1. Arquivo pessoal Mary Lage/ Academia Rokaz
VANESSA JACINTO
ESPECIAL
CAPA
MARY LAGE escala
parede de calcário em
Verdon, na França
SEM
IDADE
E las são revolucionárias. Põem em xeque o concei-to
de velhice tal qual concebemos, desafiam a de-nominação
de idosas que, segundo a Organização
Mundial de Saúde (OMS), define as que passaram dos
60. E crescem em todos os cenários, classes sociais e re-giões
do Brasil. Estão aí, a desafiar o tempo e atuantes,
as atrizes Marília Pera, Irene Ravache, Fernanda Mon-tenegro,
Marieta Severo... e tantas outras anônimas. Há
Judy Robbe, de 73 anos, Mary Lage, 65, Rosa Carvalho,
70, e Margarida Cardoso, 66, rompendo o preconceito
que associa a longevidade a prejuízos.
A psicóloga Marisa Sanábria, presidente da Comis-são
de Mulheres e Questões de Gênero do Conselho
Regional de Psicologia de Minas Gerais, adianta: elas
alteram a ostensiva ideia de que a data de validade fe-minina
MULHERES QUE DESAFIAM
O TEMPO, MOSTRAM SUA
FORÇA E LUTAM POR
SEUS DIREITOS, INCLUSIVE
O DE ENVELHECER
deve ser dada pela sua sexualidade e idade re-produtiva.
“Elas lutam por seus direitos, inclusive o de
envelhecer.” Melhor seria, então, de acordo com a an-tropóloga
Mirian Goldenberg, se referir a elas como
ageless (sem idade) ou inclassificáveis, “pois não lhes
cabem rótulos.”
À sua maneira, cada uma delas vai construindo,
com fôlego para chegar bem aos 90 anos, o que Mirian
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2. chama de bela velhice. O termo é o
mesmo que intitula seu último li-vro,
lançado pela Editora Record,
resultado de suas pesquisas sobre
envelhecimento. “As integrantes
desse grupo têm muito a ensinar. A
melhor lição é a certeza de que pas-sar
dos 60 nada tem a ver com o fim
do trabalho, da libido, da saúde ou
do interesse pela vida.”
No próximo mês de outubro,
nos dias 16 e 17, ela e outros es-pecialistas
se reunirão no Rio de
Janeiro para discutir o assunto, du-rante
o II International Longevity
Forum 2014 , promovido pelo Cen-tro
Internacional de Longevidade
e cujo tema será Envelhecimento e
Gênero. Nesta reportagem, as mu-lheres
entrevistadas mostram que
não penduraram as chuteiras.
Tampouco fazem planos de pa-rar.
“Eu não coloco data para dei-xar
de fazer escalada”, afirma Mary
Lage, escaladora e montanhista.
“Enquanto eu conseguir, vou conti-nuar
subindo muros e paredões. Se
isso é o que me traz vigor e alegria
de viver, não tem sentido deixar de
fazer só porque podem me julgar
velha demais pra isso.” Junto com
o marido e os filhos, ela coman-da
uma academia de escalada na
Savassi, em Belo Horizonte, onde
também treina quase que diaria-mente.
Vencendo o próprio medo
de altura, ela já subiu picos como
o das Agulhas Negras (2.791,55 me-tros)
e o Dedo de Deus (1.692).
Muitos a julgariam inadequa-da
por começar, aos 47 anos, a pra-ticar
esse tipo de esporte. Mas ela
não se intimidou. Desde então, o
muro tem sido seu psicólogo, sím-bolo
de superação, de capacidade
de transpor limites. Mary diz que
escalar melhora sua autoestima,
sua autoconfiança e, é claro, a con-dição
física. “Existe tanta pedra bo-nita
no mundo pra eu conhecer e
subir! Ainda vou viver muito.”
Judy, aos 73, segue dedicada ao
seu trabalho de dar apoio às famí-lias
da pessoa com Alzheimer. Ela
também faz palestras e seminários,
treinamento especial de cuida-dores
e aconselhamento familiar.
Desfruta de boa saúde e de alegria
de viver. A esse envelhecimento
bem-sucedido, Judy atribui o fato
de ter passado por um processo
de autoconhecimento, iniciado 30
anos atrás. “Foi nesta época que
entendi qual era a minha missão:
orientar e acolher essas famílias. O
trabalho de autoconhecimento me
permitiu estar mais engajada com
a vida, encontrar o equilíbrio, pla-nejar
as etapas e cuidar melhor de
mim.” Nasceu na Inglaterra duran-te
a Segunda Guerra. “Escondida
em abrigos subterrâneos, minha
mãe não sabia se era noite ou dia
no momento em que vim ao mun-do.
E foi assim que passei os meus
primeiros 5 anos.”
Talvez por isso ela esbanje tan-ta
vontade de viver, tenha tanto
respeito pela velhice e morte. Es-ses
ingredientes a conduziram num
Não
tem sentido
deixar de fazer
só porque
podem me
julgar velha”
Mary Lage
processo de autoinvestigação que
nunca acabou. Desde que o marido
morreu em 2009, Judy criou outro
grupo com mais 3 amigas. Sema-nalmente,
elas se reúnem para dis-cutir
“como estou envelhecendo”.
Elas revisitam o passado, levantam
questões e informações da infân-cia,
da família, falam sobre como
se sentem sem seus maridos, de
espiritualidade, de onde e como
querem viver quando se tornarem
dependentes.
As respostas encontradas per-mitem
a Judy fazer ajustes na rota
que traçou para o seu envelheci-mento.
Seu grande projeto é enve-lhecer
com dignidade e, para que
não haja dúvida sobre seus dese-jos,
ela documentou como quer
que isso aconteça (quadro na pág.
ao lado). “Envelhecer é como uma
viagem, você não pode ir para ela
sem um mapa. É fundamental se
preparar e planejar como vai ser o
momento.”
Rosa de Lourdes sempre este-ve
ao lado de Judy nesta busca
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3. por autoconhecimento. E tam-bém
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vive uma bela velhice. “Aos
70 me sinto inteira, ativa, disposta.
É como se ainda tivesse 40 anos e
muito tempo pela frente.” Ela sem-pre
se preparou para chegar bem
à velhice. Dietas equilibradas, cor-po
em movimento, laços afetivos
fortalecidos e espiritualidade em
equilíbrio com outras esferas. Acre-dita
que é preciso ir construindo
a vida fazendo o que traz alegria,
resgatando sonhos perdidos na in-fância.
Atualmente, faz novos inves-timentos
levando em conta, prin-cipalmente,
as dificuldades que
poderão surgir nos próximos 30 ou
20 anos. “Tenho observado, pela
minha mãe de 95 anos, o quan-to
traz vida cada um envelhecer
no seu canto, cuidando das suas
coisas, das plantas, no seu ninho.
Já estou adaptando o lugar onde
moro de forma que ele possa com-portar
a minha velhice. É na minha
casa que quero viver até o fim dos
meus dias, com cuidadores se for
necessário.”
Planejar é mesmo fundamen-tal.
“É preciso se dedicar às coisas
de que gosta. Nós envelhecemos
como vivemos e, se a pessoa sem-pre
teve projetos, certamente os
terá depois dos 60. Pode ser com
outra cadência, mas tem que ser o
que dá alegria,” diz a psicóloga Ma-risa
Sanábria.
Para traçar seu próprio enve-lhecimento,
Marisa, que tem 60
anos, também fez seu plano. Um
deles é chegar a essa fase com me-nos
apegos, carga, culpa, menos.
“É preciso ir adquirindo uma certa
leveza para poder descansar nes-se
jardim com a alma apaziguada
e tranquila!” A professora Marga-rida
Ferreira Cardoso, 66 anos, re-solveu
levar esse jardim para fora.
Ornamentou a praça Violeta Soter
JUDY ROBBE:
“Envelhercer
é como uma
viagem, você
não pode
ir sem um
mapa”
Fotos: Pedro Vilela/Agência i7
Vargas, no bairro Serra, em Belo
Horizonte. Foi a forma que encon-trou
para preencher de forma lúdi-ca
parte das horas vagas do seu dia,
antes tomado pelos 30 anos em que
deu aula na rede municipal de en-sino.
“Eu teria continuado, mas os
alunos estavam me considerando
inadequada por causa da idade. Fi-quei
triste, mas não me surpreendi.
Isso é comum, vindo de uma juven-tude
que não está nada prepara-da
para o envelhecimento”, afirma
Margarida. A ideia de enfeitar a
praça aconteceu no último Natal
e, de lá para cá, os adornos feitos
à mão são renovados a cada data
comemorativa. Os últimos foram
colocados no Dia dos Pais. “É um
processo de cura.” De reconexão
com a natureza e com a possibili-dade
de mudança que não se es-gota
com a idade. Ao contrário, se
renova diariamente. “É fundamen-
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MARISA SANÁBRIA
(ao centro) durante
ofi cina de bordado
ESPECIAL
CAPA
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4. CARDOSO: “Não
lamento rugas ou
cabelos brancos”
ALEXANDRE
KALACHE: “O
envelhecimento é
uma conquista
da mulher”
COMO
QUERO
ENVELHECER
Documento escrito
por Judy Robbe
l Aceitando o ciclo natural da vida, com
saúde física e lucidez mental, com
independência e ajuda mínima para
fazer aquilo que não consigo mais
l Adaptando-me às mudanças no meu
mundo e mantendo-me fl exível para
enfrentar melhor as difi culdades
e tristezas que possam aparecer.
Depois da morte de meu parceiro, em
2009, quero envelhecer gostando da
minha própria companhia, e nunca
reclamando da solidão
l Com meus fi lhos e netos me
visitando porque querem estar
comigo, não por obrigação
l Com os recursos adequados para
as minhas necessidades básicas
(para isso sempre poupei)
l Continuar gostando de brincar, de
estar com as minhas amigas, com
o meu computador, iPad e celular,
para fazer pesquisas e me comunicar
com parentes e amigos pelo mundo.
Quero estar sempre rodeada
pelos meus livros, lembranças e
animais de estimação
l Na minha casa, no meu ninho,
enquanto estiver lúcida e autônoma o
sufi ciente para realizar as tarefas do dia
a dia. Se perder a minha independência,
vou morar numa pousada geriátrica
previamente escolhida por mim
l Tendo boas razões para me levantar
todos os dias, com metas, propostas
e compromissos. Sentindo-me útil à
comunidade
l Na esperança de que os meus desejos
sejam respeitados se eu não conseguir
mais me expressar ou tomar decisões
quanto ao meu tratamento médico
l Declaro que não quero medidas
heroicas para prolongar o processo da
minha morte, quando as chances de
vida já não existirem
l Quero ser acompanhada por médicos
que apoiam a fi losofi a hospice e
cuidados paliativos
Igor Coelho/Agência i7
MARGARIDA
Divulgação
tal ter um projeto. Não lamento rugas
ou cabelos brancos.”
Segundo o gerontólogo Alexandre
Kalache, presidente do Centro Inter-nacional
de Longevidade, a possibi-lidade
de viver mais é uma realidade
para todos. Até 2025, quando vamos
atingir a marca de 33,4 milhões de
idosos, o Brasil ocupará a sexta posi-ção
na classificação dos países mais
envelhecidos, dobrando, em 13 anos,
o contingente na faixa acima dos 60
anos. Em 2050, nossa pirâmide etária
estará completamente invertida, com
o número de velhos ultrapassando
o de jovens e crianças. Longevidade
resultante de uma série de avanços
como os da ciência e da medicina, o
acesso aos serviços de saúde etc.
“A velhice, a ponto de a popula-ção
toda envelhecer, é algo recente,
dos últimos 50 anos. Antes, envelhecer
era exceção, agora é regra”, diz a ge-riatra
Karla Giacomin. Ela garante que
só no século passado ganhamos
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5. FÁBIO
CAMARGO,
Luciana
Barros e
Robson
Fontenelle:
atentos ao
futuro
Igor Coelho/Agência i7
POUCO PREPARADOS PARA A VELHICE
“Você está se preparando para
a velhice ou vai se deixar surpre-ender?”
É com essa pergunta que
o gerontólogo Alexandre Kalache,
desafi a jovens e adultos em deba-tes
que realiza mundo afora. A ideia
é confrontá-los com a imagem de
si próprios nas fases mais avan-çadas
da vida, aos 65, 70 ou 80
anos, e alertar para o fato de que
precisamos nos preparar, social e
individualmente, para a tremenda
revolução demográfi ca em curso.
Para que a possibilidade de vi-ver
mais seja, de fato, uma con-quista,
a velhice deve ser vivida
com saúde, segurança, recursos fi -
nanceiros e capital social. “Não dá
para pensar nisso 1 semana antes
de fazer 80 anos. Cada um de nós
deve fazer investimentos, em todas
as etapas da existência, para atra-vessar
bem a fronteira dos 60”, diz
o especialista. Caso contrário, pode
ser uma etapa da vida caracteriza-da
por solidão, sofrimento, insegu-rança.
“É necessário desenvolver,
também, uma cultura do cuidado,
pois estamos sofrendo a síndrome
da insufi ciência familiar.”
A equação não fecha: de um
lado cada vez maior número de
idosos, equanto que o de cuida-dores
só diminui. Com mais mo-bilidade
social e geográfica, as
famílias também estão mais frag-mentadas.
As pessoas se casam
2, 3 ou até mais vezes. Com todas
essas questões, a revisora Lucia-na
Lobato Barros, de 41 anos, o
professor universitário Fábio Ca-margo,
43, e o publicitário Robson
Fontenelle, também de 43, come-çaram
a se organizar.
Eles sabem que não terão fi lhos
e que, portanto, precisam pensar
alternativas de cuidado. Robson,
que desde o primeiro AVC sofrido
pela mãe, em 2001, vive a doloro-sa
experiência de vê-la numa si-tuação
limite, já havia despertado
para a questão. “É angustiante ver
minha mãe, hoje com 85 anos, sem
falar, sem se mexer na cama.”
Não dá para prever o futuro. O
que Robson já sabe é que terá que
cuidar melhor da saúde e continu-ar
fazendo reserva financeira. “In-visto
nas relações de amizade. Já
temos um combinado que é cons-truir
casa para vivermos juntos.”
A ideia é a mesma que Luciana e
Fábio pretendem adotar. Como
segunda opção, eles consideram
a possibilidade de viver numa ins-tituição.
“Eu sempre soube que ia
ser sozinho na vida, então, essa
possibilidade não me assusta”, diz
Fábio. Luciana também não tem
medo do futuro. “Eu me preparo,
mas sempre com a consciência de
que a vida é imprevisível demais.”
ESPECIAL
CAPA
mais em quantidade de vida do que
tínhamos conseguido em milênios.
“E não é apenas em quantidade.
Trata-se, principalmente, de qua-lidade
de vida que tanto homens
quanto mulheres passaram a expe-rimentar.”
Para o público mascu-lino,
contudo, o envelhecimento,
segundo a antropóloga Mirian Gol-denberg,
é um processo de conti-nuidade,
enquanto que o feminino
teve que revolucionar e se reinven-tar
para atingir – e até ultrapassar
– a expectativa de vida do homem.
Kalache lembra que as mulhe-res
que agora estão entre os 60 e 75
anos são as que nasceram durante
ou pós-Segunda-Guerra. Elas desa-fiaram
as elevadas taxas de mortali-dade
materna, viveram a revolução
sexual, conquistaram o direito de
entrar no mercado de trabalho e
de decidir o número de filhos que
teriam com o uso de métodos an-ticoncepcionais.
“Se analisarmos
sob a perspectiva da mulher, a re-volução
da longevidade foi muito
maior. Ela se emancipou, gostou
da experiência, e podemos, sim,
considerar que o envelhecimento é
uma conquista dela.”
A psicóloga Marisa Sanábria
concorda com o gerontólogo e vê a
mulher, o tempo todo, desafiar pre-conceitos,
lutar por direitos, inclu-sive
o envelhecer. Até mesmo pela
literatura isso se torna evidente. As
bruxas são retratadas como mu-lheres
envelhecidas, na menopau-sa,
feias e mal amadas. Cria-se,
lembra Marisa, o arquétipo de que
toda mulher vai envelhecer com
amargura e que o processo inclui
apenas decadência. Não é mais
assim, estão aí as atrizes de 60, 70,
80, Judy, Mary, Margarida e Rosa
para provar o contrário.
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