Artigo de investigação sobre o primeiro relógio público comprado pela Câmara Municipal de Lagoa em 1828, através de uma colecta subscrita integralmente pelos moradores daquela vila algarvia. Todavia, a autarquia não tinha meios financeiros para pagar regularmente um salário a alguém que se responsabilizasse pela manutenção desse grande símbolo do progresso e da modernidade, ao som de cujas badaladas passou a regular-se a vida quotidiana dos lagoenses. Esse relógio ainda hoje figura na torre da Igreja Matriz daquela bela e tradicional vila algarvia.
O primeiro relógio público de Lagoa, adquirido em 1828
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OPINIÃO
A medição do tempo, pelas
quatro partes do dia, era no
passado um dos aspetos mais
importantes da vida quoti-
diana, quer na cidade quer
no campo. Para ter uma ideia
da dimensão do tempo, houve
que inventar meios artificiais,
uns mais técnicos e rigorosos
do que outros, mas que, con-
forme a época em que vigora-
ram, foram muito importan-
tes para a organização social
do trabalho. Não se pense que
a evolução histórica do reló-
gio progrediu no tempo se-
gundo a lógica processual da
curiosidade científica. A ver-
dade é que o relógio evoluiu
de acordo com os modos de
produção económica, desde
o esclavagismo que deu cer-
ne ao imperialismo clássico,
até à fase agrária do feudalis-
mo, em que o sol assumiu o
seu papel de relógio natural e
biológico.
Mas no advento da era
moderna, com o estabeleci-
mento das novas rotas atlân-
ticas, os contactos com civi-
lizações de diferentes qua-
drantes solares suscitaram
a necessidade de adaptação
a novos fusos horárias. Para
o efeito houve que inventar
o relógio mecânico, cujo uso
passou a ser não só uma ne-
cessidade como também um
adereço de distinção social.
O relógio de bolso tornou-se
numa peça de ostentação so-
cial, sobretudo pelo facto de
se apresentar como peça de
ourivesaria, incrustado em
ouro ou prata, adornado em
madrepérola, com desenhos
e figuras de minúsculas pro-
porções, que fizeram as delí-
cias da aristocracia europeia
e da alta burguesia mercan-
til. É curioso que muitos di-
plomatas franceses chega-
ram a ser admoestados pelos
serviços aduaneiros e inclu-
sive pelo Ministério dos Ne-
gócios Estrangeiros, pelo fac-
to de se dedicarem ao con-
trabando de relógios de bol-
so, não só no reino como no
Brasil. Muitas dessas precio-
sidades artísticas subsistem
ainda hoje nos mais famosos
museus do mundo, nomea-
damente no Museu Interna-
cional dos Relógios, na Suiça,
no Museu Alemão do Relógio
(Deutsches Uhrenmuseum),
nas preciosas coleções do
Hermitage, na Rússia, ou nos
nossos museus do relógio em
Évora e em Serpa.
O relógio e o
comércio colonial
Nos séculos XVI a XVIII, o
descobrimento da América
originou o estabelecimen-
to de novas rotas marítimas,
que incentivaram as viagens
intercontinentais e sobretu-
do as atividades mercantis.
Fundaram-se então as com-
panhias comerciais, os ban-
cos nacionais emissores de
moeda, os seguros maríti-
mos, a bolsa comercial e de
valores, a moeda-padrão e a
letra de câmbio. Todas estas
instituições surgiram como
órgãos fundacionais do ca-
pitalismo moderno. A par
das grandes viagens emergiu
o interesse das trocas, tan-
to culturais como materiais,
desenvolvendo-se quase to-
das as áreas do conhecimen-
to humano. Diferentes civili-
zações, religiões e etnias, ge-
raram entre os europeus co-
lonizadores uma nova era de
progresso cultural que ficou
conhecida como «revolução
científica». Além da ciência
desenvolveu-se também um
novo modo de produção na
economia mundial: o capita-
lismo comercial.
No domínio da ciência
económica designou-se esse
período como Mercantilis-
mo, por ser uma época estru-
turalmente dominada pelas
transações comerciais, com a
particularidade de se desen-
volver por ciclos, estribados
na predominância de certas
mercadorias de procura glo-
bal, como foram o caso do ta-
baco, do açúcar e do algodão.
Na sequência do capita-
lismo comercial, generalizou-
-se o uso do relógio mecâni-
co, no formato de bolso com
corrente de ouro, granjean-
do o seu detentor um distin-
tivo de prestígio e de valori-
zação social. Os mercados co-
loniais estimularam na socie-
dade europeia novos hábitos
sociais, de consumo e alimen-
tares, influenciando sobretu-
do o sector da arte e da moda.
Para equilibrar a balança co-
mercial da europa houve que
implementar, sobretudo no
Reino Unido, um forte pro-
grama de incentivo e prote-
ção ao sector de transforma-
ção industrial. Em 1760 ini-
ciava-se em Inglaterra o pro-
cesso histórico que ficou co-
nhecido por «Revolução In-
dustrial». A força motriz iden-
tificativa dessa nova era na
economia mundo foi o vapor,
tendo por signo roda denta-
da. Porém, julgo que o sím-
bolo mais apropriado à rea-
lidade vigente seria o relógio
de parede, como objecto me-
cânico de medição do tempo
de trabalho e dos custos da
produção.
O relógio e a
«Revolução Industrial»
Na verdade, a transição do
relógio de bolso para o es-
paço abrangente da parede
da fábrica transformou defi-
nitivamente a vida quotidia-
na da humanidade. O relógio
passou a ser também objeto
da produção em massa, para
responder às solicitações do
mundo moderno, cuja vida
passou a ser medida em ho-
ras, a ter um horário, e, con-
sequentemente, a submeter-
-se àquilo a que hoje chama-
mos «agenda».
A sociedade moderna eu-
ropeia passou a entender o
tempo como uma dimensão
mensurável de valor acres-
centado. A associação do tem-
po com o trabalho deu origem
à avaliação dos custos de pro-
dução e ao estabelecimento
do salário industrial.
Em tempos remotos da
civilização ocidental, o salá-
rio foi retribuído em sal (daí
a sua designação), em gé-
neros e prestação de servi-
ços, até que com a generali-
zação da moeda passou a ser
pago em metal sonante. Esse
é um avanço decisivo por-
que o contrato social em que
se estribava a sociedade pas-
sou a assentar arraiais na no-
ção fundamental do traba-
lho e na produção de rique-
za. O horário de trabalho es-
tabelecia-se de sol a sol, sen-
do por isso que ainda hoje ve-
mos relógios de sol, na fronta-
ria das casas solarengas, edi-
fícios públicos e igrejas, para
que todos se apercebessem
da evolução das horas ao lon-
go do dia, e com isso se cons-
ciencializassem do seu dia de
trabalho.
A revolução industrial ori-
ginou uma nova consciência
de trabalho e de horas efeti-
vas de produção. Se no prin-
cípio da revolução industrial o
operário fabril foi tão explora-
do (para não dizer escraviza-
do) como foi o camponês no
mundo rural, também é ver-
dade que isso suscitou a sua
reorganização em sindicatos,
e até em partidos políticos – o
liberal Wigh, hoje denomina-
do Trabalhista – para susten-
tar a defesa dos direitos e li-
berdades dos trabalhadores.
A partir de novecentos, o
uso do relógio esteve presente
emtodososmomentosdavida
pública. Com a industrializa-
ção surgiu a invenção do car-
ril e da locomotiva. A revolu-
ção dos transportes, ferroviá-
rios e marítimos, encurtaram
distâncias, ligaram civilizações
e aqueceram a economia glo-
bal. A ferrovia sulcou os con-
tinentes numa imbricada rede
de comunicações, à qual o re-
lógio, através da invenção do
horário, dava o cerne natural
do progresso. E a tradução do
progresso consistia na simbio-
se da locomotiva com o relógio
e a roda dentada.
A municipalização
do relógio
Nas fábricas os empresários
faziam questão de encastrar
um enorme relógio na fron-
taria do edifício, para eviden-
ciar a regulação do trabalho.
Nos clubes e sociedades os
burgueses ostentavam com
vaidade o seu relógio de ouro
no bolsinho do colete. Nas ci-
dades os autarcas das gran-
des urbes europeias manda-
ram colocar relógios nas pra-
ças e edifícios públicos, não
unicamente para regulação
dos seus munícipes, mas tam-
bém para simbolizar o pro-
gresso e modernidade da so-
ciedade industrial.
Entre os vários exemplos
da municipalização do reló-
gio, ocorreu-me lembrar aqui
o caso da vila de Lagoa, no Al-
garve, cujos munícipes abri-
ram em 1828 uma subscrição
pública para comprar o pri-
meiro relógio que deu horas
na torre da igreja. O concelho
havia sido fundado por Pom-
bal 55 anos antes, pelo que
a compra do relógio público
constituía uma forma de afir-
mação do seu sucesso e pujan-
ça no contexto regional. Pode
dizer-se que para os lagoenses
o progresso chegara sob a for-
ma de relógio, muito antes da
via férrea e do silvo do com-
boio. Ter horas, certas e ofi-
cialmente reguladas, era mui-
to mais importante do que se
possa pensar. Era o virar de
página, deixando para trás a
sociedade rural, o passado, e
antever a chegada da nova or-
dem industrial - o futuro.
Mas à boa maneira nacio-
nal, quando se pensou em do-
tar a vila de um relógio pú-
blico, não se acautelou pre-
viamente a satisfação das
hoje designadas despesas fi-
xas, isto é, o salário do res-
ponsável pela manutenção da
monstruosa máquina das ho-
ras. E isso deu origem a uma
curiosa queixa da parte inte-
ressada, um tal Joaquim An-
tónio de Sousa, que tratan-
do com desvelo do relógio,
não recebia salário há mais
de um ano. A edilidade sabia
bem que o relógio precisava
de cuidados, pelo menos de
alguém que regularmente o
limpasse e lhe desse corda. E
para que a máquina do tempo
cumprisse com acerto a sua
função, precisava de cuidados
exclusivos. Só que para inde-
xar essa despesa nas contas
do município havia que pre-
viamente receber autoriza-
ção da coroa. Tal como acon-
tece hoje, de Lisboa não vinha
nem palavra nem decisão.
Cansado de esperar, e sendo
parte interessada, resolveu
atalhar caminho, escrevendo
uma súplica endereçada dire-
tamente ao rei, para que lhe
concedesse a mercê de po-
der ser escriturado como re-
lojoeiro no orçamento da au-
tarquia.
Mas o melhor será ouvir-
mos as suas próprias pala-
vras, que aqui extratamos na
íntegra e na sua grafia ori-
ginal (ver caixa). Apesar da
sua justeza, a súplica não
teve a satisfação mais espera-
da. Apresentada ao despacho
real. em Lisboa, a 7-06-1830,
ficou exarada como «Escusa-
da». Também aqui deixo os
termos em que foi lavrada a
resolução oficial: «Para lim-
par e dar corda ao Relógio
qualquer homem basta: he
incumbência amovível e de
pouca despesa, que a Cama-
ra pode economicamente ne-
gociar quando, como e com
quem quiser».
Não sei qual foi o desfe-
cho final deste caso. Mas, pelo
despacho real, presumo que
não tenha sido o mais con-
veniente para o autor da su-
plica, o pobre Joaquim Antó-
nio de Sousa, que trabalhava
há quase dois anos para a Câ-
mara Municipal de Lagoa sem
auferir qualquer retribuição.
Curiosa é também a forma
desgraciosa como a Coroa, em
Lisboa, desvalorizava o traba-
lho desenvolvido na provín-
cia, o que não difere nada da
perspetiva atual. Para o cen-
tro, a periferia não tinha va-
lor nem importância. Daí a
forma depreciativa como o
despacho autorizava a edili-
dade a contratar quem qui-
sesse, desde que pelo menor
custo possível, pois que para
fazer o trabalho de limpar e
dar corda ao relógio qualquer
um servia. Os tais 24 mil réis
que o suplicante achava jus-
to pagar-se-lhe pelo trabalho
de zelar pelo relógio públi-
co, parecia à Coroa uma des-
pesa elevada. Além disso, as
rendas dos aferimentos mu-
nicipais não eram suficientes
para suportar o encargo, e o
despacho de Lisboa não pro-
punha escorar a despesa nou-
tra verba camarária. Estas de-
cisões, autocráticas e reduti-
vas, eram muito peculiares do
espírito miguelista, que go-
vernou o país sob a espada do
terror e o laço da força.
Seja como for, a principal
ilação que se pode extrair des-
te pequeno documento é que
a Câmara Municipal de Lagoa,
criada no tempo de Pombal,
não dispunha de meios finan-
ceiros para adquirir um reló-
gio, nem rendimentos que lhe
permitissem suster a magra
despesa anual de um funcio-
nário que zelasse pela sua la-
boração. No entanto, por von-
tade do seu povo, comprou a
máquina do tempo que ain-
da hoje se pode ver com orgu-
lho na torre da sua igreja ma-
triz. E foi pela mesma vonta-
de popular que a edilidade ar-
ranjou uma solução para esti-
pendiar o sineiro e contor-
nar a decisão superior. Tinha
que ser.
O primeiro relógio público
de Lagoa, adquirido em 1828
OPINIÃO JOSÉ CARLOS VILHENA MESQUITA | Professor Universitário e Historiador
«Senhor:
Diz Joachim Antonio de Souza morador na villa de Lagoa,
commarca de Faro, Reino do Algarve, que o Povo daquela Villa
comprou hum Relogio publico e colocando-o na Torre da Igreja
Matriz da ditta Villa, ofereceu sua fiscalização á Camara que no-
meou o supplicante para o regular e dár corda, porem sem lhe
determinar ordenado em razão de para isso necessitar autoriza-
ção: e como aquelle concelho he pobre e se lho faz menos violen-
to desincorporar de suas rendas a dos aferimentos daquela dita
Villa e termo, do que estabelecer hum ordenado ao menos de vin-
te e quatro mil reis a que não chegão os ditos aferimentos, requer
a V. R. Magde [Vossa Real Majestade] se digne consederlhe a mes-
ma pelo salario do trabalho de que se acha incumbido, pois que
ha hum anno que trabalha sem paga e não pode por mais tempo
ter tal penção sem interesse; e porque este estabelecimento he de
utilidade publica senão deve perder por falta de quem o adminis-
tre. Portanto Pede a V. Magde se digne consederlhe a graça que
supplica ouvida primeiramente a Camara. E. R. M. [El Rei Mercê]»
Torre do relógio na igreja matriz de Lagoa.