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Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
- 1 -
SUMARIO:
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
- 2 -
CIP - Brasil. Catalogação-na-Fonte
Câmara Brasileira do Livro, SP
Kyber, Manfred, 1880-1933
K99t Também eles são nossos irmãos? /
Manfred Kyber;
(tradução Tatiana Braunwieser). .. São
Paulo : ECÉ, 1981.
ISBN 85-85009- 05-5
1. Animais - Lendas e estórias
2. Contos alemães I. Título.
81-1236 CDD-833.91
Indices para catálogo sistemático:
1. Contos : Século 20 : Literatura alemã 833.91
2. Século 20 : Contos : Literatura alemã 833.91
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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Manfred Kyber
TAMBÉM ELES
SÃO
NOSSOS IRMÃOS?
eoe
editora
SUMARIO:
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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Título Original:
GESAMMELTE TIERGESCHICHTEN
Tradução: TATIANA BRAUNWIESER Ilustrações:
SANTINO PARPINELLI
Direitos Autorais gentilmente cedidos por Rowohlt
Verlag GmbH, Reinbek hei Hamburg Contos Extraidos
de "DAS MANFRED KYBER BUCH".
COPYRIGHT: HESSE UND BECKER VERLAG, München.
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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SUMARIO:
TAMBÉM ELES SÃO NOSSOS IRMÃOS?.............................................3
O Crocodilo Patenteado.....................................................................8
O C. d. M..........................................................................................16
O Momento Supremo.......................................................................20
Súplicas Silenciosas.........................................................................23
A Entrevista......................................................................................27
Mãe..................................................................................................32
A Mosca Efêmera.............................................................................35
Tratamento Balneário.......................................................................39
Heroísmo .........................................................................................47
Krakelius Krequequeque..................................................................51
Glória Post Mortem ..........................................................................57
A Terra da Promissâo ......................................................................63
Fim............................................................................................................93
***
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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Os bichos possuem seus momentos
cômicos e trágicos, como nós. São
repletos de semelhanças e relações
mútuas. Os homens costumam crer
num abismo entre si e os bichos. Não
é senão um degrau na roda da vida.
Somos todos filhos da mesma
mônade. Para conhecer a naturexa, é
preciso compreender suas criaturas.
Para compreender uma criatura,
carece ver nela seu irmão.
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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O Crocodilo Patenteado
Havia um deserto, e no deserto havia um rio, e dentro do rio havia um crocodilo.
Lamento dizê-lo: os crocodilos não são apreciados, não. Isso acontece não tanto
por causa da sua toilette, freqüentemente lamacenta e desmazelada, nem
tampouco por causa da expressão indiscutivelmente antipática de sua boca, o
que afinal são superficialidades. A impopularidade é causada pelo apetite. No
mundo inteiro é assim: quanto maior o apetite, menor a estima. Amor e estima
prosperam quando se exclui o apetite, e costuma-se até anuir a uma conversa
despretenciosa, sob a condição mínima da gente não ser devorado ou
abocanhado. Sem dúvida isto é muito superficial, porém compreensível, pois
ninguém há de querer
mal tenha trocado algumas palavras amáveis — ficar logo sem mãos e pernas,
que afinal lhe pertencem e que lhe poderão ser úteis em outras ocasiões. Por
isso não são estimados os que querem engolir os outros. E sendo que o
crocodilo tem apetite para tudo, e tudo quer engolir, ninguém gosta dele.
Ele engole missionários, sapos, negros, macacos e até membros da própria
família, e tudo por causa do apetite. Também tudo lhe faz bem — louvado seja
Deus — e ele digere tudo, mesmo os próprios parentes.
O crocodilo, então, estava deitado dentro do rio que havia no deserto, com
apetite e zangado. Não estava zangado por sentir apetite, mas porque não tinha
nada para saciá-lo, e numa ocasião dessas qualquer um fica zangado, não só
um crocodilo, até a mais fina dama.
"Como seria bom agora um branco!" — disse o crocodilo, piscando ao sol. —
"Os brancos são mais gostosos para o desjejum; pretos são melhores para o
almoço, são mais oleosos e nutrem mais. é tal qual a diferença entre uma
galinha e um pato. Bem picantes são os vendedores ambulantes de vinhos; têm
sabor de caça por causa do álcool que tomam, e, geralmente estão bem
conservados."
O crocodilo sorriu com melancolia, o que ressaltou ainda mais a expressão
antipática da sua boca, sinto muito dizê-lo.
"Não se consegue nem mesmo um cardápio indígena," — continuou ele e
engoliu em seco — "dar-me-ia por satisfeito até com comida caseira, com um
sobrinho ou sobrinha. Porém, uma parte deles eu comi, os outros desceram rio
abaixo; hoje em dia não se encontram mais sentimentos de solidariedade entre
parentes. Que adianta ter apetite? "
E o crocodilo enterrou seu estômago esfomeado mais para dentro do lodo
molhado, cerrou os olhos com resignação e bocejou. Nem se deu ao trabalho de
cobrir a boca com a pata, pois a boca de qualquer jeito é grande demais e, além
disso, o crocodilo não liga muito para as boas maneiras.
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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"Vou cochilar'" - pensou, e cochilou.
Em cima da tamareira herborizava atarefado um macaquinho, guinchando
baixinho. Era um entemuito alegre, permanentemente feliz por ser macaquinho
e, existir, simplesmente. De vez em quando fazia um pouco de ginástica pelo
método Meu sistema, ou Como adquirir o mais lindo rabo, os mais longos
braços e as pernas mais curtas. Então sentava-se num galho e procurava com a
máxima atenção, dentro de seu pêlo, estranhos cacetes, e exterminava-os in-
distintamente — machos, fêmeas e mesmo tenros filhotinhos. Era trabalho
penoso, porém, grato e lucrativo.
"Posso coçar-me em três lugares ao mesmo tempo,"
— disse o macaquinho arreganhando os dentes com satisfação - "seguro-me
com o rabo e um pé, e o que sobra — coça. Como é sábia a natureza!"
O macaquinho era de um temperamento alegre e modesto. A análise de suas
vestimentas foi, porém, bruscamente interrompida pela voz rouca do crocodilo,
que o tinha visto, olhando para cima.
— "Psiu, você aí!" — chamou — "desça para cá, quero devorá-lo." - Ele disse
devorar pois o crocodilo não usa expressões finas.
O macaquinho assustou-se horrivelmente.
— "Não, de jeito nenhum!" — respondeu-lhe choramingando, e seu pêlo eriçou-
se de pavor, pondo em debandada os estranhos cacetes.
"Então o senhor não quer," — fungou o crocodilo com malícia, e soprou com
raiva pelas narinas.
— "Está bem, esperarei até que o apetite o obrigue a descer da árvore, quando
aí não houver mais nada. Tudo na vida é o apetite. Eu sei disso."
O macaquinho não disse mais nada, apanhou uma folha de tamareira e nela
soluçou com desespero. Onde ficou a sabedoria da natureza? Para que servem
os braços compridos e as pernas curtas, adquiridos por meio do Meu Sistema,
se eles podem ser devorados?
"Sujeito arrogante," - rosnou o crocodilo, pigarrean- do com ódio. — "Faz-se de
importante como se fosse um petisco maravilhoso, entretanto, carne de macaco
é bem comum!"
O macaquinho, porém, não era nada arrogante; estava apenas com um medo
terrível porque ia ser devorado, e pensava em papai e mamãe e na filha maior
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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do macaco vizinho, aquele focinho sorridente que lhe concedeu o primeiro beijo,
como recompensa, por ter-lhe limpado, com galanteria e cavalheirismo, seu pêlo
macio. E quando se está às voltas com pensamentos desse gênero, é
indiferente ser um grande homem, ou uma pequena e trêmula alma de macaco.
Aliás, em muitos outros assuntos isso também é indiferente. Mas, existe algo no
mundo que se compadece de pobres criaturas assustadas, e condoeu-se
também do macaquinho. Justamente no momento em que ele colheu a segunda
folha da tamareira para soluçar, sentiu como se um rabo de macaco o cingisse
e uma voz lhe sussurrasse um pensamento; podia ser a voz do papai ou da
mamãe, ou da filha maior do vizinho. O pensamento foi tão lindo que o
macaquinho parou imediatamente de chorar, seu pêlo alisou-se e sua caretinha
expressou uma alegria indescritível, aquela alegria que se torna sobremaneira
bonita quando ilumina um rosto feio.
— "Psiu," — imitou o macaquinho, jogando caroços de tâmara na cabeça do
crocodilo — "o senhor é patenteado? " — Quanta gente é assim! Mal se sente
bem, começa a atirar caroços de tâmara. Isto é humano, e os macacos se
parecem tanto com os homens!
— "Por que patenteado? " — perguntou-lhe o crocodilo desconfiado — "quero
devorá-lo e fá-lo-ei."
O macaquinho cruzou os braços compridos sobre o peito e olhou com
superioridade para o crocodilo.
- “Atualmente todas as pessoas decentes do deserto se deixam patentear," -
disse-lhe ele - "sem isso a gente não é gente bem. Porém, precisa possuir
alguma coisa que os outros não têm."
- "Você é que vou possuir logo," - pensou o crocodilo zangado, mas ficou com
a pulga atrás da orelha porque gostaria de ser gente bem. Porque o cérebro do
crocodilo não é grande (quanto maior a goela, menor é o cérebro), esgotou-se
logo sua força refletiva.
— "Onde a gente pode se patentear? " — perguntou ele.
— "Na comissão de patentes do deserto, ê um escritório."
O crocodilo refletiu.
— "Como é que eu chego melhor lá? É preciso que não seja muito longe e que
você me espere aqui. Disso quero ter certeza."
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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- "Claro," - disse o macaquinho, esfregando as mãos de contente. — "O
escritório é, como todos os escritórios, no deserto. Felicidades. Faço votos que
tenha sorte!"
O crocodilo arrastou-se para a margem e rumou devagarinho para o deserto.
Logo passou em frente de uma choupana e então pensou: "logo vi!" Quantos já
não pensaram "logo vi!", porém, sem existir coisa alguma. Desta vez, entretanto,
estava certo mesmo, porque na choupana via-se escrito com letras grandes:
Comissão de Patentes do Deserto. No mesmo instante saiu dali o rinoceronte,
acenando amavelmente com a cabeça. O crocodilo entrou e viu-se em frente da
Comissão.
Formavam a Comissão o camelo, o marabu e uma pantera. O camelo tinha de
redigir as atas e executar todos os outros trabalhos de escritório. Sua expressão
subalterna sublinhava-se ainda mais pelo lábio inferior caído, e, no pescoço,
usava o distintivo honorário do deserto: um pequeno moinho com as cores do
país. O marabu era careca e conselheiro-jurídico, e a pantera, como
representante das autoridades, sentada a uma mesa, fazia as unhas.
O crocodilo, vendo que a Comissão inteira era comestível, rangeu com as
mandíbulas, de apetite.
- "Pare de ranger," - gritou-lhe a pantera irritada
- "isso dá nos nervos."
O crocodilo ficou com raiva, mas como ansiava por uma patente, colocou
devagar e com modéstia uma queixada sobre a outra.
- "Que é que o senhor deseja? " - perguntou- lhe o camelo, empurrando o
beiço subalterno para cima.
— "Quero ser patenteado."
— "Em quê? "
— "Isto me é indiferente. Meu apetite, por exemplo."
— "Ridículo," — resmungou a pantera — "isso todos têm."
— "Então minha grande fuça," — disse-lhe o crocodilo timidamente, e
escancarou a goela, recomendando-a.
— "Sua venerável fuça é bem grande, como podemos verificar m loco," —
expressou-se o marabu, como conselheiro-jurídico — "porém neste ponto o
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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senhor não está só. A maioria dos homens possui uma bem maior."
O crocodilo derramou uma das conhecidas lágrimas de crocodilo, e esbugalhou
os olhos com desamparo e tristeza para a Comissão comestível. Por fim ficou
bravo e bateu com o rabo escamado para todos os lados.
— "Mas eu quero ser patenteado!" — gritou sufocado de raiva.
— "Silêncio, se não quer ser posto fora," — vociferou a pantera, batendo com a
pata na mesa.
— "Pois é, silêncio" — blaterou o camelo, e deixou cair com devoção o lábio
subalterno, serviçal, espiando de soslaio a pantera.
- “Se me permite dar-lhe um conselho," - cacarejou o marabu com gentileza e
desejo de apaziguar - "acon- selhar-lhe-ia patentear sua dentadura. Conforme
consegui constatar na hora em que abriu sua estimada fuça, a dentadura é de
dimensões respeitáveis, e, sem dúvida, única no gênero. Poderíamos registrá-la
como máquina de cortar carne."
- "Então vamos," - disse a pantera ao camelo, passando a pata no focinho -
"leia o registro!"
O camelo leu com voz monótona, blaterando, pois era de opinião que não fica
bem para um funcionário salientar por conta própria uma palavra: "Patente n° 1:
à naja, por um desenho de óculos na cabeça. Seção - artigos de ótica. Patente
n° 2: ao canguru, por uma bolsa sobre o estômago. Seção — artigos de moda.
Patente n° 3: ao rinoceronte, pelo chifre sobre o nariz. Seção — artigos de
bijuterias."
- “Agora o senhor pode escolher entre uma patente inglesa e uma alemã," -
disse o marabu ao crocodilo.
— "Sobre a inglesa está escrito Made in Germany e sobre a alemã, Façon de
Paris.”
— "Qual é a melhor? " — perguntou-lhe o crocodilo desconfiado.
— "Isto depende exclusivamente de gosto," — disse- lhe o marabu. — “O
canguru, por exemplo, escolheu a patente inglesa, considerando a situação
política da Austrália, enquanto o rinoceronte, que só dá valor à elegância,
escolheu sem hesitar, a Façon de Paris"
— "Eu quero as duas," — disse-lhe o crocodilo.
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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— "Isso não é possível," - respondeu-lhe o outro, encolhendo penalizado as
asas. - "Eu, porém, aconselharia a patente inglesa, desde que se trata de
máquina para moer carne..."
— "Chega!" — vociferou a pantera — "escreva: patente n° 4: ao crocodilo, pela
máquina de moer carne na goela. Hum... Seção — artigos para cozinha. Até
logo."
Dizendo isso a pantera levantou-se, colocoü o rabo sobre as patas como manda
o regulamento, e abandonou o local rosnando; o expediente estava encerrado.
O camelo aprontou o diploma; o marabu entregou-o ao crocodilo com algumas
palavras explicativas.
— "Tenha muito cuidado, diplomas são apenas algo decorativo, fabricado com
material muito rijo e totalmente indigesto pelo assim chamado processo de auto-
sugestão, aliás um processo internacional; portanto, não o engula! Meus
respeitos."
E o conselheiro-jurídico almoçou o verme comprido que sua esposa havia
embrulhado num papel de sanduíche. Os marabus moravam perto de uma
habitação européia e eram tremendamente cultos! Daí o papel de sanduíche e
os conhecimentos jurídicos.
Vendo o conselheiro-jurídico almoçar, o crocodilo sentiu-se mal. Pegou
cuidadosamente o diploma entre os dentes, e afastou-se depressa em direção à
margem do rio para comer o macaquinho. Este, porém, não estava mais lá.
"Como as pessoas são irresponsáveis hoje em dia!"
— pensou o crocodilo. - "Não é de admirar que se patenteie o antigo e o bom."
— Estufou-se de orgulho e enterrou-se bem dentro da lama.
Assim ficou durante horas. Entardeceu e juntou muito público na margem e na
água para apreciar o pôr-do-sol.
— "Por que o senhor não toma uma refeição, colega? "
— perguntou um pequeno lagarto ao crocodilo, nadando por perto. Apresentava
um aspecto satisfeito e bem nutrido, e engolia com cara jovial os restos de um
parente.
O crocodilo teve dificuldade para falar.
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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— "Estou patenteado," — sussurrou com orgulho
— "não posso comer, estou segurando meu diploma na boca. Em troca sou
agora gente bem."
— "Eu, de minha parte, prefiro estar bem nutrido,"
— disse-lhe o pequeno lagarto -'porém, o senhor tem a aparência de quem não
tem comido nada desde cedo. O verde saudável de seu rosto tornou-se cinza.
Coloque o seu diploma na margem e jante alguma coisa!"
O crocodilo lutou em seu íntimo — o apetite era enorme!
— "Não," — acabou sussurrando — "na margem os macacos poderão roubá-
lo."
— "Então cuspa-o simplesmente fora!" — disse-lhe o pequeno lagarto com
malcriação. - "Para que lhe serve o diploma? Se o diploma tem de ficar
constantemente na boca é melhor desistir dele, porque, no fim, a gente não
pode mais comer, e acaba sendo comido e, ainda, debochado pelos outros."
Isso é uma grande verdade, mas refere-se natural - mente, só aos crocodilos.
O crocodilo não se mexeu. Continuou segurando o diploma e olhou para o
primo, zangado e morrendo de fome.
— "Já que o senhor continua com o diploma entre os dentes, permita-me comer
sua pata traseira à guisa de sobremesa?" O crocodilo, de medo e raiva, deu
uma viravol- ta, e nesta exaltação engoliu o diploma. Na mesma hora sentiu-se
muito mal, tão mal como nunca, e perdendo os sentidos foi levado pelo rio e co-
mido pelo pequeno lagarto e outros parentes prestativos.
Assim termina esta triste estória.
Posso acrescentar apenas ainda uma notícia familiar: enquanto isso sucedia, o
macaquinho ficou noivo da filha mais velha do vizinho. Formavam um casal feliz
de noivos e, logo no dia seguinte, tomaram parte num piquenique com parentes
e amigos, naturalmente acompanhados por uma dama de honra, pois macacos
— como todos sabem — têm muita coisa humana. Durante a festa souberam da
morte do crocodilo patenteado. Um macaco bem velho comunicou o fato, acres-
centando "sim, sim." Isto ele dizia sempre, pelo que era considerado muito
inteligente. O macaquinho, porém, sabia muito mais sobre o assunto; claro, pois
ele conhecia o finado pessoalmente, tão pessoalmente, que por um triz teria
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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sido devorado por ele. É o conhecimento mais pessoal que se possa fazer. E
aproveitando o momento em que a dama de honra subiu a uma tamarei- ra para
comer (pois não sentindo mais amor, comia o dobro), o macaquinho contou à
sua amada a estória horripilante.
— “Não se deixe nunca patentear, Maquinho"
— disse-lhe a jovem, cingindo-o com o rabo.
— "Não, nunca," — disse-lhe o Maquinho, e vasculhou com carinho e presteza
o pêlo de sua noiva.
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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O C. d. M.
As minhocas convocaram um congresso.
Era um congresso moderno. Por isso não se chamava Congresso das Minhocas,
mas C.d.M.
O C.d.M. realizava-se numcanto muito poeirento do jardim. Foram tratadas
apenas questões do cultivo do solo. O horizonte das minhocas não ultrapassava
essa questão. Elas se arrastam na terra e comem terra. São gente pobre e
modesta, porém, útil e indispensável. Sem elas a terra não seria fértil. Seu
trabalho tem de ser realizado.
Era de tarde. O crepúsculo cobria os caminhos pelos quais se arrastava o C.d.M.
Um velho e comprido minhocão presidia a sessão. Discursou sobre questões de
interesse local, como as condições do terreno do jardim em que trabalhavam. Os
resultados mostraram-se satisfatórios.
— "Já penetramos bem fundo na terra," — disse o presidente do C.d.M. —
"Trouxemos à superfície muitas camadas, cuja existência ninguém suspeitava
anteriormente. Porém, a terra parece aprofundar-se mais do que pensávamos.
Nós a dividimos e a esmiuçamos. Parece ultrapassar aquilo que conseguimos
trazer para cima. Carece arrastarmo-nos com afinco por toda parte e comermos
terra, ê uma grande tarefa. Com isso, termina a sessão do C.d.M."
O minhocão enrolou-se respeitosamente.
A parte oficial do C.d.M. terminara.
Vizinhos e amigos juntaram-se em grupos informais, conversando sobre a
prática de desenvolvimento dos membros. Era desejo geral tornar-se mais
comprido. Nisto consistia o progresso. Os novos métodos para consegui-lo
interessavam sempre.
— "O método mais moderno para se tornar comprida,"
disse uma minhoca jovem - "chama-se: enrosca-te no caule. Isto fortalece os
músculos e revigora os membros. Vejam: assim!"
Ela apalpou um caule e fez demonstração do novo método com energiae
convicção. Nisso enroscou-se nalgu- ma coisa. Sentiu que essa "coisa" era
áspera e cabeluda.
— "Nossa, o que é isto? Tem cabelos e está se mexendo!"
Assustada, desen roscou-se do caule.
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
- 17 -
— "Queira desculpar, eu estava tão cansada! Por isso me sentei sobre o caule,"
- disse-lhe a "coisa" cabeluda.
— "Quem é a senhora? " — perguntou-lhe a minhoca, arrastando-se para mais
perto.
— "Sou taturana de profissão. Não me teria sentado sobre o caule de maneira
nenhuma, porém estou cansada demais. Venho de muito longe, andando
sempre na poeira. Raramente encontrei alguma coisa verde. Sou um pouco
fraca de natureza. Também, é tão cansativo curvar as costas a cada passo.
Agora não posso mais. Estou cansada demais. Mortalmente cansada."
A taturana estava completamenteempoeiradae exausta. Seus tocos de pernas
tremiam.
O C.d.M. inteiro, compadecido, arrastou-se para perto dela.
— "A senhora deve fortificar-se'" — disse-lhe uma minhoca gentilmente, —
"deve comer um pouco de terra,"
— "Não, obrigada, estou fraca demais para comer. Sinto-me tão esquisita em
geral. Não quero mais me arrastar pela terra."
— "Tenha paciência," - disse-lhe o presidente do C.d.M..— "isto é a vida;
arrastar-se na terra e comê-la. Não o conseguindo fazer mais, vem a morte.
Nós, porém, devemos viver e tornarmo-nos bem compridos. Posso recomendar-
lhe diversos métodos, é a macrobiótica."
— "Acho que a gente não morre," — disse-lhe a taturana. — "Quando a gente
se cansa demais e não tem força para se arrastar na terra, a gente se encasula,
e mais tarde torna-se uma borboleta multicor. Fica voando ao sol e ouve o
badalar das campânulas. Eu apenas não sei como fazê-lo. Também, estou
cansada demais para refletir."
As minhocas enroscaram-se desamparadas e agitadas.
— "Voar? - À luz do sol? - O que é isso? - Isso não existe! — A senhora está
doente? "
— "A senhora usa palavras estranhas, tão esquisitas,"
— disse-lhe o presidente do C.d.M. — "A senhora está simplesmente
indisposta."
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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A taturana não respondeu mais. Estava cansada demais. Agarrou-se ao caule.
Então, sentiu escurecer ao seu redor.
Do seu interior, porém, saíam finíssimos fios e enrolavam seu corpo cansado e
empoeirado.
— "Isto é uma doença terrível!" — disseram as minhocas.
— "é um fenômeno!" — disse o presidente do C.d.M.
— "Vamos observá-lo."
Diversas sumidades acenaram com os anéis da cabeça concordando.
Passaram-se algumas semanas. O presidente e as sumidades arrastavam-se
diariamente para junto do fenômeno e o apalpavam. O fenômeno era branco.
Estava totalmente encasulado e jazia inerte no chão.
Finalmente, numa madrugada, a "coisa" encapuçada mexeu-se. Uma pequena
borboleta colorida saiu de lá e olhou admirada em seu redor. Conservava as
asas dobradas e não sabia o que fazer com elas. Porque havia esquecido tudo
o que imaginara e aspirara enquanto taturana, quão cansada estivera,
mortalmente cansada...
As asas, porém, cresceram à luz do sol. Ficaram fortes e brilhantes. Então, a
borboleta abriu-as e voou longe da terra, para dentro da luz do sol.
As campânulas badalavam.
Em baixo, na poeira, reuniu-se o C.d.M.
Encontraram somente a capa, e todas as sumidades a examinaram.
- "é apenas um casaco," — disse a primeira sumidade decepcionada.
- "Sobrou só a doença," — disse a segunda.
- "O casaco era a doença," - disse a terceira.
Bem alto, por cima de suas cabeças cegas, balouçava- se a borboleta no
ensolarado ar azul.
- "Agora ela está morta mesmo," - disseram as minhocas.
- "Ressurrexit!" - cantavam mil vozes no espaço.
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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O Momento Supremo
De dentro de sua gaiola um passarinho olhava com ânsia para a luz do sol. Era
uma ave canora e aconteceu num país culto — pelo menos num que assim se
denominava.
No horizonte azul erguiam-se montanhas azuis.
"Atrás das montanhas está o sul," - pensava o passarinho. — "Viajei para lá só
uma vez. Depois nunca mais."
As montanhas distantes pareciam-lhe bem próximas. Era a saudade que as
aproximava das varas da gaiola.
"São tão próximas," — disse o passarinho. — "Se não fossem as varas da
gaiola! Se a porta se abrisse uma vez, uma única vez! Então chegaria o
momento supremo, e com algumas batidas de asas eu estaria atrás das
montanhas azuis!"
As garças emigravam. Seus gritos dolentes ressoavam através do ar outonal —
queixoso e convidativo. Era o chamado para o sul.
O passarinho debateu-se contra as grades da gaiola.
Chegara o inverno e ele tornou-se quieto. Caíra neve e as montanhas azuis
ficaram acinzentadas.Ocaminho para o sul jazia gélido e nevoento.
Passaram-se muitos invernos e muitos estios. Passaram- se muitos anos. As
montanhas ficavam ora azuis, ora cinzentas. Os pássaros migratórios vinham do
sul e partiam para o sul. O passarinho atrás das grades, esperava o'momento
supremo.
Então, raiou um claro e ensolarado dia de outono. A porta da gaiola ficou aberta.
Esqueceram-se de fechá-la por descuido. De propósito, os homens não o
fazem.
Chegara o momento supremo! O passarinho tremia de alegria e agitação. Com
cuidado, timidamente, pulou para fora e esvoaçou para a árvore mais próxima.
Tudo em seu redor o perturbava. Não estava mais habituado.
No horizonte azul erguiam-se montanhas azuis.
Porém,pareciam agora mui distantes. Distantes demais para as asas que não se
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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moveram durante anos, atrás das grades. Mas tinha de ser! O momento
supremo havia chegado!
O passarinho encheu-se de coragem e de toda força que tinha, e desdobrou as
asas largamente, bem largamente, para o vôo ao sul, atrás das montanhas
azuis.
Todavia não chegou além do próximo galho. Atrofia- ram-se-lhe as asas durante
os longos anos, ou foi alguma coisa que se atrofiou nele? Ele mesmo não o
sabia. As montanhas azuis estavam longe, longe demais para ele.
Então ele voou devagarinho de volta para a gaiola.
As garças emigravam. Através do ar outonal soaram seus gritos dolentes e
convidativos. Era o chamado para o sul.
Elas sumiram atrás das montanhas azuis.
O passarinho inclinou a cabeça e a escondeu em baixo da asa.
O momento supremo terminara.
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Súplicas Silenciosas
Os carneiros arrebanhavam-se agitados.
Um velho carneiro narrava:
— "Minha avó viu-o, ela própria," — dizia-lhes.
— Ê algo fabuloso, medonho! Não se sabe o que é . Também ela não viu tudo.
Passou por lá quando ia para o pasto. Era um portão que levava a um recinto
escuro. Havia cheiro de sangue junto ao portão do recinto escuro. Não se via
nada. Mas ela escutou um grito de carneiro lá dentro, um grito horrível. Então
voltou ao rebanho correndo, tremendo de pavor."
Todos estremeceram.
— "Nada se sabe de positivo," — disse-lhes o carneiro
— deve haver, porém, alguma verdade nisso. Em todo caso é medonho."
"Sua avó não vive mais? " — perguntou-lhe um jovem carneiro.
— "Não sei, isso já faz muito tempo — vieram buscá-la."
— "Isto deve ser o começo, depois nunca se volta,"
— disseram vários.
O cão pastor latiu e tocou o rebanho para a outra ponta do pasto. Ali estava o
pastor a conversar com um estranho, que não tinha a aparência de pastor.
Estavam negociando. O estranho aproximou-se do rebanho com passos firmes
e examinou algumas peças com olhos de perito. Não eram olhos de pastor.
Depois pegou no jovem carneiro, que antes havia feito a pergunta. O bicho
gelou. A mão não se parecia com a mão do pastor.
No pescoço do carneiro puseram uma corda.
"Fico com este," — disse o estranho, tirando uma carteira suja do bolso. Pagou.
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Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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Um ser vivo lhe pertencia. Ele o comprara.
Agarrando a corda, arrastou o carneiro do pasto para a estrada. O rebanho
olhava, assustado e sem compreender, para aquele que partia. O carneiro olhou
para trás. Seus olhos procuravam parentes e companheiros de folguedos.
Alguma coisa nele se contraiu, alguma coisa lhe disse que se livrasse e voltasse
correndo.
"Este é o começo," pensou, "vêm buscar a gente." Mas ele não reagiu. Estava
desamparado. Que é que adiantava?
"Não precisa ser aquilo medonho," — pensava, consolando-se — "existem mais
outros pastos. Talvez vão me levar para lá."
Tal é a confiança dos animais que são tratados com mansidão.
Agora dobravam uma esquina. Não se via mais nada do rebanho. O pasto
sumira. Só de longe ouviam-se os latidos do cão e os sons da flauta do pastor.
O vento os trazia.
O caminho era longo. O homem estranho andava rápido. Estava com pressa.
"Estou cansado, gostaria de descansar um pouco,"
- pediu-lhe o carneiro.
Foi uma súplica silenciosa.
Continuaram a andar.
Fazia muito calor e havia muita poeira.
"Por favor, um pouco de água," — disse-lhe o carneiro.
Foi uma súplica silenciosa.
Finalmente chegaram a uma pequena cidade. Passaram por ruas estreitas e
tortas, em que não havia pasto. Esta esperança fora em vão.
Pararam diante de um portão que se abria para um recinto escuro. Um cheiro
asqueroso bateu na cara do animal. O carneiro virou a cabeça e emitiu um
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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balido queixoso. Assustou-se com o cheiro e com a entrada escura. Um medo
despertou-se-lhe no subconsciente, um medo sem limite.
"Quero ir para casa!" - disse o carneiro e olhou para o estranho.
Foi uma súplica silenciosa. As súplicas silenciosas não são ouvidas.
O homem laçou a corda com um golpe hábil em torno das pernas traseiras do
animal e arrastou-o para frente. A corda cortava.
"Sim, sim, já vou," — disse o carneiro assustado. As pernas cansadas e duras
apressaram-se.
Foram só poucos momentos, mas pareceram muito longos. Daí ele se
encontrou no recinto escuro. Espalhava-se no ar um cheiro nauseabundo de
sangue e des- pojos, o cheiro de cadáveres de seus semelhantes.
Não se julga necessário remover isso antes, pois é gado — gado de abater.
Um horror paralisou o carneiro. Um horror que o fez esquecer-se de todas as
súplicas silenciosas anteriores. Um horror que o dominou totalmente.
O carneiro tremeu com o corpo todo.
"Agora vem o fantástico, o espantoso," — pensou ele. E veio.
— — —
— — —
O mundo está cheio de súplicas silenciosas que não são ouvidas. São homens
os que não as ouvem, é impossível anotar essas súplicas silenciosas. São
tantas! Porém, elas todas vêm sendo anotadas e escritas no livro da vida.
Bem abertos e observadores, os olhos de Gotama Buda dirigem-se para a
cultura européia.
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A Entrevista
O sujeito da cara preta é um boxer. Somos grandes amigos, e é por isso que
resolvi, um dia, entrevistá-lo. Pensei em aprender muita coisa desta maneira;
uma olhadela para a diferença entre as naturezas é sempre muito útil, e talvez o
sujeito da cara preta pudesse dar-me algumas explicações interessantes do
ponto de vista canino, verdadeiro, naturalmente, não daquele que os homens
julgam ser.
O sujeito da cara preta estava roendo um respeitável osso, que havia
requisitado na cozinha, assim como nós fumamos um charuto após as refeições.
— "Vá buscar um osso para você na cozinha,"
— disse-me ele em tom paternal (nós nos tratamos por você).
Declinei, agradecendo.
— "Hoje quero fazer-lhe algumas perguntas. Estou escrevendo um livro.
Necessito do seu parecer; por exemplo, sobre os homens."
O osso estalou.
— "Então sobre os bípedes nus. é um tema muito espinhoso."
Ele rosnou baixinho.
Fiquei, de certo modo, estupefato.
— "Que quer dizer com isso: bípedes nus? Eu pensei... sobre nós!"
— "Sim, é assim que vocês se chamam," — disse-me o sujeito da cara preta
sem perder a calma. — "A denominação é muito acertada, não acha também? "
Então também o achei.
— "Para ser franco, não gosto de dar informações sobre esse assunto. O tema
é como uma fatia de carne: um pedaço bom, o outro tão duro que pode quebrar
os dentes."
— Mas alguma coisa você podia, me dizer. Alguns pontos gerais. A gente não
tem idéia certa sobre si mesmo." O sujeito da cara preta atacou o osso do outro
lado.
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— “Está bem” — disse-me ele condescendendo — "porém, não lhe poderei
dizer nada além do que nós, cachorros, aprendemos enquanto novos ainda.
Mais é impossível. Também poderei dar-lhe só dados objetivos, e só em forma
de bate-papo. Sabe, estou justamente na hora da minha sesta," — e apontou o
osso com a pata.
— “Claro, isto é apenas uma entrevista. Só assim... não quero perturbá-lo de
maneira nenhuma! Então, do ponto de vista pedagógico, o que é que vocês
aprendem sobre os bípedes nus, enquanto são cachorros novos? "
— "Somente o indispensável. O resto se dá por si mesmo, e também varia
muito. Em primeiro lugar, o valor dos bípedes é exclusivamente de ordem
econômica: quanto mais perto da cozinha, melhor. Existem, naturalmente,
excessões. Cientificamente podemos dizer o seguinte: os bípedes nus,
aparentemente, sofreram em tempos remotos, de uma espécie de sarna, pois
perderam todo o pêlo, com exceção da crina na cabeça, que causa impressão
deveras ridícula. Os espécimes femininos possuem-na mais densa, ao contrário
dos bípedes nus masculinos, que criam alguns poucos cabelos no focinho e
tratam-no com carinho, embora isso não tenha o mínimo sentido. De um pêlo
verdadeiro não se pode falar. O andar deles é muito esquisito e assemelha-se
ao da cegonha.
Erguem-se nas patas traseiras e movimentam-se com passos graves e
comicidade grotesca, bastante devagar, enquanto que as patas dianteiras
deixam-nas penduradas, ou balançam-nas no ar. Tudo isso causa uma
impressão muito singular, mormente visto de longe e quando andam em
grandes grupos. De vez em quando inclinam-se, acenam com a cabeça, ou
soltam uma risada gozada, muito parecida com o relinchar do potro. Porém, não
quéro cometer rata. Estpu a magoá-lo? "
— "De maneira alguma, pois fui eu que o pedi."
Na realidade sentia-me um tanto deprimido. O sujeito da cara preta percebeu a
minha reação.
— "Os bípedes nus" — intercalou com benevolência — "não pareceriam tão
incrivelmente cômicos se não se julgassem tão importantes. Correm por todos
os lados como se farejassem alguma coisa. Entretanto, possuem um nariz
deficiente e quase nunca encontram um rastro, mesmo o mais fácil."
— "Sim, quanto aos ares importantes, você tem razão,"
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— disse-lhe eu suspirando, e pensei em muita gente naquele momento. — "O
resto é um pouco novo e inesperado para mim, você compreende..."
Desviando o olhar com discrição, ele roeu um pouco o osso.
— "Os bípedes nus, então" - continuou - "não têm pêloá, com excessão dos
poucos cabelos que, ainda por cima, caem-lhes quando ficam idosos, ou
tornam-se brancos. Os filhotes — raramente mais do que um de cada vez —
nascem também nus e ficam, durante muito tempo, desajeitados. Para não
sentirem frio, os bípedes nus protejem-se com trapos coloridos. Fica muito feio,
porém, as pobres criaturas indefesas não podem agir de outra forma senão
morrem congeladas."
Fiquei calado. Não tive vontade de explicar-lhe nossas normas morais, que nos
fazem considerar nosso corpo como algo indecente.
— "O rosto e as patas dianteiras ficam livres" - continuou o sujeito de cara preta.
— "Somente quando os bípedes nus se reúnem, fazendo muitas vênias e
inclinando a cabeça, é que cobrem também as patas dianteiras. Por que?
Ignoro-o."
Eu também o ignorava.
— "Seus dentes são fracos, embora gostem de comer e comem muito. Nunca
os vi se pegarem, pelo contrário, verifiquei com freqüência que, estando os
bípedes nus enfurecidos um com o outro, redobram suas inclinações, trocando
uma porção de amabilida- des. As patas dianteiras são extremamente desenvol-
vidas, e os bípedes servem-se delas com muita habilidade, como os macacos,
com os quais em geral, têm muita semelhança. A todos falta-lhes o rabo, por
isso não podem abaná-lo. Mostram os dentes quando estão alegres. Quando se
encontram ou se despedem, procuram arrancar reciprocamente as patas
dianteiras. Não sabem catar pulgas. Você o sabe? "
— "Não," — respondi encabulado - "infelizmente não. Ainda não tive
oportunidade."
— "Os bípedes nus são esquisitos também em outros assuntos. Por exemplo:
consideram bonitos os rostos lisos e brancos. O que é que nós diríamos se as
damas dos boxors não tivessem aquela tez aveludada e preta, e aquelas
inúmeras rugas picantes? Muito estranha também é a predileção dos bípedes
nus por um determinado metal sujo. Correm o dia todo e trabalham para adquiri-
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lo. Também não gostam de se desprender dele. Possuindo este metal sujo
podem conseguir as coisas mais lindas, e quem mais o possui é o tal, e todos
abanam o rabo perante ele (se é possível falar em abanar, tratando-se de tão
triste ausência de rabo)."
O sujeito da cara preta terminou seu osso.
— "Não lhe posso dizer mais que isso. Sei ainda uma porção de coisas,
ultrapassaria, porém, o que me é permitido dizer. São assuntos pessoais sobre
os quais refleti, pois sou filósofo. Os filósofos nunca dizem tudo para não serem
amordaçados."
— "Entre nós também é assim," — disse-lhe eu.
— "Está vendo? Mas o pouco que lhe expliquei pode contar sossegado, é
apenas sabedoria de cão novo. Muitos não compreenderão nem isso."
— "Estou convencido disso," - respondi.
— "Em última análise," — disse ele para rematar, — "não deixe pender as
orelhas, mesmo sendo apenas um bípede nu! Qualquer um pode ter uma alma:
tanto um bípede nu como um quadrúpede pe - ludo. Até logo."
O sujeito da cara preta deu a pata.
Despedi-me. Senti-me mal como um cachorro.
— "Quer dizer que você, de maneira nenhuma, desejaria ser um bípede nu? "
O sujeito da cara preta arreganhou os dentes: "Rrrrrrrr!"
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Mãe
No sótão, dentro de uma cesta, estava deitada uma gata com dois filhinhos. Os
gatinhos nasceram havia poucos dias e eram ainda muito desamparados, com
suas pequeninas patas que sempre escorregavam, e suas enormes cabeças de
olhos cegos que se enterravam no pêlo da barriga de sua mãe. Eram muito
esquisitos. A gata, porém, achava-os lindos sobremaneira, pois eram seus filhos:
um, cinza e preto como um tigre, igual a ela mesma, isto é, uma beldade,
modéstia à parte; o outro, rajado igualzinho ao pai, com elegantes calças e luvas
brancas, uma pinta no nariz, cantava com muita expressão. Como eles
cantavam lindo, juntos, no jardim, nas primeiras noites do mês de março: a duas
vozes... tantas canções bonitas!... Não era de se admirar que esses filhotes de
patinhas escorregadias e cabeças enormes, se tornassem criaturas tão
maravilhosas, não somente gatos — o que já por si significa o máximo, como
todos sabem — mas gatinhos como a terra nunca ainda tinha visto! A mãe gata
espreguiçou-se numa curva orgulhosa e pôs-se a contemplar, ronronando
amorosamente, os pequenos milagres de seu mundo.
O agradável quarto do sótão parecia um lugar próprio em todos os sentidos,
tranqüilo e sossegado; uma cesta macia, cheia de feno, quente e bem
apropriada às primeiras tentativas de engatinhar; muita bugiganga em redor,
muitas surpresas e material de investigações, tudo alegremente iluminado pelo
luar de maio através da janela; largo espaço para folguedos, e... que refúgio
admirável para a caça de camondongos! Que vasto território para a formação
perfeita das aptidões profissionais!
"Seria bom eu mesma procurar uns camondongos",
disse a gata. — "Os pequerruchos estão dormindo e uma distração far-me-á
bem; tratar de filhotes é cansativo e, de mais a mais, estou com um considerável
apetite."
A gata levantou-se do seu leito de feno, deu ainda uma rápida lambida nos
filhos, e esgueirou-se em seguida, silenciosamente, farejando ao longo dos cai-
xotes e cestos. Não obstante ter já alcançado certa idade, não deixava de sentir
agradável excitação ao procurar camondongos. E, de repente... não se ouviu um
farfalhar? Não estava cheirando tão bem a camon- dongo? Não era o perfume
delicado, inconfundível para o nariz de um gato? Mais alguns passos cuidadosos
com os seus chinelinhos de veludo — ninguém a imitava nisso — e ei-la perante
um ninho de camondongos, com dois pequeninos filhotes nus.
"Só filhotes," — pensou a gata — "então não havia necessidade dos chinelos de
veludo, pois estes bichinhos não sabem correr, nem enxergam. Nem vale quase
a pena, somente duas pequenas dentadas, mais nada. Mas enfim, sempre é
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alguma coisa para enganar o estômago, por assim dizer..."
Preparou-se para abocanhar. Porém, alguma coisa falou dentro dela:
"Eles não sabem correr, não enxergam, igualzinho a seus filhos. São totalmente
desamparados e a mãe deles está morta possivelmente. Estão tão desampara-
dos como seus filhos quando você não está junto deles. Verdade é, são
camondongos, porém camondongos pequenos, muito pequenos, são filhotes; na
verdade, você sabe o que quer dizer filhotes?" Era o amor maternal que falava,
e dentro dele o amor universal, seu espírito no futuro. Ele só pode falar dentro
de um amor maternal muito grande, assim como o amor maternal de uma gata,
pois este é um dos maiores.
A gata inclinou-se, apanhou cuidadosamente um dos ratinhos com os dentes e
levou-o ao seu cesto de feno. Em seguida, voltou para buscar o outro. Ela lhes
deu o peito e amamentou-os junto com seus filhos. Os ratinhos estavam quase
entorpecidos, porém esquentaram-se rapidamente no pêlo de sua barriga.
Estavam quase mortos de fome, porém saciaram-se logo no peito da gata.
Sentiam-se perfeitamente protegidos pela mãe e não imaginavam que esta
fosse uma gata. Como haveriam de saber? Eles eram cegos e desprotegidos.
Cobria-os agora, protegendo-os.uma pata de gato, sem unhas, macia,
aveludada.
Os gatinhos cresciam e os ratinhos cresciam também; abriram-se-lhes os olhos
e a primeira coisa que viram foi a mesma mãe e o mesmo amor maternal.
Eram pequerruchos e brincavam juntos; o sol de maio, olhando pela janela,
brincava com eles, e cingia a cabeça da mãe gata com uma coroa dourada.
Esta estória é verdadeira e pequenina, porém, muito grande. Nela renasceu um
mundo novo de uma criatura pequena em um pobre sótão. E nem sempre se
repetirá isso, oh! não; mas foi um acontecimento grande que se deu. As leis do
mundo são fortes e duras, contudo serão dominadas, degrau por degrau, porque
o amor universal é uma força viva dentro da alma desta terra. Lentamente, mui
lentamente, o mundo velho transforma-se num novo, e isso já aconteceu muitas
vezes num pobre quarto no sótão, mas os homens nem ficaram sabendo. Os
homens sabem tão pouco, e menos que todos, sabem aqueles que imaginam
saber mais que todo o mundo. Eles não sabem, também, se os bichos rezam.
Eu creio, porém, que os bichos também imploram, em momentos de angústia, a
um poder que está acima deles; e se essa gata pedisse, a Virgem Maria atendê-
la-ia.
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O sol de maio sabia o que os homens ignoram, pois ele cingiu a cabeça da mãe
gata com uma coroa dourada.
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A Mosca Efêmera
A mosca emergiu da água, arrastou-se devagar até a margem, e esticou suas
asas finas sob o solde junho. Terminara uma forma de existência, uma outra
estava para se iniciar. Sua existência de larva já lhe parecia um sonho distante;
uma existência cheia de instintos selvagens e fome, dificultada e tolhida pela
densidade da água. Algo novo principiava agora, algo sempre pressentido,
porém, — só hoje — real. Leveza e luz foram as primeiras sensações alegres
desta transformação, e a razão da vida eram agora as asas que brilhavam no ar
azul, sob a luz doiradado sol. Liberta daquilo que antes fora ela mesma, a nova
existência chamava-a para a dança do silfonoéter, por toda a longa vida de
Manhã, Tarde e Noite, e suas asas tremiam de alegria, prontas para levantar
vôo através do infinito banhado pelo sol.
No brejo, ao lado daquela água, da qual saíra a mosca para uma nova vida,
acocorava-se uma grande rã verde, que olhava a estranha criatura com olhos
esbugalhados e sentimentos totalmente diferentes.
"Que criatura gorda! Tenho de comê-la sem falta,"
- pensava ela; e sua boca, de ricas dimensões, abria-se e fechava com apetite.
Aproximou-se devagar e cuidadosamente, com a prática de um profissional.
A mosca esticou de novo as asas e os membros. Parecia-lhe haver ainda algum
peso a dominar, e, de repente, seguindo um desejo inconsciente, arrastou-se
para fora de si, tirou a pele, e ficou novinha em folha diante de sua própria
máscara — a forma daquilo que era antes e agora não o era mais.
"Ué!" — disse a rã. — "A criatura gorda duplicou-se. Incrível. Será que se
transformarão em três? Qual delas é a mais gorda? Qual comerei? " -
resmungou ela, continuando imóvel com toda a paciência de rã madura e
experimentada.
Na margem, peregrinavam uma formiga e um besouro. Também outras criaturas
multípedes movimentavam- se nesse lindo dia de junho, esses dois, porém,
encontraram-se para um bate-papo. A formiga assegurou-se antes, é claro, de
que o besouro era vegetariano. Nunca se sabe, nessa família numerosa de
multípedes, se algum deles não é justamente um consumidor de formigas - a
gente sente tremerem as antenas só ao dizê-lo - e só é possível conversar
sossegadamente após uma investigação cuidadosa. Este aqui, porém, era um
peregrino inofensivo, dentro de uma simples roupa castanha, um besouro
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bonachão que se alimentava de cereais.
— "Quando me movimento sinto sempre grande necessidade de pensar," —
disse-lhe o besouro.
— "A senhora também? é tudo tão estranho..."
— "É uma maneira muito insalubre de encarar a vida” — respondeu-lhe a
formiga que arrastava com dificuldade um pedacinho de palha. — "Devemos
conservar-nos em atividade, e ter sempre em mira o bem-estar do povo,
simplesmente o mais prático, sabe? "
— "Depende, porém, de certos pontos," - disse-lhe o besouro. — "São
justamente esses pontos sobre os quais devemos refletir sem falta. Por exemplo,
estou trajado com a maior modéstia, como a senhora deve ter notado, porém,
também tenho pontos sobre minhas asas castanhas, está vendo? Aqui, e aqui...
três pontos."
Ele apontou com uma pata dianteira a parte traseira das asas.
Os olhos da rã saltaram para fora. Será que temos ainda mais comida? Que é
que se engole agora? Como a vida é complicada!
— “Olhe!" — disse-lhe a formiga, mostrando com as antenas a mosca e sua
carcaça abandonada — "ali está sentado alguém e está sentado mais uma vez!
Nunca vi coisa igual."
— "Estranho, muito estranho," — disse-lhe o besouro
- "vai ser necessário procurar os pontos que explicarão este fenômeno. Deve
existir um ponto a partir do qual..."
- "Ah! pare com seus pontos." - disse-lhe a formiga. — "Isso é preciso encarar
pela maneira prática da economia popular. Uma deve ser a criatura, e a outra,
sua roupa. A roupa não se mexe, e a criatura balança as asas. Deve ser um
ente muito leviano, pois não se deve balançar as asas dessa maneira numa
sociedade decente. Mas que semelhança da roupa com a criatura! Não, uma
coisa assim ainda não encontrei na vida, e, entretanto, terminei o curso estadual
de ovos e sou enfermeira diplomada em larvas."
No pequeno besouro surgiu uma espécie de recordação: não estivera ele
também, um dia, incluso numa larva e depois ficou livre, multípede e com
pontos? Como é que isto se deu mesmo?
"Sinto, contudo não sei como, porém sinto-o realmente, só que não posso me
lembrar direito." — disse ele e coçou pensativo a cabeça com as antenas.
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— "Preciso investigar," - disse-lhe a formiga com decisão. — Vou dar um pulo
até lá; tome conta, enquanto isso, da minha bagagem."
A formiga correu apressada em direção à mosca.
Os olhos da rã, que continuava atenta, saltaram, por assim dizer, das órbitas.
— "A senhora me interessa do ponto de vista nacional," — disse a formiga à
mosca. — "Isto aqui é a senhora mais uma vez, ou é parte do seu guarda-
roupa? "
— "Não sei," - disse-lhe a mosca - "é alguma coisa minha que, porém, não é
essencial. O que sou eu mesma voa para a vida repleta de luz solar."
— "Deixe de falar difícil. Trata-se de economia popular que talvez seja aplicável
aos nossos princípios estatais. Do que a senhora vive?"
— "De ar, luz e sol," — disse-lhe a mosca.
— "Isto é tapeação. Disso poder-se-ia viver um dia, não mais."
— "Pois eu vivo só um dia; uma Manhã, um Meio-dia e uma Tarde. é uma
infinidade, difícil de imaginar, não é? "
— "Uma criatura decente vive anos," — disse-lhe a formiga, - "primavera, verão,
outono, inverno."
— "Não sei o que é isso; talvez a senhora esteja apenas usando termos
diferentes. Pois a vida inteira é só Ma- nhã.Meio dia e Tarde. Não posso
imaginar outra coisa."
— "Naturalmente, porque a senhora não tem instrução estatal."
— "Encontrou o ponto? " — gritou-lhe o besouro.
— "O senhor com o seu ponto!" — disse-lhe a formiga.
— "Cuide melhor da minha bagagem; este é o único ponto que deve preocupá-
lo agora. Se eu, voltando, não encontrar minha bagagem, hei de tamborilar tanto
nos seus três pontos, que o farei esquecer-se de todos os outros."
— "Estou sentado sobre a sua bagagem; não é possível fazer mais. Contudo,
deve existir um ponto..."
A rã não conseguiu mais se dominar. Deu um salto sobre a casca da mosca.
Esta pareceu-lhe ser a mais gorda das duas pessoas gordas. A mosca abriu as
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asas bem abertas, e voou para a luz, o ar e o sol, deixando para trás, inanimado
e insignificante, aquilo em que ela estava antes envolvida: seu vestido. Iniciava-
se uma nova existência: Manhã, Meio-dia e Tarde.
"Isto não é ninguém, apenas um estojo," - coaxou a ra furiosa, e pulou zangada
na água.
A formiga voltou apressada ao besouro, e retirou sua bagagem sem agradecer.
— "A criatura diz que vive de ar e de sol, que vive só um dia. Conforme diz: uma
Manhã, um Meio-dia e uma Tarde. é uma vigarista. Logo imaginei quando a vi
balançar as asas daquele jeito; é uma leviana."
"Manhã, Meio-dia, Tarde," — repetiu o besouro, coçando a cabeça com a
antena. — "Deve ser possível, porém, encontrar um ponto, um ponto qualquer..."
Multípede e penosamente continuaram os dois a peregrinação. A rã verde e
grande, sentada no brejo, estava com o pescoço inchado dè tanta raiva. A
mosca balouçava-se com asas reluzentes na luz brilhante duma nova existência
de um dia — uma Manhã, um Meio-dia e uma Tarde.
Porém, o que é uma tarde? Um momento e mil anos são igual mente efêmeros e
inconstantes. Carece mesmo encontrar aquele ponto, como dizia o pequenino
besouro peregrino, um ponto qualquer...
Não somos nós, também, moscas, e não deixamos também para trás larvas que
se parecem conosco, e abandonamos assim apenas a terra e o brejo, para
esticar nossas asas no éter azul da eternidade ensolarada? Todo presente
encerra seu misterioso prenúncio do futuro, e em toda existência respira a
grande intuição dos pequenos besouros: toda vida é uma Manhã, um Meio-dia e
uma Tarde, e depois da noite, a aurora de um novo dia — a vida toda é uma
eterna Páscoa.
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Tratamento Balneário
Um velho macaco resmungava zangado, sentado em cima de um coqueiro.
Estava muito aborrecido, pois tinha um reumatismo nas pernas. Não era um
macaco simples, e sim, chefe de numerosa família; era um macaco-prefeito.
Quando um simples macaco tem reumatismo, isso incomoda apenas a ele
próprio, se porém, um macaco graduado tem reumatismo, isso não é apenas
desagradável para ele próprio, como também altamente penoso para o seu
ambiente.
Todos os macacos o sentiam, pois quando alguém dizia ao velho macaco: “Bom
dia, Vossa Peludeza!", ele arreganhava os dentes, e se alguém se informava
sobre a sua saúde, dava uma bofetada no curioso, ou pisava-o com sua perna
reumática. Afinal, era um macaco graduado.
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Todavia, tornara-se evidente que isso não podia continuar mais assim,e, numa
reunião íntima de macacos, ficou resolvido curar este reumatismo graduado.
Concordaram então em consultar dois velhos marabus, médicos célebres, e
autoridades no seu campo. Os-* dois marabus apareceram de bom grado, eram
senhores bondosos e, além do mais, o caso interessava-lhes profissionalmente,
pois um reumatismo graduado não é nada comum.
Um dos marabus possu ía ainda um pouco de plumagem na cabeça: era o
Conselheiro Médico; o outro estava totalmente calvo e era Conselheiro Médico
Privado. Ambos caminhavam sobre altas pernas de pau e tinham grandes bicos.
O velho macaco desceu da árvore resmungando, e mostrou as pernas mal-
humorado. Os marabus inclinaram-se com garbo mundano e estufaram-se
cheios de perícia. Mediram com as garras o pulso do velho macaco, apalparam
e examinaram as pernas reumáticas.
— "Seu reumatismo incomoda-o muito? " — pcrgun- tou-lhe o Conselheiro
Médico, olhando de lado para o velho macaco.
— "A bem dizer, incomoda-me pouco ao trepar profissionalmente," — disse-lhe
o velho..macaco, empolgado com os dois Conselheiros Médicos. — "Nos
assuntos de família, porém, atrapalha-me muito. Por exemplo, quando piso
nalgum de meus familiares, percebo claramente que não o faço mais com o
impulso juvenil que me era comum, e sinto até uma dor. Fui obrigado
ultimamente a renunciar a este
hábito que me era tão caro, e a satisfazer-me com simples bofetadas. Além de
estar prejudicando minha autoridade, isto, com o tempo, não me fará bem."
— "Compreensível, muito compreensível," — disse-lhe o Conselheiro Médico
Privado. - "Portanto, uma perturbação nas atividades tanto familiares como so-
ciais, de conseqüências perigosas."
"Tenho a impressão de que é reumatismo muscular. "
— disse o Conselheiro Médico, coçando a plumagem da cabeça, —
"rheumatismus musculorum ".
— "Poderia ser também gota," — disse o Conselheiro Médico Privado,
pigarreando pelo bico, — "arthritis urica no local predileto do dedão. Os exames
clínicos sobre o assunto ainda não foram concluídos."
— "Eu piso nos meus familiares com a planta do pé e não com o dedão," -
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disse-lhe o velho macaco.
— "Uma indicação preciosa," — disse-lhe o Conselheiro Médico, — "indicação
muito preciosa, de grande alcance. Gostaria de insistir no rheumatismus mus-
culorum, colega. Que acharia do método de auto- sugestão? Diga uma vez,
bem nitidamente e articulado, com profunda convicção: não tenho mais reuma-
tismo, estou cada dia melhor."
— "Estou cada dia melhor," - disse o velho macaco
— "não tenho mais reumatismo."
— "Continue dizendo," — aconselhou*o o Conselheiro Médico Privado. — "Diga:
piso nos meus familiares comodamente e sem dor, não há nenhum
reumatismo."
— "Piso nos meus familiares comodamente e sem dor,"
— repetiu o velho macaco - "estou cada dia melhor, não há nenhum
reumatismo. Ai! que pontada me deu de novo!"
— "O método de auto-sugestão parece não surtir efeito neste caso especial," -
disse o Conselheiro Médico Privado. — "Os exames clínicos sobre o assunto
ainda não foram concluídos."
— "É um caso persistente," — disse o Conselheiro Médico — "rheumatismus
musculorum chronicus.Gostaria de sugerir um tratamento de águas, banhos de
lama, balnea limosa.”
— "Banho eu não tomo de modo algum," — disse-lhe o velho macaco — "quero
ficar em casa, — fique na sua árvore e alimente-se bem."
— "Compreensível, muito compreensível," disse-lhe o Conselheiro Médico
Privado — "talvez possamos tentar ainda a psicanálise. O senhor não tem algum
ponto obscuro na sua vida? Talvez consigamos então descobrir a causa desse
rheumatismus musculorum.”
— "Para ser franco," - disse-lhe o velho macaco,
— "gostaria de que estes dois marabus cacarejantes me deixassem em paz;
pontos obscuros nunca tive, a não ser pulgas, e estas não me podiam
contaminar com reumatismo porque elas mesmas não o têm; são gente muito
ativa."
— "Continuo a favor do tratamento balneário," — disse o Conselheiro Médico
Privado.
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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— "Quero subir na minha árvore," — disse o velho macaco, e rumou com seus
longos braços em direção a uma palmeira.
A família, porém, seguiu-o e pendurou-se no seu rabo. Todos lhe diziam
guinchando, que experimentasse o maravilhoso tratamento balneário, e lhe
asseguravam que os marabus eram verdadeiras capacidades.
— "É bem perto daqui," - disse-lhe o Conselheiro Médico;-"um balneário distinto
e muito confortável. A responsável é minha conhecida, uma senhora valente e
de muita confiança; tem mais de cem anos. Encontrará ali todas as
comodidades, e as instalações seguem padrões europeus."
Ambos os Conselheiros Médicos, de braços dados com o macaco o levaram ao
balneário. Movimentavam-se com imponência sobre as suas pernas compridas,
gesticulando com as asas, e falando sem parar sobre o rheumatismus
musculorum. Toda a turma de macacos os seguia guinchando e cheia de
expectativa.
Chegaram logo. Era um balneário distintíssimo na margem do Nilo, realmente
no padrão europeu e cheio de lama. Na beira do rio, sobre as árvores,
papagaios — uns mais coloridos que os outros — conversavam sobre as últimas
notícias. A praia estava livre e justamente naquele momento um rinoceronte
alisava-a pisoteando.
— "E este, com os dois chifres no nariz, é o recepcionista? " - perguntou o velho
macaco preocupado.
— "Não, este é o chefe do balneário," — explicaram- lhe os marabus. - "Ele
soca o chão para dar-lhe melhor aparência. Em geral o ambiente aqui é total-
mente europeu."
O rinoceronte pisoteava pressuroso, focinhava por toda parte e enfiava seu
chifre em coisas que não lhe diziam respeito. Quando encontrava alguma coisa
totalmente inútil, grunhia de alegria.
— "O chefe tem de ser assim? " - perguntou o velho macaco.
— "Os exames clínicos sobre o comportamento das autoridades ainda não
foram concluídos," — disse-lhe o Conselheiro Médico Privado.
— "Aquele senhor grande e gordo é o responsável- mor," — disse-lhe o
Conselheiro Médico, mostrando com sua asa um elefante que abanava a
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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comprida tromba para lá e para cá. - "Depois do seu banho ele lhe aplicará uma
ducha. É exclusivamente por gentileza que ele o faz; é um tratamento
terapêutico de grande valor. Nos intervalos, ele toca trombeta, substituindo
assim a orquestra balneária. Ainda não possuímos uma. Estamos, porém, em
negociações com várias hienas que deverão cantar regularmente, todas as
noites, canções do deserto. Infelizmente exigem pelo seu trabalho uma vítima
para devorar, e enquanto não temos ainda muitos clientes, isto se torna caro
demais. Estes macaquinhos aqui são mascates, está vendo? ê um verdadeiro
balneário moderno."
Os três macaquinhos dançavam com afã em redor do velho macaco.
— "Coçar o couro, pentear, pegar pulgas, caçar piolhos — preço: uma banana.
Se fizer assinatura, mais barato!" — gritou um deles.
— "Qual o que!" resmungou o velho macaco — "meu princípio é: pegar piolhos
só em casa. Daria muito por estar na minha árvore!"
Os outros dois macaquinhos aproximaram-se.
— "Deseja folhas secas para fricções? Uma tâmara cada; boas folhas secas
para fricções."
— "Cascas de noz de coco, anéis de caniço, bonitos sou verti rs!"
— "Vou me lembrar deste balneário até morrer, sem nenhum dossouvenirsV
— “Eis o local do banho," — disse o Conselheiro Médico Privado. — “Basta o
senhor enfiar as pernas com rheumatismus musculorum, caso não lhe agrade
mergulhar inteiramente. As pernas estando dentro, o sangue desce."
— "E as pulgas sobem," — disse-lhe o velho macaco.
Do fundo do rio fez-se ouvir um tremendo roncar, grunhir e gargarejar, e à tona
apareceu um enorme hipopótamo.
— "ê a responsável," — exclamou o Conselheiro Médico satisfeito, e acenou
com a garra. — "Este paciente deseja tomar um banho de lama balnea limosa;
ele sofre de rheumatismus musculorum."
— "Esta é a responsável? " — gritou o velho macaco.
— "Quero ir para casa, quero subir à minha árvore!"
A responsável sorriu com uma boca de vários metros, e principiou a remexer a
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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lama com muita maestria, pois era uma criatura de muita experiência e jeito.
— "Quero ir para casa" — gritou o velho macaco , afastando as magras pernas
de pau dos Conselheiros Médicos.
— "Entre logo!" — comandou o rinoceronte — "deixe de encrencas; há mais
gente ainda que quer tomar banho; também eu quero entrar."
— "Pois não, pois não, o senhor primeiro, o senhor primeiro," — disse-lhe o
velho macaco, mas já sentiu o chifre da autoridade nas costas, e caiu na água
de cabeça para baixo, quase nos braços da responsável.
Num segundo estava de novo fora d'água, verde e irreconhecível de tanto lodo.
No mesmo momento o responsável-mor esguichou água com sua tromba, e o
velho macaco teve a impressão de que o rheumatismus musculorum se
precipitou das pernas para as mãos, das mãos para a cabeça, da cabeça para o
rabo e do rabo para fora. O elefante era um mestre na ducha. Os marabus
cacarejavam com aprovação; a responsável sorria gentilmente, e a família do
macaco exultava de alegria.
Nisto apareceu ao lado da responsável um crocodilo verde, piscando os olhos.
— "Deseja uma massagem? " — perguntou,mostrando suas patas à guisa de
propaganda — "deseja uma massagem? "
O velho macaco, com um inacreditável e grande salto, pulou da margem do rio
para um lugar mais seguro.
— "Colega, o que o senhor acha," — perguntou o Conselheiro Médico Privado
— "será um massagista experimentado? "
— "Parece-me antes que é um massagista que experimentou outros," - disse-
lhe o Conselheiro Médico.
— "Os exames sobre as vantagens da massagem com patas de crocodilo não
foram ainda concluídos,"
— disse-lhe o Conselheiro Médico Privado.
— "Conheço esse massagista," - disse-lhe o Conselheiro Médico; — "uma vez
ele fez massagem num cliente que sofria também de rheumatismus
musculorum. O reumatismo sumiu durante a massagem, mas o cliente também.
Desde aí, colega, não pude mais recomendar o massagista."
— "Compreensível, muito compreensível, colega,"
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— disse-lhe o Conselheiro Médico Privado. — "Existem sempre médicos que
ainda defendem o ponto de vista de que a eliminação da doença não está ligada
obrigatoriamente à eliminação simultânea do paciente. Porém, os exames
clínicos também sobre isso não foram concluídos."
Ambos procuraram o velho macaco. Este, no entanto, havia sumido, e toda a
família de macacos com ele. Não aguentaram o aspecto do massagista.
No díà seguinte os dois Conselheiros Médicos puseram- se a caminho para fazer
uma visita de praxe ao velho macaco. Não chegaram longe, todavia. O velho
macaco estava sentado numa árvore e jogava cocos. Um dos cocos atingiu o
Conselheiro Médico na cabeça, formando um galo que inchou
consideravelmente.
— "Colega, preciso refrescar o galo," — disse o Conselheiro Médico. — "Tenho
também a leve impressão de que faríamos melhor se desistíssemos da visita
planejada."
— "Compreensível, muito compreensível, colega,"
— disse-lhe o Conselheiro Médico Privado, e ambos procuraram um riacho.
Ali o Conselheiro Médico refrescou o seu galo, e o Conselheiro Médico Privado
anotou, cuidadosamente,o resultado do tratamento pela água no seu livro de
doentes, confeccionado com folhas de palmeiras.
Anotou com exatidão científica:
"Cliente: um macaco graduado. Rheumatismus mus- culorum nas pernas.
Método de auto-sugestão e psicanálise sem resultado. Tratamento com águas,
banho de lodo, balnea limosa. O cliente sarou, porém, joga cocos, jactatio nucis,
causando galo na cabeça do Conselheiro Médico assistente, tumor capitis. Os
exames clínicos para verificar se jactatio nucis é conseqüência de balnea limosa
ou decorrência do rheumatismus musculorum ainda não foram concluídos."
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Heroísmo
Dois galos brigavam na frente do galinheiro da fazenda. Atrás deles, o parque
sonhava num silêncio de verão, através dos sussurros de velhas árvores
seculares, cheias de passarinhos que cantavam suavemente. Os galos, porém,
não percebiam nada da paz das velhas copas e nada do sagrado silêncio do
verão ensolarado. Enfrentavam-se, encaravam-se e brigavam, lá, no
comedouro, no lugar de encontro da maioria dos galos briguentos. Costuma-se
chamar a isso: "razoes econômicas", mas na realidade elas são bem outras.
— "Este grão é meu!" — disse um dos galos.
— "Não, ele é meu!" - disse o outro.
No terreiro havia grãos em abundância, o suficiente para saciar muitos galos.
Mas tinha de ser justamente aquele grão, somente aquele, o único.
— "Eu vi o grão primeiro!" — disse um galo, estufando-se zangado.
— "Não, fui eu que reparei primeiro!"
— "Porém, ele foi-me destinado!" — disse o primeiro.
— "Não, foi escolhido para mim!" — disse o outro.
Ambos atacaram-se mutuamente, ergueram-se desajeitadamente um pouco no
ar, bateram agitados as asas e abriram com raiva, desmesuradamente, os
bicos. Os galos chamam a isso heroísmo, e é muito gozado de se ver.
— "O grão me pertence" - gritou um galo, - "pois sou descendente de uma raça
melhor."
— "Não, eu sou de raça melhor!" — gritou o outro.
— "Sou duma família mais antiga!" — cacarejou o primeiro.
— "Não, eu!" - cacarejou o outro.
— "Eu saí de um ovo vermelho!"
— "E eu de um branco!"
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— "Vermelho é mais distinto!"
— "Não, branco é mais distinto!"
— "Não, eu!"
— "Razão tem quem é mais forte!" — grasnavam ambos.
Agitavam-se com fúria, dançavam esquisito, meio por terra, meio no ar, com
saltos muito tolos e grotescos; batiam com os esporões e martelavam um no
outro com ódio. Chamam a isso guerra — e julgam-na necessária por causa de
um grão, ou mesmo por nada, o que é tolice, na realidade, mas como se pode
explicar isto a um galo?
— "Não briguem!" — disse-lhes uma velha galinha, que passeava com seus
pintinhos amarelos no parque, sob as copas das velhas árvores, no silêncio do
verão ensolarado.
Os galos atacaram-se de novo, com fúria; penas arrancadas voavam em todas
as direções, e o grão, que como se costuma dizer, era a "causa econômica"
— já há tempo jazia enterrado na lama.
Em cima, no espaço azul, um gavião desenhava seus círculos. Devagar descia
sempre mais. Depois, atirou- se de repente sobre o galinheiro. Todas as
galináceas fugiram céleres para dentro de casa, os dois galos briguentos na
frente, pois o mais forte está sempre com a razão.
Só a choca não conseguiu alcançar mais a casa; seuspintinhos não podiam
fazer tão depressa o trajeto do longo caminho do parque, com suas patinhas fra-
cas e desajeitadas. Por isso ela ficou, chamou assustada seus filhotes e
esperou o temível inimigo com o coração aos saltos. Os pássaros canoros
calaram-se nas árvores; havia um terrível silêncio deprimente. Só se ouviam as
batidas do coração da pobre galinha.
O gavião aproximou-se da terra, pairando, e deslizou com o farfalhar medonho e
assustador de suas pesadas asas, em direção da galinha e de seus pintinhos.
Um deles ele apanharia, rasgá-lo-ia com seu horrível bico, e levaria depois
consigo para longe dos prados verdes da vida, longe do coração materno, bem
alto, pelo azul celeste e para a morte — uma dessas pequenas criaturas piantes
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que ela chocou, criou e guiou, um de seus filhos!
A choca soltou um grito dolente de tremenda queixa. Depois aconteceu algo
inesperado, espantoso, algo que a orgulhosa ave de rapina ainda nunca
presenciara. A galinha saltou para ele, pisou-o e mordeu-o com tanta fúria, tanta
coragem e desespero, que ele foi obrigado a se defender.
A luta foi desigual. O gavião sangrava, mas a galinha sangrava ainda mais. A
luta não podia demorar muito. De repente o gavião se assustou, ficou indeciso,
subiu no ar e, nervoso, começou a esvoaçar.
Da casa vinham correndo as empregadas que escutaram o grito desesperado
da galinha e enxotaram o gavião.
A ave de rapina,desiludida e zangada,subia sempre mais e mais, até que, pela
primeira vez na vida, vencida e castigada, sumiu no ar transparente do verão
nórdico, qual leve silhueta sobre um vidro azulado.
A galinha estava cheia de sangue, mas os ferimentos não foram graves. E em
baixo das asas feridas da mãe, os pequenos, amarelos e desamparados
pintinhos voltaram para casa. Não faltou nenhum deles.
— — —
Esta é uma estória verdadeira. Aconteceu há muitos anos na velha quinta de
Paltemal, terra da minha infância. A galinha nunca foi sacrificada; recebeu a
ração até sua morte natural e todos a respeitavam muito. Eu mesmo a conheci
em garoto e tirava o chapéu ao en- contrá-la, certamente com muito mais razão
e direito do que o fazia para a maioria das pessoas.
Desde aí nunca me impressionei com briga de galos. Galos briguentos sempre
existiram e existem, ainda hoje, mais do que o suficiente. Alguns deles ganham
até nomes tonitruantes na história mundial, como nos é ensinada. Não são
heróis.
Os verdadeiros heróis, porém, — e existem muitos que a história mundial, como
nos é ensinada, desconhece — esses receberam a galinha nas suas fileiras
imorredouras.
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KRAKELIUS KREQUEQUEQUE
O céu matinal derramava seu anil sobre as campinas da India, mergulhando
todos os milagres da existência na luz do novo dia, sob a benção de Brahma.
"Muito sábio e preclaro é este mundo," - disse o elefante Nalagiri Trapelhudo,
acordando. E, levantando-se sobre suas pernas-colunas, quedou-se pensativo
nessa posição, a larga cabeça virada para o oriente, pois alcançara grande
experiência, e sua alma era clara e calma como o céu matinal da India.
Ao seu redor, porém, não estava nada calmo. Nos galhos das árvores agitava-
se uma grande multidão de cabeças, pernas, mãos e rabos. Uma reunião de
macacos elegia o seu chefe. Sempre que macacos se reúnem, escolhem o seu
chefe, do contrário não e- xistiria legítima palhaçada, o que os macacos querem
em toda parte, na India e no resto do mundo, em toda parte onde há
verdadeiros macacos — e os há bastante. Para chefe sempre se escolhe um de
focinho maior e mandíbulas mais fortes, e eleições desse gênero, como todas
as eleições no mundo inteiro onde há macacos, são um acontecimento ligado a
efeitos secundários, altamente agitados e inesperados. Primeiro, desencadeia-
se uma terrível algazarra. Assim ninguém mais entende o que o outro está a
dizer — o que nas eleições não é necessário. Depois, eles começam a se
morder mutuamente, a bater-se, enrolar-se em novelos, até que um novelo após
outro se desenrola, e do último, que conseguiu se livrar de todos os outros,
aparece o chefe, que é eleito desta maneira.
Assim aconteceu também desta vez, e o macaco-chefe do novo dia chamava-se
Krakelius Krequequeque. Ele assentou-se no mais alto galho da árvore e arrega-
nhou os dentes, o que lhe formou muitas rugas no nariz, provocando assim uma
expressão pouco amável. Por isso ele era o macaco-chefe.
"Muitas criaturas desta terra são tão barulhentas!"
— disse o elefante Nalagiri Trapelhudo. Dobrou com dificuldade e resignação as
grandes orelhas e mudou a posição de suas pernas-colunas para refletir, a larga
cabeça virada para o oriente.
— "Doravante me incumbo do governo" — disse Krakelius Krequequeque,
arreganhando de novo os dentes. — "Um governo consiste em impor restrições,
em primeiro lugar, depois..."
— "Não queremos restrições! Queremos liberdade! "
— vociferaram os macacos.
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— "Calem a boca," — disse-lhes Krakelius Krequequeque — "não existe
liberdade para macacos, nem para um legítimo governo de macacos. Tudo tem
de ser restrito. Vocês devem restringir-se e eu já estou restringido porque estou
restringido como autoridade. Por isso sou o macaco-chefe!"
Grande algazarra.
— "Antes de mais nada, os filhotes macacos não têm necessidade de ficar
sempre deitados e ser acariciados nos braços de suas mães. Isto amimalha a
geração vindoura; nós necessitamos de macacos rijos e corajosos, como eu."
— "Que é que você sabe sobre a criação de filhos? "
— chacotearam as macacas mães. — "Não permitiremos que nos tire nossos
doces pequerruchos."
— "Sei muita coisa sobre educação infantil porque sou um governo. Sei um
pouco de cada coisa porque o sei como autoridade. Por isso sou o macaco-
chefe!"
— "Sabe um pouco de cada coisa e não sabe nada."
— disse-lhe uma jovem macaca mãe, arreganhando os dentes.
— "Em seguida" — disse Krakelius Krequequeque
— "a mocidade não deve se coçar tanto em público.
Não é bonito. Melhor será fazer exercícios com as pernas; isso cria a juventude
que precisamos. Nosso futuro está nas pernas.
Grande algazarra.
— "Nós nos cocamos quando sentimos coceira,"
— gritaram as mocinhas e os mocinhos —"você também se coça."
— "Isso é diferente;" — disse-lhes Krakelius Krequequeque — "quando sinto
coceiras, sinto-as como autoridade, e quando me coço, coço-me como auto-
ridade. Por isso sou o macaco-chefe!"
Nesse ínterim sentiu coceira e se coçou como autoridade.
— "Outra coisa: todos os macacos devem apanhar frutos e não vagabundear.
Essas serão nossas provisões para os tempos das vacas magras e essa é a
disposição do governo."
— "Queremos comer e não guardar provisões!"
— gritaram os macacos.
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— "Isso é o que faltava!" — disse-lhes Krakelius Krequequeque. — "Viver
sempre comendo sem trabalhar o governo não permite. Vocês têm de colher e o
que colherem, trazer para mim. Um verdadeiro governo de macacos sempre
guarda todos os frutos que os outros colhem."
— "Para devorá-los!" — vociferaram os macacos.
— "Certamente," — gritou Krakelius — "e comendo-os todos sozinho, como-os
como autoridade. Por isso sou o macaco-chefe!"
Um guinchar sempre mais forte de todos os macacos e macacas. Não se
entendia mais nenhuma palavra sequer.
Repentinamente cessou todo o barulho.
Da mata cerrada apareceu a tigreza, num elegante vestido de pele listrada, com
expressão zangadíssima na cara. Todos se afastaram rapidamente para as al-
turas, pois em gente que não é tigre este animal causa facilmente um mal-estar.
— "Que é que significa esse barulho infernal? " — bra- miu a senhora
Miesimissa Patamole. — "Meus filhi- nhos, os pequenos Patamole, não
conseguem dormir por causa desse estúpido cacarejar."
— "Precisamos cacarejar tanto porque temos um governo e um macaco-chefe,"
— disse-lhe um macaco pequenino, uma criaturinha totalmente inocente.
— "Onde está o seu macaco-chefe? " — perguntou-lhe a senhora Patamole,
batendo perigosamente com a pata num tronco.
— "Macaco-chefc, macaco-chefe!" — gritaram os macacos assustados e
correram desordenadamente a procurá-lo. — "O macaco-chefe tem de nos
defender, tem de falar com a senhora Patamole. Onde está o macaco-chefe? "
Mas o macaco-chefe sumira. Finalmente encontraram uma solitária pata traseira
saindo de um buraco num tronco de árvore. Puxando essa pata de autoridade,
tiraram Krakelius do buraco e colocaram-no sobre seus membros cambaleantes.
Ele esforçava-se muito para voltar ao buraco, debatendo-se veementemente
com as mãos e os pés, os outros macacos, porém, seguravam-no.
— "É você o macaco-chefe? " — perguntou-lhe a senhora Miesimissa Patamole,
lambendo o focinho de maneira desagradável.
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Krakelius Krequequeque estendeu uma perna e um braço em juramento.
— "Nunca fui um macaco-chefe, juro, nunca!" Como poderia ter ficado macaco-
chefe? Sou tão fraco e doentio. Minha carne não tem saúde e sou muito magro.
Nem o meu pêlo presta, pois estou cheio de traça. Não, não compensa mesmo
a senhora se incomodar por minha causa. A senhora viu como me tiraram do
buraco em que caí de fraqueza, de pura fraqueza!"
— "Você não acabou de falar sobre educação de crianças? Não disse agora
mesmo que é firme e corajoso? " — perguntou-lhe a senhora Miesimissa
Patamole.
— "Como poderia ter dito isso se não entendo nada de educação? Nunca
entendi nada disso," — disse- lhe Krakelius Krequequeque bamboleando-se
todo.
— "E eu corajoso? Meu Deus, meu bom Deus! "
— choramingou comoventemente o macaco.
— "Você não falou agora mesmo da coceira da juventude? " perguntou-lhe
Miesimissa Patamole, e rosnou assustadoramente.
Krakelius Krequequeque movimentou nervosamente a mão e o pé em
juramento.
— "Nunca, nunca!" - assegurou - "fico feliz quando não sinto coceira."
— "Porém você estava querendo guardar os frutos que eles colhessem," —
disse-lhe Miesimissa Patamole.
— "Então você é o macaco-chefe!"
A mão e o pé em juramento moveram-se convulsivamente.
— "Juro pelo templo de Benares, pelo couro dos meus antepassados, juro com
as mãose os pés, nunca falei semelhantes coisas! Como poderia ter dito isso?
Ai de mim, pobre criatura indefesa! Não creia em semelhantes coisas, minha
cara senhora Patamole!"
— "Não sou sua cara senhora Patamole, seu macaco bobo. Vou tirar-lhe as
pulgas do pêlo!"
A senhora Miesimissa Patamole era uma dama. Custa- me dizê-lo, mas ela
usou realmente essa expressão.
Das profundezas do jangal ouviu-se então um miado suave e queixoso, de
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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várias vozes.
- "Oh, céus!" - disse Miesimissa Patamole - "meus doces filhotes, os pequenos
Patamole, que vocês acordaram, estão me chamando. Estão com fome. Preciso
voltar para casa. Mandarei, porém, meu marido assim que ele voltar da caça.
Ele investigará todo esse assunto. Vocês vão ver, cambada de macacos!"
Miesimissa Patamole sumiu na selva e logo os Patamole estavam
aconchegados entre as patas maternas, mamando de olhos cerrados, e
ronronando alto e delicados.
Os macacos resolveram, é claro, não esperar a chegada do senhor Patamole.
No momento em que a senhora Miesimissa Patamole sumiu, iniciou-se um
debandar desordenado, um emaranhado confuso de cabeças, braços, pernas e
rabos. À frente de todos fugia Krakelius Krequequeque, pois ele fugia como
autoridade. Por isso era o macaco-chefe!
Tudo silenciou nos galhos das árvores. O céu matinal derramava seu anil sobre
as campinas da India, mergulhando todos os milagres da existência na luz do
novo dia, sob a benção de Brahma.
"Muito sábio e preclaro é este mundo," — disse o elefante Nalagiri Trapelhudo, e
mudou a posição de suas pernas-colunas para refletir, a larga cabeça virada
para o oriente. — "Inúmeras criaturas, porém, são mui tolas e mui barulhentas.
Especialmente tola e barulhenta é a macacada desta terra, e os mais tolos e
mais barulhentos são os macacos-chefes."
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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Glória Post Mortem
Os funerais do célebre anatomista e diretor do Instituto Fisiológico da antiga
Universidade decorreram em forma de comovente homenagem dos círculos
acadêmicos aos méritos do grande finado. O catafalco, ornamentado com coroas
de flores e fitas de seda, mergulhado em flores e folhas de louro, estava
emoldurado por círios ardentes, e, na sua frente, sobre uma almofada de veludo,
tinham colocado numerosas insígnias que o eminente cientista havia usado, com
justificável orgulho, durante sua vida. Dos dois lados do catafalco, os
representantes das corporações montavam guarda de espada em riste; ao lado
da família encontrava-se o senado da Universidade paramentado, o corpo
docente em peso, e os representantes do governo. O sacerdote acabava de
pronunciar seu discurso, que penetrou profundamente em todos os corações.
"Foi um homem exemplar e um cientista exemplar," assim terminava ele, "foi um
por ser também o outro, porque ser um grande pesquisador significa ser também
um grande homem. Estamos ao pé do catafalco de um homem excepcional, com
a alma cheia de tristeza porque ele nos foi tomado. Porém, não nos devemos
entristecer nem lamuriar, pois este Grande não está morto; continua a viver, e
está agora perante o trono do Todo-Poderoso, eriVolto no esplendor de toda sua
vida laboriosa, como diz a escritura: "Eles descansam do seu trabalho e as suas
obras os acompanham!"
Todos ficaram em silêncio, e ninguém reparou que o sacerdote, aparentemente,
havia se esquecido de um pormenor insignificante, isto é, que o Grande Morto,
que devia encontrar-se nesse momento perante o trono do Todo-Poderoso,
defendeu durante sua vida inteira a convicção da não existência de Deus. Essas
minúcias, porém, são geralmente esquecidas nos discursos fúnebres.
Em seguida, levantou-se o Reitor da Universidade, que ostentava uma corrente
de ouro no pescoço, e pronunciou, com voz cheia de emoção, cálidas palavras
de despedida para o seu célebre colega.
"Ele foi sempre um ornamento da nossa velha alma mater e um ornamento da
ciência, à qual consagrou toda sua existência; um exemplo para nós e para
todos que virão depois, porque seu nome brilhará eternamente nas letras
douradas do cabedal da cultura humana. Neste momento profundo e festivo bem
pouco posso falar da grandeza do seu espírito, apenas, apontar como reunia
provas e mais provas baseando- se em incansáveis experiências com animais.
São imprevisíveis as grandiosas perspectivas que se abriram para a humanidade
sofredora e para a ciência por meio de fatos totalmente novos na medicina.
Resta-nos imitar o grande pesquisador, que nos indicou tais caminhos, e nós,
assim como a juventude acadêmica que o admirava, para a qual ele foi um guia
à verdadeira dignidade humana, queremos jurar, ao pé de suas cinzas, continuar
e ampliar sua obra, para o bem da ciência européia e glória da nossa amada
pátria. Como podemos felizmente constatar, não faltaram ricas distinções ao
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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nosso Grande Morto, e mesmo honrosas demonstrações de benevolência
chegaram-lhe dos mais altos poderes.'-Todos os o- Ihos dirigiram-se com
admiração para a almofada de veludo com as condecorações que pesavam
vários quilos. — "Ainda poucos dias antes de sua morte, recebera com alegria a
nomeação de Conselheiro Privado Efetivo, com o título Excelência, homenagem
que fez vibrar com ele nossa Academia inteira. Porém, por maior que tenha sido
sua fama durante a vida, maior ainda ela será após a morte, para toda a eter-
nidade, e nós, que o choramos, fazemos votos que descanse agora do seu
trabalho, passeando nos Campos Elíseos na companhia dos grandes espíritos
de todos os tempos, aos quais igualou-se por suas obras, e assim, também eu
quero concluir com as palavras do conferencista eclesiástico que me precedeu:
"e as suas obras os acompanham!"
Todos estavam cheios de reverência, em parte por causa da ciência européia,
em parte por causa do título Excelência. O Magnífico Reitor não se lembrou
porém de uma insignificância, isto é, de a ciência européia considerar os
Campos Elíseos uma fábula, e afirmar terem se dissolvido em substâncias
químicas, os grandes espíritos do passado. Isto porém são insignificâncias, e a
instrução que está em voga atualmente permite usar palavras gregas para as
coisas que mais nada representam. Se quiséssemos pensar um pouco - meu
Deus, aonde chegaríamos na nossa atual civilização e na ciência européia?
O representante do governo declarou haver sido o falecido o sustentáculo do
regime moderno, e o representante da cidade disse haver a Prefeitura resolvido
unanimemente conceder o nome do Grande Morto a uma das suas ruas. O coro
da igreja cantou um coral, uma canção antiga de tempo remoto; homens
diferentes, com princípios diferentes criaram essa canção que não se
harmonizava com as tonitru- antes palavras de hoje. Muito suave e irreal, como
de vozes do além, espalhava-se o canto pelo espaço: "como será, como será,
quando entrarmos em Salém, a cidade das ruas douradas? ..."
Nisso o caixão baixou.
— — —
— — —
O morto estava o tempo todo assistindo aos funerais. Parecia-lhe não haver
mudado muita coisa. Recordava apenas ter vislumbrado um brilho muito claro,
depois voltou tudo a ser como antes; mal se dava conta de ter morrido. Sentia-
se apenas mais leve, nenhum peso, nenhuma matéria densa. Ficou perplexo.
Então existe uma vida após a morte? A antiga ciência estava certa e a nova,
errada? Porém, assim era mais belo e proporcionava-lhe muita calma, embora
houvesse algo de atroz em não poder falar mais com ninguém, e em nenhum
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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dos seus parentes e colegas perceberem quão próximo deles se encontrava.
Não obstante, consolava-o muito ouvir como o homenageavam e com quanta
certeza falavam do trono do Todo- Poderoso e dos Campos Elísios. Os títulos e
as condecorações faziam-lhe falta, não lhe era possível tocá- los. Todavia não
continuava ele sendo sempre ainda o grande cientista, o célebre pesquisador?
Não diziam: "e as suas obras os acompanham? ..."
Ficou só. Os contornos do espaço escureceram e diluiram-se no nada. Um
grande silêncio o envolveu; apenas bem de longe, quase imperceptíveis,
chegavam os sons da canção: "quando entrarmos em Salem, a cidade das ruas
douradas."
Isto ia acontecer agora, talvez já. Sentiu uma grande tensão; e nesta tensão
havia algo de medo, de inexplicável, uma grande interrogação que o enchia por
completo. Também ficou tão escuro que não se via mais nada.
De repente clareou e um anjo surgiu à sua frente. Então isto também existia?
Neste caso existia também um Deus, e os inúmeros mortos que continuavam
vivos, e a Jerusalém espiritual. Como era belo tudo isso! Mas o anjo parecia
sério e muito triste.
— "Para onde quer ir? " — perguntou-lhe ele.
— "Ao paraíso."
— "Venha," - disse-lhe o anjo.
Um grande portal escuro abriu-se sem ruído e eles entraram num recinto
ofuscantemente iluminado. As paredes tinham cor de sangue e no chão acocora-
vam-se inúmeros bichos mutilados que gemiam. Estendendo seus membros
ensangüentados ao morto, encaravam-no com olhos ofuscados e apagados.
Suas fileiras alongavam-se até se perderem de vista.
— "Eis aqui as cadelas que você martirizou para tirar os filhotes. Nunca teve
filhos que amou? Quando seus filhos morrerem e procurarem o pai no paraíso,
hão de encontrá-lo aqui. é o seu paraíso, o paraíso que você criou. Aqui estão os
gatos, cujos ouvidos destruiu com tremendos suplícios. Deus deu- lhes um
ouvido tão sensível que é uma maravilha da criação. Você não ouvirá nada mais
a não ser isto. Aqui estão os macacos e os coelhos que você cegou. Deus deu-
lhes a vista para poderem ver o sol. Você não via também o sol durante toda sua
vida? Devo levá-lo adiante? é uma fila muito, muito longa."
— "É horrível," — disse-lhe o morto.
— "É sim," — disse-lhe o anjo.
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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— "Todos estes bichos continuam vivendo? "
— "Todos estes bichos vivem ao lado de Deus," — disse- lhe o anjo - "você não
pode chegar até lá, pois eles estão lá acusando-o. Não o deixarão passar. O
que está vendo aqui são suas imagens de outrora refletidas; são suas obras, e
estarão com você. Sofrerá no próprio corpo os tormentos deles até tornar à terra
para expiar. É um caminho longo e triste. Mas não serão seus únicos
companheiros, terá ainda um outro: olhe quem está à sua frente, no meio de
todas as suas obras!"
O morto olhou para cima e viu um repugnante fantasma com carranca humana.
Trajava roupa cheia de sujeira e sangue, e segurava uma faca numa das mãos.
— "Isto é mais horrendo do que qualquer outra coisa que jamais vi na minha
vida," — disse-lhe o morto, possuído de pavor como nunca tinha experimentado.
— "Quem é este espantalho? Terei de olhar sempre para ele? "
— "Isto é você," — disse-lhe o anjo.
— "E a ciência? " — perguntou-lhe o morto assustado.
— "Não lhe prestei serviços? Não pertenço aos grandes espíritos, embora
tenha cometido esses atos? "
— "Os grandes espíritos eram irmãos dos bichos, não seus carrascos. Eles
iriam virar-lhe as costas, caso pudesse chegar até lá. Porém você nem pode se
aproximar deles. Você foi uma nulidade e não um grande espírito. Você tinha
consciência de ser uma nulidade, de nunca poder descobrir nada, e, por isso, de
pura vaidade, cometia todas essas monstruosidades, na esperança de decifrar
por acaso alguma coisa dos mistérios da natureza, torturando-a. Mais tarde,
acres- centou-se-lhe a volúpia de matar, a loucura de dominar os seres
inferiores. Está percebendo isso tudo? Pode vê-lo claramente no seu reflexo,
que representa fielmente todos os seus traços. Fique com ele, lave sua roupa
imunda e ensangüentada até ela se tornar branca como a neve! Poderá durar
mil anos, ou talvez mais. Fique com ele, pois não lhe pode escapar. é seu
companheiro e estas criaturas de Deus, mutiladas, são o seu Paraíso.
— "Tudo isso é verdade; porém, pensando e agindo dessa forma, não
estimulava eu o conhecimento científico? Não terei a proteção da ciência? "
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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— "Conhecimento através do crime? " — perguntou- lhe o anjo. —
"Conhecimentos a ciência tinha outrora quando era um templo. Vou mostrar-lhe
o que a vossa ciência representa hoje."
Uma feia luz amarela piscou e o morto viu um bobo sentado, a construir casas
de baralho com as mãos ensangüentadas; uma rajada de vento derrubava-as,
mas o bobo continuava sempre a construir.
— “Isto é tudo? " — perguntou-lhe o morto, agarrando-se às vestes do anjo em
busca de proteção.
— "Isto é tudo. A vossa ciência não ensina também que não existe Deus, nem
remissão, nem vida após a morte? Devo ir-me agora, fique no seu Paraíso!"
O morto ficou no seu Paraíso e teve-o perante seus olhos em todas as horas,
todos os dias, todos os anos. Isso não pode ser medido pelo tempo, pelo menos
não cientificamente, e esta forma é a única que pesa, não é? De muito longe
chegavam os sons de uma canção antiga de um tempo remoto, quase
inaudíveis, e cada vez mais fracos: "Como será quando entrarmos em Salém, a
cidade das ruas* dou radas? ..."
Talvez esta canção signifique alguma coisa, pois todos nós temos de morrer um
dia. Quem, porém, pensa nisso hoje, na época da esclarecida ciência européia?
Os jornais publicaram longas colunas necrológicas sobre o célebre, grande
pesquisador e cientista, sua Excelência o Conselheiro Privado Efetivo, cuja
morte representa uma perda insubstituível para a ciência, cujo nome, porém,
permanecerá por todos os tempos, sendo uma página gloriosa na história da
humanidade,um símbolo magnífico da nossa cultura avançada e um monu-
mento para todas as gerações vindouras, como o foram os melhores antes dele.
Glória a esses Grandes Mortos!
Sim, eles descansam do seu trabalho, e as suas obras os acompanham.
Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber
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A Terra da Promissâo
O caminho da selva
Não sei dizer quando aconteceu a estória que passo a narrar. Talvez há cem
anos, talvez ontem. Talvez aconteça hoje ou amanhã,ou depois de centenas de
anos e nem cheguemos a ver. Pois já faz muito tempo que a terra se livrou do
sangue, da culpa e do engano, mas passará muito tempo até que se purifique, é
difícil dizer quando as coisas acontecem, porque o tempo é ilusão e o que
vemos aqui não é outra coisa que um molde de mil facetas. Os fatos
verdadeiros, porém, acham-se atrás dos objetos palpáveis, no mundo espiritual,
e esta estória também se encontra gravada no mundo espiritual, onde nascem e
se transformam todas as formas, e onde respira, imensurável, a eternidade. O
que passo a narrar, contudo, creio ter se repetido muitas vezes nos tempos idos;
acontece ainda hoje e terá ainda de se repetir muitas vezes até a remissão total
da terra. Pois é longo esse caminho, e nenhuma pobre sabedoria humana pode
dizer algo sobre a sua duração. Sabemos apenas que é muito penoso e
cansativo para os poucos que por ele hoje caminham. Eis porque esta estória
aparecerá sempre com outras roupagens, de acordo com a época em que se
desenrole, porque, de outra forma, a pobre sabedoria humana não poderá
compreendê-la. Sempre estamos vendo a aparência das coisas, no entanto,
precisamos nos esforçar para entender a essência das coisas por meio da sua
aparência.
A estória que pretendo narrar decorreu na selva, e sua personagem principal
usava o hábito dos Irmãos de São Francisco de Assis. Tem de ser assim, pois é
uma estória de união fraternal, e nela vive o espírito do Santo de Alverne. Não é
necessário, porém, usar exteriormente aquele hábito para andar pelo caminho
que aquele irmão seguiu, nem precisa ser obrigatoriamente uma selva onde se
passa ou se passará esse fato. Poderá ser uma cidade com modernas fábricas
e máquinas; poderá ser uma aldeia com roças e campinas, ou bem, uma
estrada empoeirada. Tudo isto é indiferente e é apenas uma roupagem, como a
vida de hoje não é mais que uma selva para quem segue pelo caminho de
Francisco de Assis. Devemos compreender que todos nós vivemos sobre um
limiar, e que as verdadeiras estórias da e'xistência se processam no mundo
espiritual, atrás das coisas e daquilo que nós chamamos acontecimentos. Estes,
porém, talvez sejam apenas nossos sonhos, e porque sônhamos não
percebemos o que de fato é real. Talvez seja difícil compreender o que estou
dizendo, mas devo dizê-lo porque é verdadeiro.
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Irmãos entre as espécies

  • 1. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 1 - SUMARIO:
  • 2. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 2 - CIP - Brasil. Catalogação-na-Fonte Câmara Brasileira do Livro, SP Kyber, Manfred, 1880-1933 K99t Também eles são nossos irmãos? / Manfred Kyber; (tradução Tatiana Braunwieser). .. São Paulo : ECÉ, 1981. ISBN 85-85009- 05-5 1. Animais - Lendas e estórias 2. Contos alemães I. Título. 81-1236 CDD-833.91 Indices para catálogo sistemático: 1. Contos : Século 20 : Literatura alemã 833.91 2. Século 20 : Contos : Literatura alemã 833.91
  • 3. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 3 - Manfred Kyber TAMBÉM ELES SÃO NOSSOS IRMÃOS? eoe editora SUMARIO:
  • 4. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 4 - Título Original: GESAMMELTE TIERGESCHICHTEN Tradução: TATIANA BRAUNWIESER Ilustrações: SANTINO PARPINELLI Direitos Autorais gentilmente cedidos por Rowohlt Verlag GmbH, Reinbek hei Hamburg Contos Extraidos de "DAS MANFRED KYBER BUCH". COPYRIGHT: HESSE UND BECKER VERLAG, München.
  • 5. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 5 - SUMARIO: TAMBÉM ELES SÃO NOSSOS IRMÃOS?.............................................3 O Crocodilo Patenteado.....................................................................8 O C. d. M..........................................................................................16 O Momento Supremo.......................................................................20 Súplicas Silenciosas.........................................................................23 A Entrevista......................................................................................27 Mãe..................................................................................................32 A Mosca Efêmera.............................................................................35 Tratamento Balneário.......................................................................39 Heroísmo .........................................................................................47 Krakelius Krequequeque..................................................................51 Glória Post Mortem ..........................................................................57 A Terra da Promissâo ......................................................................63 Fim............................................................................................................93 ***
  • 6. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 6 - Os bichos possuem seus momentos cômicos e trágicos, como nós. São repletos de semelhanças e relações mútuas. Os homens costumam crer num abismo entre si e os bichos. Não é senão um degrau na roda da vida. Somos todos filhos da mesma mônade. Para conhecer a naturexa, é preciso compreender suas criaturas. Para compreender uma criatura, carece ver nela seu irmão.
  • 7. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 7 -
  • 8. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 8 - O Crocodilo Patenteado Havia um deserto, e no deserto havia um rio, e dentro do rio havia um crocodilo. Lamento dizê-lo: os crocodilos não são apreciados, não. Isso acontece não tanto por causa da sua toilette, freqüentemente lamacenta e desmazelada, nem tampouco por causa da expressão indiscutivelmente antipática de sua boca, o que afinal são superficialidades. A impopularidade é causada pelo apetite. No mundo inteiro é assim: quanto maior o apetite, menor a estima. Amor e estima prosperam quando se exclui o apetite, e costuma-se até anuir a uma conversa despretenciosa, sob a condição mínima da gente não ser devorado ou abocanhado. Sem dúvida isto é muito superficial, porém compreensível, pois ninguém há de querer mal tenha trocado algumas palavras amáveis — ficar logo sem mãos e pernas, que afinal lhe pertencem e que lhe poderão ser úteis em outras ocasiões. Por isso não são estimados os que querem engolir os outros. E sendo que o crocodilo tem apetite para tudo, e tudo quer engolir, ninguém gosta dele. Ele engole missionários, sapos, negros, macacos e até membros da própria família, e tudo por causa do apetite. Também tudo lhe faz bem — louvado seja Deus — e ele digere tudo, mesmo os próprios parentes. O crocodilo, então, estava deitado dentro do rio que havia no deserto, com apetite e zangado. Não estava zangado por sentir apetite, mas porque não tinha nada para saciá-lo, e numa ocasião dessas qualquer um fica zangado, não só um crocodilo, até a mais fina dama. "Como seria bom agora um branco!" — disse o crocodilo, piscando ao sol. — "Os brancos são mais gostosos para o desjejum; pretos são melhores para o almoço, são mais oleosos e nutrem mais. é tal qual a diferença entre uma galinha e um pato. Bem picantes são os vendedores ambulantes de vinhos; têm sabor de caça por causa do álcool que tomam, e, geralmente estão bem conservados." O crocodilo sorriu com melancolia, o que ressaltou ainda mais a expressão antipática da sua boca, sinto muito dizê-lo. "Não se consegue nem mesmo um cardápio indígena," — continuou ele e engoliu em seco — "dar-me-ia por satisfeito até com comida caseira, com um sobrinho ou sobrinha. Porém, uma parte deles eu comi, os outros desceram rio abaixo; hoje em dia não se encontram mais sentimentos de solidariedade entre parentes. Que adianta ter apetite? " E o crocodilo enterrou seu estômago esfomeado mais para dentro do lodo molhado, cerrou os olhos com resignação e bocejou. Nem se deu ao trabalho de cobrir a boca com a pata, pois a boca de qualquer jeito é grande demais e, além disso, o crocodilo não liga muito para as boas maneiras.
  • 9. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 9 - "Vou cochilar'" - pensou, e cochilou. Em cima da tamareira herborizava atarefado um macaquinho, guinchando baixinho. Era um entemuito alegre, permanentemente feliz por ser macaquinho e, existir, simplesmente. De vez em quando fazia um pouco de ginástica pelo método Meu sistema, ou Como adquirir o mais lindo rabo, os mais longos braços e as pernas mais curtas. Então sentava-se num galho e procurava com a máxima atenção, dentro de seu pêlo, estranhos cacetes, e exterminava-os in- distintamente — machos, fêmeas e mesmo tenros filhotinhos. Era trabalho penoso, porém, grato e lucrativo. "Posso coçar-me em três lugares ao mesmo tempo," — disse o macaquinho arreganhando os dentes com satisfação - "seguro-me com o rabo e um pé, e o que sobra — coça. Como é sábia a natureza!" O macaquinho era de um temperamento alegre e modesto. A análise de suas vestimentas foi, porém, bruscamente interrompida pela voz rouca do crocodilo, que o tinha visto, olhando para cima. — "Psiu, você aí!" — chamou — "desça para cá, quero devorá-lo." - Ele disse devorar pois o crocodilo não usa expressões finas. O macaquinho assustou-se horrivelmente. — "Não, de jeito nenhum!" — respondeu-lhe choramingando, e seu pêlo eriçou- se de pavor, pondo em debandada os estranhos cacetes. "Então o senhor não quer," — fungou o crocodilo com malícia, e soprou com raiva pelas narinas. — "Está bem, esperarei até que o apetite o obrigue a descer da árvore, quando aí não houver mais nada. Tudo na vida é o apetite. Eu sei disso." O macaquinho não disse mais nada, apanhou uma folha de tamareira e nela soluçou com desespero. Onde ficou a sabedoria da natureza? Para que servem os braços compridos e as pernas curtas, adquiridos por meio do Meu Sistema, se eles podem ser devorados? "Sujeito arrogante," - rosnou o crocodilo, pigarrean- do com ódio. — "Faz-se de importante como se fosse um petisco maravilhoso, entretanto, carne de macaco é bem comum!" O macaquinho, porém, não era nada arrogante; estava apenas com um medo terrível porque ia ser devorado, e pensava em papai e mamãe e na filha maior
  • 10. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 10 - do macaco vizinho, aquele focinho sorridente que lhe concedeu o primeiro beijo, como recompensa, por ter-lhe limpado, com galanteria e cavalheirismo, seu pêlo macio. E quando se está às voltas com pensamentos desse gênero, é indiferente ser um grande homem, ou uma pequena e trêmula alma de macaco. Aliás, em muitos outros assuntos isso também é indiferente. Mas, existe algo no mundo que se compadece de pobres criaturas assustadas, e condoeu-se também do macaquinho. Justamente no momento em que ele colheu a segunda folha da tamareira para soluçar, sentiu como se um rabo de macaco o cingisse e uma voz lhe sussurrasse um pensamento; podia ser a voz do papai ou da mamãe, ou da filha maior do vizinho. O pensamento foi tão lindo que o macaquinho parou imediatamente de chorar, seu pêlo alisou-se e sua caretinha expressou uma alegria indescritível, aquela alegria que se torna sobremaneira bonita quando ilumina um rosto feio. — "Psiu," — imitou o macaquinho, jogando caroços de tâmara na cabeça do crocodilo — "o senhor é patenteado? " — Quanta gente é assim! Mal se sente bem, começa a atirar caroços de tâmara. Isto é humano, e os macacos se parecem tanto com os homens! — "Por que patenteado? " — perguntou-lhe o crocodilo desconfiado — "quero devorá-lo e fá-lo-ei." O macaquinho cruzou os braços compridos sobre o peito e olhou com superioridade para o crocodilo. - “Atualmente todas as pessoas decentes do deserto se deixam patentear," - disse-lhe ele - "sem isso a gente não é gente bem. Porém, precisa possuir alguma coisa que os outros não têm." - "Você é que vou possuir logo," - pensou o crocodilo zangado, mas ficou com a pulga atrás da orelha porque gostaria de ser gente bem. Porque o cérebro do crocodilo não é grande (quanto maior a goela, menor é o cérebro), esgotou-se logo sua força refletiva. — "Onde a gente pode se patentear? " — perguntou ele. — "Na comissão de patentes do deserto, ê um escritório." O crocodilo refletiu. — "Como é que eu chego melhor lá? É preciso que não seja muito longe e que você me espere aqui. Disso quero ter certeza."
  • 11. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 11 - - "Claro," - disse o macaquinho, esfregando as mãos de contente. — "O escritório é, como todos os escritórios, no deserto. Felicidades. Faço votos que tenha sorte!" O crocodilo arrastou-se para a margem e rumou devagarinho para o deserto. Logo passou em frente de uma choupana e então pensou: "logo vi!" Quantos já não pensaram "logo vi!", porém, sem existir coisa alguma. Desta vez, entretanto, estava certo mesmo, porque na choupana via-se escrito com letras grandes: Comissão de Patentes do Deserto. No mesmo instante saiu dali o rinoceronte, acenando amavelmente com a cabeça. O crocodilo entrou e viu-se em frente da Comissão. Formavam a Comissão o camelo, o marabu e uma pantera. O camelo tinha de redigir as atas e executar todos os outros trabalhos de escritório. Sua expressão subalterna sublinhava-se ainda mais pelo lábio inferior caído, e, no pescoço, usava o distintivo honorário do deserto: um pequeno moinho com as cores do país. O marabu era careca e conselheiro-jurídico, e a pantera, como representante das autoridades, sentada a uma mesa, fazia as unhas. O crocodilo, vendo que a Comissão inteira era comestível, rangeu com as mandíbulas, de apetite. - "Pare de ranger," - gritou-lhe a pantera irritada - "isso dá nos nervos." O crocodilo ficou com raiva, mas como ansiava por uma patente, colocou devagar e com modéstia uma queixada sobre a outra. - "Que é que o senhor deseja? " - perguntou- lhe o camelo, empurrando o beiço subalterno para cima. — "Quero ser patenteado." — "Em quê? " — "Isto me é indiferente. Meu apetite, por exemplo." — "Ridículo," — resmungou a pantera — "isso todos têm." — "Então minha grande fuça," — disse-lhe o crocodilo timidamente, e escancarou a goela, recomendando-a. — "Sua venerável fuça é bem grande, como podemos verificar m loco," — expressou-se o marabu, como conselheiro-jurídico — "porém neste ponto o
  • 12. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 12 - senhor não está só. A maioria dos homens possui uma bem maior." O crocodilo derramou uma das conhecidas lágrimas de crocodilo, e esbugalhou os olhos com desamparo e tristeza para a Comissão comestível. Por fim ficou bravo e bateu com o rabo escamado para todos os lados. — "Mas eu quero ser patenteado!" — gritou sufocado de raiva. — "Silêncio, se não quer ser posto fora," — vociferou a pantera, batendo com a pata na mesa. — "Pois é, silêncio" — blaterou o camelo, e deixou cair com devoção o lábio subalterno, serviçal, espiando de soslaio a pantera. - “Se me permite dar-lhe um conselho," - cacarejou o marabu com gentileza e desejo de apaziguar - "acon- selhar-lhe-ia patentear sua dentadura. Conforme consegui constatar na hora em que abriu sua estimada fuça, a dentadura é de dimensões respeitáveis, e, sem dúvida, única no gênero. Poderíamos registrá-la como máquina de cortar carne." - "Então vamos," - disse a pantera ao camelo, passando a pata no focinho - "leia o registro!" O camelo leu com voz monótona, blaterando, pois era de opinião que não fica bem para um funcionário salientar por conta própria uma palavra: "Patente n° 1: à naja, por um desenho de óculos na cabeça. Seção - artigos de ótica. Patente n° 2: ao canguru, por uma bolsa sobre o estômago. Seção — artigos de moda. Patente n° 3: ao rinoceronte, pelo chifre sobre o nariz. Seção — artigos de bijuterias." - “Agora o senhor pode escolher entre uma patente inglesa e uma alemã," - disse o marabu ao crocodilo. — "Sobre a inglesa está escrito Made in Germany e sobre a alemã, Façon de Paris.” — "Qual é a melhor? " — perguntou-lhe o crocodilo desconfiado. — "Isto depende exclusivamente de gosto," — disse- lhe o marabu. — “O canguru, por exemplo, escolheu a patente inglesa, considerando a situação política da Austrália, enquanto o rinoceronte, que só dá valor à elegância, escolheu sem hesitar, a Façon de Paris" — "Eu quero as duas," — disse-lhe o crocodilo.
  • 13. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 13 - — "Isso não é possível," - respondeu-lhe o outro, encolhendo penalizado as asas. - "Eu, porém, aconselharia a patente inglesa, desde que se trata de máquina para moer carne..." — "Chega!" — vociferou a pantera — "escreva: patente n° 4: ao crocodilo, pela máquina de moer carne na goela. Hum... Seção — artigos para cozinha. Até logo." Dizendo isso a pantera levantou-se, colocoü o rabo sobre as patas como manda o regulamento, e abandonou o local rosnando; o expediente estava encerrado. O camelo aprontou o diploma; o marabu entregou-o ao crocodilo com algumas palavras explicativas. — "Tenha muito cuidado, diplomas são apenas algo decorativo, fabricado com material muito rijo e totalmente indigesto pelo assim chamado processo de auto- sugestão, aliás um processo internacional; portanto, não o engula! Meus respeitos." E o conselheiro-jurídico almoçou o verme comprido que sua esposa havia embrulhado num papel de sanduíche. Os marabus moravam perto de uma habitação européia e eram tremendamente cultos! Daí o papel de sanduíche e os conhecimentos jurídicos. Vendo o conselheiro-jurídico almoçar, o crocodilo sentiu-se mal. Pegou cuidadosamente o diploma entre os dentes, e afastou-se depressa em direção à margem do rio para comer o macaquinho. Este, porém, não estava mais lá. "Como as pessoas são irresponsáveis hoje em dia!" — pensou o crocodilo. - "Não é de admirar que se patenteie o antigo e o bom." — Estufou-se de orgulho e enterrou-se bem dentro da lama. Assim ficou durante horas. Entardeceu e juntou muito público na margem e na água para apreciar o pôr-do-sol. — "Por que o senhor não toma uma refeição, colega? " — perguntou um pequeno lagarto ao crocodilo, nadando por perto. Apresentava um aspecto satisfeito e bem nutrido, e engolia com cara jovial os restos de um parente. O crocodilo teve dificuldade para falar.
  • 14. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 14 - — "Estou patenteado," — sussurrou com orgulho — "não posso comer, estou segurando meu diploma na boca. Em troca sou agora gente bem." — "Eu, de minha parte, prefiro estar bem nutrido," — disse-lhe o pequeno lagarto -'porém, o senhor tem a aparência de quem não tem comido nada desde cedo. O verde saudável de seu rosto tornou-se cinza. Coloque o seu diploma na margem e jante alguma coisa!" O crocodilo lutou em seu íntimo — o apetite era enorme! — "Não," — acabou sussurrando — "na margem os macacos poderão roubá- lo." — "Então cuspa-o simplesmente fora!" — disse-lhe o pequeno lagarto com malcriação. - "Para que lhe serve o diploma? Se o diploma tem de ficar constantemente na boca é melhor desistir dele, porque, no fim, a gente não pode mais comer, e acaba sendo comido e, ainda, debochado pelos outros." Isso é uma grande verdade, mas refere-se natural - mente, só aos crocodilos. O crocodilo não se mexeu. Continuou segurando o diploma e olhou para o primo, zangado e morrendo de fome. — "Já que o senhor continua com o diploma entre os dentes, permita-me comer sua pata traseira à guisa de sobremesa?" O crocodilo, de medo e raiva, deu uma viravol- ta, e nesta exaltação engoliu o diploma. Na mesma hora sentiu-se muito mal, tão mal como nunca, e perdendo os sentidos foi levado pelo rio e co- mido pelo pequeno lagarto e outros parentes prestativos. Assim termina esta triste estória. Posso acrescentar apenas ainda uma notícia familiar: enquanto isso sucedia, o macaquinho ficou noivo da filha mais velha do vizinho. Formavam um casal feliz de noivos e, logo no dia seguinte, tomaram parte num piquenique com parentes e amigos, naturalmente acompanhados por uma dama de honra, pois macacos — como todos sabem — têm muita coisa humana. Durante a festa souberam da morte do crocodilo patenteado. Um macaco bem velho comunicou o fato, acres- centando "sim, sim." Isto ele dizia sempre, pelo que era considerado muito inteligente. O macaquinho, porém, sabia muito mais sobre o assunto; claro, pois ele conhecia o finado pessoalmente, tão pessoalmente, que por um triz teria
  • 15. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 15 - sido devorado por ele. É o conhecimento mais pessoal que se possa fazer. E aproveitando o momento em que a dama de honra subiu a uma tamarei- ra para comer (pois não sentindo mais amor, comia o dobro), o macaquinho contou à sua amada a estória horripilante. — “Não se deixe nunca patentear, Maquinho" — disse-lhe a jovem, cingindo-o com o rabo. — "Não, nunca," — disse-lhe o Maquinho, e vasculhou com carinho e presteza o pêlo de sua noiva.
  • 16. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 16 - O C. d. M. As minhocas convocaram um congresso. Era um congresso moderno. Por isso não se chamava Congresso das Minhocas, mas C.d.M. O C.d.M. realizava-se numcanto muito poeirento do jardim. Foram tratadas apenas questões do cultivo do solo. O horizonte das minhocas não ultrapassava essa questão. Elas se arrastam na terra e comem terra. São gente pobre e modesta, porém, útil e indispensável. Sem elas a terra não seria fértil. Seu trabalho tem de ser realizado. Era de tarde. O crepúsculo cobria os caminhos pelos quais se arrastava o C.d.M. Um velho e comprido minhocão presidia a sessão. Discursou sobre questões de interesse local, como as condições do terreno do jardim em que trabalhavam. Os resultados mostraram-se satisfatórios. — "Já penetramos bem fundo na terra," — disse o presidente do C.d.M. — "Trouxemos à superfície muitas camadas, cuja existência ninguém suspeitava anteriormente. Porém, a terra parece aprofundar-se mais do que pensávamos. Nós a dividimos e a esmiuçamos. Parece ultrapassar aquilo que conseguimos trazer para cima. Carece arrastarmo-nos com afinco por toda parte e comermos terra, ê uma grande tarefa. Com isso, termina a sessão do C.d.M." O minhocão enrolou-se respeitosamente. A parte oficial do C.d.M. terminara. Vizinhos e amigos juntaram-se em grupos informais, conversando sobre a prática de desenvolvimento dos membros. Era desejo geral tornar-se mais comprido. Nisto consistia o progresso. Os novos métodos para consegui-lo interessavam sempre. — "O método mais moderno para se tornar comprida," disse uma minhoca jovem - "chama-se: enrosca-te no caule. Isto fortalece os músculos e revigora os membros. Vejam: assim!" Ela apalpou um caule e fez demonstração do novo método com energiae convicção. Nisso enroscou-se nalgu- ma coisa. Sentiu que essa "coisa" era áspera e cabeluda. — "Nossa, o que é isto? Tem cabelos e está se mexendo!" Assustada, desen roscou-se do caule.
  • 17. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 17 - — "Queira desculpar, eu estava tão cansada! Por isso me sentei sobre o caule," - disse-lhe a "coisa" cabeluda. — "Quem é a senhora? " — perguntou-lhe a minhoca, arrastando-se para mais perto. — "Sou taturana de profissão. Não me teria sentado sobre o caule de maneira nenhuma, porém estou cansada demais. Venho de muito longe, andando sempre na poeira. Raramente encontrei alguma coisa verde. Sou um pouco fraca de natureza. Também, é tão cansativo curvar as costas a cada passo. Agora não posso mais. Estou cansada demais. Mortalmente cansada." A taturana estava completamenteempoeiradae exausta. Seus tocos de pernas tremiam. O C.d.M. inteiro, compadecido, arrastou-se para perto dela. — "A senhora deve fortificar-se'" — disse-lhe uma minhoca gentilmente, — "deve comer um pouco de terra," — "Não, obrigada, estou fraca demais para comer. Sinto-me tão esquisita em geral. Não quero mais me arrastar pela terra." — "Tenha paciência," - disse-lhe o presidente do C.d.M..— "isto é a vida; arrastar-se na terra e comê-la. Não o conseguindo fazer mais, vem a morte. Nós, porém, devemos viver e tornarmo-nos bem compridos. Posso recomendar- lhe diversos métodos, é a macrobiótica." — "Acho que a gente não morre," — disse-lhe a taturana. — "Quando a gente se cansa demais e não tem força para se arrastar na terra, a gente se encasula, e mais tarde torna-se uma borboleta multicor. Fica voando ao sol e ouve o badalar das campânulas. Eu apenas não sei como fazê-lo. Também, estou cansada demais para refletir." As minhocas enroscaram-se desamparadas e agitadas. — "Voar? - À luz do sol? - O que é isso? - Isso não existe! — A senhora está doente? " — "A senhora usa palavras estranhas, tão esquisitas," — disse-lhe o presidente do C.d.M. — "A senhora está simplesmente indisposta."
  • 18. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 18 - A taturana não respondeu mais. Estava cansada demais. Agarrou-se ao caule. Então, sentiu escurecer ao seu redor. Do seu interior, porém, saíam finíssimos fios e enrolavam seu corpo cansado e empoeirado. — "Isto é uma doença terrível!" — disseram as minhocas. — "é um fenômeno!" — disse o presidente do C.d.M. — "Vamos observá-lo." Diversas sumidades acenaram com os anéis da cabeça concordando. Passaram-se algumas semanas. O presidente e as sumidades arrastavam-se diariamente para junto do fenômeno e o apalpavam. O fenômeno era branco. Estava totalmente encasulado e jazia inerte no chão. Finalmente, numa madrugada, a "coisa" encapuçada mexeu-se. Uma pequena borboleta colorida saiu de lá e olhou admirada em seu redor. Conservava as asas dobradas e não sabia o que fazer com elas. Porque havia esquecido tudo o que imaginara e aspirara enquanto taturana, quão cansada estivera, mortalmente cansada... As asas, porém, cresceram à luz do sol. Ficaram fortes e brilhantes. Então, a borboleta abriu-as e voou longe da terra, para dentro da luz do sol. As campânulas badalavam. Em baixo, na poeira, reuniu-se o C.d.M. Encontraram somente a capa, e todas as sumidades a examinaram. - "é apenas um casaco," — disse a primeira sumidade decepcionada. - "Sobrou só a doença," — disse a segunda. - "O casaco era a doença," - disse a terceira. Bem alto, por cima de suas cabeças cegas, balouçava- se a borboleta no ensolarado ar azul. - "Agora ela está morta mesmo," - disseram as minhocas. - "Ressurrexit!" - cantavam mil vozes no espaço.
  • 19. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 19 -
  • 20. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 20 - O Momento Supremo De dentro de sua gaiola um passarinho olhava com ânsia para a luz do sol. Era uma ave canora e aconteceu num país culto — pelo menos num que assim se denominava. No horizonte azul erguiam-se montanhas azuis. "Atrás das montanhas está o sul," - pensava o passarinho. — "Viajei para lá só uma vez. Depois nunca mais." As montanhas distantes pareciam-lhe bem próximas. Era a saudade que as aproximava das varas da gaiola. "São tão próximas," — disse o passarinho. — "Se não fossem as varas da gaiola! Se a porta se abrisse uma vez, uma única vez! Então chegaria o momento supremo, e com algumas batidas de asas eu estaria atrás das montanhas azuis!" As garças emigravam. Seus gritos dolentes ressoavam através do ar outonal — queixoso e convidativo. Era o chamado para o sul. O passarinho debateu-se contra as grades da gaiola. Chegara o inverno e ele tornou-se quieto. Caíra neve e as montanhas azuis ficaram acinzentadas.Ocaminho para o sul jazia gélido e nevoento. Passaram-se muitos invernos e muitos estios. Passaram- se muitos anos. As montanhas ficavam ora azuis, ora cinzentas. Os pássaros migratórios vinham do sul e partiam para o sul. O passarinho atrás das grades, esperava o'momento supremo. Então, raiou um claro e ensolarado dia de outono. A porta da gaiola ficou aberta. Esqueceram-se de fechá-la por descuido. De propósito, os homens não o fazem. Chegara o momento supremo! O passarinho tremia de alegria e agitação. Com cuidado, timidamente, pulou para fora e esvoaçou para a árvore mais próxima. Tudo em seu redor o perturbava. Não estava mais habituado. No horizonte azul erguiam-se montanhas azuis. Porém,pareciam agora mui distantes. Distantes demais para as asas que não se
  • 21. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 21 - moveram durante anos, atrás das grades. Mas tinha de ser! O momento supremo havia chegado! O passarinho encheu-se de coragem e de toda força que tinha, e desdobrou as asas largamente, bem largamente, para o vôo ao sul, atrás das montanhas azuis. Todavia não chegou além do próximo galho. Atrofia- ram-se-lhe as asas durante os longos anos, ou foi alguma coisa que se atrofiou nele? Ele mesmo não o sabia. As montanhas azuis estavam longe, longe demais para ele. Então ele voou devagarinho de volta para a gaiola. As garças emigravam. Através do ar outonal soaram seus gritos dolentes e convidativos. Era o chamado para o sul. Elas sumiram atrás das montanhas azuis. O passarinho inclinou a cabeça e a escondeu em baixo da asa. O momento supremo terminara.
  • 22. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 22 -
  • 23. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 23 - Súplicas Silenciosas Os carneiros arrebanhavam-se agitados. Um velho carneiro narrava: — "Minha avó viu-o, ela própria," — dizia-lhes. — Ê algo fabuloso, medonho! Não se sabe o que é . Também ela não viu tudo. Passou por lá quando ia para o pasto. Era um portão que levava a um recinto escuro. Havia cheiro de sangue junto ao portão do recinto escuro. Não se via nada. Mas ela escutou um grito de carneiro lá dentro, um grito horrível. Então voltou ao rebanho correndo, tremendo de pavor." Todos estremeceram. — "Nada se sabe de positivo," — disse-lhes o carneiro — deve haver, porém, alguma verdade nisso. Em todo caso é medonho." "Sua avó não vive mais? " — perguntou-lhe um jovem carneiro. — "Não sei, isso já faz muito tempo — vieram buscá-la." — "Isto deve ser o começo, depois nunca se volta," — disseram vários. O cão pastor latiu e tocou o rebanho para a outra ponta do pasto. Ali estava o pastor a conversar com um estranho, que não tinha a aparência de pastor. Estavam negociando. O estranho aproximou-se do rebanho com passos firmes e examinou algumas peças com olhos de perito. Não eram olhos de pastor. Depois pegou no jovem carneiro, que antes havia feito a pergunta. O bicho gelou. A mão não se parecia com a mão do pastor. No pescoço do carneiro puseram uma corda. "Fico com este," — disse o estranho, tirando uma carteira suja do bolso. Pagou.
  • 24. 2 Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 24 - Um ser vivo lhe pertencia. Ele o comprara. Agarrando a corda, arrastou o carneiro do pasto para a estrada. O rebanho olhava, assustado e sem compreender, para aquele que partia. O carneiro olhou para trás. Seus olhos procuravam parentes e companheiros de folguedos. Alguma coisa nele se contraiu, alguma coisa lhe disse que se livrasse e voltasse correndo. "Este é o começo," pensou, "vêm buscar a gente." Mas ele não reagiu. Estava desamparado. Que é que adiantava? "Não precisa ser aquilo medonho," — pensava, consolando-se — "existem mais outros pastos. Talvez vão me levar para lá." Tal é a confiança dos animais que são tratados com mansidão. Agora dobravam uma esquina. Não se via mais nada do rebanho. O pasto sumira. Só de longe ouviam-se os latidos do cão e os sons da flauta do pastor. O vento os trazia. O caminho era longo. O homem estranho andava rápido. Estava com pressa. "Estou cansado, gostaria de descansar um pouco," - pediu-lhe o carneiro. Foi uma súplica silenciosa. Continuaram a andar. Fazia muito calor e havia muita poeira. "Por favor, um pouco de água," — disse-lhe o carneiro. Foi uma súplica silenciosa. Finalmente chegaram a uma pequena cidade. Passaram por ruas estreitas e tortas, em que não havia pasto. Esta esperança fora em vão. Pararam diante de um portão que se abria para um recinto escuro. Um cheiro asqueroso bateu na cara do animal. O carneiro virou a cabeça e emitiu um
  • 25. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 25 - balido queixoso. Assustou-se com o cheiro e com a entrada escura. Um medo despertou-se-lhe no subconsciente, um medo sem limite. "Quero ir para casa!" - disse o carneiro e olhou para o estranho. Foi uma súplica silenciosa. As súplicas silenciosas não são ouvidas. O homem laçou a corda com um golpe hábil em torno das pernas traseiras do animal e arrastou-o para frente. A corda cortava. "Sim, sim, já vou," — disse o carneiro assustado. As pernas cansadas e duras apressaram-se. Foram só poucos momentos, mas pareceram muito longos. Daí ele se encontrou no recinto escuro. Espalhava-se no ar um cheiro nauseabundo de sangue e des- pojos, o cheiro de cadáveres de seus semelhantes. Não se julga necessário remover isso antes, pois é gado — gado de abater. Um horror paralisou o carneiro. Um horror que o fez esquecer-se de todas as súplicas silenciosas anteriores. Um horror que o dominou totalmente. O carneiro tremeu com o corpo todo. "Agora vem o fantástico, o espantoso," — pensou ele. E veio. — — — — — — O mundo está cheio de súplicas silenciosas que não são ouvidas. São homens os que não as ouvem, é impossível anotar essas súplicas silenciosas. São tantas! Porém, elas todas vêm sendo anotadas e escritas no livro da vida. Bem abertos e observadores, os olhos de Gotama Buda dirigem-se para a cultura européia.
  • 26. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 26 -
  • 27. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 27 - A Entrevista O sujeito da cara preta é um boxer. Somos grandes amigos, e é por isso que resolvi, um dia, entrevistá-lo. Pensei em aprender muita coisa desta maneira; uma olhadela para a diferença entre as naturezas é sempre muito útil, e talvez o sujeito da cara preta pudesse dar-me algumas explicações interessantes do ponto de vista canino, verdadeiro, naturalmente, não daquele que os homens julgam ser. O sujeito da cara preta estava roendo um respeitável osso, que havia requisitado na cozinha, assim como nós fumamos um charuto após as refeições. — "Vá buscar um osso para você na cozinha," — disse-me ele em tom paternal (nós nos tratamos por você). Declinei, agradecendo. — "Hoje quero fazer-lhe algumas perguntas. Estou escrevendo um livro. Necessito do seu parecer; por exemplo, sobre os homens." O osso estalou. — "Então sobre os bípedes nus. é um tema muito espinhoso." Ele rosnou baixinho. Fiquei, de certo modo, estupefato. — "Que quer dizer com isso: bípedes nus? Eu pensei... sobre nós!" — "Sim, é assim que vocês se chamam," — disse-me o sujeito da cara preta sem perder a calma. — "A denominação é muito acertada, não acha também? " Então também o achei. — "Para ser franco, não gosto de dar informações sobre esse assunto. O tema é como uma fatia de carne: um pedaço bom, o outro tão duro que pode quebrar os dentes." — Mas alguma coisa você podia, me dizer. Alguns pontos gerais. A gente não tem idéia certa sobre si mesmo." O sujeito da cara preta atacou o osso do outro lado.
  • 28. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 28 - — “Está bem” — disse-me ele condescendendo — "porém, não lhe poderei dizer nada além do que nós, cachorros, aprendemos enquanto novos ainda. Mais é impossível. Também poderei dar-lhe só dados objetivos, e só em forma de bate-papo. Sabe, estou justamente na hora da minha sesta," — e apontou o osso com a pata. — “Claro, isto é apenas uma entrevista. Só assim... não quero perturbá-lo de maneira nenhuma! Então, do ponto de vista pedagógico, o que é que vocês aprendem sobre os bípedes nus, enquanto são cachorros novos? " — "Somente o indispensável. O resto se dá por si mesmo, e também varia muito. Em primeiro lugar, o valor dos bípedes é exclusivamente de ordem econômica: quanto mais perto da cozinha, melhor. Existem, naturalmente, excessões. Cientificamente podemos dizer o seguinte: os bípedes nus, aparentemente, sofreram em tempos remotos, de uma espécie de sarna, pois perderam todo o pêlo, com exceção da crina na cabeça, que causa impressão deveras ridícula. Os espécimes femininos possuem-na mais densa, ao contrário dos bípedes nus masculinos, que criam alguns poucos cabelos no focinho e tratam-no com carinho, embora isso não tenha o mínimo sentido. De um pêlo verdadeiro não se pode falar. O andar deles é muito esquisito e assemelha-se ao da cegonha. Erguem-se nas patas traseiras e movimentam-se com passos graves e comicidade grotesca, bastante devagar, enquanto que as patas dianteiras deixam-nas penduradas, ou balançam-nas no ar. Tudo isso causa uma impressão muito singular, mormente visto de longe e quando andam em grandes grupos. De vez em quando inclinam-se, acenam com a cabeça, ou soltam uma risada gozada, muito parecida com o relinchar do potro. Porém, não quéro cometer rata. Estpu a magoá-lo? " — "De maneira alguma, pois fui eu que o pedi." Na realidade sentia-me um tanto deprimido. O sujeito da cara preta percebeu a minha reação. — "Os bípedes nus" — intercalou com benevolência — "não pareceriam tão incrivelmente cômicos se não se julgassem tão importantes. Correm por todos os lados como se farejassem alguma coisa. Entretanto, possuem um nariz deficiente e quase nunca encontram um rastro, mesmo o mais fácil." — "Sim, quanto aos ares importantes, você tem razão,"
  • 29. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 29 - — disse-lhe eu suspirando, e pensei em muita gente naquele momento. — "O resto é um pouco novo e inesperado para mim, você compreende..." Desviando o olhar com discrição, ele roeu um pouco o osso. — "Os bípedes nus, então" - continuou - "não têm pêloá, com excessão dos poucos cabelos que, ainda por cima, caem-lhes quando ficam idosos, ou tornam-se brancos. Os filhotes — raramente mais do que um de cada vez — nascem também nus e ficam, durante muito tempo, desajeitados. Para não sentirem frio, os bípedes nus protejem-se com trapos coloridos. Fica muito feio, porém, as pobres criaturas indefesas não podem agir de outra forma senão morrem congeladas." Fiquei calado. Não tive vontade de explicar-lhe nossas normas morais, que nos fazem considerar nosso corpo como algo indecente. — "O rosto e as patas dianteiras ficam livres" - continuou o sujeito de cara preta. — "Somente quando os bípedes nus se reúnem, fazendo muitas vênias e inclinando a cabeça, é que cobrem também as patas dianteiras. Por que? Ignoro-o." Eu também o ignorava. — "Seus dentes são fracos, embora gostem de comer e comem muito. Nunca os vi se pegarem, pelo contrário, verifiquei com freqüência que, estando os bípedes nus enfurecidos um com o outro, redobram suas inclinações, trocando uma porção de amabilida- des. As patas dianteiras são extremamente desenvol- vidas, e os bípedes servem-se delas com muita habilidade, como os macacos, com os quais em geral, têm muita semelhança. A todos falta-lhes o rabo, por isso não podem abaná-lo. Mostram os dentes quando estão alegres. Quando se encontram ou se despedem, procuram arrancar reciprocamente as patas dianteiras. Não sabem catar pulgas. Você o sabe? " — "Não," — respondi encabulado - "infelizmente não. Ainda não tive oportunidade." — "Os bípedes nus são esquisitos também em outros assuntos. Por exemplo: consideram bonitos os rostos lisos e brancos. O que é que nós diríamos se as damas dos boxors não tivessem aquela tez aveludada e preta, e aquelas inúmeras rugas picantes? Muito estranha também é a predileção dos bípedes nus por um determinado metal sujo. Correm o dia todo e trabalham para adquiri-
  • 30. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 30 - lo. Também não gostam de se desprender dele. Possuindo este metal sujo podem conseguir as coisas mais lindas, e quem mais o possui é o tal, e todos abanam o rabo perante ele (se é possível falar em abanar, tratando-se de tão triste ausência de rabo)." O sujeito da cara preta terminou seu osso. — "Não lhe posso dizer mais que isso. Sei ainda uma porção de coisas, ultrapassaria, porém, o que me é permitido dizer. São assuntos pessoais sobre os quais refleti, pois sou filósofo. Os filósofos nunca dizem tudo para não serem amordaçados." — "Entre nós também é assim," — disse-lhe eu. — "Está vendo? Mas o pouco que lhe expliquei pode contar sossegado, é apenas sabedoria de cão novo. Muitos não compreenderão nem isso." — "Estou convencido disso," - respondi. — "Em última análise," — disse ele para rematar, — "não deixe pender as orelhas, mesmo sendo apenas um bípede nu! Qualquer um pode ter uma alma: tanto um bípede nu como um quadrúpede pe - ludo. Até logo." O sujeito da cara preta deu a pata. Despedi-me. Senti-me mal como um cachorro. — "Quer dizer que você, de maneira nenhuma, desejaria ser um bípede nu? " O sujeito da cara preta arreganhou os dentes: "Rrrrrrrr!"
  • 31. 3 Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 31 -
  • 32. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 32 - Mãe No sótão, dentro de uma cesta, estava deitada uma gata com dois filhinhos. Os gatinhos nasceram havia poucos dias e eram ainda muito desamparados, com suas pequeninas patas que sempre escorregavam, e suas enormes cabeças de olhos cegos que se enterravam no pêlo da barriga de sua mãe. Eram muito esquisitos. A gata, porém, achava-os lindos sobremaneira, pois eram seus filhos: um, cinza e preto como um tigre, igual a ela mesma, isto é, uma beldade, modéstia à parte; o outro, rajado igualzinho ao pai, com elegantes calças e luvas brancas, uma pinta no nariz, cantava com muita expressão. Como eles cantavam lindo, juntos, no jardim, nas primeiras noites do mês de março: a duas vozes... tantas canções bonitas!... Não era de se admirar que esses filhotes de patinhas escorregadias e cabeças enormes, se tornassem criaturas tão maravilhosas, não somente gatos — o que já por si significa o máximo, como todos sabem — mas gatinhos como a terra nunca ainda tinha visto! A mãe gata espreguiçou-se numa curva orgulhosa e pôs-se a contemplar, ronronando amorosamente, os pequenos milagres de seu mundo. O agradável quarto do sótão parecia um lugar próprio em todos os sentidos, tranqüilo e sossegado; uma cesta macia, cheia de feno, quente e bem apropriada às primeiras tentativas de engatinhar; muita bugiganga em redor, muitas surpresas e material de investigações, tudo alegremente iluminado pelo luar de maio através da janela; largo espaço para folguedos, e... que refúgio admirável para a caça de camondongos! Que vasto território para a formação perfeita das aptidões profissionais! "Seria bom eu mesma procurar uns camondongos", disse a gata. — "Os pequerruchos estão dormindo e uma distração far-me-á bem; tratar de filhotes é cansativo e, de mais a mais, estou com um considerável apetite." A gata levantou-se do seu leito de feno, deu ainda uma rápida lambida nos filhos, e esgueirou-se em seguida, silenciosamente, farejando ao longo dos cai- xotes e cestos. Não obstante ter já alcançado certa idade, não deixava de sentir agradável excitação ao procurar camondongos. E, de repente... não se ouviu um farfalhar? Não estava cheirando tão bem a camon- dongo? Não era o perfume delicado, inconfundível para o nariz de um gato? Mais alguns passos cuidadosos com os seus chinelinhos de veludo — ninguém a imitava nisso — e ei-la perante um ninho de camondongos, com dois pequeninos filhotes nus. "Só filhotes," — pensou a gata — "então não havia necessidade dos chinelos de veludo, pois estes bichinhos não sabem correr, nem enxergam. Nem vale quase a pena, somente duas pequenas dentadas, mais nada. Mas enfim, sempre é
  • 33. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 33 - alguma coisa para enganar o estômago, por assim dizer..." Preparou-se para abocanhar. Porém, alguma coisa falou dentro dela: "Eles não sabem correr, não enxergam, igualzinho a seus filhos. São totalmente desamparados e a mãe deles está morta possivelmente. Estão tão desampara- dos como seus filhos quando você não está junto deles. Verdade é, são camondongos, porém camondongos pequenos, muito pequenos, são filhotes; na verdade, você sabe o que quer dizer filhotes?" Era o amor maternal que falava, e dentro dele o amor universal, seu espírito no futuro. Ele só pode falar dentro de um amor maternal muito grande, assim como o amor maternal de uma gata, pois este é um dos maiores. A gata inclinou-se, apanhou cuidadosamente um dos ratinhos com os dentes e levou-o ao seu cesto de feno. Em seguida, voltou para buscar o outro. Ela lhes deu o peito e amamentou-os junto com seus filhos. Os ratinhos estavam quase entorpecidos, porém esquentaram-se rapidamente no pêlo de sua barriga. Estavam quase mortos de fome, porém saciaram-se logo no peito da gata. Sentiam-se perfeitamente protegidos pela mãe e não imaginavam que esta fosse uma gata. Como haveriam de saber? Eles eram cegos e desprotegidos. Cobria-os agora, protegendo-os.uma pata de gato, sem unhas, macia, aveludada. Os gatinhos cresciam e os ratinhos cresciam também; abriram-se-lhes os olhos e a primeira coisa que viram foi a mesma mãe e o mesmo amor maternal. Eram pequerruchos e brincavam juntos; o sol de maio, olhando pela janela, brincava com eles, e cingia a cabeça da mãe gata com uma coroa dourada. Esta estória é verdadeira e pequenina, porém, muito grande. Nela renasceu um mundo novo de uma criatura pequena em um pobre sótão. E nem sempre se repetirá isso, oh! não; mas foi um acontecimento grande que se deu. As leis do mundo são fortes e duras, contudo serão dominadas, degrau por degrau, porque o amor universal é uma força viva dentro da alma desta terra. Lentamente, mui lentamente, o mundo velho transforma-se num novo, e isso já aconteceu muitas vezes num pobre quarto no sótão, mas os homens nem ficaram sabendo. Os homens sabem tão pouco, e menos que todos, sabem aqueles que imaginam saber mais que todo o mundo. Eles não sabem, também, se os bichos rezam. Eu creio, porém, que os bichos também imploram, em momentos de angústia, a um poder que está acima deles; e se essa gata pedisse, a Virgem Maria atendê- la-ia.
  • 34. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 34 - O sol de maio sabia o que os homens ignoram, pois ele cingiu a cabeça da mãe gata com uma coroa dourada.
  • 35. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 35 - A Mosca Efêmera A mosca emergiu da água, arrastou-se devagar até a margem, e esticou suas asas finas sob o solde junho. Terminara uma forma de existência, uma outra estava para se iniciar. Sua existência de larva já lhe parecia um sonho distante; uma existência cheia de instintos selvagens e fome, dificultada e tolhida pela densidade da água. Algo novo principiava agora, algo sempre pressentido, porém, — só hoje — real. Leveza e luz foram as primeiras sensações alegres desta transformação, e a razão da vida eram agora as asas que brilhavam no ar azul, sob a luz doiradado sol. Liberta daquilo que antes fora ela mesma, a nova existência chamava-a para a dança do silfonoéter, por toda a longa vida de Manhã, Tarde e Noite, e suas asas tremiam de alegria, prontas para levantar vôo através do infinito banhado pelo sol. No brejo, ao lado daquela água, da qual saíra a mosca para uma nova vida, acocorava-se uma grande rã verde, que olhava a estranha criatura com olhos esbugalhados e sentimentos totalmente diferentes. "Que criatura gorda! Tenho de comê-la sem falta," - pensava ela; e sua boca, de ricas dimensões, abria-se e fechava com apetite. Aproximou-se devagar e cuidadosamente, com a prática de um profissional. A mosca esticou de novo as asas e os membros. Parecia-lhe haver ainda algum peso a dominar, e, de repente, seguindo um desejo inconsciente, arrastou-se para fora de si, tirou a pele, e ficou novinha em folha diante de sua própria máscara — a forma daquilo que era antes e agora não o era mais. "Ué!" — disse a rã. — "A criatura gorda duplicou-se. Incrível. Será que se transformarão em três? Qual delas é a mais gorda? Qual comerei? " - resmungou ela, continuando imóvel com toda a paciência de rã madura e experimentada. Na margem, peregrinavam uma formiga e um besouro. Também outras criaturas multípedes movimentavam- se nesse lindo dia de junho, esses dois, porém, encontraram-se para um bate-papo. A formiga assegurou-se antes, é claro, de que o besouro era vegetariano. Nunca se sabe, nessa família numerosa de multípedes, se algum deles não é justamente um consumidor de formigas - a gente sente tremerem as antenas só ao dizê-lo - e só é possível conversar sossegadamente após uma investigação cuidadosa. Este aqui, porém, era um peregrino inofensivo, dentro de uma simples roupa castanha, um besouro
  • 36. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 36 - bonachão que se alimentava de cereais. — "Quando me movimento sinto sempre grande necessidade de pensar," — disse-lhe o besouro. — "A senhora também? é tudo tão estranho..." — "É uma maneira muito insalubre de encarar a vida” — respondeu-lhe a formiga que arrastava com dificuldade um pedacinho de palha. — "Devemos conservar-nos em atividade, e ter sempre em mira o bem-estar do povo, simplesmente o mais prático, sabe? " — "Depende, porém, de certos pontos," - disse-lhe o besouro. — "São justamente esses pontos sobre os quais devemos refletir sem falta. Por exemplo, estou trajado com a maior modéstia, como a senhora deve ter notado, porém, também tenho pontos sobre minhas asas castanhas, está vendo? Aqui, e aqui... três pontos." Ele apontou com uma pata dianteira a parte traseira das asas. Os olhos da rã saltaram para fora. Será que temos ainda mais comida? Que é que se engole agora? Como a vida é complicada! — “Olhe!" — disse-lhe a formiga, mostrando com as antenas a mosca e sua carcaça abandonada — "ali está sentado alguém e está sentado mais uma vez! Nunca vi coisa igual." — "Estranho, muito estranho," — disse-lhe o besouro - "vai ser necessário procurar os pontos que explicarão este fenômeno. Deve existir um ponto a partir do qual..." - "Ah! pare com seus pontos." - disse-lhe a formiga. — "Isso é preciso encarar pela maneira prática da economia popular. Uma deve ser a criatura, e a outra, sua roupa. A roupa não se mexe, e a criatura balança as asas. Deve ser um ente muito leviano, pois não se deve balançar as asas dessa maneira numa sociedade decente. Mas que semelhança da roupa com a criatura! Não, uma coisa assim ainda não encontrei na vida, e, entretanto, terminei o curso estadual de ovos e sou enfermeira diplomada em larvas." No pequeno besouro surgiu uma espécie de recordação: não estivera ele também, um dia, incluso numa larva e depois ficou livre, multípede e com pontos? Como é que isto se deu mesmo? "Sinto, contudo não sei como, porém sinto-o realmente, só que não posso me lembrar direito." — disse ele e coçou pensativo a cabeça com as antenas.
  • 37. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 37 - — "Preciso investigar," - disse-lhe a formiga com decisão. — Vou dar um pulo até lá; tome conta, enquanto isso, da minha bagagem." A formiga correu apressada em direção à mosca. Os olhos da rã, que continuava atenta, saltaram, por assim dizer, das órbitas. — "A senhora me interessa do ponto de vista nacional," — disse a formiga à mosca. — "Isto aqui é a senhora mais uma vez, ou é parte do seu guarda- roupa? " — "Não sei," - disse-lhe a mosca - "é alguma coisa minha que, porém, não é essencial. O que sou eu mesma voa para a vida repleta de luz solar." — "Deixe de falar difícil. Trata-se de economia popular que talvez seja aplicável aos nossos princípios estatais. Do que a senhora vive?" — "De ar, luz e sol," — disse-lhe a mosca. — "Isto é tapeação. Disso poder-se-ia viver um dia, não mais." — "Pois eu vivo só um dia; uma Manhã, um Meio-dia e uma Tarde. é uma infinidade, difícil de imaginar, não é? " — "Uma criatura decente vive anos," — disse-lhe a formiga, - "primavera, verão, outono, inverno." — "Não sei o que é isso; talvez a senhora esteja apenas usando termos diferentes. Pois a vida inteira é só Ma- nhã.Meio dia e Tarde. Não posso imaginar outra coisa." — "Naturalmente, porque a senhora não tem instrução estatal." — "Encontrou o ponto? " — gritou-lhe o besouro. — "O senhor com o seu ponto!" — disse-lhe a formiga. — "Cuide melhor da minha bagagem; este é o único ponto que deve preocupá- lo agora. Se eu, voltando, não encontrar minha bagagem, hei de tamborilar tanto nos seus três pontos, que o farei esquecer-se de todos os outros." — "Estou sentado sobre a sua bagagem; não é possível fazer mais. Contudo, deve existir um ponto..." A rã não conseguiu mais se dominar. Deu um salto sobre a casca da mosca. Esta pareceu-lhe ser a mais gorda das duas pessoas gordas. A mosca abriu as
  • 38. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 38 - asas bem abertas, e voou para a luz, o ar e o sol, deixando para trás, inanimado e insignificante, aquilo em que ela estava antes envolvida: seu vestido. Iniciava- se uma nova existência: Manhã, Meio-dia e Tarde. "Isto não é ninguém, apenas um estojo," - coaxou a ra furiosa, e pulou zangada na água. A formiga voltou apressada ao besouro, e retirou sua bagagem sem agradecer. — "A criatura diz que vive de ar e de sol, que vive só um dia. Conforme diz: uma Manhã, um Meio-dia e uma Tarde. é uma vigarista. Logo imaginei quando a vi balançar as asas daquele jeito; é uma leviana." "Manhã, Meio-dia, Tarde," — repetiu o besouro, coçando a cabeça com a antena. — "Deve ser possível, porém, encontrar um ponto, um ponto qualquer..." Multípede e penosamente continuaram os dois a peregrinação. A rã verde e grande, sentada no brejo, estava com o pescoço inchado dè tanta raiva. A mosca balouçava-se com asas reluzentes na luz brilhante duma nova existência de um dia — uma Manhã, um Meio-dia e uma Tarde. Porém, o que é uma tarde? Um momento e mil anos são igual mente efêmeros e inconstantes. Carece mesmo encontrar aquele ponto, como dizia o pequenino besouro peregrino, um ponto qualquer... Não somos nós, também, moscas, e não deixamos também para trás larvas que se parecem conosco, e abandonamos assim apenas a terra e o brejo, para esticar nossas asas no éter azul da eternidade ensolarada? Todo presente encerra seu misterioso prenúncio do futuro, e em toda existência respira a grande intuição dos pequenos besouros: toda vida é uma Manhã, um Meio-dia e uma Tarde, e depois da noite, a aurora de um novo dia — a vida toda é uma eterna Páscoa.
  • 39. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 39 - Tratamento Balneário Um velho macaco resmungava zangado, sentado em cima de um coqueiro. Estava muito aborrecido, pois tinha um reumatismo nas pernas. Não era um macaco simples, e sim, chefe de numerosa família; era um macaco-prefeito. Quando um simples macaco tem reumatismo, isso incomoda apenas a ele próprio, se porém, um macaco graduado tem reumatismo, isso não é apenas desagradável para ele próprio, como também altamente penoso para o seu ambiente. Todos os macacos o sentiam, pois quando alguém dizia ao velho macaco: “Bom dia, Vossa Peludeza!", ele arreganhava os dentes, e se alguém se informava sobre a sua saúde, dava uma bofetada no curioso, ou pisava-o com sua perna reumática. Afinal, era um macaco graduado.
  • 40. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 40 - Todavia, tornara-se evidente que isso não podia continuar mais assim,e, numa reunião íntima de macacos, ficou resolvido curar este reumatismo graduado. Concordaram então em consultar dois velhos marabus, médicos célebres, e autoridades no seu campo. Os-* dois marabus apareceram de bom grado, eram senhores bondosos e, além do mais, o caso interessava-lhes profissionalmente, pois um reumatismo graduado não é nada comum. Um dos marabus possu ía ainda um pouco de plumagem na cabeça: era o Conselheiro Médico; o outro estava totalmente calvo e era Conselheiro Médico Privado. Ambos caminhavam sobre altas pernas de pau e tinham grandes bicos. O velho macaco desceu da árvore resmungando, e mostrou as pernas mal- humorado. Os marabus inclinaram-se com garbo mundano e estufaram-se cheios de perícia. Mediram com as garras o pulso do velho macaco, apalparam e examinaram as pernas reumáticas. — "Seu reumatismo incomoda-o muito? " — pcrgun- tou-lhe o Conselheiro Médico, olhando de lado para o velho macaco. — "A bem dizer, incomoda-me pouco ao trepar profissionalmente," — disse-lhe o velho..macaco, empolgado com os dois Conselheiros Médicos. — "Nos assuntos de família, porém, atrapalha-me muito. Por exemplo, quando piso nalgum de meus familiares, percebo claramente que não o faço mais com o impulso juvenil que me era comum, e sinto até uma dor. Fui obrigado ultimamente a renunciar a este hábito que me era tão caro, e a satisfazer-me com simples bofetadas. Além de estar prejudicando minha autoridade, isto, com o tempo, não me fará bem." — "Compreensível, muito compreensível," — disse-lhe o Conselheiro Médico Privado. - "Portanto, uma perturbação nas atividades tanto familiares como so- ciais, de conseqüências perigosas." "Tenho a impressão de que é reumatismo muscular. " — disse o Conselheiro Médico, coçando a plumagem da cabeça, — "rheumatismus musculorum ". — "Poderia ser também gota," — disse o Conselheiro Médico Privado, pigarreando pelo bico, — "arthritis urica no local predileto do dedão. Os exames clínicos sobre o assunto ainda não foram concluídos." — "Eu piso nos meus familiares com a planta do pé e não com o dedão," -
  • 41. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 41 - disse-lhe o velho macaco. — "Uma indicação preciosa," — disse-lhe o Conselheiro Médico, — "indicação muito preciosa, de grande alcance. Gostaria de insistir no rheumatismus mus- culorum, colega. Que acharia do método de auto- sugestão? Diga uma vez, bem nitidamente e articulado, com profunda convicção: não tenho mais reuma- tismo, estou cada dia melhor." — "Estou cada dia melhor," - disse o velho macaco — "não tenho mais reumatismo." — "Continue dizendo," — aconselhou*o o Conselheiro Médico Privado. — "Diga: piso nos meus familiares comodamente e sem dor, não há nenhum reumatismo." — "Piso nos meus familiares comodamente e sem dor," — repetiu o velho macaco - "estou cada dia melhor, não há nenhum reumatismo. Ai! que pontada me deu de novo!" — "O método de auto-sugestão parece não surtir efeito neste caso especial," - disse o Conselheiro Médico Privado. — "Os exames clínicos sobre o assunto ainda não foram concluídos." — "É um caso persistente," — disse o Conselheiro Médico — "rheumatismus musculorum chronicus.Gostaria de sugerir um tratamento de águas, banhos de lama, balnea limosa.” — "Banho eu não tomo de modo algum," — disse-lhe o velho macaco — "quero ficar em casa, — fique na sua árvore e alimente-se bem." — "Compreensível, muito compreensível," disse-lhe o Conselheiro Médico Privado — "talvez possamos tentar ainda a psicanálise. O senhor não tem algum ponto obscuro na sua vida? Talvez consigamos então descobrir a causa desse rheumatismus musculorum.” — "Para ser franco," - disse-lhe o velho macaco, — "gostaria de que estes dois marabus cacarejantes me deixassem em paz; pontos obscuros nunca tive, a não ser pulgas, e estas não me podiam contaminar com reumatismo porque elas mesmas não o têm; são gente muito ativa." — "Continuo a favor do tratamento balneário," — disse o Conselheiro Médico Privado.
  • 42. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 42 - — "Quero subir na minha árvore," — disse o velho macaco, e rumou com seus longos braços em direção a uma palmeira. A família, porém, seguiu-o e pendurou-se no seu rabo. Todos lhe diziam guinchando, que experimentasse o maravilhoso tratamento balneário, e lhe asseguravam que os marabus eram verdadeiras capacidades. — "É bem perto daqui," - disse-lhe o Conselheiro Médico;-"um balneário distinto e muito confortável. A responsável é minha conhecida, uma senhora valente e de muita confiança; tem mais de cem anos. Encontrará ali todas as comodidades, e as instalações seguem padrões europeus." Ambos os Conselheiros Médicos, de braços dados com o macaco o levaram ao balneário. Movimentavam-se com imponência sobre as suas pernas compridas, gesticulando com as asas, e falando sem parar sobre o rheumatismus musculorum. Toda a turma de macacos os seguia guinchando e cheia de expectativa. Chegaram logo. Era um balneário distintíssimo na margem do Nilo, realmente no padrão europeu e cheio de lama. Na beira do rio, sobre as árvores, papagaios — uns mais coloridos que os outros — conversavam sobre as últimas notícias. A praia estava livre e justamente naquele momento um rinoceronte alisava-a pisoteando. — "E este, com os dois chifres no nariz, é o recepcionista? " - perguntou o velho macaco preocupado. — "Não, este é o chefe do balneário," — explicaram- lhe os marabus. - "Ele soca o chão para dar-lhe melhor aparência. Em geral o ambiente aqui é total- mente europeu." O rinoceronte pisoteava pressuroso, focinhava por toda parte e enfiava seu chifre em coisas que não lhe diziam respeito. Quando encontrava alguma coisa totalmente inútil, grunhia de alegria. — "O chefe tem de ser assim? " - perguntou o velho macaco. — "Os exames clínicos sobre o comportamento das autoridades ainda não foram concluídos," — disse-lhe o Conselheiro Médico Privado. — "Aquele senhor grande e gordo é o responsável- mor," — disse-lhe o Conselheiro Médico, mostrando com sua asa um elefante que abanava a
  • 43. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 43 - comprida tromba para lá e para cá. - "Depois do seu banho ele lhe aplicará uma ducha. É exclusivamente por gentileza que ele o faz; é um tratamento terapêutico de grande valor. Nos intervalos, ele toca trombeta, substituindo assim a orquestra balneária. Ainda não possuímos uma. Estamos, porém, em negociações com várias hienas que deverão cantar regularmente, todas as noites, canções do deserto. Infelizmente exigem pelo seu trabalho uma vítima para devorar, e enquanto não temos ainda muitos clientes, isto se torna caro demais. Estes macaquinhos aqui são mascates, está vendo? ê um verdadeiro balneário moderno." Os três macaquinhos dançavam com afã em redor do velho macaco. — "Coçar o couro, pentear, pegar pulgas, caçar piolhos — preço: uma banana. Se fizer assinatura, mais barato!" — gritou um deles. — "Qual o que!" resmungou o velho macaco — "meu princípio é: pegar piolhos só em casa. Daria muito por estar na minha árvore!" Os outros dois macaquinhos aproximaram-se. — "Deseja folhas secas para fricções? Uma tâmara cada; boas folhas secas para fricções." — "Cascas de noz de coco, anéis de caniço, bonitos sou verti rs!" — "Vou me lembrar deste balneário até morrer, sem nenhum dossouvenirsV — “Eis o local do banho," — disse o Conselheiro Médico Privado. — “Basta o senhor enfiar as pernas com rheumatismus musculorum, caso não lhe agrade mergulhar inteiramente. As pernas estando dentro, o sangue desce." — "E as pulgas sobem," — disse-lhe o velho macaco. Do fundo do rio fez-se ouvir um tremendo roncar, grunhir e gargarejar, e à tona apareceu um enorme hipopótamo. — "ê a responsável," — exclamou o Conselheiro Médico satisfeito, e acenou com a garra. — "Este paciente deseja tomar um banho de lama balnea limosa; ele sofre de rheumatismus musculorum." — "Esta é a responsável? " — gritou o velho macaco. — "Quero ir para casa, quero subir à minha árvore!" A responsável sorriu com uma boca de vários metros, e principiou a remexer a
  • 44. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 44 - lama com muita maestria, pois era uma criatura de muita experiência e jeito. — "Quero ir para casa" — gritou o velho macaco , afastando as magras pernas de pau dos Conselheiros Médicos. — "Entre logo!" — comandou o rinoceronte — "deixe de encrencas; há mais gente ainda que quer tomar banho; também eu quero entrar." — "Pois não, pois não, o senhor primeiro, o senhor primeiro," — disse-lhe o velho macaco, mas já sentiu o chifre da autoridade nas costas, e caiu na água de cabeça para baixo, quase nos braços da responsável. Num segundo estava de novo fora d'água, verde e irreconhecível de tanto lodo. No mesmo momento o responsável-mor esguichou água com sua tromba, e o velho macaco teve a impressão de que o rheumatismus musculorum se precipitou das pernas para as mãos, das mãos para a cabeça, da cabeça para o rabo e do rabo para fora. O elefante era um mestre na ducha. Os marabus cacarejavam com aprovação; a responsável sorria gentilmente, e a família do macaco exultava de alegria. Nisto apareceu ao lado da responsável um crocodilo verde, piscando os olhos. — "Deseja uma massagem? " — perguntou,mostrando suas patas à guisa de propaganda — "deseja uma massagem? " O velho macaco, com um inacreditável e grande salto, pulou da margem do rio para um lugar mais seguro. — "Colega, o que o senhor acha," — perguntou o Conselheiro Médico Privado — "será um massagista experimentado? " — "Parece-me antes que é um massagista que experimentou outros," - disse- lhe o Conselheiro Médico. — "Os exames sobre as vantagens da massagem com patas de crocodilo não foram ainda concluídos," — disse-lhe o Conselheiro Médico Privado. — "Conheço esse massagista," - disse-lhe o Conselheiro Médico; — "uma vez ele fez massagem num cliente que sofria também de rheumatismus musculorum. O reumatismo sumiu durante a massagem, mas o cliente também. Desde aí, colega, não pude mais recomendar o massagista." — "Compreensível, muito compreensível, colega,"
  • 45. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 45 - — disse-lhe o Conselheiro Médico Privado. — "Existem sempre médicos que ainda defendem o ponto de vista de que a eliminação da doença não está ligada obrigatoriamente à eliminação simultânea do paciente. Porém, os exames clínicos também sobre isso não foram concluídos." Ambos procuraram o velho macaco. Este, no entanto, havia sumido, e toda a família de macacos com ele. Não aguentaram o aspecto do massagista. No díà seguinte os dois Conselheiros Médicos puseram- se a caminho para fazer uma visita de praxe ao velho macaco. Não chegaram longe, todavia. O velho macaco estava sentado numa árvore e jogava cocos. Um dos cocos atingiu o Conselheiro Médico na cabeça, formando um galo que inchou consideravelmente. — "Colega, preciso refrescar o galo," — disse o Conselheiro Médico. — "Tenho também a leve impressão de que faríamos melhor se desistíssemos da visita planejada." — "Compreensível, muito compreensível, colega," — disse-lhe o Conselheiro Médico Privado, e ambos procuraram um riacho. Ali o Conselheiro Médico refrescou o seu galo, e o Conselheiro Médico Privado anotou, cuidadosamente,o resultado do tratamento pela água no seu livro de doentes, confeccionado com folhas de palmeiras. Anotou com exatidão científica: "Cliente: um macaco graduado. Rheumatismus mus- culorum nas pernas. Método de auto-sugestão e psicanálise sem resultado. Tratamento com águas, banho de lodo, balnea limosa. O cliente sarou, porém, joga cocos, jactatio nucis, causando galo na cabeça do Conselheiro Médico assistente, tumor capitis. Os exames clínicos para verificar se jactatio nucis é conseqüência de balnea limosa ou decorrência do rheumatismus musculorum ainda não foram concluídos."
  • 46. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 46 -
  • 47. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 47 - Heroísmo Dois galos brigavam na frente do galinheiro da fazenda. Atrás deles, o parque sonhava num silêncio de verão, através dos sussurros de velhas árvores seculares, cheias de passarinhos que cantavam suavemente. Os galos, porém, não percebiam nada da paz das velhas copas e nada do sagrado silêncio do verão ensolarado. Enfrentavam-se, encaravam-se e brigavam, lá, no comedouro, no lugar de encontro da maioria dos galos briguentos. Costuma-se chamar a isso: "razoes econômicas", mas na realidade elas são bem outras. — "Este grão é meu!" — disse um dos galos. — "Não, ele é meu!" - disse o outro. No terreiro havia grãos em abundância, o suficiente para saciar muitos galos. Mas tinha de ser justamente aquele grão, somente aquele, o único. — "Eu vi o grão primeiro!" — disse um galo, estufando-se zangado. — "Não, fui eu que reparei primeiro!" — "Porém, ele foi-me destinado!" — disse o primeiro. — "Não, foi escolhido para mim!" — disse o outro. Ambos atacaram-se mutuamente, ergueram-se desajeitadamente um pouco no ar, bateram agitados as asas e abriram com raiva, desmesuradamente, os bicos. Os galos chamam a isso heroísmo, e é muito gozado de se ver. — "O grão me pertence" - gritou um galo, - "pois sou descendente de uma raça melhor." — "Não, eu sou de raça melhor!" — gritou o outro. — "Sou duma família mais antiga!" — cacarejou o primeiro. — "Não, eu!" - cacarejou o outro. — "Eu saí de um ovo vermelho!" — "E eu de um branco!"
  • 48. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 48 - — "Vermelho é mais distinto!" — "Não, branco é mais distinto!" — "Não, eu!" — "Razão tem quem é mais forte!" — grasnavam ambos. Agitavam-se com fúria, dançavam esquisito, meio por terra, meio no ar, com saltos muito tolos e grotescos; batiam com os esporões e martelavam um no outro com ódio. Chamam a isso guerra — e julgam-na necessária por causa de um grão, ou mesmo por nada, o que é tolice, na realidade, mas como se pode explicar isto a um galo? — "Não briguem!" — disse-lhes uma velha galinha, que passeava com seus pintinhos amarelos no parque, sob as copas das velhas árvores, no silêncio do verão ensolarado. Os galos atacaram-se de novo, com fúria; penas arrancadas voavam em todas as direções, e o grão, que como se costuma dizer, era a "causa econômica" — já há tempo jazia enterrado na lama. Em cima, no espaço azul, um gavião desenhava seus círculos. Devagar descia sempre mais. Depois, atirou- se de repente sobre o galinheiro. Todas as galináceas fugiram céleres para dentro de casa, os dois galos briguentos na frente, pois o mais forte está sempre com a razão. Só a choca não conseguiu alcançar mais a casa; seuspintinhos não podiam fazer tão depressa o trajeto do longo caminho do parque, com suas patinhas fra- cas e desajeitadas. Por isso ela ficou, chamou assustada seus filhotes e esperou o temível inimigo com o coração aos saltos. Os pássaros canoros calaram-se nas árvores; havia um terrível silêncio deprimente. Só se ouviam as batidas do coração da pobre galinha. O gavião aproximou-se da terra, pairando, e deslizou com o farfalhar medonho e assustador de suas pesadas asas, em direção da galinha e de seus pintinhos. Um deles ele apanharia, rasgá-lo-ia com seu horrível bico, e levaria depois consigo para longe dos prados verdes da vida, longe do coração materno, bem alto, pelo azul celeste e para a morte — uma dessas pequenas criaturas piantes
  • 49. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 49 - que ela chocou, criou e guiou, um de seus filhos! A choca soltou um grito dolente de tremenda queixa. Depois aconteceu algo inesperado, espantoso, algo que a orgulhosa ave de rapina ainda nunca presenciara. A galinha saltou para ele, pisou-o e mordeu-o com tanta fúria, tanta coragem e desespero, que ele foi obrigado a se defender. A luta foi desigual. O gavião sangrava, mas a galinha sangrava ainda mais. A luta não podia demorar muito. De repente o gavião se assustou, ficou indeciso, subiu no ar e, nervoso, começou a esvoaçar. Da casa vinham correndo as empregadas que escutaram o grito desesperado da galinha e enxotaram o gavião. A ave de rapina,desiludida e zangada,subia sempre mais e mais, até que, pela primeira vez na vida, vencida e castigada, sumiu no ar transparente do verão nórdico, qual leve silhueta sobre um vidro azulado. A galinha estava cheia de sangue, mas os ferimentos não foram graves. E em baixo das asas feridas da mãe, os pequenos, amarelos e desamparados pintinhos voltaram para casa. Não faltou nenhum deles. — — — Esta é uma estória verdadeira. Aconteceu há muitos anos na velha quinta de Paltemal, terra da minha infância. A galinha nunca foi sacrificada; recebeu a ração até sua morte natural e todos a respeitavam muito. Eu mesmo a conheci em garoto e tirava o chapéu ao en- contrá-la, certamente com muito mais razão e direito do que o fazia para a maioria das pessoas. Desde aí nunca me impressionei com briga de galos. Galos briguentos sempre existiram e existem, ainda hoje, mais do que o suficiente. Alguns deles ganham até nomes tonitruantes na história mundial, como nos é ensinada. Não são heróis. Os verdadeiros heróis, porém, — e existem muitos que a história mundial, como nos é ensinada, desconhece — esses receberam a galinha nas suas fileiras imorredouras.
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  • 51. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 51 - KRAKELIUS KREQUEQUEQUE O céu matinal derramava seu anil sobre as campinas da India, mergulhando todos os milagres da existência na luz do novo dia, sob a benção de Brahma. "Muito sábio e preclaro é este mundo," - disse o elefante Nalagiri Trapelhudo, acordando. E, levantando-se sobre suas pernas-colunas, quedou-se pensativo nessa posição, a larga cabeça virada para o oriente, pois alcançara grande experiência, e sua alma era clara e calma como o céu matinal da India. Ao seu redor, porém, não estava nada calmo. Nos galhos das árvores agitava- se uma grande multidão de cabeças, pernas, mãos e rabos. Uma reunião de macacos elegia o seu chefe. Sempre que macacos se reúnem, escolhem o seu chefe, do contrário não e- xistiria legítima palhaçada, o que os macacos querem em toda parte, na India e no resto do mundo, em toda parte onde há verdadeiros macacos — e os há bastante. Para chefe sempre se escolhe um de focinho maior e mandíbulas mais fortes, e eleições desse gênero, como todas as eleições no mundo inteiro onde há macacos, são um acontecimento ligado a efeitos secundários, altamente agitados e inesperados. Primeiro, desencadeia- se uma terrível algazarra. Assim ninguém mais entende o que o outro está a dizer — o que nas eleições não é necessário. Depois, eles começam a se morder mutuamente, a bater-se, enrolar-se em novelos, até que um novelo após outro se desenrola, e do último, que conseguiu se livrar de todos os outros, aparece o chefe, que é eleito desta maneira. Assim aconteceu também desta vez, e o macaco-chefe do novo dia chamava-se Krakelius Krequequeque. Ele assentou-se no mais alto galho da árvore e arrega- nhou os dentes, o que lhe formou muitas rugas no nariz, provocando assim uma expressão pouco amável. Por isso ele era o macaco-chefe. "Muitas criaturas desta terra são tão barulhentas!" — disse o elefante Nalagiri Trapelhudo. Dobrou com dificuldade e resignação as grandes orelhas e mudou a posição de suas pernas-colunas para refletir, a larga cabeça virada para o oriente. — "Doravante me incumbo do governo" — disse Krakelius Krequequeque, arreganhando de novo os dentes. — "Um governo consiste em impor restrições, em primeiro lugar, depois..." — "Não queremos restrições! Queremos liberdade! " — vociferaram os macacos.
  • 52. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 52 - — "Calem a boca," — disse-lhes Krakelius Krequequeque — "não existe liberdade para macacos, nem para um legítimo governo de macacos. Tudo tem de ser restrito. Vocês devem restringir-se e eu já estou restringido porque estou restringido como autoridade. Por isso sou o macaco-chefe!" Grande algazarra. — "Antes de mais nada, os filhotes macacos não têm necessidade de ficar sempre deitados e ser acariciados nos braços de suas mães. Isto amimalha a geração vindoura; nós necessitamos de macacos rijos e corajosos, como eu." — "Que é que você sabe sobre a criação de filhos? " — chacotearam as macacas mães. — "Não permitiremos que nos tire nossos doces pequerruchos." — "Sei muita coisa sobre educação infantil porque sou um governo. Sei um pouco de cada coisa porque o sei como autoridade. Por isso sou o macaco- chefe!" — "Sabe um pouco de cada coisa e não sabe nada." — disse-lhe uma jovem macaca mãe, arreganhando os dentes. — "Em seguida" — disse Krakelius Krequequeque — "a mocidade não deve se coçar tanto em público. Não é bonito. Melhor será fazer exercícios com as pernas; isso cria a juventude que precisamos. Nosso futuro está nas pernas. Grande algazarra. — "Nós nos cocamos quando sentimos coceira," — gritaram as mocinhas e os mocinhos —"você também se coça." — "Isso é diferente;" — disse-lhes Krakelius Krequequeque — "quando sinto coceiras, sinto-as como autoridade, e quando me coço, coço-me como auto- ridade. Por isso sou o macaco-chefe!" Nesse ínterim sentiu coceira e se coçou como autoridade. — "Outra coisa: todos os macacos devem apanhar frutos e não vagabundear. Essas serão nossas provisões para os tempos das vacas magras e essa é a disposição do governo." — "Queremos comer e não guardar provisões!" — gritaram os macacos.
  • 53. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 53 - — "Isso é o que faltava!" — disse-lhes Krakelius Krequequeque. — "Viver sempre comendo sem trabalhar o governo não permite. Vocês têm de colher e o que colherem, trazer para mim. Um verdadeiro governo de macacos sempre guarda todos os frutos que os outros colhem." — "Para devorá-los!" — vociferaram os macacos. — "Certamente," — gritou Krakelius — "e comendo-os todos sozinho, como-os como autoridade. Por isso sou o macaco-chefe!" Um guinchar sempre mais forte de todos os macacos e macacas. Não se entendia mais nenhuma palavra sequer. Repentinamente cessou todo o barulho. Da mata cerrada apareceu a tigreza, num elegante vestido de pele listrada, com expressão zangadíssima na cara. Todos se afastaram rapidamente para as al- turas, pois em gente que não é tigre este animal causa facilmente um mal-estar. — "Que é que significa esse barulho infernal? " — bra- miu a senhora Miesimissa Patamole. — "Meus filhi- nhos, os pequenos Patamole, não conseguem dormir por causa desse estúpido cacarejar." — "Precisamos cacarejar tanto porque temos um governo e um macaco-chefe," — disse-lhe um macaco pequenino, uma criaturinha totalmente inocente. — "Onde está o seu macaco-chefe? " — perguntou-lhe a senhora Patamole, batendo perigosamente com a pata num tronco. — "Macaco-chefc, macaco-chefe!" — gritaram os macacos assustados e correram desordenadamente a procurá-lo. — "O macaco-chefe tem de nos defender, tem de falar com a senhora Patamole. Onde está o macaco-chefe? " Mas o macaco-chefe sumira. Finalmente encontraram uma solitária pata traseira saindo de um buraco num tronco de árvore. Puxando essa pata de autoridade, tiraram Krakelius do buraco e colocaram-no sobre seus membros cambaleantes. Ele esforçava-se muito para voltar ao buraco, debatendo-se veementemente com as mãos e os pés, os outros macacos, porém, seguravam-no. — "É você o macaco-chefe? " — perguntou-lhe a senhora Miesimissa Patamole, lambendo o focinho de maneira desagradável.
  • 54. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 54 - Krakelius Krequequeque estendeu uma perna e um braço em juramento. — "Nunca fui um macaco-chefe, juro, nunca!" Como poderia ter ficado macaco- chefe? Sou tão fraco e doentio. Minha carne não tem saúde e sou muito magro. Nem o meu pêlo presta, pois estou cheio de traça. Não, não compensa mesmo a senhora se incomodar por minha causa. A senhora viu como me tiraram do buraco em que caí de fraqueza, de pura fraqueza!" — "Você não acabou de falar sobre educação de crianças? Não disse agora mesmo que é firme e corajoso? " — perguntou-lhe a senhora Miesimissa Patamole. — "Como poderia ter dito isso se não entendo nada de educação? Nunca entendi nada disso," — disse- lhe Krakelius Krequequeque bamboleando-se todo. — "E eu corajoso? Meu Deus, meu bom Deus! " — choramingou comoventemente o macaco. — "Você não falou agora mesmo da coceira da juventude? " perguntou-lhe Miesimissa Patamole, e rosnou assustadoramente. Krakelius Krequequeque movimentou nervosamente a mão e o pé em juramento. — "Nunca, nunca!" - assegurou - "fico feliz quando não sinto coceira." — "Porém você estava querendo guardar os frutos que eles colhessem," — disse-lhe Miesimissa Patamole. — "Então você é o macaco-chefe!" A mão e o pé em juramento moveram-se convulsivamente. — "Juro pelo templo de Benares, pelo couro dos meus antepassados, juro com as mãose os pés, nunca falei semelhantes coisas! Como poderia ter dito isso? Ai de mim, pobre criatura indefesa! Não creia em semelhantes coisas, minha cara senhora Patamole!" — "Não sou sua cara senhora Patamole, seu macaco bobo. Vou tirar-lhe as pulgas do pêlo!" A senhora Miesimissa Patamole era uma dama. Custa- me dizê-lo, mas ela usou realmente essa expressão. Das profundezas do jangal ouviu-se então um miado suave e queixoso, de
  • 55. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 55 - várias vozes. - "Oh, céus!" - disse Miesimissa Patamole - "meus doces filhotes, os pequenos Patamole, que vocês acordaram, estão me chamando. Estão com fome. Preciso voltar para casa. Mandarei, porém, meu marido assim que ele voltar da caça. Ele investigará todo esse assunto. Vocês vão ver, cambada de macacos!" Miesimissa Patamole sumiu na selva e logo os Patamole estavam aconchegados entre as patas maternas, mamando de olhos cerrados, e ronronando alto e delicados. Os macacos resolveram, é claro, não esperar a chegada do senhor Patamole. No momento em que a senhora Miesimissa Patamole sumiu, iniciou-se um debandar desordenado, um emaranhado confuso de cabeças, braços, pernas e rabos. À frente de todos fugia Krakelius Krequequeque, pois ele fugia como autoridade. Por isso era o macaco-chefe! Tudo silenciou nos galhos das árvores. O céu matinal derramava seu anil sobre as campinas da India, mergulhando todos os milagres da existência na luz do novo dia, sob a benção de Brahma. "Muito sábio e preclaro é este mundo," — disse o elefante Nalagiri Trapelhudo, e mudou a posição de suas pernas-colunas para refletir, a larga cabeça virada para o oriente. — "Inúmeras criaturas, porém, são mui tolas e mui barulhentas. Especialmente tola e barulhenta é a macacada desta terra, e os mais tolos e mais barulhentos são os macacos-chefes."
  • 56. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 56 -
  • 57. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 57 - Glória Post Mortem Os funerais do célebre anatomista e diretor do Instituto Fisiológico da antiga Universidade decorreram em forma de comovente homenagem dos círculos acadêmicos aos méritos do grande finado. O catafalco, ornamentado com coroas de flores e fitas de seda, mergulhado em flores e folhas de louro, estava emoldurado por círios ardentes, e, na sua frente, sobre uma almofada de veludo, tinham colocado numerosas insígnias que o eminente cientista havia usado, com justificável orgulho, durante sua vida. Dos dois lados do catafalco, os representantes das corporações montavam guarda de espada em riste; ao lado da família encontrava-se o senado da Universidade paramentado, o corpo docente em peso, e os representantes do governo. O sacerdote acabava de pronunciar seu discurso, que penetrou profundamente em todos os corações. "Foi um homem exemplar e um cientista exemplar," assim terminava ele, "foi um por ser também o outro, porque ser um grande pesquisador significa ser também um grande homem. Estamos ao pé do catafalco de um homem excepcional, com a alma cheia de tristeza porque ele nos foi tomado. Porém, não nos devemos entristecer nem lamuriar, pois este Grande não está morto; continua a viver, e está agora perante o trono do Todo-Poderoso, eriVolto no esplendor de toda sua vida laboriosa, como diz a escritura: "Eles descansam do seu trabalho e as suas obras os acompanham!" Todos ficaram em silêncio, e ninguém reparou que o sacerdote, aparentemente, havia se esquecido de um pormenor insignificante, isto é, que o Grande Morto, que devia encontrar-se nesse momento perante o trono do Todo-Poderoso, defendeu durante sua vida inteira a convicção da não existência de Deus. Essas minúcias, porém, são geralmente esquecidas nos discursos fúnebres. Em seguida, levantou-se o Reitor da Universidade, que ostentava uma corrente de ouro no pescoço, e pronunciou, com voz cheia de emoção, cálidas palavras de despedida para o seu célebre colega. "Ele foi sempre um ornamento da nossa velha alma mater e um ornamento da ciência, à qual consagrou toda sua existência; um exemplo para nós e para todos que virão depois, porque seu nome brilhará eternamente nas letras douradas do cabedal da cultura humana. Neste momento profundo e festivo bem pouco posso falar da grandeza do seu espírito, apenas, apontar como reunia provas e mais provas baseando- se em incansáveis experiências com animais. São imprevisíveis as grandiosas perspectivas que se abriram para a humanidade sofredora e para a ciência por meio de fatos totalmente novos na medicina. Resta-nos imitar o grande pesquisador, que nos indicou tais caminhos, e nós, assim como a juventude acadêmica que o admirava, para a qual ele foi um guia à verdadeira dignidade humana, queremos jurar, ao pé de suas cinzas, continuar e ampliar sua obra, para o bem da ciência européia e glória da nossa amada pátria. Como podemos felizmente constatar, não faltaram ricas distinções ao
  • 58. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 58 - nosso Grande Morto, e mesmo honrosas demonstrações de benevolência chegaram-lhe dos mais altos poderes.'-Todos os o- Ihos dirigiram-se com admiração para a almofada de veludo com as condecorações que pesavam vários quilos. — "Ainda poucos dias antes de sua morte, recebera com alegria a nomeação de Conselheiro Privado Efetivo, com o título Excelência, homenagem que fez vibrar com ele nossa Academia inteira. Porém, por maior que tenha sido sua fama durante a vida, maior ainda ela será após a morte, para toda a eter- nidade, e nós, que o choramos, fazemos votos que descanse agora do seu trabalho, passeando nos Campos Elíseos na companhia dos grandes espíritos de todos os tempos, aos quais igualou-se por suas obras, e assim, também eu quero concluir com as palavras do conferencista eclesiástico que me precedeu: "e as suas obras os acompanham!" Todos estavam cheios de reverência, em parte por causa da ciência européia, em parte por causa do título Excelência. O Magnífico Reitor não se lembrou porém de uma insignificância, isto é, de a ciência européia considerar os Campos Elíseos uma fábula, e afirmar terem se dissolvido em substâncias químicas, os grandes espíritos do passado. Isto porém são insignificâncias, e a instrução que está em voga atualmente permite usar palavras gregas para as coisas que mais nada representam. Se quiséssemos pensar um pouco - meu Deus, aonde chegaríamos na nossa atual civilização e na ciência européia? O representante do governo declarou haver sido o falecido o sustentáculo do regime moderno, e o representante da cidade disse haver a Prefeitura resolvido unanimemente conceder o nome do Grande Morto a uma das suas ruas. O coro da igreja cantou um coral, uma canção antiga de tempo remoto; homens diferentes, com princípios diferentes criaram essa canção que não se harmonizava com as tonitru- antes palavras de hoje. Muito suave e irreal, como de vozes do além, espalhava-se o canto pelo espaço: "como será, como será, quando entrarmos em Salém, a cidade das ruas douradas? ..." Nisso o caixão baixou. — — — — — — O morto estava o tempo todo assistindo aos funerais. Parecia-lhe não haver mudado muita coisa. Recordava apenas ter vislumbrado um brilho muito claro, depois voltou tudo a ser como antes; mal se dava conta de ter morrido. Sentia- se apenas mais leve, nenhum peso, nenhuma matéria densa. Ficou perplexo. Então existe uma vida após a morte? A antiga ciência estava certa e a nova, errada? Porém, assim era mais belo e proporcionava-lhe muita calma, embora houvesse algo de atroz em não poder falar mais com ninguém, e em nenhum
  • 59. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 59 - dos seus parentes e colegas perceberem quão próximo deles se encontrava. Não obstante, consolava-o muito ouvir como o homenageavam e com quanta certeza falavam do trono do Todo- Poderoso e dos Campos Elísios. Os títulos e as condecorações faziam-lhe falta, não lhe era possível tocá- los. Todavia não continuava ele sendo sempre ainda o grande cientista, o célebre pesquisador? Não diziam: "e as suas obras os acompanham? ..." Ficou só. Os contornos do espaço escureceram e diluiram-se no nada. Um grande silêncio o envolveu; apenas bem de longe, quase imperceptíveis, chegavam os sons da canção: "quando entrarmos em Salem, a cidade das ruas douradas." Isto ia acontecer agora, talvez já. Sentiu uma grande tensão; e nesta tensão havia algo de medo, de inexplicável, uma grande interrogação que o enchia por completo. Também ficou tão escuro que não se via mais nada. De repente clareou e um anjo surgiu à sua frente. Então isto também existia? Neste caso existia também um Deus, e os inúmeros mortos que continuavam vivos, e a Jerusalém espiritual. Como era belo tudo isso! Mas o anjo parecia sério e muito triste. — "Para onde quer ir? " — perguntou-lhe ele. — "Ao paraíso." — "Venha," - disse-lhe o anjo. Um grande portal escuro abriu-se sem ruído e eles entraram num recinto ofuscantemente iluminado. As paredes tinham cor de sangue e no chão acocora- vam-se inúmeros bichos mutilados que gemiam. Estendendo seus membros ensangüentados ao morto, encaravam-no com olhos ofuscados e apagados. Suas fileiras alongavam-se até se perderem de vista. — "Eis aqui as cadelas que você martirizou para tirar os filhotes. Nunca teve filhos que amou? Quando seus filhos morrerem e procurarem o pai no paraíso, hão de encontrá-lo aqui. é o seu paraíso, o paraíso que você criou. Aqui estão os gatos, cujos ouvidos destruiu com tremendos suplícios. Deus deu- lhes um ouvido tão sensível que é uma maravilha da criação. Você não ouvirá nada mais a não ser isto. Aqui estão os macacos e os coelhos que você cegou. Deus deu- lhes a vista para poderem ver o sol. Você não via também o sol durante toda sua vida? Devo levá-lo adiante? é uma fila muito, muito longa." — "É horrível," — disse-lhe o morto. — "É sim," — disse-lhe o anjo.
  • 60. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 60 - — "Todos estes bichos continuam vivendo? " — "Todos estes bichos vivem ao lado de Deus," — disse- lhe o anjo - "você não pode chegar até lá, pois eles estão lá acusando-o. Não o deixarão passar. O que está vendo aqui são suas imagens de outrora refletidas; são suas obras, e estarão com você. Sofrerá no próprio corpo os tormentos deles até tornar à terra para expiar. É um caminho longo e triste. Mas não serão seus únicos companheiros, terá ainda um outro: olhe quem está à sua frente, no meio de todas as suas obras!" O morto olhou para cima e viu um repugnante fantasma com carranca humana. Trajava roupa cheia de sujeira e sangue, e segurava uma faca numa das mãos. — "Isto é mais horrendo do que qualquer outra coisa que jamais vi na minha vida," — disse-lhe o morto, possuído de pavor como nunca tinha experimentado. — "Quem é este espantalho? Terei de olhar sempre para ele? " — "Isto é você," — disse-lhe o anjo. — "E a ciência? " — perguntou-lhe o morto assustado. — "Não lhe prestei serviços? Não pertenço aos grandes espíritos, embora tenha cometido esses atos? " — "Os grandes espíritos eram irmãos dos bichos, não seus carrascos. Eles iriam virar-lhe as costas, caso pudesse chegar até lá. Porém você nem pode se aproximar deles. Você foi uma nulidade e não um grande espírito. Você tinha consciência de ser uma nulidade, de nunca poder descobrir nada, e, por isso, de pura vaidade, cometia todas essas monstruosidades, na esperança de decifrar por acaso alguma coisa dos mistérios da natureza, torturando-a. Mais tarde, acres- centou-se-lhe a volúpia de matar, a loucura de dominar os seres inferiores. Está percebendo isso tudo? Pode vê-lo claramente no seu reflexo, que representa fielmente todos os seus traços. Fique com ele, lave sua roupa imunda e ensangüentada até ela se tornar branca como a neve! Poderá durar mil anos, ou talvez mais. Fique com ele, pois não lhe pode escapar. é seu companheiro e estas criaturas de Deus, mutiladas, são o seu Paraíso. — "Tudo isso é verdade; porém, pensando e agindo dessa forma, não estimulava eu o conhecimento científico? Não terei a proteção da ciência? "
  • 61. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 61 - — "Conhecimento através do crime? " — perguntou- lhe o anjo. — "Conhecimentos a ciência tinha outrora quando era um templo. Vou mostrar-lhe o que a vossa ciência representa hoje." Uma feia luz amarela piscou e o morto viu um bobo sentado, a construir casas de baralho com as mãos ensangüentadas; uma rajada de vento derrubava-as, mas o bobo continuava sempre a construir. — “Isto é tudo? " — perguntou-lhe o morto, agarrando-se às vestes do anjo em busca de proteção. — "Isto é tudo. A vossa ciência não ensina também que não existe Deus, nem remissão, nem vida após a morte? Devo ir-me agora, fique no seu Paraíso!" O morto ficou no seu Paraíso e teve-o perante seus olhos em todas as horas, todos os dias, todos os anos. Isso não pode ser medido pelo tempo, pelo menos não cientificamente, e esta forma é a única que pesa, não é? De muito longe chegavam os sons de uma canção antiga de um tempo remoto, quase inaudíveis, e cada vez mais fracos: "Como será quando entrarmos em Salém, a cidade das ruas* dou radas? ..." Talvez esta canção signifique alguma coisa, pois todos nós temos de morrer um dia. Quem, porém, pensa nisso hoje, na época da esclarecida ciência européia? Os jornais publicaram longas colunas necrológicas sobre o célebre, grande pesquisador e cientista, sua Excelência o Conselheiro Privado Efetivo, cuja morte representa uma perda insubstituível para a ciência, cujo nome, porém, permanecerá por todos os tempos, sendo uma página gloriosa na história da humanidade,um símbolo magnífico da nossa cultura avançada e um monu- mento para todas as gerações vindouras, como o foram os melhores antes dele. Glória a esses Grandes Mortos! Sim, eles descansam do seu trabalho, e as suas obras os acompanham.
  • 62. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 62 -
  • 63. Também Eles São Nossos Irmãos? - Manfred Kyber - 63 - A Terra da Promissâo O caminho da selva Não sei dizer quando aconteceu a estória que passo a narrar. Talvez há cem anos, talvez ontem. Talvez aconteça hoje ou amanhã,ou depois de centenas de anos e nem cheguemos a ver. Pois já faz muito tempo que a terra se livrou do sangue, da culpa e do engano, mas passará muito tempo até que se purifique, é difícil dizer quando as coisas acontecem, porque o tempo é ilusão e o que vemos aqui não é outra coisa que um molde de mil facetas. Os fatos verdadeiros, porém, acham-se atrás dos objetos palpáveis, no mundo espiritual, e esta estória também se encontra gravada no mundo espiritual, onde nascem e se transformam todas as formas, e onde respira, imensurável, a eternidade. O que passo a narrar, contudo, creio ter se repetido muitas vezes nos tempos idos; acontece ainda hoje e terá ainda de se repetir muitas vezes até a remissão total da terra. Pois é longo esse caminho, e nenhuma pobre sabedoria humana pode dizer algo sobre a sua duração. Sabemos apenas que é muito penoso e cansativo para os poucos que por ele hoje caminham. Eis porque esta estória aparecerá sempre com outras roupagens, de acordo com a época em que se desenrole, porque, de outra forma, a pobre sabedoria humana não poderá compreendê-la. Sempre estamos vendo a aparência das coisas, no entanto, precisamos nos esforçar para entender a essência das coisas por meio da sua aparência. A estória que pretendo narrar decorreu na selva, e sua personagem principal usava o hábito dos Irmãos de São Francisco de Assis. Tem de ser assim, pois é uma estória de união fraternal, e nela vive o espírito do Santo de Alverne. Não é necessário, porém, usar exteriormente aquele hábito para andar pelo caminho que aquele irmão seguiu, nem precisa ser obrigatoriamente uma selva onde se passa ou se passará esse fato. Poderá ser uma cidade com modernas fábricas e máquinas; poderá ser uma aldeia com roças e campinas, ou bem, uma estrada empoeirada. Tudo isto é indiferente e é apenas uma roupagem, como a vida de hoje não é mais que uma selva para quem segue pelo caminho de Francisco de Assis. Devemos compreender que todos nós vivemos sobre um limiar, e que as verdadeiras estórias da e'xistência se processam no mundo espiritual, atrás das coisas e daquilo que nós chamamos acontecimentos. Estes, porém, talvez sejam apenas nossos sonhos, e porque sônhamos não percebemos o que de fato é real. Talvez seja difícil compreender o que estou dizendo, mas devo dizê-lo porque é verdadeiro.