais e valores relacionados à com- preensão da realidade, da justiça, da solidariedade e democracia. O sistema educativo, portanto, aparece como algo a consumir, como a via para obter credenci- ais que, no futuro, facilitem entrar na demanda por trabalhos e salários, que permitam participar das escassas possibilidades de mobilidade social; não é concebido como um conjunto de instituições coad- juvantes na conquista de maiores cotas de justiça social, na luta contra a desigualdade e a opressão. Creio que um dos grandes perigos para nossas so- ciedades está na maneira como se obscurecem o sentido e a finalidade do sistema educativo. Não obstante, como aponta R. W. Connel (1993), temos três razões para considerar a exis- tência de um forte nexo de união entre os sistemas educativos e a conquista de maiores níveis de jus- tiça social. 1. O sistema educativo é um dos maiores ati- vos públicos. É uma das maiores empresas em qual- quer economia moderna. Para nos convencermos de que é uma das empresas mais importantes, basta pensarmos nas cifras bilionárias que manejam os ministérios da educação e da ciência da maioria dos países. Dado que se trata de uma empresa pública, é lógico perguntar quem obtém a maioria dos be- nefícios. As análises quantitativas revelam rapida- mente uma forte desigualdade nessa distribuição de recursos e benefícios. Quando nos detemos em com- provar as formas que assume a distribuição dos alu- nos no sistema educativo, as formas piramidais se impõem (há muitas alunas e alunos nos níveis ini- ciais e, à medida que ascendemos no sistema edu- cativo, vamos encontrando cada vez menos). Os piores resultados, já o sabemos, são dos meninos e meninas das classes trabalhadores, da etnia cigana, dos núcleos rurais mais desfavorecidos etc. 2. O sistema educativo, atualmente, não ape- nas é um dos principais ativos públicos, como tam- bém é previsível que o seja ainda mais no futuro. Convém ter presente que o conhecimento especia- lizado tornou-se mais um dos componentes do sis- tema de produção e comercialização. Atualmente, é no âmbito do sistema educativo que se dão as principais condições para a investi- gação e a promoção de inovações tecnológicas. Isso se comprova facilmente quando vemos, por exem- plo, os fortes vínculos que se começaram a estabe- lecer entre o mundo empresarial e as universidades. Viver numa sociedade democrática implica que os fundos públicos redundem em benefício de todas as pessoas e não somente de algumas poucas; signi- fica que, nessas investigações custeadas com dinheiro público, os distintos grupos sociais devem ter parti- cipação, especialmente no estabelecimento de linhas prioritárias e urgentes de investigação; em outras palavras, os diferentes grupos e coletivos sociais têm de dispor de canais para participar da definição dos problemas atuais e da determinação de quais den- tre eles urge resolver de maneira mais peremptória. Não é aceitável que todo o sistema público educati- vo se mova apenas ao ritmo e na direção que os gru- pos sociais com maior poder econômico e político decidem. Uma boa prova dessa disfuncionalidade está no fato de que a investigação de que os grupos empresariais privados necessitam está sendo levada a cabo, em grande parte, pelas universidades públi- cas e institutos de pesquisa financiados com fundos públicos. Esse conhecimento que os sistemas educativos constroem e distribuem não apenas desempenha um papel importante na melhoria da produção e na expansão de mercados, mas também na estratifica- ção social e, portanto, na manutenção de hierarqui- as sociais. Não esqueçamos que vivemos num mo- delo de sociedade no qual o credencialismo é uma de suas marcas idiossincráticas. O número de títu- los profissionais alcançados e o prestígio da insti- tuição que os expede decidem em grande medida as Jurjo Torres Santomé
  • 7. Revista Brasileira de Educação 11 possibilidades de trabalho e a circunscrição a uma determinada classe e coletivo social. Nesse sentido, é curioso como está sendo pro- duzindo um maior crescimento da iniciativa priva- da em todos os níveis do sistema educativo (desde a educação infantil e primária até a própria univer- sidade), mas com dinheiro público. Desde a déca- da de 70, e em especial na de 80, a parcela orçamen- tária do Estado e das comunidades autônomas des- tinada às instituições escolares privadas não pára de crescer. Os sistemas educativos distribuem oportuni- dades de participação e consumo nos atuais siste- mas produtivos, bem como moldam os possíveis modelos de sociedade do futuro. Preocupar-se com uma maior democratização, participação e eqüida- de para o futuro significa construir a partir de hoje instituições escolares que preparem esses pilares de apoio. 3. A terceira razão para se preocupar com o sistema educativo, segundo R. W. Connel, estaria na concepção do que é educar que essa sociedade concreta à qual nos refiramos defende em cada mo- mento histórico. Educar é uma tarefa moral, uma vez que im- plica levar em consideração dimensões morais. O ensino e a aprendizagem, como práticas sociais, sempre implicam questões acerca de propósitos e critérios para a ação (sejam ou não compartilha- dos), decisões sobre a aplicação de recursos (inclu- indo autoridade e conhecimento) e acerca de res- ponsabilidades e conseqüências dessas ações. Essas implicações nunca podem ser eludidas, não é pos- sível evitar esse tipo de questão. O fato de que não estejamos conscientes delas não significa que essas dimensões morais tenham sido relegadas; pelo con- trário, tal como demonstram os estudos sobre o currículo oculto (Torres Santomé, 1996), não é di- fícil que, inclusive por não lhes prestar uma aten- ção explícita, estejamos participando, colaboran- do, na perpetuação de comportamentos morais que de maneira consciente repudiamos (autorita- rismo, acriticismo, egoísmo, individualismo, falta de solidariedade, fanatismo, dogmatismo etc.). No entanto, toda uma grande cultura conser- vadora pretende reduzir essas questões ao silêncio, criando estratégias e recursos didáticos que incor- poram esses valores previamente decididos pelos grupos de poder mais conservadores e, ao mesmo tempo, tratando de despistar o professorado instan- do-o a que se ocupe, por exemplo, de tarefas que o impedem de levar em consideração esse tipo de ele- mentos, tal como vem sucedendo nos últimos anos. Ele é forçado a dedicar cada vez mais tempo a ques- tões burocráticas; reclamam dele esboços de proje- tos curriculares de centro educacional e de sala de aula, mas sem estabelecer condições que facilitem esse trabalho; pretende-se convencê-lo de que o mais importante é seqüencializar conteúdos já definidos e, o que é mais curioso, já hierarquizados pelos ma- teriais curriculares mais dominantes, os livros-texto; perseguem-no com questões de disciplina e estraté- gias para “acalmar os estudantes”; sugerem-lhe que faça mais e mais avaliações e controles; enviam-lhe abundante legislação com terminologias constante- mente renovadas etc. Para a reprodução das atuais ideologias indi- vidualistas e meritocráticas, é preciso que cada uma das pessoas que compartilham um determinado es- paço territorial seja convencida de tais valores, para o qual os que detêm o poder se vêem na necessida- de de gerar uma cultura que sirva para coesioná-las e facilitar um grau importante de estabilidade so- cial. Daí a pretensão que caracteriza os grupos he- gemônicos conservadores e liberais de estabelecer e controlar conteúdos culturais obrigatórios que sirvam para reforçar a ideologia dominante. A bus- ca de um “cânone” cultural para oferecer como le- gítimo, sem possibilidades de submeter à discussão e crítica, converte-se em estratégia indispensável para a perpetuação das condições estruturais que reforçam seu poder e hegemonia. Portanto, falar e intervir no mundo da educa- ção implica inevitavelmente considerar dimensões de justiça social. No momento de destinar recursos ao âmbito educativo (dinheiro, pessoal, edifícios, recursos di- dáticos etc.), a comunidade e aqueles que, em cada Política educativa, multiculturalismo e práticas culturais democráticas nas salas de aula
  • 8. 12 Jan/Fev/Mar/Abr 1997 Nº 4 momento, têm responsabilidades políticas enfren- tam-se em dilemas de partilha e distribuição, na criação de condições que influirão decisivamente para tornar realidade ou não o ideal democrático da igualdade de oportunidades. É óbvio que uma sociedade que distribui mal seus recursos está favorecendo mais a determinados coletivos sociais do que a outros. As análises que vêm sendo efetuadas num nú- mero muito importante de países não cessam de colocar em relevo que alguns grupos sociais rece- bem mais apoio do que outros. As denúncias de imperialismo e colonização, classismo, racismo e sexismo no âmbito educativo são contínuas. No Estado espanhol é urgente e obrigatório enfatizar concretamente a marginalização racista que um po- vo como o cigano está sofrendo e suportando. Esse é um tema que apenas começou a dar passos, com exceção de alguns coletivos docentes que têm um contato mais direto e cotidiano com pessoas dessa etnia. Na prática, o mundo oficial, da administra- ção, continua sem prestar-lhe a devida atenção. Dimensões da discriminação e do racismo na educação Vivemos numa sociedade na qual, continua- mente, um enorme volume de publicações e emis- sões dos meios de comunicação de massa nos bom- bardeiam tratando de nos informar e de nos fazer participar da realidade; entre suas finalidades está a de levar suas consumidoras e consumidores a in- terpretar de uma maneira “correta” tudo que acon- tece. É através da imprensa, do rádio e da televisão que nos inteiramos de catástrofes, de fatos e acon- tecimentos cotidianos, de façanhas, descobrimen- tos etc., mas sempre de uma maneira seletiva. Os meios de comunicação de massa “filtram as reali- dades” de acordo com os interesses dos que detêm sua propriedade e controle. Nessa “realidade construída”, os atores e atri- zes são desenhados seletivamente, de tal forma que as minorias e grupos sociais sem poder acabam sem- pre levando a pior parte. As tentativas de silenciar “o diferente” e minoritário, ou mesmo optar por convertê-lo em algo disparatado podem ser facil- mente constatadas. Mas nos casos em que essas rea- lidades não podem ser escondidas, a opção mais usual é reelaborá-las, “reinterpretá-las” para apre- sentá-los como culpáveis pelos seus próprios pro- blemas e até daqueles que ocasionam a outros gru- pos sociais majoritários e/ou com maior poder. Tra- tar de demonstrar, primeiramente, que suas condu- tas são “inadequadas” e, depois, procurar explicar que são conseqüência de condicionamentos inatos (sobre os quais os seres humanos não têm possibi- lidade de controle), de aspirações inadequadas às suas capacidades naturais ou são fruto de uma von- tade de continuar aferrando-se a alguma de suas tradições “defasadas” etc. Numa palavra, recorre- se a estratégias de “naturalização” das situações de injustiça, o que na atualidade é favorecido pela he- gemonia das ideologias do individualismo e que, obviamente, afeta também a maneira de realizar muitas das análises sobre o que acontece no siste- ma escolar. Assim, quando se fala do fracasso e do êxito escolar, de problemas disciplinares nas salas de aula, do que o alunado sabe ou desconhece, a unidade de análise é a pessoa considerada individualmente, e o discurso utilizado tratará também de deixar cla- ras as responsabilidades pessoais, individuais. Um exemplo disso, encontramos no difundido livro de Allan Bloom, The closing of the american mind (1987), em que, a propósito do sistema político dos Estados Unidos da América, destaca que “classe social, raça, religião, origem nacional ou cultura desaparecem ou chegam a ser algo sem interesse quando são contemplados à luz dos direitos natu- rais, que outorgam aos seres humanos interesses comuns e os convertem realmente em irmãos” (p. 27). Frase que contém implicitamente uma aposta na meritocracia como filosofia de vida. De modo semelhante, podemos explicar a atualidade de nu- merosas investigações que pretendem medir as ca- pacidades mentais das pessoas, por exemplo, o quo- ciente intelectual, para responsabilizá-las de modo individual pelos seus feitos. Jurjo Torres Santomé
  • 9. Revista Brasileira de Educação 13 O êxito e as possibilidades de promoção são vistos como atos de competitividade entre pessoas que, mediante o esforço individual e suas capacida- des naturais inatas, alcançam méritos com os quais concorrer e demandar acesso a privilégios sociais de maneira também individual. Por outro lado, não convém cair em simplifi- cações no momento de analisar e tratar de questões de racismo e de discriminação, já que nem todas as pessoas que compartilham alguma das marcas idios- sincráticas de uma raça ou etnia sem poder sofre- rão com a mesma intensidade as situações de opres- são. Pode acontecer, até mesmo, que alguns dos membros de um grupo social marginalizado che- guem a ser muito respeitados e aceitos pelos gru- pos dominantes. Não poderemos compreender bem os proble- mas raciais se não contemplarmos as dinâmicas de classe e gênero que interagem em seu interior. É óbvio, por exemplo, que ser uma mulher cigana dedicada a tarefas domésticas e familiares é diferen- te de ser uma mulher cigana que trabalha e triunfa no mundo do espetáculo, da televisão ou do cine- ma; ou ser um homem cigano dedicado a catar pa- pelão de ser um ancião patriarca ou desempenhar outro trabalho artístico ou profissional de maior prestígio. Em nossas análises e estratégias de inter- venção em relação a qualquer coletivo social, é pre- ciso levar em consideração também essas variáveis. As pessoas constroem esquemas conceituais através dos quais sua experiência cobra sentido, analisam e valoram as situações nas quais se vêem envolvi- das, em resumo, percebem a realidade. Por conse- guinte, qualquer evento no qual se vejam envolvi- das terá um significado específico dependendo da raça a que pertençam, da classe social, do gênero, da idade, do território em que vivem etc. Tudo isso obriga a que, nas propostas de trabalho para as salas de aula e centros de ensino, se preste atenção a tais dimensões no momento de ponderar o signi- ficado ou relevância das tarefas que se planejam e se executam. Neste ponto, encontramos já duas implicações para o trabalho nas aulas: 1. Tudo o que se programe como tarefa esco- lar, como proposta de trabalho curricular, tem de tornar visível suas conexões com as experiências cotidianas e significativas para o coletivo estudan- til ao qual é oferecido. É necessário que se permita que os problemas, preocupações, aspirações e inte- resses do alunado sejam acolhidos. 2. Toda proposta curricular tem de estar apoia- da na cultura de procedência do alunado. E quan- do falamos de cultura de origem não é como con- ceito abstrato sem maior significado, mas sim esta- mos nos referindo aos “diferentes e dinâmicos esti- los de vida de sociedades e grupos humanos e às redes de significados que as pessoas e grupos usam para construir seus significados e comunicar-se entre si” (Hall, 1992, p. 10). Conteúdos culturais dos currículos e reconstrução de identidades sociais O problema das escolas tradicionais, apesar da forte ênfase nos conteúdos culturais apresentados em pacotes disciplinares, em forma de matérias, é que não conseguem fazer que o alunado seja capaz de ver esses conteúdos como parte de seu próprio mundo. A física, a química, a história, a gramáti- ca, a educação física, a matemática são dificilmen- te visíveis; conseqüentemente, o que se trabalha nas salas de aulas, para a maioria de nossos estudan- tes, existe apenas como “estratégia” para enfastiá- los, para que possam passar de curso a curso, com a esperança de obter um título. A escola aparece como o reino da artificialidade, um espaço em que regem determinadas normas, fala-se de uma manei- ra peculiar e onde é necessário realizar determina- das rotinas, que servem somente para poder obter felicitações ou sanções por parte do professorado e mesmo de suas próprias famílias, mas a coisa só vai até aí. É muito difícil estabelecer laços de cone- xão entre os blocos de conteúdo dos quais se fala nas aulas, entre as tarefas escolares e a vida real, os problemas e realidades mais cotidianas. Se há uma crítica comum e reiterada ao lon- go da história das instituições educativas é a de sele- Política educativa, multiculturalismo e práticas culturais democráticas nas salas de aula
  • 10. 14 Jan/Fev/Mar/Abr 1997 Nº 4 cionar, organizar e trabalhar com conteúdos culturais pouco relevantes, de forma nada motivadora para o alunado e, portanto, perdendo o contato com a realidade em que se situam tais atividades docentes. As situações e problemas da vida diária, as preocupa- ções pessoais, ficam fora das paredes das salas de aulas e dos centros de ensino em numerosas ocasiões. Não é raro que o currículo tradicional acabe mostrando uma notável semelhança com alguns jo- gos de perguntas e respostas sobre assuntos trivi- ais ou concursos de televisão de cunho nominalista. Competições nas quais, para obter êxito, basta ser capaz de recordar pequenos fragmentos de informa- ção sem maior aprofundamento e, o que é mais gra- ve, sem a devida compreensão dos conteúdos que são verbalizados. Apenas é preciso saber aparentar que se entende aquilo que se pronuncia, embora a realidade seja outra. Educar equivale a socializar os alunos e alu- nas, torná-los participantes do legado cultural da sociedade da qual são membros e dos principais objetivos, problemas e peculiaridades do resto da humanidade. A compreensão e a reflexão a respei- to do que se trabalha, é óbvio dizer, é imprescindí- vel. Mas, do mesmo modo, é indispensável ter em conta que contribuir para uma compreensão críti- ca da realidade obriga a assumir que quase todas as matérias e temas tem dimensões controversas, questões sem resolver. Essas perspectivas conflitivas existem paralelamente às diferentes opiniões, valo- res, prioridades e interesses patentes e ocultos em toda a comunidade. Isso pode afetar questões como as seguintes: > a seleção e/ou definição de um proble- ma a ser resolvido; > a análise de suas causas, prognóstico e conseqüências etc.; > as ações, soluções e decisões que se pro- pugnam; > por quem, quando, como, onde serão tomadas essas decisões corretoras ou resolu- tivas etc. Tentar preservar o alunado das dimensões con- trovertidas da realidade equivale a introduzi-lo num limbo, desligá-lo do mundo real. Evidentemente, nessa tarefa, os recursos didá- ticos através dos quais se veiculam conteúdos cul- turais (livros-texto ou outro tipo de fontes de infor- mação: monografias científicas, revistas especiali- zadas, dicionários, documentários, vídeos, software etc.) desempenham um papel crucial. O valor e o rigor não será o mesmo para todos. Uma prova do que dissemos já encontramos no momento de pro- curar, nos livros-texto que circulam atualmente nas instituições escolares, a presença de coletivos intei- ros, como o povo cigano, e o que se diz deles. Cha- ma poderosamente a atenção a pobreza documen- tal e, o que é pior, a distorção e a manipulação in- formativa que caracterizam muitas redações que aparecem em tais livros-texto, o recurso ainda do- minante nos centros de ensino (Calvo Buezas, 1989; Torres Santomé, 1996a, 1996b). De qualquer maneira, não gostaria de modo algum de dar a impressão de que assumo que os estudantes e docentes aceitam sem mais nem me- nos tudo o que aparece nos livros-texto, sem opor resistências, reinterpretar, revisar ou alterar a in- formação ali contida. Alunas e alunos manifestam resistências, umas intencionadas e outras não, dian- te de seu conteúdo. Assim, vemos que algumas ve- zes reinterpretam informação que lhes é apresen- tada tendo em conta outras informações prévias que possuem ou experimentaram, outras vezes as rejeitam de múltiplas formas, por exemplo, man- tendo-se indiferentes. Repensando a aprendizagem escolar Em muitas ocasiões, está sendo esquecida a necessidade de reconsiderar a aprendizagem esco- lar levando em consideração de uma maneira ex- pressa o efeito das transformações estruturais que fragmentam e desorganizam radicalmente a expe- riência humana (Nixon et al., 1996, p. 29). Ultima- mente, a ênfase está sendo posta mais em aspectos economicistas e em considerações a partir de óticas Jurjo Torres Santomé
  • 11. Revista Brasileira de Educação 15 das políticas de mercado, enquanto as preocupações morais e éticas são relegadas. Desse modo, já nem o próprio fracasso escolar é considerado uma falha dos mecanismos de justiça social que toda sociedade democrática tem obrigatoriamente que se impor. Propor-se a estimular processos de ensino e aprendizagem, tal como é função das instituições docentes, obriga também a não deixar à margem as condições e filosofias subjacentes que caracterizam esses processos. É a partir das finalidades dos cen- tros de ensino, dos objetivos sociais de que estão in- cumbidos, que se deve questionar o porquê dos con- teúdos curriculares que são escolhidos ou promo- vidos, as formas adotadas para desenvolver os pro- cessos de aprendizagem e modelos organizativos coerentes com as dimensões anteriores. Aprender é desenvolver processos de com- preensão sobre a realidade que induzem à partici- pação nela e se originam a partir das tarefas esco- lares com as quais alunas e alunos se comprome- tem dia a dia na sala de aula. Aprender é partici- par num clima de sala de aula que incita quem ali participa a entrar em situações de diálogo e coo- peração, servindo-se dos recursos materiais ade- quados para chegar a maiores níveis de compreen- são das situações sociais nas quais participa e con- vive. Em tal concepção de aprendizagem, é óbvio que não é apenas às peculiaridades psicológicas de cada pessoa a que se deve recorrer para obter in- formação a respeito da qualidade dos processos de ensino e aprendizagem. São também, em meu mo- do de ver, mais decisivos os valores éticos e mo- rais, compartilhados de maneira reflexiva e explí- cita, que servem de guia para a criação e avaliação de ambientes educativos. É imprescindível ter presentes as dimensões morais nas tomadas de decisão sobre os modelos organizativos de sala de aula e de centros educacio- nais, assim como nos momentos de decidir a respei- to das características dos conteúdos e recursos di- dáticos a empregar, os papéis das figuras docentes e os comportamentos do alunado e, logicamente, das tarefas escolares e procedimentos de avaliação. Partindo-se da aceitação da importância des- sa dimensão filosófica e política no momento de pensar nas estratégias de ensino e aprendizagem, é indiscutível que o trabalho em equipe adquire um significado especial. Este deixa de ser contemplado como algo exclusivamente benéfico a título indivi- dual, não apenas pelas habilidades interpessoais e cognitivas que favorece, mas também pelas capa- cidades de socialização que ajuda a construir (ver Quadro I). São fomentados hábitos de respeito em relação às demais pessoas, de colaboração e de com- promisso com ideais coletivos e democráticos que vão além de considerações e sucessos individuais. Colabora-se na conformação de hábitos sociais de participação e crítica, imprescindíveis numa socie- dade democrática, justa e solidária. É com propostas de trabalho planejadas de maneira democrática entre estudantes e docentes, desenvolvidas e avaliadas em equipe, que se contri- bui também para valorar as diferenças pessoais e a diversidade no seio de cada comunidade, assim co- mo entre sociedades e países. Elas devem, por con- seguinte, tornar possível o desenvolvimento de ati- tudes de respeito, tolerância e cooperação. Conteúdos culturais nas salas de aula num mundo global e solidário As situações de ensino e aprendizagem nas si- tuações escolares devem facilitar a análise e a com- preensão do modo de funcionamento das estrutu- ras sociais que caracterizam e condicionam a vida dos cidadãos e cidadãs. Desse modo, serão assen- tadas as bases que os capacitarão a fazer frente e atuar em defesa de seus legítimos interesses. Para essa meta, é importante prestar atenção aos conteúdos culturais que serão promovidos nas salas de aula. Esses conteúdos, em teoria, referem- se ao conhecimento, habilidades e aptidões que as pessoas usam para construir e interpretar a vida social. Atualmente, seria muito difícil afirmar que as tarefas escolares com as quais enfrentamos o alu- nado na sala de aula capacitem-no para refletir e analisar criticamente a sociedade da qual faz par- te, preparem-no para intervir e participar dela de Política educativa, multiculturalismo e práticas culturais democráticas nas salas de aula
  • 12. 16 Jan/Fev/Mar/Abr 1997 Nº 4 maneira mais democrática, responsável e solidária. Dificilmente se pode constatar que os atuais processos de ensino e aprendizagem que têm lugar nos centros escolares sirvam para motivar de cara o alunado a se envolver mais ativamente em pro- cessos de transformação social, influir consciente- mente em processos tendentes a eliminar situações de opressão. Em muito poucas situações, as alunas e alunos são estimulados a examinar suas pressu- posições, valores, a natureza do conhecimento com o qual se defrontam dia a dia nas salas de aula, a ideologia subjacente às distintas formas de constru- ção e transmissão de conhecimento etc. Uma educação humanística, científica e técnica para uma sociedade pluralista precisa estimular e favorecer uma maior atenção aos produtos cultu- rais de cada sociedade, prestando atenção a suas condições e processos de construção e à forma como são percebidos e valorados, tanto dentro da própria comunidade quanto por outras sociedades. Isso obriga a levar em consideração os pontos de vista dos diferentes grupos culturais, etnias e classes so- ciais, assim como as variáveis de gênero e idade das pessoas. Dessa maneira, facilita-se que as propos- tas curriculares sejam coerentes com ideais sociais de justiça, respeito e democracia, assim como se Jurjo Torres Santomé QUADRO I Habilidades interpessoais e cognitivas no trabalho de equipe Aprende-se a: Através de: Aprende-se a: Facilitar a interação RESOLUÇÃO DE CONFLITOS Avaliar idéias Respeitar as pessoas NEGOCIAÇÃO Analisar Aceitar diferenças CRITICAR IDÉIAS Justificar opiniões Usar o humor adequadamente ESCUTAR ATENTAMENTE Resumir Participar com entusiasmo PEDIR AJUDA Comparar e contrastar Falar por turnos Aprofundar-se nas idéias de outros Mostrar discordâncias com cortesia Explorar idéias com maior rigor Manter o autocontrole Gerar alternativas Descrever sentimentos Elaborar idéias Prestar atenção a outras pessoas Reconhecer outras idéias/perspectivas Mostrar apreço e agradecimento Integrar idéias Compartilhar espaços e recursos Aplicar soluções Aprender a duvidar Esclarecer idéias Integrar-se com outras pessoas Rever níveis de compreensão Comunicar Verificar respostas Evitar se negar a escutar Perguntar para esclarecer Elogiar outras pessoas Estimar valor de idéias/soluções Utilizar os silêncios Desenvolver idéias de outras pessoas Estimular outras pessoas Estabelecer categorias Agradecer e pedir desculpas Descrever conceitos Nomear as pessoas Colocar questões Identificar Solicitar mais ampliação de idéias Manter e continuar uma tarefa Planejar Elaborado com base em Philip C. Abrami et al., 1995.
  • 13. Revista Brasileira de Educação 17 força a reconsideração de algumas das caracterís- ticas do que comumente se vem entendendo como qualidade do ensino. O reconhecimento da diversidade cultural e de sua importância político-moral são pontos de apoio de qualquer luta em favor de uma maior democra- tização e da garantia de maiores cotas de igualda- de social. Mas também é necessário o reconheci- mento da realidade híbrida e mestiça da imensa maioria dos povos, nações e estados do mundo. Prestar atenção, nas instituições escolares, a todas as culturas possíveis, passadas e atuais, a to- dos os países do planeta, coletivos sociais existen- tes, produções culturais e científicas, fatos relevan- tes, aspirações é sinceramente impossível. Portan- to, também de uma perspectiva antidiscriminação e de justiça social, é preciso estabelecer alguns cri- térios de seleção dos conteúdos culturais que po- dem ser incorporados ao trabalho curricular nas salas de aula. Entre os numerosos critérios que podem ser determinados, um que é decisivo é o de prestar mais atenção às culturas e grupos desfa- vorecidos. Os mais favorecidos já dispõem de uma multiplicidade de canais informativos para se faze- rem ver e notar. Num mundo global, convém não esquecer que as condições e a qualidade de vida de todos os povos são e serão num futuro iminente cada vez mais interdependentes. Em muitas ocasiões, as condições de vida de um povo dependem e re- percutem sobre as dos demais. Uma instituição como a escolar, que tem en- tre suas finalidades principais preparar as novas ge- rações, precisa obrigatoriamente construir hábitos nos meninos e meninas que lhes permitam levar em consideração outros povos e coletivos sociais nas análises da realidade que levem a cabo e nas toma- das de decisão nas quais se vejam implicados. Detectar como as narrativas que foram sendo divulgadas e promovidas estavam escritas unica- mente a partir das vozes e interesses de uma mino- ria, portanto, recorrendo a processos de silencia- mento, manipulação e deformação, é uma tarefa em que as instituições escolares também têm uma im- portante missão. Qualquer leitura atenta da maioria dos ma- nuais escolares que circulam entre o alunado per- mite constatar processos de censura e deformação de importantes eventos históricos, culturais, cien- tíficos e tecnológicos; tanto nas informações refe- rentes às condições de produção de tais fenômenos como em suas interpretações e valorações (Del- fattore, 1992). Conseqüentemente, isso significa que no processo de socialização das novas gera- ções existem sinais de uma certa estafa intelectual e moral que, infelizmente, pode funcionar no fu- turo como estopim para comportamentos coletivos e individuais de cunho racista, sexista, imperialis- ta, classista etc. É preciso, no entanto, não esque- cer que essas peculiaridades de determinada cultu- ra escolar nada mais são do que conseqüência da origem da educação institucionalizada, ou seja, algo consubstancial com uma instituição como a acadêmica, cuja finalidade, até o presente, não foi outra senão preparar as futuras elites, não facili- tando, por conseguinte, o acesso e/ou a permanên- cia dos filhos e filhas das classes e grupos sociais populares. Logicamente, essa filosofia continua vi- gente em muitas práticas na atualidade, o que po- demos comprovar na facilidade com que se justi- fica o atraso escolar dos meninos e meninas do mundo rural e de grupos sociais desfavorecidos. Não deixa de ser curioso que um tema de tanta importância como o do fracasso escolar tenha pas- sado a ser de interesse secundário, de acordo com a maioria das temáticas dos cursos, encontros e conferências dirigidos ao professorado. Se um observador de fora tratasse de averiguar quais são as preocupações dominantes no sistema educativo espanhol, recorrendo às temáticas esco- lhidas para a atualização do professorado, poderia chegar à conclusão de que no Estado espanhol não existe fracasso escolar. Por outro lado, chamaria sua atenção o interesse por aprender a avaliar e quali- ficar com mais precisão, em como hierarquizar uma série de conteúdos disciplinares ao longo de um ciclo escolar, como elaborar Projetos Curriculares de Centro, etc. No entanto, a realidade do fracasso das instituições escolares em suas finalidades formativas Política educativa, multiculturalismo e práticas culturais democráticas nas salas de aula
  • 14. 18 Jan/Fev/Mar/Abr 1997 Nº 4 é percebida com bastante unanimidade pelos cida- dãos e cidadãs. Convém não deixar à margem a análise das novas formas de desvantagem social, cultural e eco- nômica, especialmente quando informes de institui- ções como a Caritas evidenciam que em nosso país está crescendo o número de pessoas em situação de pobreza, ou de organismos internacionais que apon- tam como as distâncias entre grupos sociais são in- crementadas; as pessoas pobres o são cada vez mais, e núcleos importantes das classes médias perdem poder e possibilidades a cada dia. Do mesmo modo, é preocupante como a pobreza continua com um processo notável de feminização; são as mulheres que em maior porcentagem vivem em condições de necessidade e pobreza. Uma importante ajuda na capacitação para compreender esse tipo de situação é a análise e re- visão dos conteúdos culturais que são oferecidos como exemplificantes ao alunado. Todas as disciplinas possuem aspectos em seus conteúdos que permitem prestar atenção às ques- tões de justiça social e diversidade; tanto as chama- das ciências sociais e humanas como as físico-na- turais. No fundo, as diferentes disciplinas ou ciên- cias não são outra coisa que a formalização e siste- matização dos conhecimentos, habilidades e valo- res que cada sociedade possui para sobreviver da maneira mais satisfatória possível, para fazer fren- te aos desafios de seu desenvolvimento e alcançar maiores níveis de eqüidade e justiça. As diferentes disciplinas, através dos tempos e em cada socieda- de concreta, variam mais ou menos em função da comunicação que tais povos mantém entre si. Ob- viamente, em épocas históricas em que a comuni- cação era mais difícil, cada povo ia gerando formas mais idiossincráticas de resposta às necessidades que detectava. Mas toda sociedade sempre construiu e utilizou conhecimentos de física, química, econo- mia, direito, tecnologia etc. para viver. À medida que os povos se comunicam, intercambiam esses conhecimentos e os conhecimentos adquiridos e re- construídos vão se organizando para facilitar sua aprendizagem pelas novas gerações. Nessa dinâmica é que também vão surgindo as especialidades e os especialistas. Se atualmente ainda existem comunidades com as quais as formas de comunicação não são suficien- temente fluidas, nessa medida alguns conhecimen- tos, habilidades e tecnologias aparecem como mais idiossincráticos. Trabalhar com essa concepção de fundo pres- supõe planejar propostas curriculares integradas (Torres Santomé, 1996b), nas quais os estudantes e as estudantes se vejam obrigados a: > Incorporar uma perspectiva global. As- sumir a análise dos contextos socioculturais nos quais se desenvolve sua vida, assim como daqueles das questões e situações que subme- tam a estudo; atender às dimensões culturais, econômicas, políticas, religiosas, militares, eco- lógicas, de gênero, étnicas, territoriais etc. (ante uma educação mais tradicional em que a des- contextualização é uma das peculiaridades da maior parte de tudo que se aprende.) > Pôr a descoberto as questões de poder implicadas na construção da ciência e as pos- sibilidades de participar de tal processo. > Deixar patente a participação daqueles que constroem a ciência e o conhecimento; não silenciar quem são para demonstrar a histori- cidade e condicionantes de tal construção. > Incorporar a perspectiva histórica, as controvérsias e variações que ocorreram até o momento sobre o fenômeno objeto de estudo; a que se deveram, a quem beneficiavam etc. Incidir, portanto, na provisoriedade do conhe- cimento. > Integrar as experiências práticas em âm- bitos cada vez mais gerais e integrados. > Compreender todas as questões que são objeto de estudo e investigação levando em consideração dimensões de justiça e eqüidade. Converter o trabalho escolar em algo que per- mita pôr em prática e ajudar a compreensão Jurjo Torres Santomé
  • 15. Revista Brasileira de Educação 19 das implicações de diferentes posições éticas e morais. > Partir da valorização da experiência e do conhecimento do próprio alunado. Facili- tar a confrontação de suas convicções e pon- tos de vistas pessoais com os de outras pessoas. > Promover a discussão a respeito de di- ferentes alternativas para resolver problemas e conflitos, assim como dos efeitos colaterais de cada uma das opções. > Proporcionar possibilidades de avalia- ção e reflexão das ações, valorações e conclu- sões que são suscitadas ou nas quais se vêem comprometidos. > Aprender a comprometer-se com a acei- tação de responsabilidades e a tomada de de- cisões, a assumir riscos e a aprender com os erros que cometam. > Potencializar a personalidade específi- ca de cada estudante, seus estilos e caracterís- ticas pessoais. Chegar a convencer-se do valor positivo da diversidade pessoal, algo impres- cindível para chegar a assumir a de outros po- vos e culturas. > Empregar estratégias de ensino e apren- dizagem flexíveis e participativas. Aprender num âmbito organizativo flexível, participa- tivo e democrático, no qual se preste especial atenção à integração de estudantes de diferen- tes grupos étnicos e níveis culturais, de distin- tas capacidades e níveis de desenvolvimento, no qual as tarefas escolares sejam levadas a cabo em grupos cooperativos de trabalho. No fundo, trata-se de educar as cidadãs e os cidadãos com um “ceticismo informado” ou, o que é a mesma coisa, com capacidades para o pensamen- to crítico, como uma das estratégias perante uma so- ciedade e um mundo no qual os fundamentalismos, o pensamento dogmático, tendem a inundá-lo e a se colocar como único parâmetro a perpetuar. Pôr em ação essas estratégias nos ajudará na conformação de cinco hábitos mentais que iremos construindo com o trabalho curricular nas salas de aula. Hábitos que ajudarão a obter uma capacitação mais adequada para participar de um mundo em que a diversidade é uma de suas marcas mais pe- culiares. Procuraremos fazer que as alunas e os alu- nos prestem atenção e se preocupem com: 1. Evidências. Como conhecemos o que conhe- cemos? Que tipo de evidências consideramos sufi- cientemente boas, válidas? 2. Pontos de vista. Que perspectivas, critérios escutamos, vemos e lemos? Quem são seus autores ou autoras, onde as elaboraram, quais eram suas intenções ou finalidades? 3. Conexões. Como estão relacionadas umas questões com outras? Como se encaixam entre si? 4. Conjecturas. O que acontece se...? Supon- do que... Podemos imaginar alternativas? 5. Relevância. Que controvérsias se estabele- cem? A quem se presta atenção? (Wood, 1992, p. 172). Tal clima de aula estará, em meu modo de ver, contribuindo para que o alunado desenvolva uma consciência crítica que lhe permita analisar, valorar e participar de tudo o que acontece e tem a ver com seu entorno sociocultural e político. Manipulações populistas das filosofias progressistas Algo que vem adquirindo grande peso em nos- sa sociedade é o discurso populista. Nele se recor- re ao emprego de um vocabulário que faz referên- cia a conceitos muito interessantes e valiosos, mas que são descarregados de significado, desvirtuados, para aparentemente dar a sensação de que se enfren- ta uma série de problemas sociais urgentes; mas é só isso, aparência. Temos um exemplo disso nos discursos populistas contra o racismo, a pobreza, o desemprego etc. Neles são nomeadas realidades e direitos como os do povo cigano, da mulheres, da população negra, dos homossexuais e lésbicas etc., mas evitando considerar por que temos de nomeá- Política educativa, multiculturalismo e práticas culturais democráticas nas salas de aula
  • 16. 20 Jan/Fev/Mar/Abr 1997 Nº 4 las, a razão pela qual se presta atenção a dimensões idiossincráticas de etnia, raça, gênero, sexualidade etc. Ocultam-se relações de poder existentes nas sociedades em que convivem esses coletivos que so- frem alguma forma de marginalização, as catego- rias de classificação, sua valoração e os motivos pelos quais foram sendo construídas essas situações de marginalidade nessa determinada comunidade a que nos referimos. Evidentemente, essa estratégia de confusão chegou também ao mundo da educação. As admi- nistrações educativas, concretamente através das leis que elaboram e dos decretos e normas que as de- senvolvem, vêm manejando conceitos que foram construídos por forças sociais progressistas, formu- lados e reformulados mais de uma vez à medida que eram melhoradas as análises sobre a realidade, mas que agora se esvaziam de seu conteúdo social e, portanto, se despolitizam ou “repolitizam” em sen- tido inverso, conservador. Conceitos como globali- zação, interdisciplinariedade, currículo integrado e outros tão vinculados a estes, como socialização, igualdade de oportunidades, democracia escolar, participação e similares, passam a funcionar como vocábulos vazios ou muletas de expressão, sem dar conta de sua carga de significado e das conseqüên- cias de seu uso. Outros, como atenção à diversida- de, sofrem um forte reducionismo, deixando-os cir- cunscritos a aspectos de índole exclusivamente pes- soal, a dimensões de conduta ou a problemas psi- cológicos que têm a ver apenas com alguns indiví- duos concretos. O mesmo cabe dizer de termos pe- dagógicos como profissionalização, projeto curri- cular etc., conceitos para fazer figura, mas não para ser conseqüente com eles e criar as condições admi- nistrativas, de trabalho e de formação que possam torná-los realidade na prática cotidiana das salas de aulas e dos centros escolares. Surgem, inclusive, novas figuras e estruturas profissionais (psicopedagogos e psicopedagogas, orientadores e orientadoras, equipes psicopedagó- gicas de apoio, de atenção antecipada, de estimula- ção precoce etc.), mas com uma formação e orien- tação bastante enviesada: para atender unicamen- te a aspectos de patologia individual, e não a pro- blemas que afetam coletivos sociais e que requerem prestar atenção a dimensões que condicionam sua vida e, por conseguinte, o aprendizado de cada alu- no ou aluna. O construtivismo como estribilho Os que promovem as novas ideologias conser- vadoras não hesitam em tratar de esvaziar e “reo- rientar” todos aqueles conceitos e filosofias que no momento histórico presente tenham ganhado pre- sença e prestígio. Uma boa mostra disso é seu apoio e promoção dos atuais discursos em defesa do cons- trutivismo, filosofia psicoeducativa que, em suas di- vulgações pelas instâncias e personalidades vincu- ladas ao poder, vem se mostrando demasiadamen- te parcial. Esse modelo teórico elabora seus argumentos com demasiada ênfase em dimensões individualis- tas ou excessivamente “universalistas”, abstraindo- se das peculiaridades de cada comunidade e do mo- mento sócio-histórico que está vivendo. Nesses dis- cursos psicológicos, o ser humano aparece confina- do à margem de aspectos essenciais, como suas di- mensões socioculturais e histórico-geográficas. Ne- les não se trata de pôr em relevo como essas variá- veis jogam um papel decisivo na aquisição do co- nhecimento, do sistema de valores e desenvolvimen- to de habilidades, tanto em sua seleção como em sua valoração, interpretação e aceitação. Dificilmente poderíamos nos opor à atual cor- rente epistemológica que promove que “o conhe- cimento se constrói”. Mas não deixa de ser chama- tivo que em muitos momentos esse discurso venha a se esgotar em frases tão simples como uma mule- ta de expressão ou um cacoete, deixando o apro- fundamento de tal filosofia para o leitor ou ouvin- te. No Estado espanhol, costuma ser freqüente, es- pecialmente do ponto de vista da psicologia, que a defesa das teses construtivistas entre o coletivo do- cente acabe se resumindo em alguns slogans com os quais todo o mundo concorda e assume, dada a simplicidade de sua formulação. Ao final, fica ape- Jurjo Torres Santomé
  • 17. Revista Brasileira de Educação 21 nas a idéia um tanto abstrata de que tudo é ques- tão de “construção”, essa sim revestida com frases e conceitos que gozam de certo prestígio. Sem dúvi- da, nos momentos da ação prática, muitos profes- sores e professoras sentir-se-ão incapazes de trans- por essa filosofia para situações reais nas salas de aula. Todavia, uma análise mais minuciosa e críti- ca mostrará, com relativa prontidão, que o constru- tivismo não é algo do qual possamos falar no sin- gular e com o qual concordem todas as pessoas que assim se etiquetam. Existe conflito entre as concep- ções e explicações subjacentes a tal perspectiva ou âmbito explicativo, como detecta César Coll (1993, p. 239) quando afirma que “por trás do termo ‘construtivismo’ escondem-se interpretações e ex- plicações diversas e nem sempre coincidentes”. Além disso, não deixa de ser curioso que, de- pois de muitos anos em que as análises sociológi- cas estiveram e continuam gozando de importante aceitação no campo do ensino, de repente, muitos dos discursos psicológicos pretendam silenciar es- sas dimensões e características que foram sendo en- fatizadas. As pessoas constroem conhecimentos, mas quais? Quando? Onde? Em que condições? Com que finalidades? A serviço de quem? Promovidos por quem? É em torno de questões semelhantes a essas que o silêncio de muitos construtivistas cha- ma a atenção. Não costuma ser freqüente que, nos discursos sobre construtivismo, apareçam reflexões a respei- to de quem orienta e promove o processo constru- tivista e em que direção. Portanto, existe o perigo de assumir tacitamente um certo “naturalismo”: que todas as meninas e meninos deixados à sorte constroem de uma maneira adequada. Nos últimos anos, é visível a impregnação das concepções individualistas em muitos momentos do discurso construtivista psicológico, assim como nas orientações práticas que derivam desse modelo. Um exemplo disso temos no Brasil, no texto que o Mi- nistério da Educação e Cultura divulga sobre “O ensino fundamental: Parâmetros Curriculares Na- cionais”. Documento muito impregnado de cons- trutivismo e no qual, no momento de derivar pro- postas práticas para as aulas, como no que diz res- peito às formas de agrupamento do alunado, pode- mos ler o seguinte: Devem estar atentos às diferentes formas de agru- pamento possíveis segundo uma variedade de aspec- tos, por exemplo: desempenho diferenciado, desem- penho próximo, gênero, afinidades para o trabalho, afinidades afetivas, possibilidade de ajuda, possibili- dade de cooperação, ritmo de trabalho etc. Não existe “o melhor” critério de organização de grupos para uma atividade, é necessário que o pro- fessor decida em cada tipo de atividade, em cada mo- mento do processo de ensino e aprendizagem, para aqueles alunos específicos, qual é a melhor forma de organização social.[...] Os agrupamentos são medidas eficazes para fa- cilitar a individualização do ensino, pois podem ser consideradas as necessidades de cada aluno e garan- tidas situações adequadas para o desenvolvimento de certas aprendizagens.[...] É possível pensar em grupos que não sejam es- truturados por série e sim por objetivos a serem alcan- çados, onde a diferenciação entre séries se dê pela exi- gência adequada ao desempenho de cada um (p. 24). Em explicações e propostas como as anterio- res, penso que se pode constatar o predomínio de uma concepção exclusivamente individualista da aprendizagem. Cada aluno e aluna constrói seu pró- prio conhecimento, exclusivamente pessoal. Os ou- tros companheiros e companheiras são considera- dos instrumento ou recurso para favorecer essas aprendizagens em cada pessoa. Não existe uma só linha de argumentação, num tema tão decisivo co- mo o dos agrupamentos do alunado, que finque pé na necessidade de desenvolver a solidariedade en- tre os que compartilham uma sala de aula ou cen- tro escolar, na exigência de trabalhar em grupo para aprender a colaborar, conhecer as demais pessoas que nos rodeiam, banir pré-julgamentos ou estere- ótipos sobre aqueles que pertencem a coletivos so- ciais marginalizados ou a etnias sem poder. Quando se realiza a enumeração das modali- dades de agrupamento de estudantes, isso é feito Política educativa, multiculturalismo e práticas culturais democráticas nas salas de aula
  • 18. 22 Jan/Fev/Mar/Abr 1997 Nº 4 como se todas tivessem o mesmo valor, como se se tratasse de uma tomada de decisão meramente téc- nica, para favorecer o potencial inato de cada me- nino ou menina, para construir um conhecimento pessoal e que, podemos deduzir, terá conseqüênci- as individuais. Esquece-se de mencionar as lutas que o coletivo docente, juntamente com outros coleti- vos sociais, levou e leva a cabo para contribuir para banir o sexismo promovendo agrupamentos mistos, de meninos e meninas; para favorecer a integração das pessoas com discapacidades, conformando gru- pos de estudantes de diferentes níveis de capacida- des e conhecimentos; para colaborar na luta con- tra o racismo, sobre a base de agrupar alunas e alu- nos de diferentes etnias num mesmo grupo; para educar pessoas mais solidárias, fomentando o tra- balho em equipe no qual cada estudante se sinta útil aos demais membros etc. O professorado é muito mais do que promo- tor de conflitos sociocognitivos e, por conseguinte, precisa deter-se em pensar questões que ultrapas- sam os aspectos puramente psicológicos, tais como dimensões de valor, justiça, democracia, solidarie- dade que acompanham a produção e utilização do conhecimento e a tecnologia. Um “sentido comum”, cuja construção este- ve controlada pelos círculos de poder, pelos discur- sos promovidos por todo um conjunto de intelec- tuais oficialistas que gozam de todo o tipo de faci- lidades para aceder aos meios de comunicação e dirigir a produção do conhecimento e tecnologia, pode, deixado a seu livre arbítrio, funcionar em direções reproducionistas. A realidade não costu- ma adornar-se com etiquetas explicativas, pelo con- trário, é imprescindível esforçar-se para revelar seu significado mais autêntico. Convém estar atento para que o discurso “construtivista” não acabe con- vertido em etiqueta que dissimule posições “repro- ducionistas”, mas com roupagens e máscaras que dificultem captar sua manipulação a serviço dos mesmos interesses dos de sempre. É preciso não esquecer que em cada época, como se evidencia a partir da filosofia da ciência (Kuhn, 1980; Toulmin, 1977; Lakatos, 1982) e ulti- mamente no que se vem conceituando como pós- modernidade (Foucault, 1990; Feyerabend, 1984; Harding, 1993), toda uma série de condições, in- fluências, pressões e normas vão tratar de avaliar a validade dos conhecimentos, assim como favore- cer e obstaculizar a aparição, divulgação e utiliza- ção de determinados saberes e tecnologias. Na ciência, a verdade está em disputa com mui- tíssima freqüência, assim como seus fundamentos metodológicos. Por conseguinte, podemos afirmar que são distintas condições sociais, econômicas, po- líticas, culturais, militares e religiosas, assim como os conflitos de interesse entre os desafios que vão se colocando para os distintos grupos sociais, etnias, gêneros que entram em jogo na construção de con- ceitos, categorias, procedimentos, metodologias, valores e, portanto, nas soluções que as ciências e os diferentes saberes vão poder enfrentar. É imprescindível dar-se conta de que a cons- ciência das pessoas historiadoras, cientistas, artis- tas, políticas, literatas está sempre condicionada pelo ambiente em que vivem, pelas práticas nas quais se vêem envolvidas, pelas normas que possibilitam o acesso a postos de trabalho e as condições de sua realização, pelos sistemas de valores, modos de per- ceber, saberes e racionalidades em que se apóiam. Convém ter certa atitude de dúvida diante de teorias que aparecem com demasiada arrogância, escudando-se num excesso de frases feitas e slogans que funcionam para despolitizar realidades sociais conflitivas e acabam por se transformar em escudos protetores ante análises e propostas mais liberta- doras, minuciosas e críticas. Com muita freqüência, esquece-se que, também mediante processos discursivos e retóricos, contri- bui-se para dar forma ao pensamento hegemônico, à criação de um “sentido comum” que coopera para apresentar e pensar como normal, lógico, natural e único o que não passa de um modelo concreto de atuar, governar, pensar etc., entre outros possíveis. Isso já foi evidenciado por Michel Foucault (1990b, p. 198) quando, ao se referir às “práticas discursi- vas” deixa claro que estão sujeitas a “um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determina- Jurjo Torres Santomé
  • 19. Revista Brasileira de Educação 23 das no tempo e no espaço, que definiram, numa dada época e para uma dada área social, econômica, ge- ográfica ou lingüística, as condições de exercício da função enunciativa”; ou seja, condicionam e limitam os temas a respeito dos quais se pode falar, analisar, classificar, explicar, nomear; promovem um leque limitado de significados. É também mediante práticas discursivas que conceitos que até um determinado momento têm um determinado significado, uma vez que são fru- tos de outros discursos que lhes conferiam esse sig- nificado, ao intercalar-se em outras práticas diferen- tes, podem chegar a alterar por completo seu sig- nificado ou ficar reduzidos a meros slogans ou fra- ses-fórmula. Em tais slogans “sua simplicidade pro- porciona uma embalagem de idéias com traçado verdadeiramente claro e sólido. Eles comunicam paradigmas, idéias modelo que podem ser aplica- das a novas ‘instâncias’, mas distanciando-se de seus referentes originais” (Fowler, 1991, p. 177-179). Não podemos esquecer que a instituição esco- lar, através de suas práticas e ênfases, é coadjuvante na construção das maneiras de pensar, atuar, per- ceber e falar a respeito da realidade, do mundo de cada estudante e, por isso mesmo, de cada cidadã e cidadão. Na aprendizagem de matérias como his- tória, matemática, física, geografia, literatura, idio- mas etc., “constroem-se” possibilidades de perce- ber, interpretar e valorar a realidade; fomentam-se atitudes perante o mundo que nos rodeia e do qual temos alguma noção; influi-se na conformação de sentimentos e expectativas perante as pessoas com as quais convivemos e compartilhamos este planeta. O forte peso do conservadorismo atual con- tribui para que as questões morais, políticas e socio- econômicas sejam aspectos que tendem a desapa- recer do vocabulário e, portanto, da práxis curri- cular. Ainda se pode constatar o medo de reconhe- cer e assumir que educar é uma ação política, não um trabalho meramente técnico. Os discursos pro- fissionalizadores, curiosamente, estão sendo utili- zados como disfarce para despolitizar e desfigurar grande parte do trabalho sociocultural e educativo. Trata-se de discursos nos quais se faz notar que a única coisa importante são as preocupações por eficiência, controle, gestão, objetividade e “neutra- lidade”, o que é coerente com os discursos hege- mônicos, oficiais, sobre o fim das ideologias. É preciso recuperar a capacidade de contextua- lizar e historizar nossos discursos e práticas. Urge voltar a retomar algo que já parece um slogan va- zio: conectar a instituição escolar com o meio. Do contrário, corremos o risco de construir um currí- culo fundamentalista, uma proposta de trabalho na qual se dá uma seleção fechada de conteúdos cul- turais a serem trabalhados nas classes, possibilita- se o acesso a uma única interpretação desses con- teúdos culturais, uma só valoração e uma única res- posta verdadeira. Se as opções conservadoras continuam ganhan- do cotas de poder, há um risco importante de que os currículos fundamentalistas venham a se ver ainda mais favorecidos. Currículos cujas diferenças esta- rão no viés que desejam “vigiar” com maior aten- ção; é previsível que apareçam projetos curriculares obcecados por determinadas opções religiosas, eco- nômicas (para promover um determinado modelo produtivo e de relações de trabalho de interesse para os grupos empresariais no poder), políticas, racistas, sexistas etc. Estamos cada vez mais diante de insti- tuições de ensino que apenas vendem o “conhecimen- to oficial” (Apple, 1993). O que parece imperar é uma cultura da “objetividade”, entendida como uni- formismo, como ataque à diversidade, com a fina- lidade de favorecer a articulação de sociedades “mo- no”: monoculturais, monolingüísticas, monoétnicas, monoideológicas etc. Pretende-se negar a diversidade para impor uma única cultura que se anuncia e se faz pública como “comum”, “consensual”, “valio- sa” e “histórica (a de sempre)”. Os coletivos de intelectuais, pesquisadoras e pesquisadores, artistas e docentes têm uma impor- tante tarefa a desempenhar, ajudando a construir, a voltar a interpretar a história das sociedades levan- do em consideração as percepções e interesses daque- les que ficaram à margem e sofreram a história. Apostar na democracia obriga a que conceitos como “justiça social”, “responsabilidade ética”, Política educativa, multiculturalismo e práticas culturais democráticas nas salas de aula
  • 20. 24 Jan/Fev/Mar/Abr 1997 Nº 4 “participação”, “igualdade” não se transformem em fórmulas vazias, mas em modos de vida. Assim, a pedagogia tem uma função dual: ajudar a propor- cionar os meios através dos quais os coletivos sociais oprimidos chegam a tomar consciência de sua opres- são e servir como instrumento mediante o qual es- sas mulheres e homens lutem para encontrar métodos de transformação da realidade (Trend, 1995, p. 148). É imprescindível estar atento a todo momen- to para que esse trabalho de ação social em prol de maiores cotas de democracia e justiça social se man- tenha vinculado aos demais movimentos sociais que estão comprometidos nessa mesma direção de redis- tribuição de poder e dos recursos existentes na co- munidade; movimentos que procuram em todos os momentos tornar viável uma autêntica e informa- da participação de todas as cidadãs e cidadãos nas tomadas de decisão que servem para configurar e determinar a sociedade. Isso está ficando cada vez mais difícil, dado o forte individualismo que impe- ra nas sociedades pós-modernas e da informação que, por sua vez, facilita a reaparição de um notá- vel culto às lideranças carismáticas. Uma prova dis- so, e na verdade preocupante, é a apatia para com o debate que surge no próprio seio de estruturas como partidos políticos e sindicatos e que tem como resultado o afloramento de apostas por uma espé- cie de “cesarismo”. Diante de um importante grau de atrofia dos mecanismos de participação e regu- lação democrática da vida no interior de muitos partidos políticos ou mesmo de governos, a figura do dirigente capaz de tomar as rédeas e o controle adquire um peso desmedido. A constante denúncia de apatia com a qual se etiqueta a imensa maioria da população das socie- dades pós-industriais, fruto das experiências pseu- dodemocráticas nas quais se encontram implicadas, corre o risco de servir de situação embrionária de novos fascismos ou autocracias mais invisíveis; nes- tas a democracia fica minimizada numas tantas for- mas e ritos externos, mas sem conteúdo. Os espa- ços de participação e controle democráticos estão tramados por figuras representativas do mundo eco- nômico, militar e líderes do governo. Um panora- ma semelhante é também percebido por Paulo Flo- res D’Arcais (1996) quando escreve: Estes são os dois modelos que aparecem no mo- derno obscurecer-se da promessa democrática: a parti- tocracia de partidos-máquina, cada vez mais pareci- dos entre si, acompanhados de seus respectivos enge- nheiros do consenso e o gigantismo de aparatos bu- rocráticos e auto-referenciais. E o populismo tauma- túrgico, com seus improváveis eleitos pelo senhor, seus insolentes vendedores de felicidade e o néscio estron- do do aplauso forçado. Os dois modelos não apenas não se excluem, como antes parecem celebrar em des- conexa mestiçagem as bacanais pós-modernas em ver- são caótica. E assim em todo o mundo (p. 59-60). Diante de uma perspectiva tão ameaçadora, torna-se prioritário recuperar para o maior núme- ro possível de cidadãos e cidadãs e, evidentemen- te, para o trabalho docente os papéis de ativistas contra-hegemônicos com fé no futuro; com suficien- tes doses de utopia entremeadas de realismo para configurar um futuro mais justo, democrático, nu- ma palavra: humano. JURJO TORRES SANTOMÉ é Catedrático de Didá- tica e Organização Escolar na Universidade da Coruña, Es- panha. Trabalha com temas relativos a Sociologia da Edu- cação, Política Curricular e Currículo Integrado. Entre suas obras se destacam: Globalización e interdisciplinariedad: el curriculum integrado, Madrid, Morata, 1996, 2ª ed.; El cur- riculum oculto, Madrid, Morata, 1991. Referências bibliográficas ABRAMI, Philip C. et al., (1995). Classroom connections: understanding and using cooperative learning. Toronto: Harcourt Brace. APPLE, Michael W., (1993). Official knowledge: democratic education in a conservative age. Nova York: Routledge. BLOOM, Allan C., (1987). The closing of the american mind. Nova York: Simon & Schuster. CALVO BUEZAS, Tomás, (1989). Los racistas son los otros: gitanos, minorías y derechos humanos en los tex- tos escolares. Madri: Popular. Jurjo Torres Santomé
  • 21. Revista Brasileira de Educação 25 COLL, César, (1993). Psicología y didácticas: demarca- ción e interconexión. Infancia y Aprendizaje, no 62- 62, p. 237-243. CONNELL, R. W., (1993). Schools and social justice. Fi- ladélfia: Temple University Press. DELFATTORE, Joan, (1922). What Johnny shouldn’t read: textbook censorship in America. New Haven: Yale Uni- versity Press. FEYERABEND, Paul, (1984). Adiós a la razón. Madri: Tecnos. FLORES D’ARCAIS, Paolo, (1996). Hannah Arendt. Una actualidade anacrónica. Claves de Razón Práctica, no 65, set., p. 56-61. FOUCAULT, Michel, (1979). Microfísica del poder. 2a ed. Madri: La Piqueta,. __________, (1990). La arqueologia del saber. 14a ed. Mé- xico: Siglo XXI. FOWLER, Roger, (1991). Language in the news: discourse and ideologie in the press. Londres: Routledge. GARDNER, Howard, (1993). La mente no escolarizada. Barcelona: Paidós. GOODSON, Ivor, (1987). School subjects and curriculum change: studies in curriculum history. Ed. ampliada. Lon- dres: The Falmer Press. HALL, Stuart, (1992). Race, culture and communications: looking backward and forward at cultural studies. Re- thinking Marxism, v. 5, no 1 (primavera), p. 10-18. HARDING, Sandra, (1993). The science question in femi- nis. 5a ed. Ithaca: Cornell University Press. JACKSON, Philip W., (1994). La vida en las aulas. 3a ed. Madri: Morata/Fundación Paideia. KUHN, Thomas S., (1980). La estructura de las revolucio- nes científicas. Madri: Fondo de Cultura Económica. LAKATOS, Imre, (1982). Historia de la ciencia y sus re- construcciones racionales. Madri: Tecnos. McCARTHY, Cameron, (1994). Racismo y curriculum. Madri: Morata/Fundación Paideia. MESSER-DAVIDOW, Ellen, SHUMWAY, David R., SYL- VAN, David J. (orgs.), (1993). Knowledges: historical and critical studies in disciplinarity. Charlottesville: University Press of Virginia. NIXON, Jon, MARTIN, Jane, McKEOWN, Penny, RAN- SON, Stewart, (1996). Encouraging learning: towards a theory of learning school. Buckingham: Open University Press. POPKEWITZ, Thomas S., (org.), (1987). The formation of school subjects: the struggle for crating na amerinan insti- tution. Londres: The Falmer Press. SAID, Edward, (1994). Representations of the intellectual. (The 1993 Reith Lectures). Nova York: Pantheon Books. TORRES SANTOMÉ, Jurjo, (1996a). El curriculum ocul- to. 5a ed. Madri: Morata. __________, (1996b). Globalización e interdisciplinariedad: el curriculum integrado. 2a ed. Madri: Morata. TOULMIM, Stephen, (1977). La comprensión humana. Madri: Alianza. TREND, David, (1995). The crisis os meaning in culturte and education. Minneapolis: University of Minnesota Press. WHITTY, Geoff, EDWARDS, Tony, GEWIRTZ, Sharon, (1993). Specialisation and choice in urban education: the city technology college experiment. Londres: Routledge. WOOD, George H., (1992). Schools that work: America’s most innovative public education programs. Nova York: Dutton. Política educativa, multiculturalismo e práticas culturais democráticas nas salas de aula