1. Elísio Estanque*
Jornal PÚBLICO, 01.05.2013
Os sentidos do trabalho
A pretexto do lançamento em Portugal da obra do sociólogo brasileiro Ricardo
Antunes com o título supra mencionado (Os Sentidos do Trabalho: ensaios sobre a
afirmação e a negação do trabalho. Coimbra: CES/Almedina, 2013) e num momento
em que na Europa e em Portugal assistimos ao desmantelar dos direitos laborais, é
imperioso repensar a categoria “trabalho”, não só à luz da polissemia que lhe é
intrínseca, mas tendo em vista a profunda metamorfose social que está em curso, e
interrogar-nos sobre qual será o significado futuro do trabalho e que formas virá ele a
assumir num presumível cenário pós-crise?
Como se sabe, a crise global das últimas décadas é reflexo de uma aceleração
dos mecanismos de mercado e dos fluxos financeiros, no seu papel multiplicador de
acumulação de capital e de subalternização do trabalho produtivo. Dos tempos de Marx
e das suas análises há, pelo menos, algumas ideias que voltaram a ganhar força na
era do capitalismo neoliberal em que vivemos: a expansão das relações comerciais e
do mercado fez com que o valor de troca suplantasse e dominasse o valor de uso das
mercadorias; e a atividade económica no capitalismo, ao mercadorizar a própria força
de trabalho, reverteu-se em força compulsória, exterior, metamorfoseando o trabalho
numa forma alienada e de “estranhamento”, ao qual o trabalhador foi sendo
progressivamente submetido.
Neste contexto, o trabalho – designadamente o trabalho assalariado – manteve
sempre um sentido ambivalente, sendo a um tempo factor contingente, de submissão e
de resposta a necessidades imediatas, e a outro elemento potenciador de liberdade e
de emancipação através da luta da classe trabalhadora. Mais do que julgar o
pensamento de Marx como um todo, é preferível aprofundar a sua reflexão em torno do
trabalho no capitalismo mas, acima de tudo, prosseguir a crítica da sociedade
capitalista através do trabalho e dos seus sentidos polissémicos. Enquanto atividade
humana o trabalho está no centro do processo de emergência das sociedades, mesmo
nas suas formas mais primitivas. No entanto, a sua componente de realização e de
criatividade foi progressivamente revertida em estranhamento e em exploração pelo
2. capitalismo, pelo que a ideia de uma futura sociedade centrada no trabalho pressupõe
resgatar o velho sentido libertador e emancipatório a ele associado.
É o trabalho que “possibilita o salto ontológico das formas pré-humanas para o ser
social. Ele está no centro do processo de humanização do homem.” (Ricardo Antunes,
Os Sentidos do Trabalho). Retomando a perspetiva ontológica de Georg Lukács
(Ontologia do Ser Social), a noção de trabalho possui um sentido universal para além
do capitalismo: (1) o trabalho distingue o agir humano dos outros animais; (2) define um
modo particular de interação com a natureza e o ambiente; e (3) a própria dinâmica da
sociedade está associada ao trabalho. Do ponto de vista da humanidade, o trabalho é
uma atividade de que, no capitalismo, o trabalhador perdeu o seu controlo. A
especificidade do capitalismo deriva da sua capacidade de reverter o trabalho num
valor económico que escapa ao controle dos seres humanos e de certo modo passa a
dominar a sua existência social, ou seja, resulta daqui que o fator “estranhamento”
assume uma importância tão ou mais importante do que a “exploração” na obra de
Marx.
É claro que, no contexto de crise e de escassez de emprego que se instalou entre
nós, a imensa nuvem ideológica que (em períodos de estabilidade) conduz à alienação
e ao fetichismo consumista, assume-se agora na ideia de que mesmo o trabalho mais
degradante é preferível ao desemprego. Mas se aceitarmos que, apesar dos dramas
atuais, nem isto é o fim nem o que se vai seguir é o nada, que a vida vai continuar para
além desta crise (e se necessário para além do capitalismo realmente existente),
importa no mínimo admitir duas coisas: primeiro, que o trabalho, mesmo subtraído de
dignidade, irá continuar a constituir a base da riqueza e da coesão social; segundo, que
as formas de trabalho assalariado terão de tornar-se mais polimórficas, flexíveis e
desdobradas em temporalidades e dinâmicas onde as componentes opressiva e
emancipatória ganharão um novo equilíbrio. Porém, até lá, será ainda a “classe-que-
vive-do-trabalho” (onde se inclui o novo precariado e a classe média em declínio) que,
com toda a probabilidade, irá induzir as ruturas sociais necessárias para abrir caminho.
Do desfecho dessas lutas dependerá a possibilidade de – para além da produção – o
trabalho se constituir em espaço de liberdade, de criação e de desenvolvimento cultural
do trabalhador. Como nos lembra Ricardo Antunes, “se o trabalho se torna
autodeterminado, autónomo e livre, e por isso dotado de sentido, será também (e
decididamente) por meio da arte, da poesia, da pintura, da literatura, da música, do uso
autónomo do tempo livre e da liberdade que o ser social poderá humanizar-se e
emancipar-se no seu sentido mais profundo” (Ibidem).
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* Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra;
Professor visitante da UNICAMP – Campinas, Brasil.