3. COM AS MÃOS QUE PÔDE
para o Carlos Nogueira
“andava um homem à procura de si”1
O que conduz ao gesto artístico?
A procura de si, diz-nos o artista.
O que pode esse gesto?
A construção provisória de si, indica.
Todo o trabalho humano devia dirigir-se para aí – ser criativo.
Criador. O homem dá a sua forma ao mundo pelo trabalho: espelha-se,
reflete-se – pensa, sente. Descobre-se fora, reconhece na exte-
rioridade uma forma que lhe é própria. No exterior encontra-se,
não como exilado – no sentido negativo de estar fora-de-si – mas
no sentido positivo de aí, nesse fora, se abrir uma porta para o
reconhecimento de si – em expansão. Em recomeço. Um outro sempre
por vir. O que, então, não significa um passo em direção ao passado,
a uma identidade por reconhecer, já existente e escondida, mas
a um si possível – por fazer. A efetivar-se. Em acontecimento.
A esculpir-se: para o artista, a poética (teoria do fazer artístico)
é sempre uma poética de si – que pode, através da obra, servir
a outros na sua própria construção. A obra cria o artista ao ser
criada por ele, e logo o dispensa. Desse modo, autónoma, poderá
ser útil a quem depois a quiser receber.
Construção permanente. Esse homem que se procura é casa sempre
construída, destruída, reconstruída, destruída... Montagem,
desmontagem, remontagem... Como a sabedoria do Eclesiastes
ensina, há um tempo para tudo: para derrubar e para edificar,
para atirar pedras ao ar e para voltar a juntá-las.
“andava um homem à procura de si
quando reparou que as searas tinham sido incendiadas
o mar se desregulara
e o sol ardia de outra maneira”
O desastre é sempre um início. Reconfiguração do mundo. Des-astre:
a queda das estrelas, a desordem no espaço celeste – a que cor-
responderia uma desordem paralela na vida dos indivíduos. O desastre
é a inesperada alteração da realidade (seja ela ou não real). A perda
dos referenciais habituais. Um abalo. Um naufrágio. O apagamento
1
Carlos Nogueira, construção para lugar nenhum,
2001/03 – página do projeto, coleção do autor.
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4. do horizonte conhecido e da segurança da ordem. Desregulamento:
ficar sem lei. A descoberta de que há outras maneiras do sol arder.
Dentro do desastre, no entanto, há homens que sentem o impulso
de resistir. Reconstruir. O impulso da revolta – movimento que
nasce do amor. Como os habitantes dos Alpes, que tanto espantaram
Hegel, porque depois de verem a sua cabana destruída por mais uma
avalanche, construíam, no mesmo lugar, uma nova. Uma e outra vez.
Luta contra potências superiores. Ou melhor, luta contra a (sua)
própria impotência. Sempre a recomeçar. Entre o nada e o todo.
O desastre é princípio. Permite um ponto de vista desconhecido, mas
mais próximo das raízes, do solo fértil, do aterro das fundações,
da obscuridade da origem. Um choque que a obra de arte pode pro-
vocar. Ou seja, é a própria obra de arte quem deita fogo ao mundo.
Ela ameaça, destrói e recria um horizonte novo. É ela o desastre,
escreveu Blanchot.
“andava um homem à procura de si
quando reparou que as searas tinham sido incendiadas
o mar se desregulara
e o sol ardia de outra maneira
com as mãos que pôde dedicou-se a juntar pedras
e o que restava”
Juntar pedras e os restos: uma definição possível do gesto artís-
tico. Desses restos, recusados por outros, o artista constrói
a obra – a luz do passado, as ruínas, os ossos enterrados, o muro
esquecido que atravessa o campo, o eco das palavras dos poetas,
os afectos presentes – porque “o que resta” é semente. Desde que
não se pense o passado como intocável, a história como sagrada
ou o gesto artístico como pura recomposição do já feito: aí está
tudo morto – e o que permite que permaneça vivo, que se possam
juntar as pedras e os restos, é a história não oprimir e manietar
as mãos aos que querem recriar as possibilidades do mundo. As cinzas
são terreno fértil.
Com as mãos que pode, que a cada momento pode, mãos sempre dife-
rentes, constrói sempre diferente sobre esse território do desastre.
Dentro de um contexto ou situação, assumindo-a ou contrariando-a:
o gesto artístico é intempestivo, inatual. Para lá do tempo em que
se inscreve. Vem de longe e vai para muito longe. Anacrónico,
interroga sempre o tempo. O contexto histórico não o determina:
o seu poder – e critério de validade – é o da recontextualização
sempre possível. Sem vedações temporais.
Os restos: o que os construtores rejeitaram, ele acolhe. Coloca-o
sob a luz. O inútil, o abandonado, é agora o centro. No caso desta
exposição, encontramos um duplo centro.
Primeiro, e de modo imediato, oferece-nos uma estrutura útil a uma
construção, mas que tendo realizado a sua função se torna desne-
cessária: o gesto do artista cria um desvio ao recuperar o obsoleto.
5. Ao trazer para dentro do espaço expositivo, nesse deslocamento,
constrói obra com o que foi rejeitado pelos construtores: a cofra-
gem torna-se na própria obra. E aplica-lhe um outro desvio:
deita-a, como se tivesse caído. Retomada num outro discurso
e desviada da sua anterior função e verticalidade, produz-se
um acréscimo inesperado de sentido. Re-dispõe o mundo. Des-loca:
altera de lugar e, mais do que isso, altera o lugar.
Em segundo lugar, e de modo mais desviante, ele propõe à nossa
experiência a centralidade do aparentemente inútil: o vazio.
Lembra-nos que a casa é construção em redor de uma ausência. É ela
que é útil, ainda que desvalorizada. O vazio é espaço criador,
de acolhimento. Como Lao Tse escreveu:
“Molda-se o barro para fazer um vaso.
É precisamente o que nele não existe
Que dá utilidade ao vaso.
Furam-se portas e janelas para fazer uma sala.
É precisamente o que nela não existe
Que dá utilidade à sala.
Por isso,
O que existe é o que lhe dá valor,
O que não existe é o que os torna úteis.”
O que é verdade com a casa, é-o com a obra e com o homem. Também
eles são construídos em redor do vazio. Uma esfera em que o centro
é o vazio e a circunferência é mutação permanente, mas finita.
Espaço inviolável e indomável. Espaço plástico. É o vazio existente
que permite a plasticidade – da obra e do homem (morrer é perder
o centro vazio). Mobilar o vazio, ilusoriamente preenchê-lo, tornar
o maleável e plástico em fixo e rígido, é perder a casa. Perder
a obra. Perder-se.
Como manter o vazio e construir em seu redor? Sem expulsar ou
mascarar o vazio, mas assumi-lo. Transparecê-lo.
O homem que se procura, encontrará o vazio – que é. Colocará
as pedras e os restos com as mãos que tem, dando-lhe a forma
por vir, nascente, em redor do vazio. Mediando-o. Dando-o a ver.
Um vazio dentro, outro fora.
“andava um homem à procura de si
quando reparou que as searas tinham sido incendiadas
o mar se desregulara
e o sol ardia de outra maneira
com as mãos que pôde dedicou-se a juntar pedras
e o que restava
a construir uma casa geométrica com abertura para cima
5
6. no sentido ao contrário da paisagem e das casas
que até então conhecera”
Juntar pedras e restos para construir uma casa com abertura para
cima. E será ainda uma casa, se se abre ao céu e se fecha à hori-
zontalidade? Inútil sinal de escândalo. Desviante. Reformulação
das leis da pragmática, da física, da arquitetura.
Reconfiguração do espaço – a obra do artista é permanente expe-
rimentação no e sobre o espaço, desenho espacial, aparição de um
antes inexistente.
Uma casa geométrica – trabalho próprio da razão humana, desvio
da natureza, subversão. Cosa mentale. Mas ao construir recusando
o lugar comum e a fórmula habitual, desvia-se ainda do desvio
que já é a geometria. E dá-lhe uma dimensão matérica e corporal:
coisa espacial. Uma passagem do pascaliano espírito de geometria
(mundo mental e cego), ao espírito de fineza: é necessário saber
olhar com o corpo o que temos diante. Parece ela mesma um desastre
– inesperada desorientação. O lugar do choque é esse espaço aberto
vazio, experiência sensível do pensamento e da dúvida.
A casa-descrita do texto, aberta ao céu, é sujeita a múltiplos
desvios: inclinando-a, fecha-se ao céu, e abre-se ao horizonte;
deita-a, fá-la cair; torna-a transparente, exposta; provoca uma
suspensão do processo da sua construção, dando a ver o momento
antes do fim; o que era um meio, um dispositivo intermédio,
torna-se ele próprio em finalidade. A transparência não é apenas
a do material, o acrílico, mas a de dar a ver o que habitualmente
não se quer que se veja. O im-perfeito. O anterior ao estado final.
O rascunho que é pensado e assumido como obra.
“andava um homem à procura de si
quando reparou que as searas tinham sido incendiadas
o mar se desregulara
e o sol ardia de outra maneira
com as mãos que pôde dedicou-se a juntar pedras
e o que restava
a construir uma casa geométrica com abertura para cima
no sentido ao contrário da paisagem e das casas
que até então conhecera
com a luz que ainda havia
fez-lhe chão”
Um resto – uma réstia – de luz é agora chão. E o chão da casa
distingue-se do chão da rua. Mesmo quando a luz é a mesma
(não o sendo nunca). As paredes da casa separam dentro e fora.
A intimidade e a rua, do poema de Ruy Belo. Mas não existem uma
sem a outra. O que separa, une.
Ao juntar à “casa deitada” dois desenhos sobre madeira que recu-
7. perou da sua juventude (outros restos), introduz na exposição,
de forma mais evidente, essa exterioridade (?) da rua: uma preo-
cupação antiga, a organização do espaço público que é sempre o
reverso da casa. Desdobramento. Construir o espaço privado (casa)
é construir o espaço público (rua).
A casa, como a obra, permite essa dupla construção: de uma inti-
midade, diferente em cada um, numa relação pessoal com a obra;
de uma comunidade, que a obra também exige (e forma). A obra é
criadora de comunidade, não apenas de subjetivação – e poucas
obras o mostram tão bem como essa brincadeira séria que o artista
propôs em 1978: O pombal. 99 pombas de brincar para outros tantos
usadores. Construção de uma comunidade estética e política, das
suas regras desregradas, na partilha comum da experiência lúdica
singular. Procura de si sempre com outros. A intimidade não se
encontra apenas dentro de casa, mas na rua: nelas passamos pelos
outros, mas principalmente por nós, lembrava o poeta.
Dentro e fora, pela construção, aquele que se procura pode encon-
trar-se, nunca se encontrando: fazendo-se. De modo frágil. Pegar
numa mão-cheia de areia no deserto e atirá-la uns metros mais
para a frente: é a nossa forma de mudar o mundo. Uma afirmação
positiva da pobreza e da fragilidade – e o artista citou-me um
dia, no seu atelier, uma frase de Tagore: “Não há nada melhor que
o ganho perfeito; mas se é impossível consegui-lo, o que melhor
existe a seguir é a perda perfeita”. Hoje lembrar-lhe-ia uma frase
do poeta Edmond Jabès – de um livro que encontrei na sua biblio-
teca: “A riqueza de Deus é a de ser de tal maneira pobre, que
nenhuma pobreza se compara à Sua.” O ganho perfeito, a perda per-
feita, coincidem, afinal. Mas humanamente inacessíveis. No entanto,
sem o despojamento da perda (mesmo que imperfeita) não pode haver
atitude de espera, de atenção que cria o mundo (riqueza): dispostos
em direção ao que vem. Num (des)equilíbrio entre acolher o rejei-
tado e aprender a rejeitar. Porque impuros, em nós não há nem
ganho perfeito, nem perda perfeita. Não tocamos o todo, nem
abarcamos o nada. Somos o meio, na corda suspensa do funâmbulo.
Casa e rua em construção.
Paulo Pires do Vale
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