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1964
J o s é N i va l d o J u n i o r
R o m a n c e
O Julgamento de Deus
ISBN 978-85-8165-127-9
9 788581 651279
JoséNivaldoJuniorOJulgamentodeDeus
O rei está sempre nu, sabe disso
todo súdito que se preza.
José Nivaldo Junior, ciente do
fato, usa o humor para desmitificar
a ditadura instalada com o golpe mi-
litar de primeiro de abril de 1964.
Nunca foi servo do infausto episódio,
pelo contrário, sua trajetória de mili-
tante político o levou à prisão. Isso,
no entanto, é outra história. O que
nos interessa agora é sua postura de
permanente opositor da barbárie ins-
titucionalizada.
Apossando-se de uma arma anti-
ga, mas ainda infalível, a prosa pica-
resca, o escritor mostra maturidade
ao manipular elementos conflitan-
tes, como a História e a ficção. Mui-
tos dos fatos narrados aconteceram
sim e surgem no livro para pontear
o absurdo da época, na combinação
criativa entre o real e o imaginado.
Nesses meandros vai inserindo ou-
tros debates de conceitos políticos
e até filosóficos, sempre adornados
com a ficção, o que torna o romance
uma espécie de ensaio risível sobre
a condição política do ser humano.
Tudo dito numa linguagem mais
para Sancho que para Quixote, outra
homenagem à nossa tradição pica-
resca, termina por nos oferecer pon-
tos de reflexão sobre as escravidões
políticas e religiosas que nos martiri-
zam. E, enfim, alertar para o fato de
que, mesmo nu, o rei tem poderes
sobre vidas e mortes. Então, antes
de querer vesti-lo, o mais prudente é
não deixá-lo nascer.
Maurício Melo Júnior
eus no banco dos réus? Sim.
Foi o mais atrevido e criativo desafio ao nas-
cente regime militar do Brasil, em 1964, idealizado
por um grupo de jovens contestadores.
Este livro narra o encadeamento de fatos enigmá-
ticos e acontecimentos políticos que envolveram
o inédito julgamento e o seu magnífico desfecho.
Um evento que, a partir de uma cidade do interior,
repercutiu, dividiu e apaixonou o mundo.
Como diz o ex-presidente da Academia Brasileira
de Letras, Marcos Vinicios Vilaça: “O autor cultiva
um estilo que associa a retórica quotidiana a uma
eloquência que vai da censura ética à ironia aberta
e ao humor sem freios”.
Um romance inovador, que diverte, polemiza e
surpreende da primeira à última página.
D
José Nivaldo Junior nasceu no Recife, em 1951.
Passou a infância e a adolescência em Suru-
bim, cidade do Agreste pernambucano, onde
os seus pais, médicos e escritores, se fixaram
para sempre. Estudante de Direito nos Anos
de Chumbo, combateu a ditadura. Seques-
trado pelo doi/codi, teve depois sua prisão
formalizada. Passou 21 meses e 19 dias no
cárcere. Tornou-se publicitário e fez mestra-
do em História. Especializou-se em Marketing
Político. Prestou e presta serviços a grandes
nomes da política brasileira. É um dos profis-
sionais com mais rico e diversificado currícu-
lo na área. É autor do best-seller Maquiavel,
o Poder, com mais de 20 edições, no Brasil e
no exterior.
Foto:WiltonMarcelino
Capa_1964 O julgamento de Deus.indd 1,3,5 10/03/2014 13:19:12
Recife, 2014
1964
J o s é N i va l d o J u n i o r
R o m a n c e
O Julgamento de Deus
1964 O Julgamento de Deus.indd 1 10/03/2014 13:32:57
Copyright© by José Nivaldo Junior
Revisão
Alan Leal
Capa
Moema Cavalcanti
Produção Gráfica
Bagaço Design Ltda.*
Lot Estrada de Tabatinga, 336 • Tabatinga
Igarassu/PE • CEP 53605-810
Telefax: (81) 3205.0132 / 3205.0133
e-mail: bagaco@bagaco.com.br
www.bagaco.com.br
* Endereço para correspondência:
Rua Luiz Guimarães, 263. Poço da Panela,
Recife-PE • CEP 52061-160
N734m	 Nivaldo Junior, José, 1951-
1964 : o julgamento de Deus / José Nivaldo
Junior.–Recife:Bagaço,2014.
302p.
1. FICÇÃO BRASILEIRA – PERNAMBUCO.
2. BRASIL – HISTÓRIA – REVOLUÇÃO, 31 DE
MARÇO,1964–FICÇÃO.3.BRASIL–HISTÓRIA
–REVOLUÇÃO,31DEMARÇO,1964–HUMOR,
SÁTIRA,ETC.I.Título.
CDU 869.0(81)-3
CDD B869.3
PeR – BPE 14-96
ISBN: 978-85-8165-127-9
Impresso no Brasil – 2014
1964 O Julgamento de Deus.indd 2 10/03/2014 13:32:57
2 – 3
Oferecimento
À memória de Manoel Lisboa, Amaro Luiz de Carvalho
(Capivara), Amaro Félix, Manoel Aleixo (Ventania) e
Emmanuel Bezerra, heróis e mártires do povo brasileiro,
em nome de todos os que doaram ou colocaram em risco as
suas vidas para enfrentar à ditadura militar.
Para Leta, Andréa, Marcela, Luiz e Fidel, esposa e filhos
de Evandro Cavalcanti, em nome de todas as vítimas não
contabilizadas da violência exercida contra os que lutaram
e lutam por liberdade e justiça social - parentes e amigos que
ainda hoje choram e sofrem a perda de entes queridos, além
do alto preço que pagam anonimamente em suas vidas,
dia após dia.
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AGRADECImentoS
A Sérgio, Ricardo, Murilo, João Henrique, Danilo, Breno,
Marcelo e Marcos, que contribuíram com críticas e sugestões;
A Flávia, Jemesson, Risomar, Wellington, Givanildo e Rafael,
colaboradores e amigos, que compartilharam a tarefa de fazer;
A Magnólia Cavalcanti, a parceira de sempre no artesanato das
palavras;
AIzabel,quememotivou atrilharodifícil, sofridoegratificante
percurso para lhe contar esta história.
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Sumário
1	 Um mocorongo no poder 9
2	 Revolução ou piada? 29
3	 O samba do crioulo doido 51
4	 Terremoto pra ninguém botar defeito 67
5	 Hora de juntar os cacos 91
6	 Um xerife aloprado 111
7	 Como diria a madre superiora 127
8	 O coronel e seus dois mamulengos 147
9	 Um enterro do outro mundo 159
10	 O perigo vem do alto 173
11	 Fé demais, bem, você sabe 193
12	 Os Tetéus retomam à vanguarda 211
13	 Cada coisa em seu lugar 227
14	 Como é gostosa a liberdade 247
15	 Ataque contra defesa 261
16	 O voto decisivo 281
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8 – 9
Capítulo 1
Um mocorongo no poder
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[1]Ummocorongonopoder
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10 – 11
Os matutos costumam dizer na sua linguagem
peculiar: “Mês miou, mês cabou”. Ou seja, depois de metade, o mês já
está chegando ao fim. Acostumado a acordar de madrugada ao longo
de toda a vida, o marechal chegou cedo ao Palácio do Planalto, naque-
le dia da segunda metade de agosto de 1964, quando o mês já tinha
embicado para o final. Aguardava para uma audiência o ministro das
Relações Exteriores.
Depois de dar uma olhada nos jornais, ficou andando de um lado para
o outro, contemplando a Esplanada dos Ministérios e o Congresso
Nacional através das paredes de vidro do gabinete presidencial, seu
local de trabalho desde abril. Estava no governo havia pouco mais de
quatro meses, ainda procurando se acostumar melhor aos meandros
do ambiente político. De repente se deu conta de que era a primei-
ra vez que um ministro civil solicitava uma audiência a ele. Antes, só
compareciam quando convocados. A solicitação inédita o intrigava. O
que o auxiliar estava trazendo? Só podia ser problema, e dos grandes.
Escolhido pelos seus pares para ocupar o cargo máximo do País, de-
pois do golpe militar, em circunstâncias que ao longo da narrativa vão
ficar melhor esclarecidas, o marechal usurpou o título republicano e
democrático de presidente, e como tal exigia ser tratado.
Como os historiadores nunca se deram ao trabalho de botar os pingos
nos is, e os documentos oficiais nunca foram retificados, os ditado-
res do período militar, e até de ditaduras anteriores, continuam sendo
chamados de presidentes. De modo que o País viveu quase 40 anos
intercalados sob ditaduras diversas, sem que conste dos livros de His-
tória um único sujeito tachado de ditador.
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[1]Ummocorongonopoder
O marechal só era chamado de ditador, tirano ou outro sinônimo
equivalente em panfletos clandestinos que a muito custo a oposição
conseguia fazer circular. Ou em raras ocasiões no exterior, por parti-
dos de esquerda que funcionavam em países democráticos
A voz do chanceler, um tratamento que era atribuído ao responsável
pelas relações internacionais do País, denotava apreensão e ansiedade.
Presidente,desculpou-seportelefone,só estou lhe tirando dos seus mui-
tos afazeres porque trata-se de um assunto urgente e delicado. E só tomo
essa liberdade porque já esgotei todas as instâncias sem encontrar uma
orientação adequada. O único encaminhamento que me resta é recorrer
à sapiência, ao tirocínio e à autoridade iluminada de Vossa Excelência.
O marechal gostou de ouvir o elogio. Concordou no íntimo. Ele, real-
mente, na condição de maior autoridade do País, não era para ser per-
turbado por qualquer dá cá aquela palha.
O que apreciava, na verdade, era conversar sobre motes e piadas de
caserna. Conhecia os últimos modelos de armamentos, as táticas e
estratégias mais modernas, era especialista em história militar. E se es-
baldava de rir com as mais tolas anedotas sobre recrutas.
Outrotemaquedominavabemeraliteraturaregional.Cultivavaaami-
zade de escritores, inclusive tidos como esquerdistas. Nesse assunto
não fazia discriminações ideológicas. Nas férias, frequentava a fazenda
de consagrada romancista social que na juventude fora até comunista.
Detestava conversar sobre banalidades em geral, particularmente fo-
focas sociais, futebol e principalmente política.
Depois que assumiu o cargo supremo do País, esse último tema pas-
sou a ser parte da sua rotina. Era um dos contrapesos da função. Mili-
tar é acostumado a dar ordens e ser obedecido. Política, mesmo numa
ditadura, implica em conversas e negociações. Coisa muito chata, para
ele. Sua úlcera queimava como brasa. E política internacional, então,
era purgante em dose dupla.
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12 – 13
Porisso,nãofazia,atéaquelemomento,muitaquestãodeacompanhar
as minúcias do governo. Tudo o que subalternos pudessem pôr em
prática sem contrariar o seu comando estava de bom tamanho. Desde
que não desagradasse ao Exército e à Embaixada dos Estados Unidos
da América do Norte. Pode até parecer brincadeira, mas a doutrina
adotada depois do golpe era clara: o que é bom para os Estados Uni-
dos é bom para o Brasil.
Apesar do esforço para aparentar uma unidade monolítica, o Exército,
a Marinha e a Aeronáutica disputavam poder entre si. Dentro de cada
uma dessas forças, correntes antagônicas se digladiavam. O governo,
na parte que coube aos militares, era uma sucessão de feudos, ocupa-
dos pelas diversas linhas conflitantes. A fim de acomodar esse saco de
gatos, cada qual mandava no seu pedaço.
Entretanto, quando surgiam problemas, complicações ou aborreci-
mentos que não conseguiam resolver sozinhos, todos corriam para
o marechal. Ele era o ponto de equilíbrio, o algodão entre os cristais.
Assim, era forçado a lidar com um aborrecimento atrás do outro. Raro
odiaquenãolhecaíanocoloalgodesagradávelparadecidir.Governar
éresolverpepinos,filosofoucertodiaparaumaltoexecutivodaONU.
Por isso, já andava pela tampa do tabaqueiro, como se dizia no interior
do Ceará, com tantas chateações medíocres.
Enquanto esperava, olhando para o relógio a todo instante, foi várias
vezes ao banheiro arrumar o fraque diante do espelho. Durante toda
a sua extensa carreira, desde os tempos da Escola Militar, o marechal
sempre fora o que na gíria dos quartéis se chama de mocorongo. Um
caipira de almanaque, um sujeito desmantelado como uma capivara.
Do uniforme de campanha à farda de gala, nenhum traje lhe caía bem.
Destacou-seentreosseusparespelaaplicação,culturaeatémesmoin-
teligência, nunca pela elegância. Agora, escolhido ditador, ou melhor,
presidentedaRepública,conformeaterminologiaoficial,foiobrigado
a trocar a farda por roupas civis. A situação ficou ainda pior.
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[1]Ummocorongonopoder
Era baixinho, cabeça grande e chata. Diziam que ficara assim porque
na infância distante no Ceará os adultos batiam sempre com a palma
da mão no seu quengo e falavam: Esse menino vai dar pra gente. Nin-
guém ostenta uma catedral desse tamanho para nada.
Foi assim, segundo as más línguas, que aplainou o alto da cabeça e
afundou o pescoço. O que restou dessa parte do corpo que a girafa
tem de sobra era tão pequenininho que a cabeçorra parecia pregada
diretamente sobre os ombros. Até para olhar para os lados era difícil,
tinha quase que virar o tronco inteiro, como se fosse o robô do popu-
lar seriado da televisão Perdidos no Espaço.
Mas esse detalhe não atrapalhou sua trajetória. Vida afora, acabou
cumprindo as profecias da infância. Galgou por mérito os mais altos
postos do Exército, casou com mulher honrada, inteligente e bonita, e
agora, viúvo, estava empoleirado no cargo mais importante da Nação.
O sucesso não impedia que vivesse mal acomodado dentro do fraque
cortado justo, na tentativa dos alfaiates para deixá-lo um pouco mais
esbelto e menos desgracioso.
Para piorar as coisas, certo publicitário gaúcho teve uma infeliz ideia
que a muitos áulicos pareceu genial. Sugeriu e foi acatado que o di-
tador portasse, o tempo inteiro, a faixa presidencial verde e amarela
atravessadasobreopeito.Issoparasediferenciardoantecessor,pouco
dado a essas formalidades bobas. E, de quebra, passar a ideia de ser
presidente em tempo integral.
A imagem desse mocorongo que parecia mal-assombrado foi quase
imediatamente espalhada através de uma foto oficial obrigatória nas
repartições públicas, escolas, prefeituras, sindicatos e, também, adota-
da por bajuladores ou partidários do regime em instituições, igrejas e
até residências.
Seu desalinhamento facilitava a vida dos chargistas e humoristas, em-
bora estes tivessem pouco espaço para divulgar suas caricaturas. Estas
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14 – 15
circulavam como folhetos clandestinos, passando de mão em mão e
provocando gostosas risadas entre os frequentadores da boemia.
O desmantelo facilitava também a vida dos imitadores de todos os
quilates. Em toda conversa nos bares ou pontas de rua, onde não esti-
vesse presente uma autoridade, um policial ou conhecido dedo-duro,
havia sempre alguém para arremedar o ditador.
Até pelo interior do País esse assunto era tratado. Dizia-se pelas bo-
degas: Esse aí foi escolhido a dedo. Quem fez ele felizmente quebrou a
fôrma. O homem é mais feio do que talho de foice, mais mal-amanhado
do que o boi de nanico.
Também nos ambientes mais seletos das sociedades carioca e paulis-
tana, a estética presidencial era assunto obrigatório. As senhoras que
se reuniam todo dia para rezar um rosário pelo sucesso do que chama-
vam Revolução Católica, Apostólica, Romana e Redentora não con-
seguiam fugir ao assunto. Entre elegantes chávenas de chá importado
acompanhadopelomaislegítimoboloinglês,perguntavammaliciosa-
mente qual a misteriosa solução para o presidente conseguir colocar
a gravata.
Era tudo falsidade dessas matronas carolas, que posavam de bastiães
da moral e dos bons costumes. Todas sabiam a resposta, que ouviam
nas cozinhas, nas garagens, nas conversas de pé de ouvido.
A população em geral também conhecia a fórmula. Bastava circular
por oficinas, puteiros, bares, praças, ruas. Ou até ficar no sereno das
missasecasamentos,nasportasdasigrejas.Ométodoutilizado,muito
simples, por sinal, era geralmente descrito com detalhes e coreografia
da forma mais direta e escrachada possível.
Dava-se como certo, e assim se representava a cena, que o marechal só
conseguia completar o traje passeio oficial quando o ajudante de or-
dens aplicava-lhe uma popular dedada no centro das nádegas. E mes-
mo assim com bem muita força, sob pena de não fazer efeito.
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Todo mundo sabe que o dedo maior de todos, aplicado com vigor no
eixo central da bunda, provoca em qualquer homem uma reação fisio-
lógica natural: um gemido gutural e uma esticada do pescoço.
Nesse momento crucial, o ditador conseguia espichar um tantinho
de nada a minúscula embalagem da garganta. Aproveitando o movi-
mentoinstintivo,oajudantedeordens,agindocomdestrezaerapidez,
conseguia encaixar a gravata. Em caso de fracasso, o procedimento
constrangedor tinha que ser repetido.
Essas e dezenas de outras piadas tendo o ditador como motivação se
multiplicavam País afora. Afinal, rir dos opressores é remédio com sa-
bor de refrigerante.
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16 – 17
Um quengo privilegiado
Por conta das características e contradições de uma ditadura que ain-
da engatinhava, a agenda do déspota, que fazia força para parecer es-
clarecido, era um verdadeiro faz de conta. Tinha sempre um toque de
imprevisibilidade, desde que os ministros militares metiam a mão na
portaeentravamaqualquerhora,semsefazeremanunciar.Mesmoas-
sim, a relação de compromissos era folgada feito colarinho de palhaço.
Para preencher os espaços vagos, o ministro chefe da Casa Militar, que
ironicamente era o responsável pela comunicação do governo, asses-
soradoporpublicitáriosejornalistasmetidosaespecialistasemgestão
de imagem, sempre tinha o cuidado de programar algum compromis-
so que rendesse notícia.
Inutilidades simpáticas como visitar uma escola infantil ou um hospi-
tal eram constantemente relacionadas para humanizar a sua imagem.
Receber alguma autoridade estrangeira dava ao ditador ares de impor-
tância e reconhecimento internacional. Reunir-se com lideranças reli-
giosas, sindicais ou empresariais, passava a impressão de um homem
aberto ao diálogo. Tudo isso não ocupava mais do que uma hora do
seu dia. Entretanto, gerava fotos para as primeiras páginas dos jornais
e recheava os noticiários de rádio e da televisão. Além de preencher
espaço nas naturais, como eram chamados os noticiários que antece-
diam os filmes nos cinemas, exibidas entre um trailer e outro.
Nesse caso específico, com o tempo, a duração das aparições foi sen-
do gradativamente reduzida. É que toda vez que o ditador surgia,
aproveitando o escurinho do cinema, a moçada o saudava com uma
sonora vaia.
Mais ou menos pelo mesmo motivo, as atividades externas do ditador
eram monitoradas com muito cuidado. Vistoriar obras ou frequentar
locais com aglomeração popular, por exemplo, eram programas fora
de cogitação.
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[1]Ummocorongonopoder
A primeira e única iniciativa do gênero, logo nas primeiras semanas,
resultou em verdadeiro desastre midiático e político. Primeiro, não foi
encontrado em nenhuma loja do ramo um capacete capaz de se aco-
modarnaimensacabeçadoditador.Foiprecisofabricarumapetrecho
com diâmetro especial. Mesmo assim, ou por isso mesmo, o resultado
não podia ter sido pior.
Os operários foram perfilados à distância regulamentar e alguns esta-
vam, sob coação, segurando faixas laudatórias. Entretanto não esca-
pou aos ouvidos atentos dos jornalistas presentes, inclusive e princi-
palmente dos estrangeiros, o desmoralizante coro de vaias com que o
visitante foi saudado. No dia seguinte, o registro negativo estava feito
na imprensa do mundo inteiro.
Mas a pior repercussão aconteceu mesmo em solo pátrio. A equipe
palaciana vivia pisando em ovos, todos com medo de se tornarem sus-
peitos de sabotagem ou agentes da guerra psicológica adversa, que era
como se tratavam os comentários desfavoráveis ao regime.
No ambiente palaciano, quando se referiam ao general, era inimagi-
nável qualquer restrição ou comentário que parecesse crítica. Assim,
ninguém teve coragem de tomar a iniciativa e expressar o pensamen-
to comum sobre o ridículo da foto oficial do evento. Repetiu-se no
Planalto Central aquela fábula do rei que está nu. Como não houve
manifestação de discordância, a assessoria liberou a imagem para a
mídia impressa.
No outro dia, logo cedo, quando a foto apareceu estampada em todas
as primeiras páginas dos jornais, aconteceu um verdadeiro bafafá.
Na fotografia, o marechal, com seu capacete de inimaginável dimen-
são, ficou parecendo um extraterrestre de história em quadrinhos. As
pessoas passavam pelas bancas e, mesmo quando não compravam um
exemplar, faziam questão de apreciar a munganga para cair na inevitá-
vel gargalhada.
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18 – 19
O mais atrevido foi certo jornaleco meio comunista do Rio de Janei-
ro, que até então sobrevivia às perseguições da ditadura a duríssimas
penas. Sentindo que não aguentaria por muito tempo a pressão do go-
verno, as sucessivas prisões de seus colaboradores e a fuga em massa
dos anunciantes, o editor-proprietário optou por aproveitar a opor-
tunidade para sair de cena em grande estilo. Fez uns ajustes na foto e
enquadrou o marechal em frente a uma britadeira, de um ângulo em
que a máquina ficou parecendo uma nave espacial.
Ocupou com o retrato toda a parte de cima da primeira página. Logo
abaixo da foto, estampou uma manchete espalhafatosa anunciando
que os marcianos tinham tomado o governo no Brasil. Só lá embai-
xo, em tipos quase ilegíveis, se explicava que a manchete não era nada
mais nada menos que uma chamada para um artigo de ficção cientí-
fica, a ser publicado na edição seguinte. Que, aliás, nunca veio à luz.
Antes que a Polícia Militar invadisse a redação e empastelasse a publi-
cação a marretadas, o jornaleco rodou 4 edições sucessivas. Utilizou
até papel emprestado por concorrentes que, meses antes, pregavam o
golpe, mas que também não estavam satisfeitos com o andar da car-
ruagem. Vendeu feito água no deserto. Os exemplares eram disputa-
dos a tapa na Cinelândia, no Largo da Carioca, na Avenida Rio Branco
e outros pontos de grande concentração popular.
Graças à ponte aérea, em pouco tempo a publicação chegou a São
Paulo.
No Rio, as Polícias Civil e Militar foram mobilizadas. Revistavam e
arrancavam os impressos das mãos dos leitores. Filas, elevadores, res-
taurantes, repartições públicas, lotações, escritórios, trens de subúr-
bio, tudo virou um verdadeiro pandemônio, um generalizado campo
de batalha. Quem conseguiu salvar o seu exemplar fez sucesso à noite
nos bairros. Vários desses leitores, denunciados por vizinhos alcague-
tes, que naqueles dias sombrios se multiplicavam feito erva daninha,
foram parar em delegacias e quartéis.
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[1]Ummocorongonopoder
Cabeças rolaram. A equipe de marketing, do publicitário ao fotógrafo,
foi toda substituída. Mas o estrago estava feito.
A partir dali, o próprio marechal estabeleceu que em matéria de obra,
só iria a inaugurações quando não se exigisse capacete em ninguém.
E como nada havia para inaugurar, ele aproveitou o episódio para se
livrar de levar sol quente no quengo e aplaudir discursos sem graça
nenhuma.
Nada disso, porém, estava em pauta ou sequer era lembrado naque-
la manhã. O que interessava eram as novas do ministro, que cumpriu
britanicamente o horário, fez-se anunciar, cumprimentou o chefe, es-
perou a ordem para sentar.
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20 – 21
Bate-bate coração
O marechal ajeitou-se com dificuldade na cadeira larga e alta que fora
feita para acomodar as longas pernas de Juscelino Kubitscheck, seu
primeiro ocupante. Sem se preocupar em esconder o desconforto, au-
torizou o ministro a expor o que o levara a solicitar às pressas aquela
audiência imprevista.
O chanceler estava ainda pior acomodado. Balançava para um lado e
para o outro, parecia pêndulo de relógio de parede. Procurava ajeitar
as nádegas na poltrona o tempo todo. Se estivesse sentado em cima
de um formigueiro, não transpareceria maior desconforto. Sabia que
dificilmente o que tinha a dizer agradaria. Era perspicaz o suficiente
para perceber, também, que o seu papo, recheado de mesuras e forma-
lismos vazios, dava nos nervos do ditador.
Achou que precisava ganhar algum tempo, preparar o espírito do co-
mandante supremo. Por isso, iniciou uma conversa do tipo que o povo
chama de cerca-lourenço, evitando ir direto ao assunto.
O marechal já sabia que o problema não era simples. Por isso, após
ouvir alguns longos minutos de lero-lero, girando em torno da delica-
dezadotemaasertratado,cortouapalavradoauxiliare,bruscamente,
ordenou que fosse direto ao assunto.
Mais suado do que sugeria o clima do Cerrado naquela época do
ano, o ministro nem assim conseguiu ser esclarecedor. Estava tra-
vado, sua aclamada loquacidade de repente fora para o espaço. Ao
invés de cumprir a ordem, continuou costeando o alambrado, como
se diz no Sul.
Foi naquela altura que o marechal perdeu a calma pela primeira vez.
Levantou a voz e determinou: Ministro, por caridade, poupe os meus
neurônios. Se eu não sei do que se trata, como posso lhe dar comandos,
orientações ou sequer rezar um padre-nosso pela solução do problema?
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[1]Ummocorongonopoder
Apesardeculto,omarechaltinhaumsensodehumorrasteiro.Alémdisso,
não estava acostumado e não gostava de ser desobedecido. Então apelou
paraaignorância.Ameaçouoministrocomalinguagemdosporões,onde
osprisioneirospolíticoseraminterrogados:Talvezunsbonschoqueselétri-
cos nos culhões lhe façam desembuchar. Nãoteste a minha paciência.
A pressão excessiva fez efeito contrário, como aliás acontecia muitas
vezes nos calabouços onde se praticavam as torturas contra inimi-
gos do regime. O ministro perdeu a cor, a fala e a capacidade de se
expressar.
O absurdo da situação era tão evidente que o marechal caiu em si. Es-
tava no caminho errado. Era preciso relaxar o interlocutor. Apertou
umacampainhaepediuàsolícitasecretária,quesurgiuaparentemente
do nada, dois copos com água gelada e dois cafezinhos bem passados.
Logo entrou Cícero, o copeiro oficial, trazendo a encomenda no
grau. Xícaras fumegantes, copos suando da água gelada. O marechal
aproveitou para desanuviar o ambiente e perguntou a Cícero pelas
novidades.
Era como um código. O copeiro sempre trazia para o presidente con-
versas de cocheira, relatórios da Rádio Corredor e até piadas sobre o
próprio marechal que ninguém tinha o topete de contar. Em troca,
servia de confidente para reflexões ditatoriais que nenhum outro ou-
vido tinha o privilégio de escutar.
Naquele momento tenso, o copeiro foi peça fundamental para resol-
ver o impasse. Percebendo que o ambiente estava soturno, fez o seu
jogo. Disse ao ditador que conhecia uma piada nova sobre o regime,
mas era muito pesada e ele não tinha coragem de contar na presença
de um estranho.
Conte, ordenou o marechal. É até bom, porque esse ai deve pensar que
eu sou um monstro e vai ver que eu sou, além de democrata, muito bem
humorado.
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22 – 23
Cícero então arriscou. E narrou a piada do ônibus lotado que foi parar
numa delegacia devido a uma confusão generalizada.
AcausadofuzuêfoioespancamentosofridoporumoficialdoExército,
que estava fardado. O militar, muito irritado, disse ao delegado que foi
agredido pelos passageiros e exigia uma punição exemplar para todos.
A autoridade policial começou, então, a ouvir os acusados. A primeira
foi uma moça bonita e exaltada, que sem medo apontou para o militar.
Relatou que estava no ônibus sentada no seu canto quando inespera-
damente o milico passou a mão nos seus seios sem o menor respeito.
Meti minha sombrinha nele com toda a força, confessou.
O próximo depoente falou que era noivo da moça. Confirmou a his-
tória, admitiu que também tinha dado uns sarrabulhos no atrevido.
Para azar do oficial, a família inteira da noiva estava no coletivo. Pai,
mãe, irmãos, primos, todos admitiam o espancamento em função do
desrespeito à donzela.
Lá por último vem um amarelinho, e o delegado, já de saco cheio, per-
guntou: E o senhor, é o quê da moça? O sujeitinho fez cara de espanto:
Eu não sou nada, seu delegado. Nem conhecia ela.
Surpreso, o delegado perguntou se ele também tinha agredido o ofi-
cial. Mais surpreso ainda ficou quando o sujeitinho confirmou. Estava
no ônibus, viu todo mundo metendo o pau no militar, pensou que a
revolução tinha acabado, desceu o cacete também.
O marechal gargalhou, o chanceler deu um risinho amarelo, o clima
desanuviou. Cícero foi convidado a se retirar, a palavra voltou ao mi-
nistro, que, bem mais tranquilo, conseguiu engrenar a conversa.
Presidente, eu preciso de comandos urgentes. Já consultei o coronel che-
fe do Serviço Secreto, não obtive resposta. O embaixador do país de
Lincoln não quer entrar no assunto. A Santa Sé pede informações, os
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[1]Ummocorongonopoder
principais jornais querem entrevistas, as nossas embaixadas não sabem
o que dizer. Administrei até aqui, agora fugiu da minha alçada.
A fala do ministro, soltando torpedos em doses homeopáticas, era fru-
to da remota esperança de o marechal já estar informado de alguma
coisa que facilitasse a sua missão. Mas tudo foi inútil.
Pela expressão do chefe, o ministro percebeu que ele estava completa-
mente por fora do assunto. É o que dá intimidar a imprensa e encher
de medo os auxiliares. Acaba-se sem saber de coisas importantes que
deveriam ser bem conhecidas, pensou com os botões da sua casaca.
O pior é que o destino o escolhera para ser o portador da má notícia.
Tentando num esforço supremo enrolar um pouco mais para preparar
melhor o espírito do chefe, assumiu o risco e tergiversou: O senhor
conhece a cidade pernambucana de Boi Pintado, antigamente denomi-
nada Boa Vista, presidente?
O marechal conhecia. Fora lá uma vez, na época de comandante do IV
Exército, cuja sede é no Recife. Fica a cerca de 130 km da capital per-
nambucana, na região Agreste do estado. É aclamada, até hoje, como
Capital Mundial da Vaquejada.
Foi exatamente para assistir a um desses eventos que se deslocou até
a cidade. Reclamou da estrada ruim, achou tudo feio, detestou a festa.
Vaqueiros derrubando bois pelo rabo, levantando poeira, o povo vi-
brando em palanques que pareciam poleiros. Um esporte no qual não
achavagraçanenhuma,apesardesermuitoapreciadoporseusconter-
râneos nordestinos. Estar em Pernambuco e não conhecer a tradicio-
nal vaquejada de Boi Pintado, que acontece todo mês de setembro, é
como ir a Roma e não ver o papa.
Porém, nos últimos meses, a má impressão da visita desaparecera. E o
marechal fez questão de registrar: Não apenas conheço, como de lá só
tenho recebido boas notícias.
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24 – 25
Agora a surpresa foi do chanceler. Ocupado com as relações interna-
cionais, não tinha tempo para se atualizar no noticiário interno. Por-
tanto, não sabia de nada de bom acontecido em Boi Pintado, só estava
informado da parte complicada.
O marechal encarou o chanceler, a expressão mais animada trazia ao
mesmo tempo uma ordem inadiável. Agora que precisava ainda de al-
gum tempo, o ministro não dispunha de mais nenhum.
Conformado, engatilhou frase: Não sei se o senhor está a par,
presidente...
O mandatário, não estava a par de nada ruim vindo de Boi Pintado. E
não gostou de saber que estava desinformado. Pior ainda, achou muito
constrangedor ter que passar recibo da sua ignorância para um auxiliar
comoqualnãotinhaqualquerintimidade.Oseudesconhecimentoera
prova de que ou o Serviço Secreto - o já temido SS - não funcionava ou
omitia notícias ao chefe supremo.
O ministro percebeu a situação, atrapalhou-se num gaguejado inter-
minável. Foi preciso que o presidente perdesse a linha pela segunda
vez, desse uma tapa na mesa, para o homem cair em si, novamente se
recompor e desembuchar de uma vez por todas: Não sei se o senhor
sabe, presidente, falou rápido e nervoso, mas Deus vai ser julgado em
Boi Pintado, e o assunto já ganhou o noticiário internacional.
AmudançanaexpressãodomaisaltomandatáriodoPaísfoitãogrande
que o ministro teve a impressão de que o marechal tinha ficado verde,
amarelo, azul e branco ao mesmo tempo. Se enfiassem um cabo de vas-
soura no seu ouvido, naquela hora, podiam balançar que seria confun-
dido com uma bandeira nacional. Além disso, da boca que emitia uma
baba parecida com espuma, saiu um urro quase animal: Deus o quê?
Nesse momento, o ministro tinha atingido quase os limites da co-
vardia. Segurou-se a custo para não urinar ali mesmo. Para sua sorte,
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[1]Ummocorongonopoder
lembrou de uma expressão calhorda que muito ouvira na época de es-
tudante,masqueexcluíracompletamentedoseuvocabulárioelegante.
Naquele instante de agonia, ele, que nunca utilizara expressão grossei-
ra, se agarrou silenciosamente com a frase como uma tábua de salva-
ção: Já que passou a cabecinha, o resto vai de qualquer jeito.
Recomposto, passou a se expressar com inesperado vigor e até uma
pontinha de atrevimento: É isso mesmo que o senhor ouviu, presidente.
O julgamento de Deus está marcado para se realizar em Boi Pintado,
agora, no próximo dia 7 de setembro. O núncio apostólico, representante
direto do Papa e do Espírito Santo, quer uma audiência urgente com o
senhor. E a imprensa internacional, abusada como sempre, está exigin-
do uma entrevista coletiva para saber a posição oficial do País sobre esse
inusitado acontecimento.
O alívio opera milagres. A cada palavra que proferia, o ministro ia re-
cuperando a sua habitual impertinência, nunca exercitada diante dos
poderosos do regime. Percebeu que a fraqueza mudara de lado. Agora
quem tremia nas bases era o ditador. Mudava de cor como uma árvore
de Natal, parecia que ia ter uma convulsão a qualquer momento.
O chanceler sentiu-se inesperadamente tomado de tranquilidade e sa-
tisfação. Passou a saborear cada palavra como uma espécie de vingança
pela intimidação que o superior lhe infundia. Mandou falar, ia ouvir.
E prosseguiu: Além disso, presidente, existem diversos outros problemas
acontecendo por lá. Temas polêmicos e complexos, que despertam o in-
teresse não apenas da Santa Sé, como também dos serviços de inteligên-
cia estrangeiros e da comunidade científica internacional. Questões que
desafiam a nossa gloriosa e vitoriosa Revolução Redentora, que o senhor
tem conduzido com tirocínio perfeito e generosa mão de ferro. Finalizan-
do, repetiu, dessa vez gratuitamente, por pura maldade: Deus vai ser
levado ao banco dos réus em Boi Pintado, Excelência.
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26 – 27
Foi a vez do marechal quase engolir a língua. Articulou as palavras
com dificuldade, fazendo pausas entre cada uma delas, procurando ar.
Quer dizer que, no meu governo... católico, apostólico, romano, ociden-
tal e cristão... defensor da fé, da tradição, da família e da propriedade
privada... resultado da Revolução Redentora de 31 de Março contra o
comunismo ateu...
Quando se referiu ao comunismo ateu, foi dominado pela emoção.
Perdeu o fôlego, parecia asfixiado, o multicolorido do rosto foi subs-
tituído pelo roxo monocromático. O chanceler, apavorado, gritou por
socorro.
O coronel médico de plantão, que sempre estava no gabinete contí-
guo, entrou às carreiras e, quando viu o quadro, diagnosticou um pos-
sível enfarto em andamento. Desconsiderou a hierarquia e, de acordo
com o manual de medicina de combate, desferiu um murro violento
no peito do marechal, para garantir o coração em funcionamento.
A autoridade desabou de costas, meio desacordada. Para sua sorte e
felicidade geral do mundo ocidental e cristão, estava diante do sofá,
caiu no fofo e não se feriu.
Na verdade quem saiu machucada foi a mão do médico, que naquela
agonia não percebeu e esmurrou diretamente a estrela de metal que
sobressaía no meio da faixa estendida sobre o peito ditatorial.
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28 – 29
Capítulo 2
Revolução ou piada?
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[2]Revoluçãooupiada?
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30 – 31
Pergunte a qualquer aluno do primeiro grau
em que data ocorreu o golpe militar de 1964, que ele responderá com
toda a segurança: No dia 31 de março.
Trata-se de uma impostura que vem sendo alimentada ao longo de dé-
cadas. O golpe ocorreu no dia 1º de abril. A data não poderia ser mais
adequada, pois trata-se do Dia Internacional da Mentira. E falsidades
oficiais foi o que nunca faltou sobre os acontecimentos daquele dia e
seus desdobramentos pelos próximos 21 anos.
Os responsáveis pela antecipação foram os próprios artífices do movi-
mento. Naquela época, a comemoração era muito maior do que hoje.
No mundo inteiro, quase todas as pessoas se empenhavam em fazer
amigos ou desconhecidos caírem em alguma esparrela. E também ti-
nham que prestar atenção para não serem apanhados em armadilhas,
pois as lorotas eram muitas e criativas.
Até órgãos sérios da imprensa internacional entravam na brincadeira,
noticiando os acontecimentos mais improváveis com ares da maior
seriedade. Muitos acreditavam e repetiam a ficção. Algumas tomavam
proporções globais.
Em Boi Pintado, antiga Boa Vista, era comum se espalharem naquele
diaasmaisvariadaspotocas.Desdeamortesúbitadealguémdequem
não se gostava até que a padaria de um adversário político estava dis-
tribuindo pão de graça.
Poucos anos atrás, tinham engabelado muita gente no mesmo pacote.
Seu Mulambinho era conhecido como o maior velhaco das redonde-
zas. Vivia encalacrado com Deus e o mundo. Cinicamente, adotava o
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[2]Revoluçãooupiada?
lema “devo, não nego, pago quando puder”. Andava todo engomado
e com banha nos cabelos pelas ruas da cidade de cabeça erguida, na-
riz empinado, farejando a próxima vítima. Quem não te conhece que te
compre, falava o povo. Agia como se fosse a criatura mais correta do
Universo.
Um dos muitos enganados por ele espalhou a falsa notícia de que seu
Mulambinhotinhaacertadonamilhardojogodobicho.Receberaum
dinheirão e estava se preparando para arribar.
Foi um desadouro. Os credores em peso correram para receber o seu
pedaço. Comerciantes, prestadores de pequenos serviços, profissio-
nais liberais, agiotas, amigos ludibriados de boa-fé, dirigiram-se em
bandos à sua casa para não perderem a chance. Até diversas raparigas
daAvenida,comosechamavaazonadebaixomeretríciodeBoiPinta-
do, acorreram ao evento. Não eram poucas que tinham levado o popu-
lar xexo de seu Mulambinho. Ou seja, prestaram seus peculiares ser-
viços sem receber a remuneração acordada. Agora, engrossavam com
toda razão a malta irada que encurralou o homem na sua própria casa.
A enfurecida multidão destruiu todo o precário patrimônio do deve-
dor. Não sobrou um pote para contar a história. Nem mesmo os avi-
sos colocados às pressas no alto-falante da igreja matriz, alertando a
população de que se tratava de uma brincadeira de primeiro de abril,
fizeram efeito sobre a fúria do populacho. Seu Mulambinho só não
embarcou dessa para pior graças primeiramente a Deus e depois à
intervenção providencial da polícia, que dispersou a turba com tiros
para o alto, conforme a insuspeita narrativa de dona Mimosa, esposa
do caloteiro.
Por isso, não se pode dizer que, nesse caso, os ideólogos do golpe
estivessem desprovidos de razão. Caso admitissem o dia correto do
golpe,estariamdandocabimentoaumapiadaprontaqueomundoin-
teiro cuidaria de ironizar. Fecharam questão no 31 de março, quando
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32 – 33
comprovadamente ocorreram muitas reuniões conspiratórias, mas
não aconteceu nenhuma ação golpista.
Uma das maiores provocações que se podiam fazer na época aos mili-
tares era dizer que a Revolução Redentora deles foi uma piada de pri-
meiro de abril. Muita gente levou trompaços e até acabou no xilindró
por falar tão cândida verdade.
Depois da redemocratização, a data equivocada continuou sendo
repetida. Talvez porque a polêmica naquele momento não valesse
a pena. Podia soar como revanchismo ou até provocação; na época
realmente existiam coisas mais importantes para tratar. Por outra, tal-
vez realmente porque não fizesse mais nenhuma diferença o golpe ter
ocorrido no dia tal ou qual. Interessava ao País era estar livre dele.
Pelosim,pelonão,atéhojeprevaleceadataerrada.Énodia31demar-
ço que velhos milicos saudosistas se reúnem em clubes decadentes
para festejar a merda que fizeram com o País. Autoridades militares,
fazendoouvidosdemercadoràorientaçãodosgovernoscivis,emitem
Ordens do Dia louvando o golpe que persistem chamando de revo-
lução. E ainda por cima, a data é comemorada em quartéis País afora.
As crianças continuam aprendendo nas escolas o dia errado por con-
ta do desconhecimento de muitos professores e principalmente em
decorrência do pouco caso e da falta de pulso das autoridades da área
educacional.
A data exata é incontestável. Cada dia tem 24 horas, como todo mun-
do sabe, e acaba à meia-noite. A partir daí, já é madrugada de um outro
dia. E até meia-noite do dia 31 de março de 1964 não havia nenhum
sinal de estripulia pelas ruas do País. Nas altas horas da madrugada
de primeiro de abril, na calada da noite, como se diz, é que algumas
tropas acenderam o estopim, saindo dos quartéis, em Minas Gerais, se
deslocando em comboio na direção do Rio de Janeiro.
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[2]Revoluçãooupiada?
É bom assinalar que, embora o golpe viesse sendo preparado pelo me-
nos desde a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, tudo acabou acon-
tecendo de modo bastante improvisado.
Havia muitas divergências no interior das próprias forças armadas e
principalmente na relação dessas com os norte-americanos sobre a
ocasião, a forma e a intensidade do golpe. Prevaleceram as desavenças,
o consenso não foi alcançado. Quando chegou a informação de que
uma frota ianque estava a caminho para tomar a frente da derrubada
do governo, a situação fugiu do controle.
Considerando inaceitável a presença descarada dos Estados Unidos
no comando e para não ficar a reboque dos estrangeiros, um grupo
golpista, nacionalista e anticomunista resolveu agir por conta própria.
Naquelamadrugadade1ºdeabril,umcertogeneralOlímpioMourão,
sediadoemMinasGerais,pôsastropasquecomandavaemmovimen-
to, por sua conta e risco. Forçou a barra, iniciou o levante e deu o golpe
como fato consumado.
O resultado de uma manobra dessas não acontece como num passe
demágica.Tantoqueaomeio-diaopresidenteJoãoGoulart,quetodo
mundo chamava de Jango, estava chegando em Brasília vindo do Rio
de Janeiro e continuava no poder. O mesmo acontecia com Miguel
Arraes em Pernambuco, Seixas Dória em Sergipe e diversos outros
governadores e prefeitos que depois seriam depostos pelos golpistas.
Até o começo da tarde do dia primeiro, em Minas, no Rio de Janeiro,
no Recife, em São Paulo, em Brasília, além de outras capitais, apenas
nos círculos mais enfronhados da política, sabia-se que um possível
golpe estava em curso. As pessoas bem informadas sentiam que algo
estranho estava se passando, embora ninguém fosse capaz de relatar
exatamente o quê.
Em Boi Pintado, por exemplo, localidade onde as pessoas eram infor-
madas e ouviam todas as edições do repórter Esso, inclusive porque
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o noticiário era reproduzido pela Rádio Surubim, um serviço de
alto-falantes instalado nos postes da cidade, ninguém sabia absoluta-
mente de nada. Era um dia de quarta-feira como outro qualquer.
Naquele começo de tarde, quente como uma lambida do diabo, por-
que o inverno teimava em não chegar, um grupo de rapazes cochilava
em plena via pública. Como de hábito, descansavam do almoço na
calçada da matriz, quase em frente à casa paroquial. Aproveitavam a
agradável sombra proporcionada pela alta torre da igreja nova. O mo-
vimento da rua era quase nenhum, já que a maioria da população tam-
bém tirava um cochilo depois do almoço. Nada os incomodava.
Tratava-se de um grupo heterogêneo, conhecido pelo apelido de Pen-
sadores Tetéus, como eles mesmos se chamavam. O povo dizia sim-
plesmente que eram os Tetéus, nome de uma ave noturna da região,
aparentada com o quero-quero. Costumavam discutir madrugada
adentro os assuntos mais variados. Do sexo dos anjos à Guerra Fria,
das questões fundamentais da filosofia a um pênalti não marcado no
Clássico das Multidões. Por isso, durante a tarde, estavam sempre so-
nolentos, aproveitavam a modorra do horário para tirar um ronco.
De repente, chega todo esbaforido, suado feito tirador de espírito e
com a cara espantada de quem acabara de ver assombração, nada mais
nada menos que Továrish Lói.
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[2]Revoluçãooupiada?
Negro vai virar macaco, branco vai virar banana
Továrish, como se sabe, é a palavra russa para designar camarada, o
tratamento oficial que os comunistas de qualquer escalão adotavam
entre si para transmitir a ideia de que todos eram iguais.
Não que Lói fosse comunista, ninguém acreditaria em tal acusação.
Para falar a verdade, o elemento não tinha ideologia de nenhuma na-
tureza. Não puxara ao pai, vermelho de carteirinha, comunista decla-
rado e afamado.
Tanto que para demonstrar sua afeição à União Soviética, o velho
registrou a penca de filhos com nomes de personagens gloriosos da
história do socialismo, todos com o seu sobrenome, Almeida e Silva.
O mais velho, por exemplo, era Karl Marx, conhecido como Marqui-
nhos. O segundo, Frederico Engels, era Fredinho para todo mundo.
O terceiro, Luiz Carlos Prestes, era Lulinha. As duas mulheres eram
Rosinha, de Rosa Luxemburgo, e Guinha, como chamavam Olga Be-
nário de Almeida e Silva.
O caçula carregava o nome de Vladimir Uilianov Lenine. Chamado
pelopaidesdeoberçodeTovárish,ganhounaescolaaalcunhadeLói,
o apelido pegou composto.
Továrish tinha pressa, muita pressa. Contudo sabia muito bem que
não adiantava tentar acordar a cambada de um por um, com sacudi-
delas ou modos educados. Como a turma era bruta e brincava pesa-
do, ele utilizou a objetiva solução de aplicar um chute com o bico do
sapato no vão das costelas de um dos líderes do grupo, o indigitado
Cumpade Deca.
Registre-se que daqui por diante, sempre que for mencionado, Deca
vai ser tratado por Cumpade, que era como todo mundo o chamava.
Escrever compadre, conforme os padrões da última flor do Lácio, in-
culta e bela, seria uma adulteração imperdoável. Então, como prega
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36 – 37
o filósofo Zadock dos Muros Altos, inspirado na poética de Manuel
Bandeira, a bem da comunicação fuzilemos a gramática.
Despertado dessa forma eficaz, Cumpade berrou um palavrão que
acordou não apenas toda a canalha do grupo como qualquer um que
porventura estivesse dormindo nas casas das imediações. Até dona
Severina do Padre, que tomava conta da residência do monsenhor
Afonso, deu um pulo da cama, espantada como se estivesse sendo ten-
tada pelo demônio em pessoa.
Tão logo os parceiros abriram os olhos, espantados, Lói foi anuncian-
do, com as palavras entrecortadas pela respiração ofegante, que tinha
sete notícias estranhas, e cada uma pior do que a outra, para comparti-
lhar com a turma. Querem ouvir?
De imediato, veio à cabeça de todos que Továrish tinha imaginado
uma mentira de sete modas, como se falava. Ou seja, um molho de
quengadas, para usar expressão da época. Na linguagem televisiva de
hoje, se diria que Lói tinha armado um pacote de pegadinhas, logo
sete, que é a conta do mentiroso. Constatado isso, todos acordados,
ninguém era besta de acreditar em mais nada do que ele afirmasse
em seguida. Só podia ser impostura do safado para tentar engabelar
o grupo.
Não era tarefa fácil. A totalidade dos presentes, se excluirmos da lis-
ta o notável professor Natércio Pai dos Burros, carregava nas costas
um histórico muito pouco recomendável de brincadeiras pesadas e de
mau gosto, em qualquer dia do ano. Eram capazes de reconhecer uma
lorota de longe.
Coisascomoenfiarumpedaçodecigarroacesonaorelhadeumburro
carregado de panelas de barro e ficar espiando de longe, esperando
o resultado, eram comuns. Imaginem o espetáculo do animal pulan-
do ensandecido pela dor, as panelas voando e se espatifando no chão.
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[2]Revoluçãooupiada?
Podia ser muito engraçado para quem assistia, mas representava um
grande prejuízo para o proprietário da carga.
Outra brincadeira da turma era afrouxar a cilha da sela do cavalo de
algum matuto parado na porta de uma bodega para tomar a bicada
saideira. Quando a vítima, geralmente já bem melada, tentava montar,
levava uma queda desajeitada e muitas vezes perigosa para a integrida-
de de braços, costelas e até do pescoço.
Maldade maior era colocar uma mutuca, ou seja, um pedacinho de
fósforo aceso, na cara de alguém que estivesse dormindo de papo para
o ar. Na reação instintiva à dor, o sujeito levava às mãos ao rosto com
toda a força, provocando uma forte pancada.
Recentemente, Risalvo Pezão, direitista assumido e desafeto declara-
do do grupo, estava dormindo numa mesa do bilhar de seu Janoca,
com os braços abertos. Colocaram uma mutuca no seu rosto, enfia-
ram-lhe um par de tamancos nas mãos. A pancada foi tão forte que
Risalvo quebrou o nariz e passou uns dois meses de cara inchada.
Noprimeirodeabril,sofisticavamaspatranhas.Noanoanterior,apro-
veitando que falar em marcianos estava na moda, aquele mesmo gru-
po adaptou a ideia de um americano que anos atrás, através do rádio,
disseminou o pânico nos Estados Unidos.
Em plena madrugada de 1º de abril, soltaram na Chã do Marinheiro,
localmaisaltodacidade,umbalãoemformadediscovoador.Tiveram
a astúcia de amarrar a peça a um jumento que carregava uma bateria
para alimentar luzes piscando em torno do artefato, feito uma árvore
de Natal. À medida que o animal andava, a impressão era a de que o
OVNI se deslocava lentamente.
Em seguida, eles mesmos se encarregaram de sair acordando as pes-
soas para mostrar o fenômeno. Em pouco tempo todo mundo estava
na rua em pânico, muitos pensando que 60 chegara com atraso.
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38 – 39
Essa menção a 1960 não é por acaso. 1959 coincidiu com o final de
uma das severas secas periódicas que até hoje atormentam os nordes-
tinos. Portanto, foi ano de enorme pobreza e sofrimento.
Na cultura apocalíptica nordestina, bastava um fenômeno pouco con-
vencional da natureza ou qualquer acontecimento fora do normal e
logo alguém desencavava a ideia de que o mundo ia acabar ou alguma
coisa estranha estava para acontecer.
Naquela época não existia o politicamente correto. Muito menos as
leisAfonsoArinosouMariadaPenhaeoutrosavançosdaconvivência
civilizada. Ninguém que tivesse uma característica de raça ou defeito
físico esperasse a condescendência de um eufemismo. Negro era ne-
gro. Aleijado era aleijado. Cego era cego. Cotó era cotó. Doido era doi-
do. Anão era anão. Gago era gago. Fanho era fanho. Manco era manco.
Mouco era mouco. Velho era gagá. Baixinho era tampinha, rodapé de
puteiro, meio fio ou tamborete de forró. Um sujeito alto era grampão,
espanador da lua ou tira coco sem vara. Se fosse magro, o apelido era
Mói de Ferro.
Expressões amenas como afrodescendente, deficiente auditivo, por-
tador de necessidades especiais e outras do mesmo teor sequer eram
cogitadas.
Dentro desse espírito, um bando de gaiatos espalhou que quando 60
chegasse os negros iam virar macacos. Cantavam pelas ruas: Pisa na
fulô/pisa no buraco/60 vem aí/nego vai virar macaco.
Os atingidos revidaram. Ser preto, por aquelas bandas, não era sinô-
nimo de subserviência. A escravidão quase não existira naquelas pa-
ragens. Além disso, a maioria dos negros da região vivia ou era prove-
niente da localidade de Umari, antigo, duradouro e invicto quilombo
formado por escravos fugidos do litoral.
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[2]Revoluçãooupiada?
De modo que ali sobrevivia quase intocada uma população preta re-
tinta, altiva e desaforada. Com a história de que os negros iam virar
macacos, os umarizenses invadiam aos bandos a feira nos sábados,
provocandoefazendoalgazarra.Parodiavam,cantarolandoaltoebom
som: “Pega na fulô/fica bem bacana/ negro vai virar macaco/branco
vai virar banana”.
E, quando passavam perto de uma ou várias mocinhas, ameaçavam
abocanhar os pescoços virginais, dizendo: “Te prepara, branquela,
quem vai te comer sou eu”.
Troco bem aplicado. Foi preciso a polícia pedir reforço e interferir
com energia para acabar aquela libertinagem.
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As pegadinhas de Lói
Acostumados a presenciar e participar de acontecimentos dessa natu-
reza e com enorme vivência na aplicação de pulhas as mais diversas,
nenhum Tetéu ia cair em armadilha tão óbvia como as sete conversas
da carochinha anunciadas por Továrish Lói.
Porém, para não estragar a brincadeira, todos fingiram entrar no clima
e autorizaram o pilantra a contar as tais novidades surpreendentes.
Passava pela cabeça de todos ouvir o rosário de invenções para, em
seguida, jogar o feitiço contra o feiticeiro e dar o troco, deixando Lói
com cara de rapariga.
Recuperando um pouco o fôlego, olhos esbugalhados e coração ainda
aos saltos, o mensageiro fez primeiramente a menção à fonte, que é re-
gra básica de todo bom mentiroso para dar credibilidade às suas patra-
nhas. Segundo Lói, ele soube das coisas porque ouviu uma conversa
de seu Marcondes Telegrafista, um dos comunistas mais conhecidos
da cidade, na oficina do seu pai, que era ferreiro conceituado, além de
comunista de carteirinha, como a gente já sabe.
Segundo ele disse, seu Marcondes reuniu os camaradas de maior con-
fiança e contou terríveis novidades que estavam acontecendo no País.
O telegrafista fazia parte de uma rede de profissionais comunistas que
trocavam informações de interesse geral e particularmente do PCB.
Estava sempre um passo adiante na maioria das notícias.
Lói disse que ouviu escondido no quintal da oficina e por isso mui-
tos detalhes escaparam. Mas quando todos saíram às pressas, ele en-
controu no chão uma tira dos registros do telégrafo. Graças à amizade
com o seu pai, o telegrafista ensinou a ele rudimentos do Código Mor-
se. Foi graças a esse conhecimento superficial que ele complementou
o que tinha escutado decifrando em parte, notícias pavorosas.
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[2]Revoluçãooupiada?
Mostrou a tira do telégrafo cheia de furinhos e, como um cego semia-
nalfabeto lendo em braile, foi decifrando e anunciando as novidades
pela ordem. Primeiro, diz aqui que está em curso uma operação chama-
da Brother Sam, com o objetivo, parece, de anexar o Brasil aos Estados
Unidos.
A gargalhada geral não quebrou a seriedade de Lói. Logo Cumpade
Deca repreendeu de mentirinha a todos. Espera aí gente, o assunto é
sério mesmo, deixa Továrish continuar.
Bem, prosseguiu o mensageiro, a segunda entendi menos ainda, mas
está impresso. Com certeza o marinheiro Popeye tem alguma coisa a ver
com isso. Pelo menos faz parte do alto comando das tropas.
Aí foi danado. Deca reforçou os pedidos de silêncio. Agora ele esta-
va mesmo curioso para saber até onde ia a safadeza de Továrish. O
marinheiro Popeye, sempre com seu cachimbo escorado no canto da
boca, eterno pretendente de Olívia Palito, era figura popular nos dese-
nhos animados da televisão. Entre isso e participar de uma operação
militar no Brasil, vai uma distância enorme. Se ainda fosse Zé Carioca,
personagem brasileiro, vá lá, podia ter sido adotado como mascote de
algum pelotão. Mas um boneco americano, era mesmo hilariante.
Por isso mesmo, com essa ninguém se aguentou. Outra sonora garga-
lhada dominou o ambiente. Vai ver que teremos que comer espinafre
todo dia, comentou um gaiato.
A muito custo, a ordem foi restabelecida, porque, além das risadas, já
semultiplicavamoscomentários.Finalmente,comoprecáriosilêncio,
Lói pôde prosseguir. A terceira notícia conforme diz aqui é que tropas
do Exército marcham pela Via Dutra lideradas por uma vaca fardada.
A risadagem redobrou de tal maneira que começou a juntar gente, em
pouco tempo já parecia um pequeno comício.
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Que negócio engraçado e absurdo. Essa, nem Chico Anysio era capaz de
criar. Lói inventa cada uma! Esse 1º de abril vai ser campeão. E o pior
é que ele interpreta com uma seriedade tão grande que se a gente não
conhecesse bem a peça era capaz de acreditar. Cada mentira mais cabe-
luda que a outra, e o danado mantém a cara totalmente compenetrada,
nem um risinho. Grande ator que ele é. Provoca mais gargalhadas do
que Mazzaropi. Está se perdendo por aqui, era o que se falava.
Àquelas alturas, a curiosidade da plateia estava aguçada. Deca nem
precisava pedir silêncio, era a própria plateia que fazia sinal com as
mãos e repetia: Psiu, cala a boca gente, ainda tem mais, conta a próxi-
ma, Továrish.
A próxima era a seguinte: Os Estados Unidos enviaram uma frota com
um porta aviões e vários destróieres entupidos de marines para atacar
Brasília pelo meio da floresta e depor o presidente Jango.
Imagine o leitor que naquele momento tinha gente chorando de tanto
rir. Como é que é? Uma frota naval vem da América do Norte para
atacar Brasília, que fica, como todo mané buchudo sabe, a mais de 2
mil quilômetros do mar? E por uma floresta, que só pode ser a Ama-
zônica? Que confusão dos diabos. Essa merece entrar no Livro dos Re-
cordes como a maior mentira de todos os tempos.
A próxima! A próxima! Era a solicitação da plateia insaciável. Logo a
assistência parecia a torcida num jogo da seleção de Lagoa Nova, de-
pois de um golaço de Cici ou Inácio Torototó. Mais uma, mais uma,
gritavam e batiam palmas. A balbúrdia se generalizou de novo. A mui-
to custo, testando sua liderança e seu vozeirão, Cumpade Deca conse-
guiu impor algo parecido com silêncio.
Lói, sério feito um porco mijando, cumpria sua histórica missão com
toda a galhardia. Ainda passando os dedos pela fitinha do telégrafo,
com cara de decifrador, teve que gritar para ser ouvido, que o Rio de
Janeiro estava sendo atacado pelo general Cruel.
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[2]Revoluçãooupiada?
A essas alturas todos tinham perdido as contas das notícias e achavam
que a mentirada, embora hilariante, já estava passando dos limites.
Invadir o Rio de Janeiro já seria um absurdo. E botar um cara chama-
do Cruel para fazer isso, só se os hipotéticos conspiradores fossem
humoristas.
Tinha gente embolando no chão de tanto gargalhar. O público só fazia
crescer, cada qual que chegava querendo saber as conversas de caro-
chinha para rir também. Os privilegiados ouviam do próprio Lói, que
repetia tudo pacientemente com a cara mais séria desse mundo. Os
que ouviram, no todo ou em parte, rememoravam tentando lembrar
uma a uma. Nem Cumpade Deca, do alto de sua liderança, que em
matéria de furdunço era reconhecida por todos, foi capaz de restaurar
o silêncio. Impossível prosseguir.
E ninguém deixava de elogiar o desempenho e a criatividade do men-
tiroso. Essas foram realmente muito boas, Továrish merece ganhar o
Oscar pelo desempenho. Mas nem por isso ninguém ia acreditar em
nenhuma daquelas invenções despropositadas, apesar de muito perti-
nentes para aquela data. Até que alguém contou nos dedos e anunciou
bem alto, reabrindo a sessão de gargalhadas: Gente, as sete mentiras de
Lói são cinco. Que cara mais gaiato.
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Morra a caterva vermelha
Depois de serenada a risadagem, só para render com o assunto, os
mais próximos procuravam argumentar, mostrando ao mensageiro as
pernas curtas das suas conversas fiadas. Não tás vendo que isso não tem
pé nem cabeça, Lói?
Argumentavam pelo caminho da razão. Primeiro, os militares não se-
riam tão idiotas a ponto de derrubarem um governo que, além de fra-
codaspernas,tinhadatamarcadaparaacabar.OpresidenteJoãoGou-
lart, do PTB, era um rico latifundiário, não tinha nada de comunista.
Defendia reformas de base, importantes para a modernização do país,
mas, como não tinha apoio, nem isso ia conseguir fazer.
Além disso, faltava pouco mais de um ano para a eleição. Juscelino
Kubitschek, o ex-presidente que fez o Brasil andar 50 anos em cinco,
construiu Brasília, é membro antigo do Partido Social Democrata, o
PSD, portanto totalmente confiável para as elites e liderava disparado
todas as pesquisas. Estava praticamente nomeado presidente da Re-
pública por antecedência, qual o sentido de um golpe militar agora?
Os norte-americanos, era sabido, estavam interessados em colocar
no Brasil um governo subalterno a eles, acabar com a independência
nacional e transformar nosso país no maior quintal do mundo. Mas
seriam por acaso idiotas a ponto de não estarem informados de que
havia quatro anos a capital do País tinha sido transferida do Rio de Ja-
neiro para o Planalto Central? E que Brasília não tem ligação aquática
de qualidade nenhuma com o Oceano Atlântico? Como um país tão
inteligente como os Estados Unidos ia mandar uma frota para atacar a
capital se esta nem tinha como chegar lá? Através da floresta, eles iam,
quando muito, parar em Manaus.
Isso sem falar de outras invenções engraçadas, porém desproposita-
das. As gloriosas Forças Armadas brasileiras são muito ciosas da sua
história,dassuasvitóriasemcamposdebatalhaedoseunacionalismo.
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[2]Revoluçãooupiada?
Imagine se iriam se submeter e aceitar um nome-código estrangeiro e
desmoralizante como Brother Sam para seu improvável movimento.
Na remota hipótese do golpe acontecer algum dia, teria certamente
um nome genuinamente verde-amarelo, patriótico e ufanista.
Mais despropositado ainda é esse negócio de Popeye participar do co-
mandodatropa.Logoele,umbonecoamericanoquesóexistenosdese-
nhos animados, que não tem nada a ver com a realidade brasileira. Aqui
a gente sabe que ele fuma cachimbo e come espinafre, que parece uma
espécie de bredo. Mas ninguém jamais viu um bregueço desses sendo
vendido em alguma feira e muito menos servido em qualquer prato.
Eumavacafardadanocomandodeummovimentomilitar?Realmen-
te a ideia é muito engraçada. Mas alguém já ouviu falar de vaca farda-
da? Nem mesmo no Carnaval de Olinda, onde se abusa da criativida-
de e irreverência, nunca se viu qualquer folião fantasiado de vaca, com
farda, quepe, espada e tudo o mais.
Aqueles comentários eram uma forma de valorizar a performance. Foi
sensacional, camarada. Espetacular. Muito criativo. Mas nada daquilo
podia ser verdade.
Em vez de se curvar para receber os merecidos aplausos e usufruir do
seu momento de glória, o mentiroso não se dava por vencido, tentava
prosseguir sem dar o braço a torcer. Agora, já correndo o risco de en-
cher o saco. Todo mundo sabe que depois de rir muito a pessoa fica
meioenjoada,porissonãotemnadamaischatodoquebrincadeirain-
sistente. Minha gente, eu não estou brincando, repetia. O general Cruel
está invadindo o Rio de Janeiro, juro pela alma da minha mãe.
Achando que a brincadeira já tinha dado o que tinha que dar, Cum-
pade Deca fez valer a sua autoridade. Tá bom, minha gente, foi muito
engraçado, mas basta por hoje. E, imitando Chacrinha, o Velho Guer-
reiro, um dos orgulhos de Boi Pintado, gritou o bordão: Palmas pra
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ele, que ele merece. Vocês querem bacalhau? Procurem na venda de seu
Lalau. E fez um gesto enfático de que a festa chegara ao fim.
Foi realmente divertido, o melhor primeiro de abril de todos os tem-
pos, superou o disco voador do ano passado. Mas tava na hora de cada
qual ir tratar da sua vida.
E assim teria acontecido se não entrasse em cena o elegante vereador
Pedro Boi de Raça. Homem fidalgo, alto, forte, de grande saúde e cre-
dibilidade, campeão dos campeões de vaquejada, fazendeiro e comer-
ciante, ele sempre tinha um bom rádio ligado no seu estabelecimento
comercial.
Atéentãocompletamentealheioaofuzuê,chegoucomumaexpressão
transtornada. Abriu caminho até junto de Cumpade Deca e de Tová-
rish Lói e perguntou com seu vozeirão inconfundível: Pessoal, alguém
aqui ouviu a edição extra do Repórter Esso, que Edson de Almeida aca-
bou de ler na Rádio Jornal? Os militares estão tomando o poder no País
inteiro.
Claro que ninguém ali tinha ouvido, estava todo mundo na rua e a
Rádio Boi Surubim, que reproduzia o noticiário, saía do ar na hora
sagrada do descanso depois do almoço.
Antes que Pedro Boi de Raça tivesse tempo de debulhar as surpreen-
dentes novas, entrou na rua acelerado, no seu carro esporte conversí-
vel todo empoeirado, o ricaço mais famoso da região. Tratava-se de
Raul Bondinho, filho único de um maiores fazendeiros e produtores
de algodão do lugar.
Bondinho vivia mais flanando no Recife e no Rio de Janeiro do que
em Boi Pintado. O apelido vinha do fato de ele falar muito no bondi-
nho do Pão de Açúcar e, sinceramente, com seu corpanzil arredonda-
do, meio que parecer com o teleférico carioca.
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[2]Revoluçãooupiada?
Embora não se misturasse muito com os locais, ditava moda e exercia
forte influência sobre os filhos dos latifundiários e grandes comer-
ciantes. De vez em quando aparecia acompanhado por estrangeiros
e comandava uma sociedade meio secreta nos moldes da Ku Klux
Klan norte-americana. Só que nos Estados Unidos a KKK, como era
conhecida, caçava negros. A entidade de Raul era chamada de CCC,
quesignificavaComandodeCaçaaosComunistase,segundosedizia,
estava se espalhando por todo o País.
De acordo com as más línguas, o sujeito, reconhecido como playboy
até nas publicações mundanas do Centro-Sul, estava por trás de várias
ameaças e violências que eram praticadas contra camponeses e líderes
sindicais da região. Casos de espancamento e até sumiços definitivos
não eram raros. O povo eximia o coronel Honorato dessas arbitrarie-
dades de fundo ideológico. A linha do coronel era outra, como vere-
mos adiante. Dizia-se que era mesmo Raul quem estimulava e finan-
ciava essas operações cavernosas, embora, naturalmente, ninguém
conseguisse provar.
Contrariando seu costume de não dar muita trela à gentalha de Boi
Pintado, Bondinho chegou buzinando e fazendo o maior alarde.
Vestido com seu traje de viagem, que muito se assemelhava ao dos
aviadores dos filmes preto e branco, tirou o gorro, levantou os óculos
e fez o primeiro e talvez único discurso público da sua vida: Pessoal,
fui para o Recife, mas não consegui entrar. Os militares tomaram conta
do País, a capital está cercada. O ônibus está voltando, os carros de pra-
ça também. Nem Dr. Hidelbrando, que ia levando um paciente, passou
pela barreira. Finalmente chegou a nossa vez. É a salvação da Pátria, da
família e da propriedade.
Ato contínuo, puxou o revólver 38 e disparou seis tiros para o alto, a
título de comemoração. Arrogante como sempre, berrou ainda mais
alto: Quem tiver fogos pra vender, eu compro. Lolô, pode trazer todo
o seu estoque. Eu quero é tudo. Torro dinheiro, mas vou comemorar a
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derrota desses comunistas filhos da puta que viviam tirando o sossego
das famílias de bem.
Avistando seu Pacífico do hotel e Doze Dedos do bar, assim chamado
por ter mesmo seis dedos em cada mão, ordenou: Podem servir bebida
para todo patriota que quiser comemorar. Hoje é tudo por minha conta.
E, em clima de apoteose, berrou a planos pulmões: Morra a caterva
vermelha. Viva a Revolução Redentora de 1º de abril de 1964...
Naquele momento, o golpe invadia a vida pacata de Boi Pintado.
Começava a história que desaguaria no julgamento de Deus.
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Capítulo 3
O samba do crioulo doido
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[3]Osambadocrioulodoido
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Tão logo recuperou-se, o marechal, como bom e
altivomilitar,tratoudeminimizarapilora.Não foi nada,afirmou, uma
simples indisposição provocada por uma gripe mal curada, além desse
clima horroroso do Cerrado, mais a emoção dessas notícias inespera-
das. Disfarçava o desconforto e uma terrível dor de cabeça que, no seu
caso, utilizando a linguagem politicamente incorreta da época, ocupa-
va uma grande parte da área útil do seu corpo.
O senhor, como médico, deve estar a par de tudo, principalmente do meu
estado emocional, para não fazer diagnósticos precipitados. Meu caro
coronel, médico do glorioso Exército Brasileiro, não lhe conto a malfa-
dada notícia que acabei de receber e que me tirou do sério. Imagine que
Deus vai ser julgado numa cidadezinha do interior de Pernambuco.
Suspirou fundo e prosseguiu: Até onde sei, é a primeira vez que alguém
tem a ousadia de colocar Deus no banco dos réus. E olhe que não se trata
de uma deidade pagã e extinta, ou um deus primitivo e bárbaro. Muito
menos um animal ou um dragão, que aqui e acolá são adorados. Nem
mesmo o sincrético Xangô ou o brasileiríssimo Zé Pilintra. Muito menos
trata-se de Alá, que no Brasil não tem muitos seguidores, podia ser posto
subjudicesemproblemanenhum,todaausênciaéatrevida.Masnão,meu
caro coronel. Querem julgar o nosso Deus, o símbolo maior da civilização
ocidental, o mais alto inspirador da nossa Revolução Redentora de 31 de
março desse glorioso ano de 1964. Ou seja, desculpe o trocadilho, está na
cara que se trata de uma iniciativa de má-fé com o nosso governo.
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[3]Osambadocrioulodoido
Excitado, o marechal mal conseguia uma trégua para respirar. E pros-
seguiu sem dar chance sequer para o médico tentar acalmá-lo.
Estando certo o chanceler, o réu desse caso é o Deus todo poderoso, cria-
dor do céu e da terra, o Deus de Abrão, Isaac, Moisés, Davi e Salomão, o
pai da matéria, o criador nosso que está nos céus, aquele que dispõe so-
beranamente sobre os nossos destinos. Pois o Senhor Deus dos Exércitos
vai ser julgado como se fosse um simples meliante, ou um mero subversi-
vo, o que é um achincalhe muito maior.
E o pior de tudo é que fui o último a saber, como se Boi Pintado, em vez
de um próspero município brasileiro e pernambucano, fosse uma provín-
cia localizada no mais remoto interior do Paquistão. Para o senhor sen-
tir o meu drama, até o papa João XXIII, o presidente Lindon Jonhson,
a rainha Elizabeth, os líderes comunistas Mao Tsé Tung e Fidel Castro,
todos já estão a par do caso. Enquanto eu, presidente dos Estados Uni-
dos do Brasil, estava completamente desinformado, comendo mosca. Os
que não gostam de mim podem me chamar inclusive de aluado, lunático,
abestalhado; nesse caso teriam toda a razão.
Depois de um lapso que pareceu a eternidade, retomou a palavra, ba-
lançando a enorme cabeça: Uma coisa inédita, atrevida, que nos expõe
ao ridículo no conceito das nações civilizadas. E ainda tenho que aguen-
tar me chamarem de ditador.
O regime ainda não tinha assumido que era uma tirania, com todas as
letras, como faria em 1968. Embora o clima fosse pesadíssimo no País
inteiro, muita gente fazia trocadilhos debochados com o novo gover-
no. Não faltava quem, tirando onda com os novos donos do poder,
chamasse a ditadura ora de democradura, ora de ditamole.
O marechal exigia um apoio moral e cívico devidamente verbalizado.
Os senhores não acham isso um absurdo completo? Embora sem enten-
der se o marechal se referia ao julgamento ou ao fato de lhe chamarem
de ditador, o chanceler e o médico desistiram do quem cala consente
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eacabaramsemanifestando:Sem dúvida, excelência, um absurdo total.
Aliás, muitas coisa naqueles dias eram um absurdo total.
Por isso, recomendava a prudência que ninguém achasse nada. O últi-
mo que achou nunca mais foi achado, faziam trocadilhos por aí.
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[3]Osambadocrioulodoido
As aparências não enganam
Concordar, naquele ambiente, era passaporte para continuar nas gra-
ças do poder. Apesar dos fumos democráticos que pretendia exalar, o
marechal deixou claro desde o início que o governo iria respirar o ar
impositivo e hierárquico que prevalecia nos quartéis.
Já dissemos que ele adorava piadas de caserna. Pois durante a primeira
reunião ministerial, que deveria ter sido solene e formal, replicou uma
brincadeira de muito mau gosto, repetindo o comportamento de sar-
gentos do tipo mal encarados na recepção aos recrutas.
Escolheu para vítima o ministro da Educação, um civil conhecido
pela tolerância do seu pensamento, e que parecia o mais nervoso e
desambientado de todos. Danou-se a fazer perguntas sobre a pasta,
querendo saber detalhes que dificilmente o auxiliar teria tido tempo
para assimilar e citar de cor.
Qual verba para o ensino fundamental, ministro? Não sei, vou me in-
formar, presidente. Quantas escolas técnicas federais estão em funciona-
mento, ministro? Não sei, vou me informar, presidente. E o marechal foi
repetindo indagações, cada qual dirigida de forma mais áspera, sem
o interrogado conseguir atinar com a resposta para nenhuma delas.
O ministro, apavorado, suava mais do que tampa de chaleira e tinha
perdido a condição de raciocínio. Chegara o momento da piada. O
presidente o encarou severamente, mandou prestar muita atenção e
sapecou a pergunta, dedo em riste, no tom mais agressivo possível:
Qual o seu nome, ministro?
Não deu outra. Completamente desarvorado, o interlocutor já não
ouvia mais nada. Caiu na armadilha feito um aruá: Não sei, vou me
informar, presidente.
OministrodaGuerrapuxouagargalhada,osministrosmilitares,mes-
mo os que não gostavam do marechal, riram com gosto. Ao contrário
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dos civis, que o fizeram visivelmente constrangidos, exibindo um tí-
mido sorriso amarelo.
Só pela narrativa desse bizarro episódio é fácil compreender por que
os auxiliares civis evitavam qualquer encontro com o chefe. Diver-
gir dele, então, nem pensar. Era um lobo com modos de cordeiro. Só
quem usava a prerrogativa de expressar opinião contrária eram os mi-
nistros militares representantes da chamada linha dura, apelidados de
gorilas ou também de hidrófobos, em alusão à doença que deixa os
cachorros literalmente loucos. Esses trabalhavam para o regime aper-
tar cada vez mais.
Conhecendo muito bem os meandros do poder, o chanceler sentiu
que a fase mais difícil estava ultrapassada. Aproveitou, então, para a
segunda etapa, que era tirar o dele da reta. Para isso, jogou mais lenha
na fogueira de um auxiliar que o presidente detestava.
Repetiu que solicitara informações ao coronel do Serviço Secreto e
tivera o silêncio como resposta. Como a pressão que sofria era grande,
resolvera recorrer diretamente ao seu superior na cadeia de comando.
Quem cumpre ordens não erra, arrematou, usando uma expressão de
caserna para bajular o chefe.
Desde a primeira informação, o marechal já percebera o tamanho da
bronca. Assumira para um mandato tampão que deveria durar até as
eleições marcadas para o ano seguinte. A principal razão da sua esco-
lha é que não era de linha nenhuma. Não contemplava nem ameaçava
ninguém.
Apesar do apoio dos Estados Unidos e do clima da Guerra Fria, que
dividia o mundo, os principais países da Europa, ciosos dos seus valo-
res democráticos, olhavam com muita desconfiança a tal Revolução
Redentora do Brasil.
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[3]Osambadocrioulodoido
Era difícil que engolissem como democrático um golpe militar que
desrespeitou a Constituição, cassou mandatos, suspendeu os direitos
civis, exilou democratas e abarrotou os cárceres com presos políticos
de todas as condições sociais.
A linha moderada, chamada de galinhas verdes, porque segundo os
adversários não ofendiam nem a um pinto, ainda predominava nos
discursos e notas oficiais. Seus partidários faziam um grande esforço
para manter as aparências. Sustentavam o discurso de que os militares
tinham violado a Constituição com o intuito de preservá-la, tomaram
o poder para garantir a democracia, que estava ameaçada pelo comu-
nismo ateu. Tão logo a caterva vermelha fosse eliminada, o governo
seriadevolvidoaoscivis.Foiessaaversãooficialparajustificarogolpe.
O mundo democrático não engoliu.
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A casa da Mãe Joana
No dia a dia, a disputa entre os dois grupos era um verdadeiro cabo de
guerra, um permanente puxa-encolhe. O marechal representava um
ponto de equilíbrio, um algodão entre os cristais. Conseguia condu-
zir o governo aos trancos e barrancos, dando uma no cravo outra na
ferradura.
Porcontadessasituação,diantedaqueleimpassecrucial,oditadornão
se sentiu seguro para decidir sozinho. Achou melhor ouvir opiniões
de todas as alas e compartilhar as responsabilidades, como já fizera em
outras ocasiões delicadas.
Convocou o ministro da Casa Civil, um militar intelectualizado e da
sua estrita confiança, e explicou por alto a situação. Para ter tempo de
se recuperar do faniquito que sofrera, solicitou uma audiência com o
coronel chefe do Serviço Secreto, para as 17 horas, e outra, uma hora
mais tarde, com o chamado núcleo duro do governo, acrescido do
chanceler
Diante do quadro real do País e do seu governo, aquele desafio do
julgamento de Deus era potencialmente explosivo. Internamente,
constituía uma ameaça para sua precária liderança na tropa. No plano
internacional, poderia gerar repercussões fatais para a imagem do seu
governo. Era preciso montar uma estratégia bem pensada para lidar
com aquela sinuca de bico.
Elogiou o chanceler. Fez bem em me procurar, agora volte para a sua
trincheira e aguarde a reunião.
Ficou sozinho com o médico. Este aproveitou a oportunidade para
recomendar com ênfase uma bateria de exames. O marechal relutou,
mas foi convencido pela argumentação irretocável: Neste momento o
senhor é a Pátria, esta não pode fraquejar.
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[3]Osambadocrioulodoido
À época, dizia-se que o melhor hospital de Brasília era a ponte aérea
para São Paulo. A cidade era nova, poucos profissionais de renome ti-
nham arriscado transferência para lá, mas o marechal bateu o pé: só
aceitou ser levado para os alegados exames de rotina no Hospital de
Base da capital. Lá, foi examinado e reexaminado, realmente nada ha-
via no coração. Fora apenas um pico de pressão causado pelo estresse.
Recolheu-se na companhia da equipe médica ao Palácio da Alvora-
da, onde almoçou. A já descrita cabeça desproporcionalmente gran-
de e completamente chata do presidente estava fervendo. Tomou uns
calmantes para conseguir relaxar e dormiu algumas horas. Acordou
ainda indisposto, mas fez um enorme esforço para não demonstrar.
Precisava agir à altura das exigências do momento. Tratava-se do seu
primeiro grande desafio. Era necessário corresponder ao que dele se
esperava e calar os críticos de todas as condições. Para isso, tinha que
acionar, como nunca antes, os recursos do seu quengo privilegiado.
Quando saiu do quarto, estava pronto para o combate. Incorporava o
bordão militar de que o comandante é superior ao tempo. Fez questão
desta vez de vestir sua farda de campanha para transmitir a todos que
era uma questão de vida ou morte o caso que iriam tratar.
Já no Planalto, recebeu pontualmente o comandante do Serviço Se-
creto. Na hora aprazada, ele chegou ao gabinete presidencial. Juntou
ruidosamente os saltos dos coturnos e só não bateu a continência re-
gulamentar porque as mãos abraçavam um monte de pastas. Tratava-
se de um oficial tosco e eficiente, da arma da Cavalaria, com quem o
ditador não tinha qualquer afinidade. Ríspido, foi direto ao assunto:
Coronel, o senhor está a par dessa história do julgamento de Deus, em
Boi Pintado?
O Serviço Secreto continuava mal estruturado. A maioria dos agentes
se informava principalmente recortando notícias dos jornais que, na-
quele momento, abusavam da autocensura. O órgão, realmente, estava
passando batido pelo caso de Boi Pintado.
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60 – 61
No entanto, assim que recebeu o alerta do chanceler, o coronel caiu
em campo. Despachou imediatamente seus melhores subordinados
para Pernambuco, montou uma eficiente rede de informações.
Os agentes enviados tinham recentemente recebido treinamentos
secretos no Panamá ministrados por instrutores franceses e norte-a-
mericanos. Aplicaram os conhecimentos adquiridos, foi uma boa aula
prática. Em 48 horas elaboraram um dossiê que, apesar de incomple-
to, trazia informações sobre os mais variados ângulos da complexa
questão.
Seguindo o lema de não interferir em nada, mas acompanhar tudo,
mantiveram estreita vigilância na cidade, atualizando as informações
quase em tempo real.
Assim, enquanto o chanceler perdia tempo esperando por uma ideia
salvadora, o coronel preparava sua própria salvação. Por sabedoria,
manteve segredo, não se reportou aos superiores. Preferiu aguardar
ser chamado, sabia que logo isso iria acontecer. Assim, já que perdera
o tempo de se antecipar ao problema, pelo menos quando acionado
daria uma resposta imediata e precisa. Não deixava de ser uma prova
de eficiência e presteza.
Durante uma boa meia hora, expôs detalhadamente o que sabia de
todo o imbróglio. A complexidade envolvia não apenas o julgamento
em si, como já adiantara o chanceler. Outras questões intrincadas se
misturavam. Mostrou papéis, exibiu fotos, a cada dado que trazia, a
contrariedade presidencial só fazia aumentar.
Ao término da explanação, o presidente indagou: O senhor tem algu-
ma sugestão, coronel? Ao longo de toda a sua carreira, que ainda reser-
vava muitos sucessos no futuro, ele só teve uma proposta para resolver
qualquer problema. E tratou de enunciá-la: Sugiro que a gente prenda
e arrebente, marechal.
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[3]Osambadocrioulodoido
A conversa terminou. Àquelas alturas, o heterogêneo grupo convoca-
do para a reunião já se encontrava na antessala. Em Brasília, as notícias
correm. De um modo ou de outro, todos já sabiam do que se tratava.
O marechal ordenou que se dirigissem para a sala de reunião. Numa
deferência especial, caminhou segurando no braço do presidente da
Câmara dos Deputados.
Apesar de dezenas de congressistas terem sido cassados, muitos deles
presos e até seviciados, o presidente da Câmara Federal era figura obri-
gatória naquela democracia de faz de conta. Apelidado de Cereja do
Bolo,ficavadeprontidãoemBrasília,nãoapenasparaparticipardeatos
solenes, jantares em embaixadas, recepções a autoridades estrangeiras,
como para integrar as reuniões estratégicas na condição de represen-
tante do Poder Legislativo. Apesar de nunca abrir a boca nessas oca-
siões, era apresentado como o legítimo porta-voz do povo brasileiro.
Outra figura importante era o presidente do Supremo Tribunal Fe-
deral. O seu antecessor fora cassado como subversivo, e ele, indicado
pelos militares, venceu por unanimidade a eleição entre os seus pares.
Representava o Poder Judiciário.
Com mais esse jeitinho brasileiro, a divisão dos três poderes indepen-
dentes e harmônicos que caracterizava a moderna democracia, segun-
do o modelo clássico de Montesquieu, se convertia em verdadeira
farsa tropical. O Brasil colocava suas instituições no mesmo nível das
mais inexpressivas republiquetas de bananas.
Os demais participantes eram o ministro das Relações Exteriores, que
não integrava o núcleo duro, mas neste caso específico era imprescin-
dível; o ministro da Justiça, que todo dia rebolava mais do que baiana
no bambolê, para tentar provar ao País e ao mundo que a ditadura era,
na essência, democrática, e o governo constitucional anterior é que
era uma ditadura comunista em gestação; o coronel chefe da Casa Ci-
vil, administrava as difíceis relações do governo com líderes políticos
e movimentos sociais que apoiaram o golpe.
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62 – 63
Completavam o grupo o comandante da Casa Militar, também da
quota pessoal do presidente. Desempenhava um papel semelhante ao
de Goebbels na administração de Hitler na Alemanha nazista e repre-
sentava a corrente anticomunista e nacionalista das forças armadas; o
ministro da Guerra, líder da linha dura, que achava o presidente fraco
e só pensava em substituí-lo; além do coronel do Serviço Secreto e do
general comandante da Polícia Federal.
Porém, o convidado mais importante, presença obrigatória em todas
as tomadas de decisões estratégicas do País, era o embaixador dos Es-
tados Unidos da América do Norte. Ou comparecia ou se fazia repre-
sentar. Nada de importante se definia sem a sua aprovação.
As trapalhadas militares dos norte-americanos na execução do gol-
pe, quando sequer dispunham de um mapa atualizado do País, não
interferiram na condução política após a vitória. O embaixador dos
Estados Unidos era um craque nas articulações, rapidamente botou o
governo militar no bolso. Nomeou os ministros do Planejamento e da
Fazenda e o presidente da Casa da Moeda, que eram os executores da
política econômica, pautada por linhas do maior interesse das empre-
sas estrangeiras. Em menos de 15 dias, para desconforto da ala nacio-
nalista, ocupou a posição de indiscutível eminência parda do regime.
Pode até parecer mentira, mas essa influência era tão grande que os
nomes do ministros eram traduzidos para o inglês. E assim eram men-
cionados, até pela imprensa. Roberto Campos, destacado artífice da
política econômica da ditadura, era chamado por todos, inclusive nos
noticiários, de Bob Fields.
O embaixador era informadíssimo. Sabia de tudo, até das conversas
pessoais do presidente, por telefone ou rádio.
Assim que a reunião foi aberta, o ministro da Guerra, que não respei-
tava nem perdia oportunidade para hostilizar e desafiar a autoridade
dopresidente,tomouapalavra.Efoilogovociferandonoseulinguajar
1964 O Julgamento de Deus.indd 63 10/03/2014 13:32:58
[3]Osambadocrioulodoido
grosseiro e totalmente inadequado ao ambiente: A culpa desse imbró-
glio só pode ser desse cagão que você nomeou para comandar o IV Exér-
cito. É um molenga, um calça-frouxa, um imbecil que deveria ter sido
cassado desde a primeira hora.
O coronel da Casa Militar, por sua vez, defendia o presidente a ferro
e fogo. Nem pediu permissão e foi logo revidando, em clima de bate-
-boca: Permita-me discordar, Excelência. Os comandantes militares são
diretamente subordinados ao senhor. E não me consta que a demissão
do general do IV Exército tenha sido solicitada por sua pasta. Mas nem
por isso vou-lhe atribuir responsabilidades pessoais.
Fechou-se o tempo, cada qual querendo fazer prevalecer sua opinião.
OcoroneldoServiçoSecreto,paranãoficarporbaixo,vociferouquea
culpa era dos comunistas, inspirados por Che Guevara e Fidel Castro
e financiados pelo ouro de Moscou.
Foiprecisoopresidente,contrariandooestilomaisamenoqueprocura-
va exibir, bater na mesa pela segunda vez naquele dia para conseguir ser
ouvido.Senhores,eunãoquerosaberdequeméaculpa,issoagenteapura
depois.Precisamostomardecisõesemontarnossaestratégia,otempourge.
EsolicitouaocoroneldoServiçoSecretoquefizesseumaamplaexposi-
ção, de modo a nivelar as informações para todos os presentes.
Para quê? Na conversa anterior com o presidente, apenas os dois na
sala, o coronel até que se saíra bem. Mas ali, na presença de todas
aquelasaltaspatentes,atrapalhou-setodo.Acostumadoadarereceber
ordens, era ainda totalmente inexperiente em exposições complexas
como aquela. Tinha preparado um roteiro às pressas, perdeu-se na lei-
tura dos tópicos.
Bem, senhores, temos uma situação bem complicada em Boi Pintado.
O xerife, ao que tudo indica, perdeu o controle da situação. O beato que
ressuscitouédosmeus,queracabarcomojulgamentoabala.ADamade
Ouro é a principal suspeita no desaparecimento do dinheiro arrecadado,
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64 – 65
embora o juiz de direito também deva ser investigado. Sabemos que os
Tetéus são os responsáveis pela ideia do julgamento, mas temos certeza
de que os Fantasmas Vermelhos também não estão inocentes no caso. Os
Marimbondos e os Embola-Bostas lavaram as mãos.
Parou um pouco, passou a vista pela plateia, todos estavam boquia-
bertos. O coronel interpretou mal, pensou que estava abafando
e prosseguiu: Ainda estamos investigando até que ponto o mistério
da freira virgem que está grávida está relacionado com a instalação
desse tribunal inaceitável. O caso da vaca no telhado foi devidamente
apurado e não teve qualquer conotação política. O abalo sísmico é
caso bem encaminhado, deve ficar onde já está, no círculo técnico e
científico. Não há provas do envolvimento do arcebispo comunista do
Recife, mas para mim ele está por trás de tudo. Para resolver o caso, os
senhores conhecem o meu pensamento. Até já disse ao presidente. Por
mim, a gente prende e arrebenta.
Apesar da inquestionável gravidade do assunto, todos estavam se se-
gurando para não rir. Que conversa maluca era aquela, ninguém es-
tava entendendo patavina. Parecia uma reunião oficial do FEBEAPÁ,
o Festival da Besteira que Assola o País, criação do imortal Stanislaw
Ponte Preta. Utilizando esse pseudônimo, o genial jornalista Sérgio
Porto ridicularizava o regime com o simples relato de situações absur-
das que se multiplicavam por todo o território nacional.
Sentindo que estava perdendo a parada, só restou ao presidente recor-
rer ao embaixador, que, até então, ouvia tudo profundamente concen-
trado, com a cabeça apoiada nas mãos.
O diplomata falou direto e objetivo: O único ponto que realmente
preocupa é a questão do julgamento de Deus, o resto é café pequeno. Na
boca dele, graças ao sotaque, a expressão bem brasileira ficava muito
divertida. Antes de anunciar sua posição, entretanto, precisava consul-
tar a Casa Branca. Em assuntos que envolviam o Vaticano não tinha
autonomia.
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[3]Osambadocrioulodoido
O ministro da Justiça aproveitou para puxar o saco dos americanos:
Então vamos esperar, temos que ficar alinhados. O que é bom para os
Estados Unidos é bom para o Brasil.
Nãoeraàtoaquedifamadoresdeplantãoalimentavamoboatodeque
o governo militar iria mudar o nome do nosso País, que na época era
oficialmente Estados Unidos do Brasil, para Brasil dos Estados Uni-
dos. O presidente, mais uma vez, balançou a cabeçorra, estava preocu-
pado; o resultado da reunião não lhe agradara em nada.
Ninguém do governo conseguiu falar a mesma língua e ainda tinham
que ficar imobilizados esperando uma ordem de Washington. Nessa
marcha, pensou cantando a pedra, não demora e algum engraçadinho
vai dizer que o nosso governo é um samba do crioulo doido.
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66 – 67
Capítulo 4
Terremoto pra ninguém botar defeito
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[4]Terremotopraninguémbotardefeito
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68 – 69
Voltando ao primeiro de abril de 1964. Em Boi
Pintado, o dia estava longe de terminar. Aliás, passou para a história do
município como o dia que nunca acabou.
Antes de ir adiante, vamos logo esclarecer uma a uma as sete supostas
pilhérias que teriam sido armadas por Továrish Lói, em relação ao gol-
pe. Na verdade foram apenas cinco ou seis, ninguém contou ao certo.
Erroneamente entendidas no primeiro momento como criativas brin-
cadeiras alusivas ao dia internacional da mentira, no frigir dos ovos,
eram todas rigorosamente verdadeiras. Algumas um pouco distorci-
das, é verdade, devido à limitação do camarada na arte da decifração
das informações telegráficas, como ele mesmo declarou na ocasião.
Primeiro, apesar do ridículo e aparente absurdo, os norte-americanos
denominaram mesmo a operação golpista de Brother Sam. A utiliza-
ção de um nome estrangeiro, chamando o famoso Tio Sam de irmão,
era uma espécie de recado apaziguador dos norte-americanos. Apesar
de iniciarem as ações sem combinação e sem um comando unificado,
qualquer divergência entre os golpistas não passava de uma arenga de
irmãos.Noqueerafundamental,estavamfraternalmentecombinados.
Em segundo lugar, o comando da operação que deslocou as tropas
de Minas Gerais para o Rio de Janeiro foi mesmo tratado em código
como Popeye. Por que, não me perguntem. Se foi alguma gaiatice in-
feliz ou mesmo uma forma sutil de protesto de algum oficial superior
inconformado com o rumo dos acontecimentos, não interessa. A his-
tória do Popeye era mesmo verdadeira.
Já a questão da vaca no comando, também não surgiu da treslouca-
da imaginação de Továrish Lói. Nem de nenhum detrator das forças
1964 O Julgamento de Deus.indd 69 10/03/2014 13:32:58
[4]Terremotopraninguémbotardefeito
armadas. Pelo contrário, foi o próprio general que se saiu com essa. Na
sua primeira entrevista, quando perguntaram sobre os rumos políti-
cos do movimento que comandava, não se fez de rogado.
Respondeu que entendia de exército, estava pronto para falar sobre
a operação militar em curso, mas que quem podia responder sobre
rumos políticos do movimento eram os próprios políticos aliados. E
emseguidacunhouafraseinacreditável,emborasincera,espetaculare
inesquecível: Em matéria de política, eu sou uma vaca fardada.
No tocante à frota, a informação também era noventa por cento cor-
reta. Os americanos mandaram mesmo uma esquadra para tomar
conta do Brasil.
Ontem, como hoje, os Estados Unidos não tinham o menor pudor em
promover intervenções militares com os mais diversos objetivos. Na
década de 1960 do século XX, a situação era ainda pior: enfrentavam
inimigos poderosos e engoliam revezes amargos. A Guerra Fria estava
no auge, o mundo já era ocupado em um terço por países socialistas.
O Vietnã, que deveria ter sido um passeio militar para os americanos,
estava se transformando num pesadelo. Cuba plantara um Estado so-
cialista nas barbas dos Estados Unidos.
Para não sofrer outras rebordosas nos seus arredores e blindar a Amé-
rica Latina como área de sua quase exclusiva influência, os norte-ame-
ricanos definiram como prioridade para a região a instalação de gover-
nos totalmente confiáveis. O Brasil, como o maior e mais vulnerável
país do continente, foi escolhido para servir de exemplo.
Durante anos, como foi dito, os norte-americanos prepararam a inter-
venção. O caso era tão prioritário que ocupou a atenção pessoal do
presidente Kennedy e depois do seu sucessor, sendo que esse acabou
levando toda a culpa.
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70 – 71
Kennedy, com aquela cara charmosa de bonzinho e mártir, foi quem
atolou os Estados Unidos na guerra do Vietnã, açoitou Cuba como
pôde e planejou uma política intervencionista na América Latina. Isso
já era sabido de longa data. Mas nas vésperas dos 50 anos do golpe,
tornou-se público e documentado.
Os americanos desenvolveram no Brasil, nos anos que antecederam ao
golpe, uma política com duas faces. De um lado, praticavam e financia-
vam espionagem, sabotagem, corrupção, atividades políticas e conspi-
ratórias, compra da opinião de setores da imprensa e coisas afins e cor-
relatas. Do outro, realizavam ações humanitárias, distribuindo comida,
roupa e outras benfeitorias com as populações pobres do País.
Também financiavam atividades culturais, bolsas de estudo e por aí
vai. Era a badalada Aliança para o Progresso. Os adversários, comunis-
tas provavelmente, adulteravam o para em todas as placas disponíveis.
Demodoquetransformandoaproposiçãoemverbo,eescritoAliança
pára o Progresso, o título do programa ficava com o sentido totalmen-
te distorcido.
Entidades conspiratórias como o IPES e o IBAD eram mantidas por
grandes empresários ou financiadas abertamente pelos norte-ameri-
canos. Encarregavam-se de financiar a desestabilização do governo, a
compra de formadores de opinião, ações de sabotagem. Em síntese,
espalhavam o terror. Os jornais traziam sempre editoriais apavorantes.
Os comunistas eram tratados como verdadeiros papa-figos. Dizia-se
que comiam criancinhas, não como muitos padres da Igreja fazem até
hoje, e sim por via oral. Não havia nenhum setor da vida brasileira que
não estivesse contaminado pela atuação de agentes e espiões.
Com o apoio da Igreja conservadora e das entidades empresariais,
senhoras da sociedade organizavam Marchas da Família com Deus e
pelaPropriedadequearrastavamcentenasdemilharesdereacionários
pelas ruas das grandes cidades.
1964 O Julgamento de Deus.indd 71 10/03/2014 13:32:58
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Um mocorongo no poder

  • 1. 1964 J o s é N i va l d o J u n i o r R o m a n c e O Julgamento de Deus ISBN 978-85-8165-127-9 9 788581 651279 JoséNivaldoJuniorOJulgamentodeDeus O rei está sempre nu, sabe disso todo súdito que se preza. José Nivaldo Junior, ciente do fato, usa o humor para desmitificar a ditadura instalada com o golpe mi- litar de primeiro de abril de 1964. Nunca foi servo do infausto episódio, pelo contrário, sua trajetória de mili- tante político o levou à prisão. Isso, no entanto, é outra história. O que nos interessa agora é sua postura de permanente opositor da barbárie ins- titucionalizada. Apossando-se de uma arma anti- ga, mas ainda infalível, a prosa pica- resca, o escritor mostra maturidade ao manipular elementos conflitan- tes, como a História e a ficção. Mui- tos dos fatos narrados aconteceram sim e surgem no livro para pontear o absurdo da época, na combinação criativa entre o real e o imaginado. Nesses meandros vai inserindo ou- tros debates de conceitos políticos e até filosóficos, sempre adornados com a ficção, o que torna o romance uma espécie de ensaio risível sobre a condição política do ser humano. Tudo dito numa linguagem mais para Sancho que para Quixote, outra homenagem à nossa tradição pica- resca, termina por nos oferecer pon- tos de reflexão sobre as escravidões políticas e religiosas que nos martiri- zam. E, enfim, alertar para o fato de que, mesmo nu, o rei tem poderes sobre vidas e mortes. Então, antes de querer vesti-lo, o mais prudente é não deixá-lo nascer. Maurício Melo Júnior eus no banco dos réus? Sim. Foi o mais atrevido e criativo desafio ao nas- cente regime militar do Brasil, em 1964, idealizado por um grupo de jovens contestadores. Este livro narra o encadeamento de fatos enigmá- ticos e acontecimentos políticos que envolveram o inédito julgamento e o seu magnífico desfecho. Um evento que, a partir de uma cidade do interior, repercutiu, dividiu e apaixonou o mundo. Como diz o ex-presidente da Academia Brasileira de Letras, Marcos Vinicios Vilaça: “O autor cultiva um estilo que associa a retórica quotidiana a uma eloquência que vai da censura ética à ironia aberta e ao humor sem freios”. Um romance inovador, que diverte, polemiza e surpreende da primeira à última página. D José Nivaldo Junior nasceu no Recife, em 1951. Passou a infância e a adolescência em Suru- bim, cidade do Agreste pernambucano, onde os seus pais, médicos e escritores, se fixaram para sempre. Estudante de Direito nos Anos de Chumbo, combateu a ditadura. Seques- trado pelo doi/codi, teve depois sua prisão formalizada. Passou 21 meses e 19 dias no cárcere. Tornou-se publicitário e fez mestra- do em História. Especializou-se em Marketing Político. Prestou e presta serviços a grandes nomes da política brasileira. É um dos profis- sionais com mais rico e diversificado currícu- lo na área. É autor do best-seller Maquiavel, o Poder, com mais de 20 edições, no Brasil e no exterior. Foto:WiltonMarcelino Capa_1964 O julgamento de Deus.indd 1,3,5 10/03/2014 13:19:12
  • 2. Recife, 2014 1964 J o s é N i va l d o J u n i o r R o m a n c e O Julgamento de Deus 1964 O Julgamento de Deus.indd 1 10/03/2014 13:32:57
  • 3. Copyright© by José Nivaldo Junior Revisão Alan Leal Capa Moema Cavalcanti Produção Gráfica Bagaço Design Ltda.* Lot Estrada de Tabatinga, 336 • Tabatinga Igarassu/PE • CEP 53605-810 Telefax: (81) 3205.0132 / 3205.0133 e-mail: bagaco@bagaco.com.br www.bagaco.com.br * Endereço para correspondência: Rua Luiz Guimarães, 263. Poço da Panela, Recife-PE • CEP 52061-160 N734m Nivaldo Junior, José, 1951- 1964 : o julgamento de Deus / José Nivaldo Junior.–Recife:Bagaço,2014. 302p. 1. FICÇÃO BRASILEIRA – PERNAMBUCO. 2. BRASIL – HISTÓRIA – REVOLUÇÃO, 31 DE MARÇO,1964–FICÇÃO.3.BRASIL–HISTÓRIA –REVOLUÇÃO,31DEMARÇO,1964–HUMOR, SÁTIRA,ETC.I.Título. CDU 869.0(81)-3 CDD B869.3 PeR – BPE 14-96 ISBN: 978-85-8165-127-9 Impresso no Brasil – 2014 1964 O Julgamento de Deus.indd 2 10/03/2014 13:32:57
  • 4. 2 – 3 Oferecimento À memória de Manoel Lisboa, Amaro Luiz de Carvalho (Capivara), Amaro Félix, Manoel Aleixo (Ventania) e Emmanuel Bezerra, heróis e mártires do povo brasileiro, em nome de todos os que doaram ou colocaram em risco as suas vidas para enfrentar à ditadura militar. Para Leta, Andréa, Marcela, Luiz e Fidel, esposa e filhos de Evandro Cavalcanti, em nome de todas as vítimas não contabilizadas da violência exercida contra os que lutaram e lutam por liberdade e justiça social - parentes e amigos que ainda hoje choram e sofrem a perda de entes queridos, além do alto preço que pagam anonimamente em suas vidas, dia após dia. 1964 O Julgamento de Deus.indd 3 10/03/2014 13:32:57
  • 5. 1964 O Julgamento de Deus.indd 4 10/03/2014 13:32:57
  • 6. AGRADECImentoS A Sérgio, Ricardo, Murilo, João Henrique, Danilo, Breno, Marcelo e Marcos, que contribuíram com críticas e sugestões; A Flávia, Jemesson, Risomar, Wellington, Givanildo e Rafael, colaboradores e amigos, que compartilharam a tarefa de fazer; A Magnólia Cavalcanti, a parceira de sempre no artesanato das palavras; AIzabel,quememotivou atrilharodifícil, sofridoegratificante percurso para lhe contar esta história. 1964 O Julgamento de Deus.indd 5 10/03/2014 13:32:57
  • 7. 1964 O Julgamento de Deus.indd 6 10/03/2014 13:32:57
  • 8. Sumário 1 Um mocorongo no poder 9 2 Revolução ou piada? 29 3 O samba do crioulo doido 51 4 Terremoto pra ninguém botar defeito 67 5 Hora de juntar os cacos 91 6 Um xerife aloprado 111 7 Como diria a madre superiora 127 8 O coronel e seus dois mamulengos 147 9 Um enterro do outro mundo 159 10 O perigo vem do alto 173 11 Fé demais, bem, você sabe 193 12 Os Tetéus retomam à vanguarda 211 13 Cada coisa em seu lugar 227 14 Como é gostosa a liberdade 247 15 Ataque contra defesa 261 16 O voto decisivo 281 1964 O Julgamento de Deus.indd 7 10/03/2014 13:32:57
  • 9. 1964 O Julgamento de Deus.indd 8 10/03/2014 13:32:57
  • 10. 8 – 9 Capítulo 1 Um mocorongo no poder 1964 O Julgamento de Deus.indd 9 10/03/2014 13:32:57
  • 11. [1]Ummocorongonopoder 1964 O Julgamento de Deus.indd 10 10/03/2014 13:32:57
  • 12. 10 – 11 Os matutos costumam dizer na sua linguagem peculiar: “Mês miou, mês cabou”. Ou seja, depois de metade, o mês já está chegando ao fim. Acostumado a acordar de madrugada ao longo de toda a vida, o marechal chegou cedo ao Palácio do Planalto, naque- le dia da segunda metade de agosto de 1964, quando o mês já tinha embicado para o final. Aguardava para uma audiência o ministro das Relações Exteriores. Depois de dar uma olhada nos jornais, ficou andando de um lado para o outro, contemplando a Esplanada dos Ministérios e o Congresso Nacional através das paredes de vidro do gabinete presidencial, seu local de trabalho desde abril. Estava no governo havia pouco mais de quatro meses, ainda procurando se acostumar melhor aos meandros do ambiente político. De repente se deu conta de que era a primei- ra vez que um ministro civil solicitava uma audiência a ele. Antes, só compareciam quando convocados. A solicitação inédita o intrigava. O que o auxiliar estava trazendo? Só podia ser problema, e dos grandes. Escolhido pelos seus pares para ocupar o cargo máximo do País, de- pois do golpe militar, em circunstâncias que ao longo da narrativa vão ficar melhor esclarecidas, o marechal usurpou o título republicano e democrático de presidente, e como tal exigia ser tratado. Como os historiadores nunca se deram ao trabalho de botar os pingos nos is, e os documentos oficiais nunca foram retificados, os ditado- res do período militar, e até de ditaduras anteriores, continuam sendo chamados de presidentes. De modo que o País viveu quase 40 anos intercalados sob ditaduras diversas, sem que conste dos livros de His- tória um único sujeito tachado de ditador. 1964 O Julgamento de Deus.indd 11 10/03/2014 13:32:57
  • 13. [1]Ummocorongonopoder O marechal só era chamado de ditador, tirano ou outro sinônimo equivalente em panfletos clandestinos que a muito custo a oposição conseguia fazer circular. Ou em raras ocasiões no exterior, por parti- dos de esquerda que funcionavam em países democráticos A voz do chanceler, um tratamento que era atribuído ao responsável pelas relações internacionais do País, denotava apreensão e ansiedade. Presidente,desculpou-seportelefone,só estou lhe tirando dos seus mui- tos afazeres porque trata-se de um assunto urgente e delicado. E só tomo essa liberdade porque já esgotei todas as instâncias sem encontrar uma orientação adequada. O único encaminhamento que me resta é recorrer à sapiência, ao tirocínio e à autoridade iluminada de Vossa Excelência. O marechal gostou de ouvir o elogio. Concordou no íntimo. Ele, real- mente, na condição de maior autoridade do País, não era para ser per- turbado por qualquer dá cá aquela palha. O que apreciava, na verdade, era conversar sobre motes e piadas de caserna. Conhecia os últimos modelos de armamentos, as táticas e estratégias mais modernas, era especialista em história militar. E se es- baldava de rir com as mais tolas anedotas sobre recrutas. Outrotemaquedominavabemeraliteraturaregional.Cultivavaaami- zade de escritores, inclusive tidos como esquerdistas. Nesse assunto não fazia discriminações ideológicas. Nas férias, frequentava a fazenda de consagrada romancista social que na juventude fora até comunista. Detestava conversar sobre banalidades em geral, particularmente fo- focas sociais, futebol e principalmente política. Depois que assumiu o cargo supremo do País, esse último tema pas- sou a ser parte da sua rotina. Era um dos contrapesos da função. Mili- tar é acostumado a dar ordens e ser obedecido. Política, mesmo numa ditadura, implica em conversas e negociações. Coisa muito chata, para ele. Sua úlcera queimava como brasa. E política internacional, então, era purgante em dose dupla. 1964 O Julgamento de Deus.indd 12 10/03/2014 13:32:57
  • 14. 12 – 13 Porisso,nãofazia,atéaquelemomento,muitaquestãodeacompanhar as minúcias do governo. Tudo o que subalternos pudessem pôr em prática sem contrariar o seu comando estava de bom tamanho. Desde que não desagradasse ao Exército e à Embaixada dos Estados Unidos da América do Norte. Pode até parecer brincadeira, mas a doutrina adotada depois do golpe era clara: o que é bom para os Estados Uni- dos é bom para o Brasil. Apesar do esforço para aparentar uma unidade monolítica, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica disputavam poder entre si. Dentro de cada uma dessas forças, correntes antagônicas se digladiavam. O governo, na parte que coube aos militares, era uma sucessão de feudos, ocupa- dos pelas diversas linhas conflitantes. A fim de acomodar esse saco de gatos, cada qual mandava no seu pedaço. Entretanto, quando surgiam problemas, complicações ou aborreci- mentos que não conseguiam resolver sozinhos, todos corriam para o marechal. Ele era o ponto de equilíbrio, o algodão entre os cristais. Assim, era forçado a lidar com um aborrecimento atrás do outro. Raro odiaquenãolhecaíanocoloalgodesagradávelparadecidir.Governar éresolverpepinos,filosofoucertodiaparaumaltoexecutivodaONU. Por isso, já andava pela tampa do tabaqueiro, como se dizia no interior do Ceará, com tantas chateações medíocres. Enquanto esperava, olhando para o relógio a todo instante, foi várias vezes ao banheiro arrumar o fraque diante do espelho. Durante toda a sua extensa carreira, desde os tempos da Escola Militar, o marechal sempre fora o que na gíria dos quartéis se chama de mocorongo. Um caipira de almanaque, um sujeito desmantelado como uma capivara. Do uniforme de campanha à farda de gala, nenhum traje lhe caía bem. Destacou-seentreosseusparespelaaplicação,culturaeatémesmoin- teligência, nunca pela elegância. Agora, escolhido ditador, ou melhor, presidentedaRepública,conformeaterminologiaoficial,foiobrigado a trocar a farda por roupas civis. A situação ficou ainda pior. 1964 O Julgamento de Deus.indd 13 10/03/2014 13:32:57
  • 15. [1]Ummocorongonopoder Era baixinho, cabeça grande e chata. Diziam que ficara assim porque na infância distante no Ceará os adultos batiam sempre com a palma da mão no seu quengo e falavam: Esse menino vai dar pra gente. Nin- guém ostenta uma catedral desse tamanho para nada. Foi assim, segundo as más línguas, que aplainou o alto da cabeça e afundou o pescoço. O que restou dessa parte do corpo que a girafa tem de sobra era tão pequenininho que a cabeçorra parecia pregada diretamente sobre os ombros. Até para olhar para os lados era difícil, tinha quase que virar o tronco inteiro, como se fosse o robô do popu- lar seriado da televisão Perdidos no Espaço. Mas esse detalhe não atrapalhou sua trajetória. Vida afora, acabou cumprindo as profecias da infância. Galgou por mérito os mais altos postos do Exército, casou com mulher honrada, inteligente e bonita, e agora, viúvo, estava empoleirado no cargo mais importante da Nação. O sucesso não impedia que vivesse mal acomodado dentro do fraque cortado justo, na tentativa dos alfaiates para deixá-lo um pouco mais esbelto e menos desgracioso. Para piorar as coisas, certo publicitário gaúcho teve uma infeliz ideia que a muitos áulicos pareceu genial. Sugeriu e foi acatado que o di- tador portasse, o tempo inteiro, a faixa presidencial verde e amarela atravessadasobreopeito.Issoparasediferenciardoantecessor,pouco dado a essas formalidades bobas. E, de quebra, passar a ideia de ser presidente em tempo integral. A imagem desse mocorongo que parecia mal-assombrado foi quase imediatamente espalhada através de uma foto oficial obrigatória nas repartições públicas, escolas, prefeituras, sindicatos e, também, adota- da por bajuladores ou partidários do regime em instituições, igrejas e até residências. Seu desalinhamento facilitava a vida dos chargistas e humoristas, em- bora estes tivessem pouco espaço para divulgar suas caricaturas. Estas 1964 O Julgamento de Deus.indd 14 10/03/2014 13:32:57
  • 16. 14 – 15 circulavam como folhetos clandestinos, passando de mão em mão e provocando gostosas risadas entre os frequentadores da boemia. O desmantelo facilitava também a vida dos imitadores de todos os quilates. Em toda conversa nos bares ou pontas de rua, onde não esti- vesse presente uma autoridade, um policial ou conhecido dedo-duro, havia sempre alguém para arremedar o ditador. Até pelo interior do País esse assunto era tratado. Dizia-se pelas bo- degas: Esse aí foi escolhido a dedo. Quem fez ele felizmente quebrou a fôrma. O homem é mais feio do que talho de foice, mais mal-amanhado do que o boi de nanico. Também nos ambientes mais seletos das sociedades carioca e paulis- tana, a estética presidencial era assunto obrigatório. As senhoras que se reuniam todo dia para rezar um rosário pelo sucesso do que chama- vam Revolução Católica, Apostólica, Romana e Redentora não con- seguiam fugir ao assunto. Entre elegantes chávenas de chá importado acompanhadopelomaislegítimoboloinglês,perguntavammaliciosa- mente qual a misteriosa solução para o presidente conseguir colocar a gravata. Era tudo falsidade dessas matronas carolas, que posavam de bastiães da moral e dos bons costumes. Todas sabiam a resposta, que ouviam nas cozinhas, nas garagens, nas conversas de pé de ouvido. A população em geral também conhecia a fórmula. Bastava circular por oficinas, puteiros, bares, praças, ruas. Ou até ficar no sereno das missasecasamentos,nasportasdasigrejas.Ométodoutilizado,muito simples, por sinal, era geralmente descrito com detalhes e coreografia da forma mais direta e escrachada possível. Dava-se como certo, e assim se representava a cena, que o marechal só conseguia completar o traje passeio oficial quando o ajudante de or- dens aplicava-lhe uma popular dedada no centro das nádegas. E mes- mo assim com bem muita força, sob pena de não fazer efeito. 1964 O Julgamento de Deus.indd 15 10/03/2014 13:32:57
  • 17. [1]Ummocorongonopoder Todo mundo sabe que o dedo maior de todos, aplicado com vigor no eixo central da bunda, provoca em qualquer homem uma reação fisio- lógica natural: um gemido gutural e uma esticada do pescoço. Nesse momento crucial, o ditador conseguia espichar um tantinho de nada a minúscula embalagem da garganta. Aproveitando o movi- mentoinstintivo,oajudantedeordens,agindocomdestrezaerapidez, conseguia encaixar a gravata. Em caso de fracasso, o procedimento constrangedor tinha que ser repetido. Essas e dezenas de outras piadas tendo o ditador como motivação se multiplicavam País afora. Afinal, rir dos opressores é remédio com sa- bor de refrigerante. 1964 O Julgamento de Deus.indd 16 10/03/2014 13:32:57
  • 18. 16 – 17 Um quengo privilegiado Por conta das características e contradições de uma ditadura que ain- da engatinhava, a agenda do déspota, que fazia força para parecer es- clarecido, era um verdadeiro faz de conta. Tinha sempre um toque de imprevisibilidade, desde que os ministros militares metiam a mão na portaeentravamaqualquerhora,semsefazeremanunciar.Mesmoas- sim, a relação de compromissos era folgada feito colarinho de palhaço. Para preencher os espaços vagos, o ministro chefe da Casa Militar, que ironicamente era o responsável pela comunicação do governo, asses- soradoporpublicitáriosejornalistasmetidosaespecialistasemgestão de imagem, sempre tinha o cuidado de programar algum compromis- so que rendesse notícia. Inutilidades simpáticas como visitar uma escola infantil ou um hospi- tal eram constantemente relacionadas para humanizar a sua imagem. Receber alguma autoridade estrangeira dava ao ditador ares de impor- tância e reconhecimento internacional. Reunir-se com lideranças reli- giosas, sindicais ou empresariais, passava a impressão de um homem aberto ao diálogo. Tudo isso não ocupava mais do que uma hora do seu dia. Entretanto, gerava fotos para as primeiras páginas dos jornais e recheava os noticiários de rádio e da televisão. Além de preencher espaço nas naturais, como eram chamados os noticiários que antece- diam os filmes nos cinemas, exibidas entre um trailer e outro. Nesse caso específico, com o tempo, a duração das aparições foi sen- do gradativamente reduzida. É que toda vez que o ditador surgia, aproveitando o escurinho do cinema, a moçada o saudava com uma sonora vaia. Mais ou menos pelo mesmo motivo, as atividades externas do ditador eram monitoradas com muito cuidado. Vistoriar obras ou frequentar locais com aglomeração popular, por exemplo, eram programas fora de cogitação. 1964 O Julgamento de Deus.indd 17 10/03/2014 13:32:57
  • 19. [1]Ummocorongonopoder A primeira e única iniciativa do gênero, logo nas primeiras semanas, resultou em verdadeiro desastre midiático e político. Primeiro, não foi encontrado em nenhuma loja do ramo um capacete capaz de se aco- modarnaimensacabeçadoditador.Foiprecisofabricarumapetrecho com diâmetro especial. Mesmo assim, ou por isso mesmo, o resultado não podia ter sido pior. Os operários foram perfilados à distância regulamentar e alguns esta- vam, sob coação, segurando faixas laudatórias. Entretanto não esca- pou aos ouvidos atentos dos jornalistas presentes, inclusive e princi- palmente dos estrangeiros, o desmoralizante coro de vaias com que o visitante foi saudado. No dia seguinte, o registro negativo estava feito na imprensa do mundo inteiro. Mas a pior repercussão aconteceu mesmo em solo pátrio. A equipe palaciana vivia pisando em ovos, todos com medo de se tornarem sus- peitos de sabotagem ou agentes da guerra psicológica adversa, que era como se tratavam os comentários desfavoráveis ao regime. No ambiente palaciano, quando se referiam ao general, era inimagi- nável qualquer restrição ou comentário que parecesse crítica. Assim, ninguém teve coragem de tomar a iniciativa e expressar o pensamen- to comum sobre o ridículo da foto oficial do evento. Repetiu-se no Planalto Central aquela fábula do rei que está nu. Como não houve manifestação de discordância, a assessoria liberou a imagem para a mídia impressa. No outro dia, logo cedo, quando a foto apareceu estampada em todas as primeiras páginas dos jornais, aconteceu um verdadeiro bafafá. Na fotografia, o marechal, com seu capacete de inimaginável dimen- são, ficou parecendo um extraterrestre de história em quadrinhos. As pessoas passavam pelas bancas e, mesmo quando não compravam um exemplar, faziam questão de apreciar a munganga para cair na inevitá- vel gargalhada. 1964 O Julgamento de Deus.indd 18 10/03/2014 13:32:57
  • 20. 18 – 19 O mais atrevido foi certo jornaleco meio comunista do Rio de Janei- ro, que até então sobrevivia às perseguições da ditadura a duríssimas penas. Sentindo que não aguentaria por muito tempo a pressão do go- verno, as sucessivas prisões de seus colaboradores e a fuga em massa dos anunciantes, o editor-proprietário optou por aproveitar a opor- tunidade para sair de cena em grande estilo. Fez uns ajustes na foto e enquadrou o marechal em frente a uma britadeira, de um ângulo em que a máquina ficou parecendo uma nave espacial. Ocupou com o retrato toda a parte de cima da primeira página. Logo abaixo da foto, estampou uma manchete espalhafatosa anunciando que os marcianos tinham tomado o governo no Brasil. Só lá embai- xo, em tipos quase ilegíveis, se explicava que a manchete não era nada mais nada menos que uma chamada para um artigo de ficção cientí- fica, a ser publicado na edição seguinte. Que, aliás, nunca veio à luz. Antes que a Polícia Militar invadisse a redação e empastelasse a publi- cação a marretadas, o jornaleco rodou 4 edições sucessivas. Utilizou até papel emprestado por concorrentes que, meses antes, pregavam o golpe, mas que também não estavam satisfeitos com o andar da car- ruagem. Vendeu feito água no deserto. Os exemplares eram disputa- dos a tapa na Cinelândia, no Largo da Carioca, na Avenida Rio Branco e outros pontos de grande concentração popular. Graças à ponte aérea, em pouco tempo a publicação chegou a São Paulo. No Rio, as Polícias Civil e Militar foram mobilizadas. Revistavam e arrancavam os impressos das mãos dos leitores. Filas, elevadores, res- taurantes, repartições públicas, lotações, escritórios, trens de subúr- bio, tudo virou um verdadeiro pandemônio, um generalizado campo de batalha. Quem conseguiu salvar o seu exemplar fez sucesso à noite nos bairros. Vários desses leitores, denunciados por vizinhos alcague- tes, que naqueles dias sombrios se multiplicavam feito erva daninha, foram parar em delegacias e quartéis. 1964 O Julgamento de Deus.indd 19 10/03/2014 13:32:57
  • 21. [1]Ummocorongonopoder Cabeças rolaram. A equipe de marketing, do publicitário ao fotógrafo, foi toda substituída. Mas o estrago estava feito. A partir dali, o próprio marechal estabeleceu que em matéria de obra, só iria a inaugurações quando não se exigisse capacete em ninguém. E como nada havia para inaugurar, ele aproveitou o episódio para se livrar de levar sol quente no quengo e aplaudir discursos sem graça nenhuma. Nada disso, porém, estava em pauta ou sequer era lembrado naque- la manhã. O que interessava eram as novas do ministro, que cumpriu britanicamente o horário, fez-se anunciar, cumprimentou o chefe, es- perou a ordem para sentar. 1964 O Julgamento de Deus.indd 20 10/03/2014 13:32:57
  • 22. 20 – 21 Bate-bate coração O marechal ajeitou-se com dificuldade na cadeira larga e alta que fora feita para acomodar as longas pernas de Juscelino Kubitscheck, seu primeiro ocupante. Sem se preocupar em esconder o desconforto, au- torizou o ministro a expor o que o levara a solicitar às pressas aquela audiência imprevista. O chanceler estava ainda pior acomodado. Balançava para um lado e para o outro, parecia pêndulo de relógio de parede. Procurava ajeitar as nádegas na poltrona o tempo todo. Se estivesse sentado em cima de um formigueiro, não transpareceria maior desconforto. Sabia que dificilmente o que tinha a dizer agradaria. Era perspicaz o suficiente para perceber, também, que o seu papo, recheado de mesuras e forma- lismos vazios, dava nos nervos do ditador. Achou que precisava ganhar algum tempo, preparar o espírito do co- mandante supremo. Por isso, iniciou uma conversa do tipo que o povo chama de cerca-lourenço, evitando ir direto ao assunto. O marechal já sabia que o problema não era simples. Por isso, após ouvir alguns longos minutos de lero-lero, girando em torno da delica- dezadotemaasertratado,cortouapalavradoauxiliare,bruscamente, ordenou que fosse direto ao assunto. Mais suado do que sugeria o clima do Cerrado naquela época do ano, o ministro nem assim conseguiu ser esclarecedor. Estava tra- vado, sua aclamada loquacidade de repente fora para o espaço. Ao invés de cumprir a ordem, continuou costeando o alambrado, como se diz no Sul. Foi naquela altura que o marechal perdeu a calma pela primeira vez. Levantou a voz e determinou: Ministro, por caridade, poupe os meus neurônios. Se eu não sei do que se trata, como posso lhe dar comandos, orientações ou sequer rezar um padre-nosso pela solução do problema? 1964 O Julgamento de Deus.indd 21 10/03/2014 13:32:57
  • 23. [1]Ummocorongonopoder Apesardeculto,omarechaltinhaumsensodehumorrasteiro.Alémdisso, não estava acostumado e não gostava de ser desobedecido. Então apelou paraaignorância.Ameaçouoministrocomalinguagemdosporões,onde osprisioneirospolíticoseraminterrogados:Talvezunsbonschoqueselétri- cos nos culhões lhe façam desembuchar. Nãoteste a minha paciência. A pressão excessiva fez efeito contrário, como aliás acontecia muitas vezes nos calabouços onde se praticavam as torturas contra inimi- gos do regime. O ministro perdeu a cor, a fala e a capacidade de se expressar. O absurdo da situação era tão evidente que o marechal caiu em si. Es- tava no caminho errado. Era preciso relaxar o interlocutor. Apertou umacampainhaepediuàsolícitasecretária,quesurgiuaparentemente do nada, dois copos com água gelada e dois cafezinhos bem passados. Logo entrou Cícero, o copeiro oficial, trazendo a encomenda no grau. Xícaras fumegantes, copos suando da água gelada. O marechal aproveitou para desanuviar o ambiente e perguntou a Cícero pelas novidades. Era como um código. O copeiro sempre trazia para o presidente con- versas de cocheira, relatórios da Rádio Corredor e até piadas sobre o próprio marechal que ninguém tinha o topete de contar. Em troca, servia de confidente para reflexões ditatoriais que nenhum outro ou- vido tinha o privilégio de escutar. Naquele momento tenso, o copeiro foi peça fundamental para resol- ver o impasse. Percebendo que o ambiente estava soturno, fez o seu jogo. Disse ao ditador que conhecia uma piada nova sobre o regime, mas era muito pesada e ele não tinha coragem de contar na presença de um estranho. Conte, ordenou o marechal. É até bom, porque esse ai deve pensar que eu sou um monstro e vai ver que eu sou, além de democrata, muito bem humorado. 1964 O Julgamento de Deus.indd 22 10/03/2014 13:32:57
  • 24. 22 – 23 Cícero então arriscou. E narrou a piada do ônibus lotado que foi parar numa delegacia devido a uma confusão generalizada. AcausadofuzuêfoioespancamentosofridoporumoficialdoExército, que estava fardado. O militar, muito irritado, disse ao delegado que foi agredido pelos passageiros e exigia uma punição exemplar para todos. A autoridade policial começou, então, a ouvir os acusados. A primeira foi uma moça bonita e exaltada, que sem medo apontou para o militar. Relatou que estava no ônibus sentada no seu canto quando inespera- damente o milico passou a mão nos seus seios sem o menor respeito. Meti minha sombrinha nele com toda a força, confessou. O próximo depoente falou que era noivo da moça. Confirmou a his- tória, admitiu que também tinha dado uns sarrabulhos no atrevido. Para azar do oficial, a família inteira da noiva estava no coletivo. Pai, mãe, irmãos, primos, todos admitiam o espancamento em função do desrespeito à donzela. Lá por último vem um amarelinho, e o delegado, já de saco cheio, per- guntou: E o senhor, é o quê da moça? O sujeitinho fez cara de espanto: Eu não sou nada, seu delegado. Nem conhecia ela. Surpreso, o delegado perguntou se ele também tinha agredido o ofi- cial. Mais surpreso ainda ficou quando o sujeitinho confirmou. Estava no ônibus, viu todo mundo metendo o pau no militar, pensou que a revolução tinha acabado, desceu o cacete também. O marechal gargalhou, o chanceler deu um risinho amarelo, o clima desanuviou. Cícero foi convidado a se retirar, a palavra voltou ao mi- nistro, que, bem mais tranquilo, conseguiu engrenar a conversa. Presidente, eu preciso de comandos urgentes. Já consultei o coronel che- fe do Serviço Secreto, não obtive resposta. O embaixador do país de Lincoln não quer entrar no assunto. A Santa Sé pede informações, os 1964 O Julgamento de Deus.indd 23 10/03/2014 13:32:57
  • 25. [1]Ummocorongonopoder principais jornais querem entrevistas, as nossas embaixadas não sabem o que dizer. Administrei até aqui, agora fugiu da minha alçada. A fala do ministro, soltando torpedos em doses homeopáticas, era fru- to da remota esperança de o marechal já estar informado de alguma coisa que facilitasse a sua missão. Mas tudo foi inútil. Pela expressão do chefe, o ministro percebeu que ele estava completa- mente por fora do assunto. É o que dá intimidar a imprensa e encher de medo os auxiliares. Acaba-se sem saber de coisas importantes que deveriam ser bem conhecidas, pensou com os botões da sua casaca. O pior é que o destino o escolhera para ser o portador da má notícia. Tentando num esforço supremo enrolar um pouco mais para preparar melhor o espírito do chefe, assumiu o risco e tergiversou: O senhor conhece a cidade pernambucana de Boi Pintado, antigamente denomi- nada Boa Vista, presidente? O marechal conhecia. Fora lá uma vez, na época de comandante do IV Exército, cuja sede é no Recife. Fica a cerca de 130 km da capital per- nambucana, na região Agreste do estado. É aclamada, até hoje, como Capital Mundial da Vaquejada. Foi exatamente para assistir a um desses eventos que se deslocou até a cidade. Reclamou da estrada ruim, achou tudo feio, detestou a festa. Vaqueiros derrubando bois pelo rabo, levantando poeira, o povo vi- brando em palanques que pareciam poleiros. Um esporte no qual não achavagraçanenhuma,apesardesermuitoapreciadoporseusconter- râneos nordestinos. Estar em Pernambuco e não conhecer a tradicio- nal vaquejada de Boi Pintado, que acontece todo mês de setembro, é como ir a Roma e não ver o papa. Porém, nos últimos meses, a má impressão da visita desaparecera. E o marechal fez questão de registrar: Não apenas conheço, como de lá só tenho recebido boas notícias. 1964 O Julgamento de Deus.indd 24 10/03/2014 13:32:57
  • 26. 24 – 25 Agora a surpresa foi do chanceler. Ocupado com as relações interna- cionais, não tinha tempo para se atualizar no noticiário interno. Por- tanto, não sabia de nada de bom acontecido em Boi Pintado, só estava informado da parte complicada. O marechal encarou o chanceler, a expressão mais animada trazia ao mesmo tempo uma ordem inadiável. Agora que precisava ainda de al- gum tempo, o ministro não dispunha de mais nenhum. Conformado, engatilhou frase: Não sei se o senhor está a par, presidente... O mandatário, não estava a par de nada ruim vindo de Boi Pintado. E não gostou de saber que estava desinformado. Pior ainda, achou muito constrangedor ter que passar recibo da sua ignorância para um auxiliar comoqualnãotinhaqualquerintimidade.Oseudesconhecimentoera prova de que ou o Serviço Secreto - o já temido SS - não funcionava ou omitia notícias ao chefe supremo. O ministro percebeu a situação, atrapalhou-se num gaguejado inter- minável. Foi preciso que o presidente perdesse a linha pela segunda vez, desse uma tapa na mesa, para o homem cair em si, novamente se recompor e desembuchar de uma vez por todas: Não sei se o senhor sabe, presidente, falou rápido e nervoso, mas Deus vai ser julgado em Boi Pintado, e o assunto já ganhou o noticiário internacional. AmudançanaexpressãodomaisaltomandatáriodoPaísfoitãogrande que o ministro teve a impressão de que o marechal tinha ficado verde, amarelo, azul e branco ao mesmo tempo. Se enfiassem um cabo de vas- soura no seu ouvido, naquela hora, podiam balançar que seria confun- dido com uma bandeira nacional. Além disso, da boca que emitia uma baba parecida com espuma, saiu um urro quase animal: Deus o quê? Nesse momento, o ministro tinha atingido quase os limites da co- vardia. Segurou-se a custo para não urinar ali mesmo. Para sua sorte, 1964 O Julgamento de Deus.indd 25 10/03/2014 13:32:57
  • 27. [1]Ummocorongonopoder lembrou de uma expressão calhorda que muito ouvira na época de es- tudante,masqueexcluíracompletamentedoseuvocabulárioelegante. Naquele instante de agonia, ele, que nunca utilizara expressão grossei- ra, se agarrou silenciosamente com a frase como uma tábua de salva- ção: Já que passou a cabecinha, o resto vai de qualquer jeito. Recomposto, passou a se expressar com inesperado vigor e até uma pontinha de atrevimento: É isso mesmo que o senhor ouviu, presidente. O julgamento de Deus está marcado para se realizar em Boi Pintado, agora, no próximo dia 7 de setembro. O núncio apostólico, representante direto do Papa e do Espírito Santo, quer uma audiência urgente com o senhor. E a imprensa internacional, abusada como sempre, está exigin- do uma entrevista coletiva para saber a posição oficial do País sobre esse inusitado acontecimento. O alívio opera milagres. A cada palavra que proferia, o ministro ia re- cuperando a sua habitual impertinência, nunca exercitada diante dos poderosos do regime. Percebeu que a fraqueza mudara de lado. Agora quem tremia nas bases era o ditador. Mudava de cor como uma árvore de Natal, parecia que ia ter uma convulsão a qualquer momento. O chanceler sentiu-se inesperadamente tomado de tranquilidade e sa- tisfação. Passou a saborear cada palavra como uma espécie de vingança pela intimidação que o superior lhe infundia. Mandou falar, ia ouvir. E prosseguiu: Além disso, presidente, existem diversos outros problemas acontecendo por lá. Temas polêmicos e complexos, que despertam o in- teresse não apenas da Santa Sé, como também dos serviços de inteligên- cia estrangeiros e da comunidade científica internacional. Questões que desafiam a nossa gloriosa e vitoriosa Revolução Redentora, que o senhor tem conduzido com tirocínio perfeito e generosa mão de ferro. Finalizan- do, repetiu, dessa vez gratuitamente, por pura maldade: Deus vai ser levado ao banco dos réus em Boi Pintado, Excelência. 1964 O Julgamento de Deus.indd 26 10/03/2014 13:32:57
  • 28. 26 – 27 Foi a vez do marechal quase engolir a língua. Articulou as palavras com dificuldade, fazendo pausas entre cada uma delas, procurando ar. Quer dizer que, no meu governo... católico, apostólico, romano, ociden- tal e cristão... defensor da fé, da tradição, da família e da propriedade privada... resultado da Revolução Redentora de 31 de Março contra o comunismo ateu... Quando se referiu ao comunismo ateu, foi dominado pela emoção. Perdeu o fôlego, parecia asfixiado, o multicolorido do rosto foi subs- tituído pelo roxo monocromático. O chanceler, apavorado, gritou por socorro. O coronel médico de plantão, que sempre estava no gabinete contí- guo, entrou às carreiras e, quando viu o quadro, diagnosticou um pos- sível enfarto em andamento. Desconsiderou a hierarquia e, de acordo com o manual de medicina de combate, desferiu um murro violento no peito do marechal, para garantir o coração em funcionamento. A autoridade desabou de costas, meio desacordada. Para sua sorte e felicidade geral do mundo ocidental e cristão, estava diante do sofá, caiu no fofo e não se feriu. Na verdade quem saiu machucada foi a mão do médico, que naquela agonia não percebeu e esmurrou diretamente a estrela de metal que sobressaía no meio da faixa estendida sobre o peito ditatorial. 1964 O Julgamento de Deus.indd 27 10/03/2014 13:32:57
  • 29. 1964 O Julgamento de Deus.indd 28 10/03/2014 13:32:57
  • 30. 28 – 29 Capítulo 2 Revolução ou piada? 1964 O Julgamento de Deus.indd 29 10/03/2014 13:32:57
  • 31. [2]Revoluçãooupiada? 1964 O Julgamento de Deus.indd 30 10/03/2014 13:32:57
  • 32. 30 – 31 Pergunte a qualquer aluno do primeiro grau em que data ocorreu o golpe militar de 1964, que ele responderá com toda a segurança: No dia 31 de março. Trata-se de uma impostura que vem sendo alimentada ao longo de dé- cadas. O golpe ocorreu no dia 1º de abril. A data não poderia ser mais adequada, pois trata-se do Dia Internacional da Mentira. E falsidades oficiais foi o que nunca faltou sobre os acontecimentos daquele dia e seus desdobramentos pelos próximos 21 anos. Os responsáveis pela antecipação foram os próprios artífices do movi- mento. Naquela época, a comemoração era muito maior do que hoje. No mundo inteiro, quase todas as pessoas se empenhavam em fazer amigos ou desconhecidos caírem em alguma esparrela. E também ti- nham que prestar atenção para não serem apanhados em armadilhas, pois as lorotas eram muitas e criativas. Até órgãos sérios da imprensa internacional entravam na brincadeira, noticiando os acontecimentos mais improváveis com ares da maior seriedade. Muitos acreditavam e repetiam a ficção. Algumas tomavam proporções globais. Em Boi Pintado, antiga Boa Vista, era comum se espalharem naquele diaasmaisvariadaspotocas.Desdeamortesúbitadealguémdequem não se gostava até que a padaria de um adversário político estava dis- tribuindo pão de graça. Poucos anos atrás, tinham engabelado muita gente no mesmo pacote. Seu Mulambinho era conhecido como o maior velhaco das redonde- zas. Vivia encalacrado com Deus e o mundo. Cinicamente, adotava o 1964 O Julgamento de Deus.indd 31 10/03/2014 13:32:57
  • 33. [2]Revoluçãooupiada? lema “devo, não nego, pago quando puder”. Andava todo engomado e com banha nos cabelos pelas ruas da cidade de cabeça erguida, na- riz empinado, farejando a próxima vítima. Quem não te conhece que te compre, falava o povo. Agia como se fosse a criatura mais correta do Universo. Um dos muitos enganados por ele espalhou a falsa notícia de que seu Mulambinhotinhaacertadonamilhardojogodobicho.Receberaum dinheirão e estava se preparando para arribar. Foi um desadouro. Os credores em peso correram para receber o seu pedaço. Comerciantes, prestadores de pequenos serviços, profissio- nais liberais, agiotas, amigos ludibriados de boa-fé, dirigiram-se em bandos à sua casa para não perderem a chance. Até diversas raparigas daAvenida,comosechamavaazonadebaixomeretríciodeBoiPinta- do, acorreram ao evento. Não eram poucas que tinham levado o popu- lar xexo de seu Mulambinho. Ou seja, prestaram seus peculiares ser- viços sem receber a remuneração acordada. Agora, engrossavam com toda razão a malta irada que encurralou o homem na sua própria casa. A enfurecida multidão destruiu todo o precário patrimônio do deve- dor. Não sobrou um pote para contar a história. Nem mesmo os avi- sos colocados às pressas no alto-falante da igreja matriz, alertando a população de que se tratava de uma brincadeira de primeiro de abril, fizeram efeito sobre a fúria do populacho. Seu Mulambinho só não embarcou dessa para pior graças primeiramente a Deus e depois à intervenção providencial da polícia, que dispersou a turba com tiros para o alto, conforme a insuspeita narrativa de dona Mimosa, esposa do caloteiro. Por isso, não se pode dizer que, nesse caso, os ideólogos do golpe estivessem desprovidos de razão. Caso admitissem o dia correto do golpe,estariamdandocabimentoaumapiadaprontaqueomundoin- teiro cuidaria de ironizar. Fecharam questão no 31 de março, quando 1964 O Julgamento de Deus.indd 32 10/03/2014 13:32:57
  • 34. 32 – 33 comprovadamente ocorreram muitas reuniões conspiratórias, mas não aconteceu nenhuma ação golpista. Uma das maiores provocações que se podiam fazer na época aos mili- tares era dizer que a Revolução Redentora deles foi uma piada de pri- meiro de abril. Muita gente levou trompaços e até acabou no xilindró por falar tão cândida verdade. Depois da redemocratização, a data equivocada continuou sendo repetida. Talvez porque a polêmica naquele momento não valesse a pena. Podia soar como revanchismo ou até provocação; na época realmente existiam coisas mais importantes para tratar. Por outra, tal- vez realmente porque não fizesse mais nenhuma diferença o golpe ter ocorrido no dia tal ou qual. Interessava ao País era estar livre dele. Pelosim,pelonão,atéhojeprevaleceadataerrada.Énodia31demar- ço que velhos milicos saudosistas se reúnem em clubes decadentes para festejar a merda que fizeram com o País. Autoridades militares, fazendoouvidosdemercadoràorientaçãodosgovernoscivis,emitem Ordens do Dia louvando o golpe que persistem chamando de revo- lução. E ainda por cima, a data é comemorada em quartéis País afora. As crianças continuam aprendendo nas escolas o dia errado por con- ta do desconhecimento de muitos professores e principalmente em decorrência do pouco caso e da falta de pulso das autoridades da área educacional. A data exata é incontestável. Cada dia tem 24 horas, como todo mun- do sabe, e acaba à meia-noite. A partir daí, já é madrugada de um outro dia. E até meia-noite do dia 31 de março de 1964 não havia nenhum sinal de estripulia pelas ruas do País. Nas altas horas da madrugada de primeiro de abril, na calada da noite, como se diz, é que algumas tropas acenderam o estopim, saindo dos quartéis, em Minas Gerais, se deslocando em comboio na direção do Rio de Janeiro. 1964 O Julgamento de Deus.indd 33 10/03/2014 13:32:57
  • 35. [2]Revoluçãooupiada? É bom assinalar que, embora o golpe viesse sendo preparado pelo me- nos desde a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, tudo acabou acon- tecendo de modo bastante improvisado. Havia muitas divergências no interior das próprias forças armadas e principalmente na relação dessas com os norte-americanos sobre a ocasião, a forma e a intensidade do golpe. Prevaleceram as desavenças, o consenso não foi alcançado. Quando chegou a informação de que uma frota ianque estava a caminho para tomar a frente da derrubada do governo, a situação fugiu do controle. Considerando inaceitável a presença descarada dos Estados Unidos no comando e para não ficar a reboque dos estrangeiros, um grupo golpista, nacionalista e anticomunista resolveu agir por conta própria. Naquelamadrugadade1ºdeabril,umcertogeneralOlímpioMourão, sediadoemMinasGerais,pôsastropasquecomandavaemmovimen- to, por sua conta e risco. Forçou a barra, iniciou o levante e deu o golpe como fato consumado. O resultado de uma manobra dessas não acontece como num passe demágica.Tantoqueaomeio-diaopresidenteJoãoGoulart,quetodo mundo chamava de Jango, estava chegando em Brasília vindo do Rio de Janeiro e continuava no poder. O mesmo acontecia com Miguel Arraes em Pernambuco, Seixas Dória em Sergipe e diversos outros governadores e prefeitos que depois seriam depostos pelos golpistas. Até o começo da tarde do dia primeiro, em Minas, no Rio de Janeiro, no Recife, em São Paulo, em Brasília, além de outras capitais, apenas nos círculos mais enfronhados da política, sabia-se que um possível golpe estava em curso. As pessoas bem informadas sentiam que algo estranho estava se passando, embora ninguém fosse capaz de relatar exatamente o quê. Em Boi Pintado, por exemplo, localidade onde as pessoas eram infor- madas e ouviam todas as edições do repórter Esso, inclusive porque 1964 O Julgamento de Deus.indd 34 10/03/2014 13:32:57
  • 36. 34 – 35 o noticiário era reproduzido pela Rádio Surubim, um serviço de alto-falantes instalado nos postes da cidade, ninguém sabia absoluta- mente de nada. Era um dia de quarta-feira como outro qualquer. Naquele começo de tarde, quente como uma lambida do diabo, por- que o inverno teimava em não chegar, um grupo de rapazes cochilava em plena via pública. Como de hábito, descansavam do almoço na calçada da matriz, quase em frente à casa paroquial. Aproveitavam a agradável sombra proporcionada pela alta torre da igreja nova. O mo- vimento da rua era quase nenhum, já que a maioria da população tam- bém tirava um cochilo depois do almoço. Nada os incomodava. Tratava-se de um grupo heterogêneo, conhecido pelo apelido de Pen- sadores Tetéus, como eles mesmos se chamavam. O povo dizia sim- plesmente que eram os Tetéus, nome de uma ave noturna da região, aparentada com o quero-quero. Costumavam discutir madrugada adentro os assuntos mais variados. Do sexo dos anjos à Guerra Fria, das questões fundamentais da filosofia a um pênalti não marcado no Clássico das Multidões. Por isso, durante a tarde, estavam sempre so- nolentos, aproveitavam a modorra do horário para tirar um ronco. De repente, chega todo esbaforido, suado feito tirador de espírito e com a cara espantada de quem acabara de ver assombração, nada mais nada menos que Továrish Lói. 1964 O Julgamento de Deus.indd 35 10/03/2014 13:32:57
  • 37. [2]Revoluçãooupiada? Negro vai virar macaco, branco vai virar banana Továrish, como se sabe, é a palavra russa para designar camarada, o tratamento oficial que os comunistas de qualquer escalão adotavam entre si para transmitir a ideia de que todos eram iguais. Não que Lói fosse comunista, ninguém acreditaria em tal acusação. Para falar a verdade, o elemento não tinha ideologia de nenhuma na- tureza. Não puxara ao pai, vermelho de carteirinha, comunista decla- rado e afamado. Tanto que para demonstrar sua afeição à União Soviética, o velho registrou a penca de filhos com nomes de personagens gloriosos da história do socialismo, todos com o seu sobrenome, Almeida e Silva. O mais velho, por exemplo, era Karl Marx, conhecido como Marqui- nhos. O segundo, Frederico Engels, era Fredinho para todo mundo. O terceiro, Luiz Carlos Prestes, era Lulinha. As duas mulheres eram Rosinha, de Rosa Luxemburgo, e Guinha, como chamavam Olga Be- nário de Almeida e Silva. O caçula carregava o nome de Vladimir Uilianov Lenine. Chamado pelopaidesdeoberçodeTovárish,ganhounaescolaaalcunhadeLói, o apelido pegou composto. Továrish tinha pressa, muita pressa. Contudo sabia muito bem que não adiantava tentar acordar a cambada de um por um, com sacudi- delas ou modos educados. Como a turma era bruta e brincava pesa- do, ele utilizou a objetiva solução de aplicar um chute com o bico do sapato no vão das costelas de um dos líderes do grupo, o indigitado Cumpade Deca. Registre-se que daqui por diante, sempre que for mencionado, Deca vai ser tratado por Cumpade, que era como todo mundo o chamava. Escrever compadre, conforme os padrões da última flor do Lácio, in- culta e bela, seria uma adulteração imperdoável. Então, como prega 1964 O Julgamento de Deus.indd 36 10/03/2014 13:32:57
  • 38. 36 – 37 o filósofo Zadock dos Muros Altos, inspirado na poética de Manuel Bandeira, a bem da comunicação fuzilemos a gramática. Despertado dessa forma eficaz, Cumpade berrou um palavrão que acordou não apenas toda a canalha do grupo como qualquer um que porventura estivesse dormindo nas casas das imediações. Até dona Severina do Padre, que tomava conta da residência do monsenhor Afonso, deu um pulo da cama, espantada como se estivesse sendo ten- tada pelo demônio em pessoa. Tão logo os parceiros abriram os olhos, espantados, Lói foi anuncian- do, com as palavras entrecortadas pela respiração ofegante, que tinha sete notícias estranhas, e cada uma pior do que a outra, para comparti- lhar com a turma. Querem ouvir? De imediato, veio à cabeça de todos que Továrish tinha imaginado uma mentira de sete modas, como se falava. Ou seja, um molho de quengadas, para usar expressão da época. Na linguagem televisiva de hoje, se diria que Lói tinha armado um pacote de pegadinhas, logo sete, que é a conta do mentiroso. Constatado isso, todos acordados, ninguém era besta de acreditar em mais nada do que ele afirmasse em seguida. Só podia ser impostura do safado para tentar engabelar o grupo. Não era tarefa fácil. A totalidade dos presentes, se excluirmos da lis- ta o notável professor Natércio Pai dos Burros, carregava nas costas um histórico muito pouco recomendável de brincadeiras pesadas e de mau gosto, em qualquer dia do ano. Eram capazes de reconhecer uma lorota de longe. Coisascomoenfiarumpedaçodecigarroacesonaorelhadeumburro carregado de panelas de barro e ficar espiando de longe, esperando o resultado, eram comuns. Imaginem o espetáculo do animal pulan- do ensandecido pela dor, as panelas voando e se espatifando no chão. 1964 O Julgamento de Deus.indd 37 10/03/2014 13:32:57
  • 39. [2]Revoluçãooupiada? Podia ser muito engraçado para quem assistia, mas representava um grande prejuízo para o proprietário da carga. Outra brincadeira da turma era afrouxar a cilha da sela do cavalo de algum matuto parado na porta de uma bodega para tomar a bicada saideira. Quando a vítima, geralmente já bem melada, tentava montar, levava uma queda desajeitada e muitas vezes perigosa para a integrida- de de braços, costelas e até do pescoço. Maldade maior era colocar uma mutuca, ou seja, um pedacinho de fósforo aceso, na cara de alguém que estivesse dormindo de papo para o ar. Na reação instintiva à dor, o sujeito levava às mãos ao rosto com toda a força, provocando uma forte pancada. Recentemente, Risalvo Pezão, direitista assumido e desafeto declara- do do grupo, estava dormindo numa mesa do bilhar de seu Janoca, com os braços abertos. Colocaram uma mutuca no seu rosto, enfia- ram-lhe um par de tamancos nas mãos. A pancada foi tão forte que Risalvo quebrou o nariz e passou uns dois meses de cara inchada. Noprimeirodeabril,sofisticavamaspatranhas.Noanoanterior,apro- veitando que falar em marcianos estava na moda, aquele mesmo gru- po adaptou a ideia de um americano que anos atrás, através do rádio, disseminou o pânico nos Estados Unidos. Em plena madrugada de 1º de abril, soltaram na Chã do Marinheiro, localmaisaltodacidade,umbalãoemformadediscovoador.Tiveram a astúcia de amarrar a peça a um jumento que carregava uma bateria para alimentar luzes piscando em torno do artefato, feito uma árvore de Natal. À medida que o animal andava, a impressão era a de que o OVNI se deslocava lentamente. Em seguida, eles mesmos se encarregaram de sair acordando as pes- soas para mostrar o fenômeno. Em pouco tempo todo mundo estava na rua em pânico, muitos pensando que 60 chegara com atraso. 1964 O Julgamento de Deus.indd 38 10/03/2014 13:32:57
  • 40. 38 – 39 Essa menção a 1960 não é por acaso. 1959 coincidiu com o final de uma das severas secas periódicas que até hoje atormentam os nordes- tinos. Portanto, foi ano de enorme pobreza e sofrimento. Na cultura apocalíptica nordestina, bastava um fenômeno pouco con- vencional da natureza ou qualquer acontecimento fora do normal e logo alguém desencavava a ideia de que o mundo ia acabar ou alguma coisa estranha estava para acontecer. Naquela época não existia o politicamente correto. Muito menos as leisAfonsoArinosouMariadaPenhaeoutrosavançosdaconvivência civilizada. Ninguém que tivesse uma característica de raça ou defeito físico esperasse a condescendência de um eufemismo. Negro era ne- gro. Aleijado era aleijado. Cego era cego. Cotó era cotó. Doido era doi- do. Anão era anão. Gago era gago. Fanho era fanho. Manco era manco. Mouco era mouco. Velho era gagá. Baixinho era tampinha, rodapé de puteiro, meio fio ou tamborete de forró. Um sujeito alto era grampão, espanador da lua ou tira coco sem vara. Se fosse magro, o apelido era Mói de Ferro. Expressões amenas como afrodescendente, deficiente auditivo, por- tador de necessidades especiais e outras do mesmo teor sequer eram cogitadas. Dentro desse espírito, um bando de gaiatos espalhou que quando 60 chegasse os negros iam virar macacos. Cantavam pelas ruas: Pisa na fulô/pisa no buraco/60 vem aí/nego vai virar macaco. Os atingidos revidaram. Ser preto, por aquelas bandas, não era sinô- nimo de subserviência. A escravidão quase não existira naquelas pa- ragens. Além disso, a maioria dos negros da região vivia ou era prove- niente da localidade de Umari, antigo, duradouro e invicto quilombo formado por escravos fugidos do litoral. 1964 O Julgamento de Deus.indd 39 10/03/2014 13:32:58
  • 41. [2]Revoluçãooupiada? De modo que ali sobrevivia quase intocada uma população preta re- tinta, altiva e desaforada. Com a história de que os negros iam virar macacos, os umarizenses invadiam aos bandos a feira nos sábados, provocandoefazendoalgazarra.Parodiavam,cantarolandoaltoebom som: “Pega na fulô/fica bem bacana/ negro vai virar macaco/branco vai virar banana”. E, quando passavam perto de uma ou várias mocinhas, ameaçavam abocanhar os pescoços virginais, dizendo: “Te prepara, branquela, quem vai te comer sou eu”. Troco bem aplicado. Foi preciso a polícia pedir reforço e interferir com energia para acabar aquela libertinagem. 1964 O Julgamento de Deus.indd 40 10/03/2014 13:32:58
  • 42. 40 – 41 As pegadinhas de Lói Acostumados a presenciar e participar de acontecimentos dessa natu- reza e com enorme vivência na aplicação de pulhas as mais diversas, nenhum Tetéu ia cair em armadilha tão óbvia como as sete conversas da carochinha anunciadas por Továrish Lói. Porém, para não estragar a brincadeira, todos fingiram entrar no clima e autorizaram o pilantra a contar as tais novidades surpreendentes. Passava pela cabeça de todos ouvir o rosário de invenções para, em seguida, jogar o feitiço contra o feiticeiro e dar o troco, deixando Lói com cara de rapariga. Recuperando um pouco o fôlego, olhos esbugalhados e coração ainda aos saltos, o mensageiro fez primeiramente a menção à fonte, que é re- gra básica de todo bom mentiroso para dar credibilidade às suas patra- nhas. Segundo Lói, ele soube das coisas porque ouviu uma conversa de seu Marcondes Telegrafista, um dos comunistas mais conhecidos da cidade, na oficina do seu pai, que era ferreiro conceituado, além de comunista de carteirinha, como a gente já sabe. Segundo ele disse, seu Marcondes reuniu os camaradas de maior con- fiança e contou terríveis novidades que estavam acontecendo no País. O telegrafista fazia parte de uma rede de profissionais comunistas que trocavam informações de interesse geral e particularmente do PCB. Estava sempre um passo adiante na maioria das notícias. Lói disse que ouviu escondido no quintal da oficina e por isso mui- tos detalhes escaparam. Mas quando todos saíram às pressas, ele en- controu no chão uma tira dos registros do telégrafo. Graças à amizade com o seu pai, o telegrafista ensinou a ele rudimentos do Código Mor- se. Foi graças a esse conhecimento superficial que ele complementou o que tinha escutado decifrando em parte, notícias pavorosas. 1964 O Julgamento de Deus.indd 41 10/03/2014 13:32:58
  • 43. [2]Revoluçãooupiada? Mostrou a tira do telégrafo cheia de furinhos e, como um cego semia- nalfabeto lendo em braile, foi decifrando e anunciando as novidades pela ordem. Primeiro, diz aqui que está em curso uma operação chama- da Brother Sam, com o objetivo, parece, de anexar o Brasil aos Estados Unidos. A gargalhada geral não quebrou a seriedade de Lói. Logo Cumpade Deca repreendeu de mentirinha a todos. Espera aí gente, o assunto é sério mesmo, deixa Továrish continuar. Bem, prosseguiu o mensageiro, a segunda entendi menos ainda, mas está impresso. Com certeza o marinheiro Popeye tem alguma coisa a ver com isso. Pelo menos faz parte do alto comando das tropas. Aí foi danado. Deca reforçou os pedidos de silêncio. Agora ele esta- va mesmo curioso para saber até onde ia a safadeza de Továrish. O marinheiro Popeye, sempre com seu cachimbo escorado no canto da boca, eterno pretendente de Olívia Palito, era figura popular nos dese- nhos animados da televisão. Entre isso e participar de uma operação militar no Brasil, vai uma distância enorme. Se ainda fosse Zé Carioca, personagem brasileiro, vá lá, podia ter sido adotado como mascote de algum pelotão. Mas um boneco americano, era mesmo hilariante. Por isso mesmo, com essa ninguém se aguentou. Outra sonora garga- lhada dominou o ambiente. Vai ver que teremos que comer espinafre todo dia, comentou um gaiato. A muito custo, a ordem foi restabelecida, porque, além das risadas, já semultiplicavamoscomentários.Finalmente,comoprecáriosilêncio, Lói pôde prosseguir. A terceira notícia conforme diz aqui é que tropas do Exército marcham pela Via Dutra lideradas por uma vaca fardada. A risadagem redobrou de tal maneira que começou a juntar gente, em pouco tempo já parecia um pequeno comício. 1964 O Julgamento de Deus.indd 42 10/03/2014 13:32:58
  • 44. 42 – 43 Que negócio engraçado e absurdo. Essa, nem Chico Anysio era capaz de criar. Lói inventa cada uma! Esse 1º de abril vai ser campeão. E o pior é que ele interpreta com uma seriedade tão grande que se a gente não conhecesse bem a peça era capaz de acreditar. Cada mentira mais cabe- luda que a outra, e o danado mantém a cara totalmente compenetrada, nem um risinho. Grande ator que ele é. Provoca mais gargalhadas do que Mazzaropi. Está se perdendo por aqui, era o que se falava. Àquelas alturas, a curiosidade da plateia estava aguçada. Deca nem precisava pedir silêncio, era a própria plateia que fazia sinal com as mãos e repetia: Psiu, cala a boca gente, ainda tem mais, conta a próxi- ma, Továrish. A próxima era a seguinte: Os Estados Unidos enviaram uma frota com um porta aviões e vários destróieres entupidos de marines para atacar Brasília pelo meio da floresta e depor o presidente Jango. Imagine o leitor que naquele momento tinha gente chorando de tanto rir. Como é que é? Uma frota naval vem da América do Norte para atacar Brasília, que fica, como todo mané buchudo sabe, a mais de 2 mil quilômetros do mar? E por uma floresta, que só pode ser a Ama- zônica? Que confusão dos diabos. Essa merece entrar no Livro dos Re- cordes como a maior mentira de todos os tempos. A próxima! A próxima! Era a solicitação da plateia insaciável. Logo a assistência parecia a torcida num jogo da seleção de Lagoa Nova, de- pois de um golaço de Cici ou Inácio Torototó. Mais uma, mais uma, gritavam e batiam palmas. A balbúrdia se generalizou de novo. A mui- to custo, testando sua liderança e seu vozeirão, Cumpade Deca conse- guiu impor algo parecido com silêncio. Lói, sério feito um porco mijando, cumpria sua histórica missão com toda a galhardia. Ainda passando os dedos pela fitinha do telégrafo, com cara de decifrador, teve que gritar para ser ouvido, que o Rio de Janeiro estava sendo atacado pelo general Cruel. 1964 O Julgamento de Deus.indd 43 10/03/2014 13:32:58
  • 45. [2]Revoluçãooupiada? A essas alturas todos tinham perdido as contas das notícias e achavam que a mentirada, embora hilariante, já estava passando dos limites. Invadir o Rio de Janeiro já seria um absurdo. E botar um cara chama- do Cruel para fazer isso, só se os hipotéticos conspiradores fossem humoristas. Tinha gente embolando no chão de tanto gargalhar. O público só fazia crescer, cada qual que chegava querendo saber as conversas de caro- chinha para rir também. Os privilegiados ouviam do próprio Lói, que repetia tudo pacientemente com a cara mais séria desse mundo. Os que ouviram, no todo ou em parte, rememoravam tentando lembrar uma a uma. Nem Cumpade Deca, do alto de sua liderança, que em matéria de furdunço era reconhecida por todos, foi capaz de restaurar o silêncio. Impossível prosseguir. E ninguém deixava de elogiar o desempenho e a criatividade do men- tiroso. Essas foram realmente muito boas, Továrish merece ganhar o Oscar pelo desempenho. Mas nem por isso ninguém ia acreditar em nenhuma daquelas invenções despropositadas, apesar de muito perti- nentes para aquela data. Até que alguém contou nos dedos e anunciou bem alto, reabrindo a sessão de gargalhadas: Gente, as sete mentiras de Lói são cinco. Que cara mais gaiato. 1964 O Julgamento de Deus.indd 44 10/03/2014 13:32:58
  • 46. 44 – 45 Morra a caterva vermelha Depois de serenada a risadagem, só para render com o assunto, os mais próximos procuravam argumentar, mostrando ao mensageiro as pernas curtas das suas conversas fiadas. Não tás vendo que isso não tem pé nem cabeça, Lói? Argumentavam pelo caminho da razão. Primeiro, os militares não se- riam tão idiotas a ponto de derrubarem um governo que, além de fra- codaspernas,tinhadatamarcadaparaacabar.OpresidenteJoãoGou- lart, do PTB, era um rico latifundiário, não tinha nada de comunista. Defendia reformas de base, importantes para a modernização do país, mas, como não tinha apoio, nem isso ia conseguir fazer. Além disso, faltava pouco mais de um ano para a eleição. Juscelino Kubitschek, o ex-presidente que fez o Brasil andar 50 anos em cinco, construiu Brasília, é membro antigo do Partido Social Democrata, o PSD, portanto totalmente confiável para as elites e liderava disparado todas as pesquisas. Estava praticamente nomeado presidente da Re- pública por antecedência, qual o sentido de um golpe militar agora? Os norte-americanos, era sabido, estavam interessados em colocar no Brasil um governo subalterno a eles, acabar com a independência nacional e transformar nosso país no maior quintal do mundo. Mas seriam por acaso idiotas a ponto de não estarem informados de que havia quatro anos a capital do País tinha sido transferida do Rio de Ja- neiro para o Planalto Central? E que Brasília não tem ligação aquática de qualidade nenhuma com o Oceano Atlântico? Como um país tão inteligente como os Estados Unidos ia mandar uma frota para atacar a capital se esta nem tinha como chegar lá? Através da floresta, eles iam, quando muito, parar em Manaus. Isso sem falar de outras invenções engraçadas, porém desproposita- das. As gloriosas Forças Armadas brasileiras são muito ciosas da sua história,dassuasvitóriasemcamposdebatalhaedoseunacionalismo. 1964 O Julgamento de Deus.indd 45 10/03/2014 13:32:58
  • 47. [2]Revoluçãooupiada? Imagine se iriam se submeter e aceitar um nome-código estrangeiro e desmoralizante como Brother Sam para seu improvável movimento. Na remota hipótese do golpe acontecer algum dia, teria certamente um nome genuinamente verde-amarelo, patriótico e ufanista. Mais despropositado ainda é esse negócio de Popeye participar do co- mandodatropa.Logoele,umbonecoamericanoquesóexistenosdese- nhos animados, que não tem nada a ver com a realidade brasileira. Aqui a gente sabe que ele fuma cachimbo e come espinafre, que parece uma espécie de bredo. Mas ninguém jamais viu um bregueço desses sendo vendido em alguma feira e muito menos servido em qualquer prato. Eumavacafardadanocomandodeummovimentomilitar?Realmen- te a ideia é muito engraçada. Mas alguém já ouviu falar de vaca farda- da? Nem mesmo no Carnaval de Olinda, onde se abusa da criativida- de e irreverência, nunca se viu qualquer folião fantasiado de vaca, com farda, quepe, espada e tudo o mais. Aqueles comentários eram uma forma de valorizar a performance. Foi sensacional, camarada. Espetacular. Muito criativo. Mas nada daquilo podia ser verdade. Em vez de se curvar para receber os merecidos aplausos e usufruir do seu momento de glória, o mentiroso não se dava por vencido, tentava prosseguir sem dar o braço a torcer. Agora, já correndo o risco de en- cher o saco. Todo mundo sabe que depois de rir muito a pessoa fica meioenjoada,porissonãotemnadamaischatodoquebrincadeirain- sistente. Minha gente, eu não estou brincando, repetia. O general Cruel está invadindo o Rio de Janeiro, juro pela alma da minha mãe. Achando que a brincadeira já tinha dado o que tinha que dar, Cum- pade Deca fez valer a sua autoridade. Tá bom, minha gente, foi muito engraçado, mas basta por hoje. E, imitando Chacrinha, o Velho Guer- reiro, um dos orgulhos de Boi Pintado, gritou o bordão: Palmas pra 1964 O Julgamento de Deus.indd 46 10/03/2014 13:32:58
  • 48. 46 – 47 ele, que ele merece. Vocês querem bacalhau? Procurem na venda de seu Lalau. E fez um gesto enfático de que a festa chegara ao fim. Foi realmente divertido, o melhor primeiro de abril de todos os tem- pos, superou o disco voador do ano passado. Mas tava na hora de cada qual ir tratar da sua vida. E assim teria acontecido se não entrasse em cena o elegante vereador Pedro Boi de Raça. Homem fidalgo, alto, forte, de grande saúde e cre- dibilidade, campeão dos campeões de vaquejada, fazendeiro e comer- ciante, ele sempre tinha um bom rádio ligado no seu estabelecimento comercial. Atéentãocompletamentealheioaofuzuê,chegoucomumaexpressão transtornada. Abriu caminho até junto de Cumpade Deca e de Tová- rish Lói e perguntou com seu vozeirão inconfundível: Pessoal, alguém aqui ouviu a edição extra do Repórter Esso, que Edson de Almeida aca- bou de ler na Rádio Jornal? Os militares estão tomando o poder no País inteiro. Claro que ninguém ali tinha ouvido, estava todo mundo na rua e a Rádio Boi Surubim, que reproduzia o noticiário, saía do ar na hora sagrada do descanso depois do almoço. Antes que Pedro Boi de Raça tivesse tempo de debulhar as surpreen- dentes novas, entrou na rua acelerado, no seu carro esporte conversí- vel todo empoeirado, o ricaço mais famoso da região. Tratava-se de Raul Bondinho, filho único de um maiores fazendeiros e produtores de algodão do lugar. Bondinho vivia mais flanando no Recife e no Rio de Janeiro do que em Boi Pintado. O apelido vinha do fato de ele falar muito no bondi- nho do Pão de Açúcar e, sinceramente, com seu corpanzil arredonda- do, meio que parecer com o teleférico carioca. 1964 O Julgamento de Deus.indd 47 10/03/2014 13:32:58
  • 49. [2]Revoluçãooupiada? Embora não se misturasse muito com os locais, ditava moda e exercia forte influência sobre os filhos dos latifundiários e grandes comer- ciantes. De vez em quando aparecia acompanhado por estrangeiros e comandava uma sociedade meio secreta nos moldes da Ku Klux Klan norte-americana. Só que nos Estados Unidos a KKK, como era conhecida, caçava negros. A entidade de Raul era chamada de CCC, quesignificavaComandodeCaçaaosComunistase,segundosedizia, estava se espalhando por todo o País. De acordo com as más línguas, o sujeito, reconhecido como playboy até nas publicações mundanas do Centro-Sul, estava por trás de várias ameaças e violências que eram praticadas contra camponeses e líderes sindicais da região. Casos de espancamento e até sumiços definitivos não eram raros. O povo eximia o coronel Honorato dessas arbitrarie- dades de fundo ideológico. A linha do coronel era outra, como vere- mos adiante. Dizia-se que era mesmo Raul quem estimulava e finan- ciava essas operações cavernosas, embora, naturalmente, ninguém conseguisse provar. Contrariando seu costume de não dar muita trela à gentalha de Boi Pintado, Bondinho chegou buzinando e fazendo o maior alarde. Vestido com seu traje de viagem, que muito se assemelhava ao dos aviadores dos filmes preto e branco, tirou o gorro, levantou os óculos e fez o primeiro e talvez único discurso público da sua vida: Pessoal, fui para o Recife, mas não consegui entrar. Os militares tomaram conta do País, a capital está cercada. O ônibus está voltando, os carros de pra- ça também. Nem Dr. Hidelbrando, que ia levando um paciente, passou pela barreira. Finalmente chegou a nossa vez. É a salvação da Pátria, da família e da propriedade. Ato contínuo, puxou o revólver 38 e disparou seis tiros para o alto, a título de comemoração. Arrogante como sempre, berrou ainda mais alto: Quem tiver fogos pra vender, eu compro. Lolô, pode trazer todo o seu estoque. Eu quero é tudo. Torro dinheiro, mas vou comemorar a 1964 O Julgamento de Deus.indd 48 10/03/2014 13:32:58
  • 50. 48 – 49 derrota desses comunistas filhos da puta que viviam tirando o sossego das famílias de bem. Avistando seu Pacífico do hotel e Doze Dedos do bar, assim chamado por ter mesmo seis dedos em cada mão, ordenou: Podem servir bebida para todo patriota que quiser comemorar. Hoje é tudo por minha conta. E, em clima de apoteose, berrou a planos pulmões: Morra a caterva vermelha. Viva a Revolução Redentora de 1º de abril de 1964... Naquele momento, o golpe invadia a vida pacata de Boi Pintado. Começava a história que desaguaria no julgamento de Deus. 1964 O Julgamento de Deus.indd 49 10/03/2014 13:32:58
  • 51. 1964 O Julgamento de Deus.indd 50 10/03/2014 13:32:58
  • 52. 50 – 51 Capítulo 3 O samba do crioulo doido 1964 O Julgamento de Deus.indd 51 10/03/2014 13:32:58
  • 53. [3]Osambadocrioulodoido 1964 O Julgamento de Deus.indd 52 10/03/2014 13:32:58
  • 54. 52 – 53 Tão logo recuperou-se, o marechal, como bom e altivomilitar,tratoudeminimizarapilora.Não foi nada,afirmou, uma simples indisposição provocada por uma gripe mal curada, além desse clima horroroso do Cerrado, mais a emoção dessas notícias inespera- das. Disfarçava o desconforto e uma terrível dor de cabeça que, no seu caso, utilizando a linguagem politicamente incorreta da época, ocupa- va uma grande parte da área útil do seu corpo. O senhor, como médico, deve estar a par de tudo, principalmente do meu estado emocional, para não fazer diagnósticos precipitados. Meu caro coronel, médico do glorioso Exército Brasileiro, não lhe conto a malfa- dada notícia que acabei de receber e que me tirou do sério. Imagine que Deus vai ser julgado numa cidadezinha do interior de Pernambuco. Suspirou fundo e prosseguiu: Até onde sei, é a primeira vez que alguém tem a ousadia de colocar Deus no banco dos réus. E olhe que não se trata de uma deidade pagã e extinta, ou um deus primitivo e bárbaro. Muito menos um animal ou um dragão, que aqui e acolá são adorados. Nem mesmo o sincrético Xangô ou o brasileiríssimo Zé Pilintra. Muito menos trata-se de Alá, que no Brasil não tem muitos seguidores, podia ser posto subjudicesemproblemanenhum,todaausênciaéatrevida.Masnão,meu caro coronel. Querem julgar o nosso Deus, o símbolo maior da civilização ocidental, o mais alto inspirador da nossa Revolução Redentora de 31 de março desse glorioso ano de 1964. Ou seja, desculpe o trocadilho, está na cara que se trata de uma iniciativa de má-fé com o nosso governo. 1964 O Julgamento de Deus.indd 53 10/03/2014 13:32:58
  • 55. [3]Osambadocrioulodoido Excitado, o marechal mal conseguia uma trégua para respirar. E pros- seguiu sem dar chance sequer para o médico tentar acalmá-lo. Estando certo o chanceler, o réu desse caso é o Deus todo poderoso, cria- dor do céu e da terra, o Deus de Abrão, Isaac, Moisés, Davi e Salomão, o pai da matéria, o criador nosso que está nos céus, aquele que dispõe so- beranamente sobre os nossos destinos. Pois o Senhor Deus dos Exércitos vai ser julgado como se fosse um simples meliante, ou um mero subversi- vo, o que é um achincalhe muito maior. E o pior de tudo é que fui o último a saber, como se Boi Pintado, em vez de um próspero município brasileiro e pernambucano, fosse uma provín- cia localizada no mais remoto interior do Paquistão. Para o senhor sen- tir o meu drama, até o papa João XXIII, o presidente Lindon Jonhson, a rainha Elizabeth, os líderes comunistas Mao Tsé Tung e Fidel Castro, todos já estão a par do caso. Enquanto eu, presidente dos Estados Uni- dos do Brasil, estava completamente desinformado, comendo mosca. Os que não gostam de mim podem me chamar inclusive de aluado, lunático, abestalhado; nesse caso teriam toda a razão. Depois de um lapso que pareceu a eternidade, retomou a palavra, ba- lançando a enorme cabeça: Uma coisa inédita, atrevida, que nos expõe ao ridículo no conceito das nações civilizadas. E ainda tenho que aguen- tar me chamarem de ditador. O regime ainda não tinha assumido que era uma tirania, com todas as letras, como faria em 1968. Embora o clima fosse pesadíssimo no País inteiro, muita gente fazia trocadilhos debochados com o novo gover- no. Não faltava quem, tirando onda com os novos donos do poder, chamasse a ditadura ora de democradura, ora de ditamole. O marechal exigia um apoio moral e cívico devidamente verbalizado. Os senhores não acham isso um absurdo completo? Embora sem enten- der se o marechal se referia ao julgamento ou ao fato de lhe chamarem de ditador, o chanceler e o médico desistiram do quem cala consente 1964 O Julgamento de Deus.indd 54 10/03/2014 13:32:58
  • 56. 54 – 55 eacabaramsemanifestando:Sem dúvida, excelência, um absurdo total. Aliás, muitas coisa naqueles dias eram um absurdo total. Por isso, recomendava a prudência que ninguém achasse nada. O últi- mo que achou nunca mais foi achado, faziam trocadilhos por aí. 1964 O Julgamento de Deus.indd 55 10/03/2014 13:32:58
  • 57. [3]Osambadocrioulodoido As aparências não enganam Concordar, naquele ambiente, era passaporte para continuar nas gra- ças do poder. Apesar dos fumos democráticos que pretendia exalar, o marechal deixou claro desde o início que o governo iria respirar o ar impositivo e hierárquico que prevalecia nos quartéis. Já dissemos que ele adorava piadas de caserna. Pois durante a primeira reunião ministerial, que deveria ter sido solene e formal, replicou uma brincadeira de muito mau gosto, repetindo o comportamento de sar- gentos do tipo mal encarados na recepção aos recrutas. Escolheu para vítima o ministro da Educação, um civil conhecido pela tolerância do seu pensamento, e que parecia o mais nervoso e desambientado de todos. Danou-se a fazer perguntas sobre a pasta, querendo saber detalhes que dificilmente o auxiliar teria tido tempo para assimilar e citar de cor. Qual verba para o ensino fundamental, ministro? Não sei, vou me in- formar, presidente. Quantas escolas técnicas federais estão em funciona- mento, ministro? Não sei, vou me informar, presidente. E o marechal foi repetindo indagações, cada qual dirigida de forma mais áspera, sem o interrogado conseguir atinar com a resposta para nenhuma delas. O ministro, apavorado, suava mais do que tampa de chaleira e tinha perdido a condição de raciocínio. Chegara o momento da piada. O presidente o encarou severamente, mandou prestar muita atenção e sapecou a pergunta, dedo em riste, no tom mais agressivo possível: Qual o seu nome, ministro? Não deu outra. Completamente desarvorado, o interlocutor já não ouvia mais nada. Caiu na armadilha feito um aruá: Não sei, vou me informar, presidente. OministrodaGuerrapuxouagargalhada,osministrosmilitares,mes- mo os que não gostavam do marechal, riram com gosto. Ao contrário 1964 O Julgamento de Deus.indd 56 10/03/2014 13:32:58
  • 58. 56 – 57 dos civis, que o fizeram visivelmente constrangidos, exibindo um tí- mido sorriso amarelo. Só pela narrativa desse bizarro episódio é fácil compreender por que os auxiliares civis evitavam qualquer encontro com o chefe. Diver- gir dele, então, nem pensar. Era um lobo com modos de cordeiro. Só quem usava a prerrogativa de expressar opinião contrária eram os mi- nistros militares representantes da chamada linha dura, apelidados de gorilas ou também de hidrófobos, em alusão à doença que deixa os cachorros literalmente loucos. Esses trabalhavam para o regime aper- tar cada vez mais. Conhecendo muito bem os meandros do poder, o chanceler sentiu que a fase mais difícil estava ultrapassada. Aproveitou, então, para a segunda etapa, que era tirar o dele da reta. Para isso, jogou mais lenha na fogueira de um auxiliar que o presidente detestava. Repetiu que solicitara informações ao coronel do Serviço Secreto e tivera o silêncio como resposta. Como a pressão que sofria era grande, resolvera recorrer diretamente ao seu superior na cadeia de comando. Quem cumpre ordens não erra, arrematou, usando uma expressão de caserna para bajular o chefe. Desde a primeira informação, o marechal já percebera o tamanho da bronca. Assumira para um mandato tampão que deveria durar até as eleições marcadas para o ano seguinte. A principal razão da sua esco- lha é que não era de linha nenhuma. Não contemplava nem ameaçava ninguém. Apesar do apoio dos Estados Unidos e do clima da Guerra Fria, que dividia o mundo, os principais países da Europa, ciosos dos seus valo- res democráticos, olhavam com muita desconfiança a tal Revolução Redentora do Brasil. 1964 O Julgamento de Deus.indd 57 10/03/2014 13:32:58
  • 59. [3]Osambadocrioulodoido Era difícil que engolissem como democrático um golpe militar que desrespeitou a Constituição, cassou mandatos, suspendeu os direitos civis, exilou democratas e abarrotou os cárceres com presos políticos de todas as condições sociais. A linha moderada, chamada de galinhas verdes, porque segundo os adversários não ofendiam nem a um pinto, ainda predominava nos discursos e notas oficiais. Seus partidários faziam um grande esforço para manter as aparências. Sustentavam o discurso de que os militares tinham violado a Constituição com o intuito de preservá-la, tomaram o poder para garantir a democracia, que estava ameaçada pelo comu- nismo ateu. Tão logo a caterva vermelha fosse eliminada, o governo seriadevolvidoaoscivis.Foiessaaversãooficialparajustificarogolpe. O mundo democrático não engoliu. 1964 O Julgamento de Deus.indd 58 10/03/2014 13:32:58
  • 60. 58 – 59 A casa da Mãe Joana No dia a dia, a disputa entre os dois grupos era um verdadeiro cabo de guerra, um permanente puxa-encolhe. O marechal representava um ponto de equilíbrio, um algodão entre os cristais. Conseguia condu- zir o governo aos trancos e barrancos, dando uma no cravo outra na ferradura. Porcontadessasituação,diantedaqueleimpassecrucial,oditadornão se sentiu seguro para decidir sozinho. Achou melhor ouvir opiniões de todas as alas e compartilhar as responsabilidades, como já fizera em outras ocasiões delicadas. Convocou o ministro da Casa Civil, um militar intelectualizado e da sua estrita confiança, e explicou por alto a situação. Para ter tempo de se recuperar do faniquito que sofrera, solicitou uma audiência com o coronel chefe do Serviço Secreto, para as 17 horas, e outra, uma hora mais tarde, com o chamado núcleo duro do governo, acrescido do chanceler Diante do quadro real do País e do seu governo, aquele desafio do julgamento de Deus era potencialmente explosivo. Internamente, constituía uma ameaça para sua precária liderança na tropa. No plano internacional, poderia gerar repercussões fatais para a imagem do seu governo. Era preciso montar uma estratégia bem pensada para lidar com aquela sinuca de bico. Elogiou o chanceler. Fez bem em me procurar, agora volte para a sua trincheira e aguarde a reunião. Ficou sozinho com o médico. Este aproveitou a oportunidade para recomendar com ênfase uma bateria de exames. O marechal relutou, mas foi convencido pela argumentação irretocável: Neste momento o senhor é a Pátria, esta não pode fraquejar. 1964 O Julgamento de Deus.indd 59 10/03/2014 13:32:58
  • 61. [3]Osambadocrioulodoido À época, dizia-se que o melhor hospital de Brasília era a ponte aérea para São Paulo. A cidade era nova, poucos profissionais de renome ti- nham arriscado transferência para lá, mas o marechal bateu o pé: só aceitou ser levado para os alegados exames de rotina no Hospital de Base da capital. Lá, foi examinado e reexaminado, realmente nada ha- via no coração. Fora apenas um pico de pressão causado pelo estresse. Recolheu-se na companhia da equipe médica ao Palácio da Alvora- da, onde almoçou. A já descrita cabeça desproporcionalmente gran- de e completamente chata do presidente estava fervendo. Tomou uns calmantes para conseguir relaxar e dormiu algumas horas. Acordou ainda indisposto, mas fez um enorme esforço para não demonstrar. Precisava agir à altura das exigências do momento. Tratava-se do seu primeiro grande desafio. Era necessário corresponder ao que dele se esperava e calar os críticos de todas as condições. Para isso, tinha que acionar, como nunca antes, os recursos do seu quengo privilegiado. Quando saiu do quarto, estava pronto para o combate. Incorporava o bordão militar de que o comandante é superior ao tempo. Fez questão desta vez de vestir sua farda de campanha para transmitir a todos que era uma questão de vida ou morte o caso que iriam tratar. Já no Planalto, recebeu pontualmente o comandante do Serviço Se- creto. Na hora aprazada, ele chegou ao gabinete presidencial. Juntou ruidosamente os saltos dos coturnos e só não bateu a continência re- gulamentar porque as mãos abraçavam um monte de pastas. Tratava- se de um oficial tosco e eficiente, da arma da Cavalaria, com quem o ditador não tinha qualquer afinidade. Ríspido, foi direto ao assunto: Coronel, o senhor está a par dessa história do julgamento de Deus, em Boi Pintado? O Serviço Secreto continuava mal estruturado. A maioria dos agentes se informava principalmente recortando notícias dos jornais que, na- quele momento, abusavam da autocensura. O órgão, realmente, estava passando batido pelo caso de Boi Pintado. 1964 O Julgamento de Deus.indd 60 10/03/2014 13:32:58
  • 62. 60 – 61 No entanto, assim que recebeu o alerta do chanceler, o coronel caiu em campo. Despachou imediatamente seus melhores subordinados para Pernambuco, montou uma eficiente rede de informações. Os agentes enviados tinham recentemente recebido treinamentos secretos no Panamá ministrados por instrutores franceses e norte-a- mericanos. Aplicaram os conhecimentos adquiridos, foi uma boa aula prática. Em 48 horas elaboraram um dossiê que, apesar de incomple- to, trazia informações sobre os mais variados ângulos da complexa questão. Seguindo o lema de não interferir em nada, mas acompanhar tudo, mantiveram estreita vigilância na cidade, atualizando as informações quase em tempo real. Assim, enquanto o chanceler perdia tempo esperando por uma ideia salvadora, o coronel preparava sua própria salvação. Por sabedoria, manteve segredo, não se reportou aos superiores. Preferiu aguardar ser chamado, sabia que logo isso iria acontecer. Assim, já que perdera o tempo de se antecipar ao problema, pelo menos quando acionado daria uma resposta imediata e precisa. Não deixava de ser uma prova de eficiência e presteza. Durante uma boa meia hora, expôs detalhadamente o que sabia de todo o imbróglio. A complexidade envolvia não apenas o julgamento em si, como já adiantara o chanceler. Outras questões intrincadas se misturavam. Mostrou papéis, exibiu fotos, a cada dado que trazia, a contrariedade presidencial só fazia aumentar. Ao término da explanação, o presidente indagou: O senhor tem algu- ma sugestão, coronel? Ao longo de toda a sua carreira, que ainda reser- vava muitos sucessos no futuro, ele só teve uma proposta para resolver qualquer problema. E tratou de enunciá-la: Sugiro que a gente prenda e arrebente, marechal. 1964 O Julgamento de Deus.indd 61 10/03/2014 13:32:58
  • 63. [3]Osambadocrioulodoido A conversa terminou. Àquelas alturas, o heterogêneo grupo convoca- do para a reunião já se encontrava na antessala. Em Brasília, as notícias correm. De um modo ou de outro, todos já sabiam do que se tratava. O marechal ordenou que se dirigissem para a sala de reunião. Numa deferência especial, caminhou segurando no braço do presidente da Câmara dos Deputados. Apesar de dezenas de congressistas terem sido cassados, muitos deles presos e até seviciados, o presidente da Câmara Federal era figura obri- gatória naquela democracia de faz de conta. Apelidado de Cereja do Bolo,ficavadeprontidãoemBrasília,nãoapenasparaparticipardeatos solenes, jantares em embaixadas, recepções a autoridades estrangeiras, como para integrar as reuniões estratégicas na condição de represen- tante do Poder Legislativo. Apesar de nunca abrir a boca nessas oca- siões, era apresentado como o legítimo porta-voz do povo brasileiro. Outra figura importante era o presidente do Supremo Tribunal Fe- deral. O seu antecessor fora cassado como subversivo, e ele, indicado pelos militares, venceu por unanimidade a eleição entre os seus pares. Representava o Poder Judiciário. Com mais esse jeitinho brasileiro, a divisão dos três poderes indepen- dentes e harmônicos que caracterizava a moderna democracia, segun- do o modelo clássico de Montesquieu, se convertia em verdadeira farsa tropical. O Brasil colocava suas instituições no mesmo nível das mais inexpressivas republiquetas de bananas. Os demais participantes eram o ministro das Relações Exteriores, que não integrava o núcleo duro, mas neste caso específico era imprescin- dível; o ministro da Justiça, que todo dia rebolava mais do que baiana no bambolê, para tentar provar ao País e ao mundo que a ditadura era, na essência, democrática, e o governo constitucional anterior é que era uma ditadura comunista em gestação; o coronel chefe da Casa Ci- vil, administrava as difíceis relações do governo com líderes políticos e movimentos sociais que apoiaram o golpe. 1964 O Julgamento de Deus.indd 62 10/03/2014 13:32:58
  • 64. 62 – 63 Completavam o grupo o comandante da Casa Militar, também da quota pessoal do presidente. Desempenhava um papel semelhante ao de Goebbels na administração de Hitler na Alemanha nazista e repre- sentava a corrente anticomunista e nacionalista das forças armadas; o ministro da Guerra, líder da linha dura, que achava o presidente fraco e só pensava em substituí-lo; além do coronel do Serviço Secreto e do general comandante da Polícia Federal. Porém, o convidado mais importante, presença obrigatória em todas as tomadas de decisões estratégicas do País, era o embaixador dos Es- tados Unidos da América do Norte. Ou comparecia ou se fazia repre- sentar. Nada de importante se definia sem a sua aprovação. As trapalhadas militares dos norte-americanos na execução do gol- pe, quando sequer dispunham de um mapa atualizado do País, não interferiram na condução política após a vitória. O embaixador dos Estados Unidos era um craque nas articulações, rapidamente botou o governo militar no bolso. Nomeou os ministros do Planejamento e da Fazenda e o presidente da Casa da Moeda, que eram os executores da política econômica, pautada por linhas do maior interesse das empre- sas estrangeiras. Em menos de 15 dias, para desconforto da ala nacio- nalista, ocupou a posição de indiscutível eminência parda do regime. Pode até parecer mentira, mas essa influência era tão grande que os nomes do ministros eram traduzidos para o inglês. E assim eram men- cionados, até pela imprensa. Roberto Campos, destacado artífice da política econômica da ditadura, era chamado por todos, inclusive nos noticiários, de Bob Fields. O embaixador era informadíssimo. Sabia de tudo, até das conversas pessoais do presidente, por telefone ou rádio. Assim que a reunião foi aberta, o ministro da Guerra, que não respei- tava nem perdia oportunidade para hostilizar e desafiar a autoridade dopresidente,tomouapalavra.Efoilogovociferandonoseulinguajar 1964 O Julgamento de Deus.indd 63 10/03/2014 13:32:58
  • 65. [3]Osambadocrioulodoido grosseiro e totalmente inadequado ao ambiente: A culpa desse imbró- glio só pode ser desse cagão que você nomeou para comandar o IV Exér- cito. É um molenga, um calça-frouxa, um imbecil que deveria ter sido cassado desde a primeira hora. O coronel da Casa Militar, por sua vez, defendia o presidente a ferro e fogo. Nem pediu permissão e foi logo revidando, em clima de bate- -boca: Permita-me discordar, Excelência. Os comandantes militares são diretamente subordinados ao senhor. E não me consta que a demissão do general do IV Exército tenha sido solicitada por sua pasta. Mas nem por isso vou-lhe atribuir responsabilidades pessoais. Fechou-se o tempo, cada qual querendo fazer prevalecer sua opinião. OcoroneldoServiçoSecreto,paranãoficarporbaixo,vociferouquea culpa era dos comunistas, inspirados por Che Guevara e Fidel Castro e financiados pelo ouro de Moscou. Foiprecisoopresidente,contrariandooestilomaisamenoqueprocura- va exibir, bater na mesa pela segunda vez naquele dia para conseguir ser ouvido.Senhores,eunãoquerosaberdequeméaculpa,issoagenteapura depois.Precisamostomardecisõesemontarnossaestratégia,otempourge. EsolicitouaocoroneldoServiçoSecretoquefizesseumaamplaexposi- ção, de modo a nivelar as informações para todos os presentes. Para quê? Na conversa anterior com o presidente, apenas os dois na sala, o coronel até que se saíra bem. Mas ali, na presença de todas aquelasaltaspatentes,atrapalhou-setodo.Acostumadoadarereceber ordens, era ainda totalmente inexperiente em exposições complexas como aquela. Tinha preparado um roteiro às pressas, perdeu-se na lei- tura dos tópicos. Bem, senhores, temos uma situação bem complicada em Boi Pintado. O xerife, ao que tudo indica, perdeu o controle da situação. O beato que ressuscitouédosmeus,queracabarcomojulgamentoabala.ADamade Ouro é a principal suspeita no desaparecimento do dinheiro arrecadado, 1964 O Julgamento de Deus.indd 64 10/03/2014 13:32:58
  • 66. 64 – 65 embora o juiz de direito também deva ser investigado. Sabemos que os Tetéus são os responsáveis pela ideia do julgamento, mas temos certeza de que os Fantasmas Vermelhos também não estão inocentes no caso. Os Marimbondos e os Embola-Bostas lavaram as mãos. Parou um pouco, passou a vista pela plateia, todos estavam boquia- bertos. O coronel interpretou mal, pensou que estava abafando e prosseguiu: Ainda estamos investigando até que ponto o mistério da freira virgem que está grávida está relacionado com a instalação desse tribunal inaceitável. O caso da vaca no telhado foi devidamente apurado e não teve qualquer conotação política. O abalo sísmico é caso bem encaminhado, deve ficar onde já está, no círculo técnico e científico. Não há provas do envolvimento do arcebispo comunista do Recife, mas para mim ele está por trás de tudo. Para resolver o caso, os senhores conhecem o meu pensamento. Até já disse ao presidente. Por mim, a gente prende e arrebenta. Apesar da inquestionável gravidade do assunto, todos estavam se se- gurando para não rir. Que conversa maluca era aquela, ninguém es- tava entendendo patavina. Parecia uma reunião oficial do FEBEAPÁ, o Festival da Besteira que Assola o País, criação do imortal Stanislaw Ponte Preta. Utilizando esse pseudônimo, o genial jornalista Sérgio Porto ridicularizava o regime com o simples relato de situações absur- das que se multiplicavam por todo o território nacional. Sentindo que estava perdendo a parada, só restou ao presidente recor- rer ao embaixador, que, até então, ouvia tudo profundamente concen- trado, com a cabeça apoiada nas mãos. O diplomata falou direto e objetivo: O único ponto que realmente preocupa é a questão do julgamento de Deus, o resto é café pequeno. Na boca dele, graças ao sotaque, a expressão bem brasileira ficava muito divertida. Antes de anunciar sua posição, entretanto, precisava consul- tar a Casa Branca. Em assuntos que envolviam o Vaticano não tinha autonomia. 1964 O Julgamento de Deus.indd 65 10/03/2014 13:32:58
  • 67. [3]Osambadocrioulodoido O ministro da Justiça aproveitou para puxar o saco dos americanos: Então vamos esperar, temos que ficar alinhados. O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil. Nãoeraàtoaquedifamadoresdeplantãoalimentavamoboatodeque o governo militar iria mudar o nome do nosso País, que na época era oficialmente Estados Unidos do Brasil, para Brasil dos Estados Uni- dos. O presidente, mais uma vez, balançou a cabeçorra, estava preocu- pado; o resultado da reunião não lhe agradara em nada. Ninguém do governo conseguiu falar a mesma língua e ainda tinham que ficar imobilizados esperando uma ordem de Washington. Nessa marcha, pensou cantando a pedra, não demora e algum engraçadinho vai dizer que o nosso governo é um samba do crioulo doido. 1964 O Julgamento de Deus.indd 66 10/03/2014 13:32:58
  • 68. 66 – 67 Capítulo 4 Terremoto pra ninguém botar defeito 1964 O Julgamento de Deus.indd 67 10/03/2014 13:32:58
  • 69. [4]Terremotopraninguémbotardefeito 1964 O Julgamento de Deus.indd 68 10/03/2014 13:32:58
  • 70. 68 – 69 Voltando ao primeiro de abril de 1964. Em Boi Pintado, o dia estava longe de terminar. Aliás, passou para a história do município como o dia que nunca acabou. Antes de ir adiante, vamos logo esclarecer uma a uma as sete supostas pilhérias que teriam sido armadas por Továrish Lói, em relação ao gol- pe. Na verdade foram apenas cinco ou seis, ninguém contou ao certo. Erroneamente entendidas no primeiro momento como criativas brin- cadeiras alusivas ao dia internacional da mentira, no frigir dos ovos, eram todas rigorosamente verdadeiras. Algumas um pouco distorci- das, é verdade, devido à limitação do camarada na arte da decifração das informações telegráficas, como ele mesmo declarou na ocasião. Primeiro, apesar do ridículo e aparente absurdo, os norte-americanos denominaram mesmo a operação golpista de Brother Sam. A utiliza- ção de um nome estrangeiro, chamando o famoso Tio Sam de irmão, era uma espécie de recado apaziguador dos norte-americanos. Apesar de iniciarem as ações sem combinação e sem um comando unificado, qualquer divergência entre os golpistas não passava de uma arenga de irmãos.Noqueerafundamental,estavamfraternalmentecombinados. Em segundo lugar, o comando da operação que deslocou as tropas de Minas Gerais para o Rio de Janeiro foi mesmo tratado em código como Popeye. Por que, não me perguntem. Se foi alguma gaiatice in- feliz ou mesmo uma forma sutil de protesto de algum oficial superior inconformado com o rumo dos acontecimentos, não interessa. A his- tória do Popeye era mesmo verdadeira. Já a questão da vaca no comando, também não surgiu da treslouca- da imaginação de Továrish Lói. Nem de nenhum detrator das forças 1964 O Julgamento de Deus.indd 69 10/03/2014 13:32:58
  • 71. [4]Terremotopraninguémbotardefeito armadas. Pelo contrário, foi o próprio general que se saiu com essa. Na sua primeira entrevista, quando perguntaram sobre os rumos políti- cos do movimento que comandava, não se fez de rogado. Respondeu que entendia de exército, estava pronto para falar sobre a operação militar em curso, mas que quem podia responder sobre rumos políticos do movimento eram os próprios políticos aliados. E emseguidacunhouafraseinacreditável,emborasincera,espetaculare inesquecível: Em matéria de política, eu sou uma vaca fardada. No tocante à frota, a informação também era noventa por cento cor- reta. Os americanos mandaram mesmo uma esquadra para tomar conta do Brasil. Ontem, como hoje, os Estados Unidos não tinham o menor pudor em promover intervenções militares com os mais diversos objetivos. Na década de 1960 do século XX, a situação era ainda pior: enfrentavam inimigos poderosos e engoliam revezes amargos. A Guerra Fria estava no auge, o mundo já era ocupado em um terço por países socialistas. O Vietnã, que deveria ter sido um passeio militar para os americanos, estava se transformando num pesadelo. Cuba plantara um Estado so- cialista nas barbas dos Estados Unidos. Para não sofrer outras rebordosas nos seus arredores e blindar a Amé- rica Latina como área de sua quase exclusiva influência, os norte-ame- ricanos definiram como prioridade para a região a instalação de gover- nos totalmente confiáveis. O Brasil, como o maior e mais vulnerável país do continente, foi escolhido para servir de exemplo. Durante anos, como foi dito, os norte-americanos prepararam a inter- venção. O caso era tão prioritário que ocupou a atenção pessoal do presidente Kennedy e depois do seu sucessor, sendo que esse acabou levando toda a culpa. 1964 O Julgamento de Deus.indd 70 10/03/2014 13:32:58
  • 72. 70 – 71 Kennedy, com aquela cara charmosa de bonzinho e mártir, foi quem atolou os Estados Unidos na guerra do Vietnã, açoitou Cuba como pôde e planejou uma política intervencionista na América Latina. Isso já era sabido de longa data. Mas nas vésperas dos 50 anos do golpe, tornou-se público e documentado. Os americanos desenvolveram no Brasil, nos anos que antecederam ao golpe, uma política com duas faces. De um lado, praticavam e financia- vam espionagem, sabotagem, corrupção, atividades políticas e conspi- ratórias, compra da opinião de setores da imprensa e coisas afins e cor- relatas. Do outro, realizavam ações humanitárias, distribuindo comida, roupa e outras benfeitorias com as populações pobres do País. Também financiavam atividades culturais, bolsas de estudo e por aí vai. Era a badalada Aliança para o Progresso. Os adversários, comunis- tas provavelmente, adulteravam o para em todas as placas disponíveis. Demodoquetransformandoaproposiçãoemverbo,eescritoAliança pára o Progresso, o título do programa ficava com o sentido totalmen- te distorcido. Entidades conspiratórias como o IPES e o IBAD eram mantidas por grandes empresários ou financiadas abertamente pelos norte-ameri- canos. Encarregavam-se de financiar a desestabilização do governo, a compra de formadores de opinião, ações de sabotagem. Em síntese, espalhavam o terror. Os jornais traziam sempre editoriais apavorantes. Os comunistas eram tratados como verdadeiros papa-figos. Dizia-se que comiam criancinhas, não como muitos padres da Igreja fazem até hoje, e sim por via oral. Não havia nenhum setor da vida brasileira que não estivesse contaminado pela atuação de agentes e espiões. Com o apoio da Igreja conservadora e das entidades empresariais, senhoras da sociedade organizavam Marchas da Família com Deus e pelaPropriedadequearrastavamcentenasdemilharesdereacionários pelas ruas das grandes cidades. 1964 O Julgamento de Deus.indd 71 10/03/2014 13:32:58