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Como os jesuítas de hoje estão usando o poder espiritual conquistado através dos séculos para tentar influir nos rumos da política internacional,
De aliados do Papa e seus intransigentes de-fensores, os jesuítas passaram de algum tempo para cá a ser os seus mais ativos opositores.
Malachi Martin, teólogo eminente e antigo je-suíta, revela como os atuais dirigentes da Com-panhia de Jesus a transformaram na maior inimiga do capitalismo democrático do Mundo Ocidental.
Os jesuitas. A companhia de Jesus e a Traição à Igreja Católica. Malachi Martin
1.
2. Como os jesuítas de hoje estão usando o poder
espiritual conquistado através dos séculos para
tentar influir nos rumos da política internacional,
De aliados do Papa e seus intransigentes de-fensores,
os jesuítas passaram de algum tempo
para cá a ser os seus mais ativos opositores.
Malachi Martin, teólogo eminente e antigo je-suíta,
revela como os atuais dirigentes da Com-panhia
de Jesus a transformaram na maior
inimiga do capitalismo democrático do Mundo
Ocidental
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3. OS JESUÍTAS
Malachi Martin, destacado teólogo e especialista em Igreja Cató -
lica, ex-jesuíta e professor do Pontifício Instituto Bíblico do Vaticano,
ousou assestar um holofote nos véus dos segredos que encobrem as a ti-vidades
da mundialmente poderosa Igreja Católica Romana. Neste uni -
verso em que a fé e o poder entram em choque, a Sociedade de Jesus
tem sido, talvez, a mais lendária e fabulosa, a mais admirada e inju riada
na prática de ambos. De seu início numa época revolucionária, e ao
longo dos quatro séculos e meio de sua tumultuada existência, os
jesuítas têm sido ao mesmo tempo um enigma e um modelo para o resto
do mundo. Amigos e inimigos, católicos e não-católicos, todos têm ten-tado
resolver o poder e o segredo desses homens, treinados e devotados
do ponto de vista religioso que também são gigantes em todas as
atividades seculares da humanidade. Nas ciências e nas artes, nas le tras,
na exploração e no ensino — para não falar na política mundial —, os
jesuítas sempre visaram ao melhor. E foram.
No entanto, o aspecto mais desconcertante da Sociedade de Je sus,
e o que mais enfurecia seus inimigos, era que, apesar de todo o poder,
os jesuítas eram gigantes com uma finalidade: a defesa e a pro pagação
da autoridade e do ensinamento papais. Fiéis a um ideal espiritual, e
para “A Maior Glória de Deus”, eram os defensores por excelência dos
interesses vitais da Igreja, a Força Especial do vigário terreno de Cristo.
Não eram apenas “Homens do Papa”. Eram os Homens do Papa. Até
agora.
Em Os Jesuítas, Malachi Martin torna pública, pela primeira vez, a
pungente história dos bastidores de homens e seus motivos e dos meios
por eles usados, por trás da camuflagem da grandeza jesuíta no pas sado,
para construir a “nova” Sociedade de Jesus no âmbito mundial. O leitor
conhecerá os líderes e os joguetes; o sangue e o pathos-, a política, as
traições e as humilhações; as campanhas de vendas enlatadas que se
estendem de Roma e de Washington para o mundo e que mas caram uma
missão estranha e destruidora.
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4. MALACHI MARTIN
OS JESUÍTAS
Tradução de LUIZ CARLOS DO NASCIMENTO
SILVA
EDITORA RECORD
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6. SUMÁRIO
A Guerra 9
1ª Parte: A ACUSAÇÃO
1. Objeções Papais 35
2. O Campo de Provas 45
3. Papa Branco, Papa Negro 69
4. A Humilhação Papal 93
5. Desobediência Sumária 107
2ª Parte: A SOCIEDADE DE JESUS
6. Iñigo de Loyola 129
7. O Modelo Inaciano 153
8. A Companhia de Inácio 169
9. O Caráter da Sociedade 181
10. O Superior Máximo 203
11. Furacões na Cidade 221
3ª Parte: OS LIBERTADORES
12. A Doutrina Cativante 235
13. George Tyrrell, S.J. 247
14. Pierre Teilhard de Chardin, S.J. 259
15. A Teologia da Libertação 275
16. O Segundo Concílio Vaticano 289
4ª Parte: O CAVALO DE TRÓIA
17. O Segundo Basco 303
18. Roupas Antiquadas 327
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7. 19. Novos Fios Contínuos 339
20. A Procura do Carisma Primitivo 355
21. O Novo Tecido 385
22. Imagem Pública 409
A Ânsia para Construir o Mundo do Homem 425
Notas 453
Fontes e Dados 463
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11. E
xiste um estado de guerra entre o papado e a Ordem Religiosa dos
Jesuítas — a Sociedade de Jesus, para dar à Ordem seu nome
oficial. Essa guerra assinala a mais mortífera alteração a acontecer
nas fileiras do clero romano nos últimos mil anos. E, como todos
os acontecimentos importantes na Igreja Católica Romana, envolve
os interesses, as vidas e os destinos de milhões de homens e
mulheres comuns.
Como acontece com tantas guerras de nossa época, os jesuí tas não
declararam a deles contra o papado. Na verdade, embora as primeiras
escaramuças às claras começassem na década de 1960, levou tempo para que os
efeitos da guerra — até mesmo efeitos muito profundos — se tornassem
amplamente visíveis. Como os líderes da guerra eram os Superiores da Ordem,
foi uma questão simples colocar homens com a mesma identidade de
pensamento encarregados dos órgãos de poder, autoridade e comunicações por
toda a organização. Feito isso, a imensa maioria dos jesuítas pouco tinha a
dizer nas decisões extraordinárias que se seguiram.
Com o tempo, houve manifestações em voz grave e avisos sobre o que
estava acontec endo. “Está havendo um golpe de estado”, escreveu um jesuíta,
ao olhar estupefato para “ a facilidade com que está sendo conseguida a
dissolução da ordem estabelecida [na Sociedade de Jesus]”.
Àquela altura, entretanto, já se estava no início dos anos 70, a guer ra já
vinha sendo feita há quase uma década, e alarmas como aquele de pouco
adiantavam. De fato, dada a estrita obediência dos jesuítas — um elemento
lendário e de eficiência comprovada ao longo dos anos, da anti ga estrutura, que
os novos líderes ainda achavam útil quando tratavam com os dissidentes de
suas políticas estranhas —, os subalternos da Ordem não tinham outra
alternativa senão acompanhar as mudanças que, nas palavras de outro jesuíta,
“arrancaram a Sociedade de Jesus de sob os nossos pés e [a] transformaram
numa entidade monstruosa sob o dis farce de bons objetivos”.
Ainda assim, pode alguém pensar em perguntar, suponhamos que haja um
problema entre o papado romano e os jesuítas; qual a gravidade que isso pode
ter? Chame de guerra, se quiser. Mas, francamente, será que não se trata de
apenas outra disputa na Igreja Católica Romana? Num mundo que se vê
balançando à perpétua beira da aniquilação, e no qual metade da população
morre de fome enquanto a maioria da outra metade está presa à lama por um
tipo de injustiça ou outro, que importância pode ter uma desinteressante
discussão teológica? Mais ou menos tão importante, talvez, quanto saber
quantos anjos podem dançar na cabeça de um alfinete!
A verdade, porém, é que não se trata de disputa sobre sutilezas, nem
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12. mesmo de desavença teológica entre o papado e os jesuítas que envolva apenas
doutos, clérigos e fiéis. Como o papado e os jesuítas sabem, os efeitos de suas
políticas vão muito além dos limites da Igreja Católica Romana; além até
mesmo dos quase um bilhão de homens e mulheres católicos no mundo inteiro.
Quase tudo o que acontece nessa guerra tem relaç ão direta e imediata com as
grandes dissensões que castigam todas as nações e povos do mundo. Está no
exato centro da rivalidade entre os Estados Unidos e a União Soviética, por
exemplo. Relaciona-se, neste exato momento, ao destino — de miséria ou de
felicidade — de 350 milhões de pessoas na América Latina. Afeta o código de
moral pública e o consenso nacional do povo norte-americano, ambos em
profunda mudança; a iminente preponderância, nos assuntos humanos, da
República Popular da China; a frágil persistência de uma Europa Ocidental
livre; a segurança de Israel; a ainda tosca promessa de uma África negra
viável, que está no nascedouro. Todas essas coisas, por separadas e desconexas
que possam parecer, estão não apenas interligadas umas às outras, mas estão e
serão profundamente influenciadas pelas ondas e pelo resultado da coli são
global entre o papado e a Sociedade de Jesus.
Todas as guerras se relacionam ao poder. Na guerra entre o papado e a
Sociedade, o poder flui ao longo das linhas de duas questões fundamentais e
concretas. A primeira é a autoridade: quem está no comando da Igreja Católica
Romana no mundo inteiro? Quem estabelece a lei quanto a em que os católicos
romanos devem acreditar e que tipo de princípios morais devem eles praticar?
A segunda questão é o propósito: qual é o propósito da Igreja Católica
Romana neste mundo?
Para o papado, as respostas a ambas as questões são claras e bem
conhecidas. A autoridade para ordenar e ensinar desce, pela sua estrutu ra
hierárquica, do papa aos bispos, aos padres e aos leigos. E o único propósito da
Igreja neste mundo é fazer com que todo indivíduo tenha os meios de alcançar
a vida eterna de Deus depois da morte. Trata -se de um propósito
exclusivamente espiritual.
Para muitos jesuítas, em contrapartida, a autoridade centralizada da
Igreja, a estrutura de comando por meio da qual é exercida e sua finali dade
são, todas, inaceitáveis hoje em dia. As tradicionais prerrogativas deste papa,
João Paulo II, ou de qualquer papa, são censuráveis.
No lugar de uma Igreja hierárquica, eles visam a uma Igreja composta de
comunidades pequenas e autônomas — “ o povo de Deus”, como são conhecidas
em conjunto, ou “ a Igreja do p ovo” — todas associadas livremente apenas pela
fé, mas de forma nenhuma por uma autoridade central e centralizadora como o
papado alega ser.
No lugar do propósito espiritual da Igreja tradicional, a Sociedade de
Jesus colocou a luta, no presente, pela libertação de uma classe de homens e
mulheres da nossa sociedade de hoje: os milhões de vít imas da injustiça social,
econômica e política.
A maneira de falar na luta de classes é uma questão importante e
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13. delicada para os jesuítas. A nova missão da Sociedade — porque não é nada
menos do que isso — coloca-os subitamente numa aliança real e, em certos
casos, de bom grado com os marxistas em sua luta de classes. O objeti vo de
ambos é criar um sistema sócio-político que afete as economias das nações por
uma completa redistribuição dos recursos e bens da terra; e, no processo,
alterar os sistemas de governo atuais em voga entre as nações.
Para a Sociedade, porém, não interessa vir a público e dizer tudo isso
como sendo política da entidade. Seria perder a guerra antes mesmo que as
tropas estivessem todas dispostas em formação de combate. Para cobrir a
mesma realidade, a expressão corrente entre os jesuítas e outros dentro da
Igreja que simpatizem com essa nova missão é uma frase ar rancada de seu
contexto original num documento divulgado em 1968 por uma Conferência de
Bispos Católicos realizada em Medellín, Colômbia: “ exercer uma opção
preferencial pelos pobres e oprimidos”.
Nada do que foi dito significa que a Sociedade de Jesus se tornou, em
qualquer momento, marxista. Não. Apesar disso, a cruel realidade é que muitos
jesuítas desejam ver uma alteração radical no capitalismo democrático do
Ocidente, em favor de um socialismo que parece inevitavelmente sur gir
cheirando a comunismo totalitário. E a verdade é que não faltam jesuí tas
influentes que se manifestem regularmente em favor da nova cruzada.
Um breve retrato de três jesuítas — um cientista sócio-político, um
dedicado guerrilheiro e um tremendo teólogo-professor — irá fazer um rápido
esboço do amplo e geral arco do empenho do jesuíta moderno em vencer essa
guerra.
O primeiro, Arthur F. McGovern, S.J., é um destacado e convicto
apologista do novo anticapitalismo jesuítico. Em 1980, ele publicou um livro
sobre a matéria — Marxism: An American Christian Perspective — e em muitas
ocasiões tem exposto com franqueza o que pensa. Em essência, McGovern diz
que o marxismo foi e é uma crítica social, pura e simples. Marx queria, apenas,
que pensássemos mais claramente nos meios de produção, em como as pessoas
produzem; e nos meios de distribuição, nas pessoas que possuem e controlam
os meios de produção. Em tudo isso, o marxismo não pode ser riscado por ser
“ não verdadeiro”. Foram Engels e Lenin q ue acrescentaram os desagradá veis
ingredientes de “materialismo científico” e ateísmo. Basta ler os trabalhos não
publicados do jovem Marx para que se fique conhecendo o “ seu lado mais
huma nista”.
Em consequência, conclui McGovern, temos que isolar a crítica social de
Marx, que é “ verdadeira”, daqueles elementos estranhos. Podemos acei tar o
conceito de Marx de uma luta de classes, porque existe uma luta de classes.
Isso quer dizer, mesmo, revolução, mas “revolução não significa nitidamente
violência (...) significa que temos que ter um novo tipo de so ciedade, por certo
não o capitalismo democrático tal como o conhecemos”.
McGovern vê em Jesus, tal como retratado no Evangelho Segundo São
Lucas, um modelo de revolução. O Eva ngelho de São Lucas é um “ evan gelho
social”, diz ele, citando Jesus em apoio de sua causa: “Vim para pre gar a boa-nova
aos pobres, libertar os oprimidos, redimir os cativos.”
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14. “Vejam”, acrescenta McGovern, “ quantas vezes Jesus fala na pobreza; se
identifica com os p obres; critica aqueles que lançam ônus sobre os pobres.”
Está claro, portanto, que Jesus reconhecia a “ luta de clas ses” e endossava a
“revolução”.
Consciente ou inconscientemente, como a maioria dos jesuítas modernos e
muitos ativistas católicos, McGovern pôs de lado, efetivamente, mil e
quatrocentos anos de uma rica interpretação católica, autenticamente cristã, da
Bíblia. Ele reinterpretou o Evangelho e a missão salvífica do Filh o de Deus
num sentido econômico, num sentido de preocupação com as coisas terrenas,
num sentido não-sobrenatural, num sentido não-católico. Todo o resto vem em
seguida.
Como o “ novo tipo de sociedade” não p ode ser “ o capitalismo de -
mocrático tal como o conhec emos”, os Estados Unidos, como líder e mais bem-sucedido
expoente do capitalismo democrático, vêm para o centro do palco. De
fato, logo nos primórdios da guerra, na década de 1960, quando os jesuítas dos
Estados Unidos adotaram um “projeto jesuítico de liderança nacional”, o plano
deles era explícito quanto à intenção de alterar a estrutura fundamental da
América de uma democracia capitalista: “Nós, os jesuítas, temos qu e
reconhecer que participamos de muitas estruturas pecaminosas da sociedade
americana. Por isso, corremos o risco do pecado, a menos que trabalhemos para
mudar isso.”
Como uma andorinha, só, não faz verão, um só McGovern — ou mesmo
um só “ projeto jesuítico de liderança nacional” — não faz uma guerra.
Tirando-se a política declarada no projeto, em todos os sentidos práticos a
Sociedade de Jesus se dedica como um todo a essa luta de clas ses. A sua
mensagem chega, hoje, de mil fontes diferentes entre clérigos e teólogos que
vivem nos países de capitalismo democrático. Ela é vene rada numa teologia
totalmente nova — a Teologia da Libertação — cujo manual foi escrito por um
jesuíta peruano, padre Gustavo Gutierrez, e cujo quadro de honra inclui um
número notável de destacados jesuítas latino-americanos como Jon Sobrino,
Juan Luis Segundo e Fernando Cardenal. Não se trata de nomes bem
conhecidos ouvidos nos noticiosos de todas as noites nos EUA. Mas são
homens de significativa influência internacional para as Américas e para a
Europa.
Embora o movimento tenha sido global desde o começo, foi acima de tudo
na América Latina que a estranha aliança entre jesuítas e marxis tas tomou o
seu primeiro impulso prático. Foi lá que essa nova missão jesuítica,
envolvendo, como envolve, nada menos do que a transforma ção da face sócio-política
do Ocidente, enredou vidas de maneira muito mais profunda do que
McGovern e teóricos como ele previam. Rapidamente, dezenas e dezenas de
jesuítas começaram a trabalhar, com a paixão e o zelo que sempre lhes foram
característicos, pelo sucesso dos sandino-comunistas na Nicarágua; e quando os
sandinistas tomaram o poder, aqueles mesmos jesuítas assumiram cargos
cruciais no governo central e atraíram outros para participarem em vários
níveis regionais. Enquanto isso, em outros países centro-americanos os jesuítas
não apenas
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15. participavam no treinamento de quadros marxistas em guerrilhas, mas alguns
se tornaram também guerrilheiros. Inspirados pelo idealismo que viam na
Teologia da Libertação, e encorajados pela independência ine rente à nova ideia
da Igreja como um grupo de comunidades autônomas, os jesuítas achavam que
tudo era permitido — e mesmo estimulado — desde que promovesse o conceito
da nova “ Igreja do povo”.
Aqueles homens eram o sonho e o ideal dos verdadeiros teólogos da li -
bertação. Pois eles eram os combatentes, os quadros que levaram a Teologia da
Libertação de teoria para o que chamavam de práxis — a implementação da
revolução popular pela libertação econômica e política. Daquela práxis,
insistiam os teólogos da libertação, “ lá de baixo, entre o povo”, viria toda a
verdadeira teologia, para substituir a velha teologia que certa vez fora imposta
autocraticamente “ de cima” pela hierarquia da Igreja Roma na.
O segundo nome naquele arco dos novos esforços jesuíticos é James
Francis Carney, S.J., homem que foi o modelo da práxis — talvez o mais
completo, embora não o mais famoso ou influente de todos os modernos
teólogos jesuítas da Libertação.
Carney nasceu e foi criado em Chicago. Fez o aprendizado para je suíta na
província de Chicago; ao terminar seu aprendizado, apresentou-se como
voluntário para trabalhar na América Central e foi enviado para lá em 1961.
Ficou tão impressionado pela sua temporada centro-americana, que se tornou
cidadão hondurenho. Ao longo dos anos, Carney sorvia a Teologia da
Libertação como se se tratasse de vinho raro. Tornou-se conhecido como
defensor dos pobres e crítico severo, incansável e impiedo so dos governos e
dos exércitos estabelecidos, em especial em Honduras. Seu nome e suas
atividades eram publicamente associados aos guerrilhei ros baseados na selva.
Mesmo quando foi fixado um preço por sua cabeça pelas autoridades militares
hondurenhas, não houve providência alguma dos superiores jesuítas no sentido
de impedir as associações de Carney às guerrilhas. Na verdade, Carney era
apenas um dos vários jesuítas em Honduras, Nicarágua, Guatemala e Costa
Rica que estavam todos seguindo o mesmo caminho com as bênçãos de seus
superiores locais e romanos.
Contente, sentado numa champa em ruínas, de chão batido, na cidade
nicaraguense de Limay, onde fora buscar refúgio da guerra de guer rilhas em
Honduras, o padre jesuíta de 47 anos acabou de escrever sua autobiografia à luz
de vela. Era o dia 6 de março de 1971. Àquela época, Carney já tinha atrás de
si dez anos de dificuldades e trabalho na América Central, e cerca de doze anos
ainda para viver. O “ padre Lup e”, como o chamavam os nativos com carinho (o
nome era a forma abreviada de Guadalupe), Contou ao mundo que havia
extraído os três esteios ou verdades básicas da Teologia da Libertação do s
trabalhos de seu colega jesuíta Juan Luis Segundo. As obras são áridas e
deploráveis.
Grace and the Human Condition, de Segundo, mostrou a Carney que “ tudo,
neste mundo, é sobrenatural”. The Sacraments Today, de Segundo, revelou ao
padre Lupe que “ a humanidade está desenvolvendo uma ideia mais correta de
Deus”. E Evolution and Guilt, de Segundo, ensinou
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16. a ele que “ a dialética revolucionária tem que vencer o pecado do con -
servadorismo da Igreja”.
Com o mais triste dos amores, Lupe já havia escrito para sua família nos
Estados Unidos, para dizer-lhe o que iria fazer. A carta é reproduzida em sua
autobiografia. Ele tinha que compartilhar da revolução com seus adorados
campesinos hondurenhos porque, escreveu ele, “ não suporto viver com vocês
segundo a sua ma neira de viver”. O capitalismo, disse ele, em cujos pecados
estavam imersos todos os americanos, era um mal tão abominável quanto se
achava que era o comunismo. Só a revolução armada poderia erradicar “ o
capitalismo e o imperialismo supranacional da América Central. (...) Ser
cristão é ser revolucionário”.
“Nós, os cristãos-marxistas, teremos que lutar lado a lado, na América
Central, com os marxistas que não acreditam em Deus, a fim de formarmos
uma nova sociedade socialista (...) um modelo centro-americano puro.”
Embriagado pelo idealismo carregado de ignorância dos teólogos da
libertação, esse jesuíta passou a acreditar que “ um marxista não é dogmático,
mas dialético. Um cristão não condena ninguém do ponto de vis ta dogmático,
mas respeita as crenças dos outros. Um cristão anticomunista dogmático não é
um cristão verdadeiro, e um marxista anticristão dogmático não é um marxista
de verdade”.
Tendo investido a dura realidade do marxismo, tal como tem sido
historicamente conhecida, com uma magia visionária sem nenhuma realidade
tridimensional, Carney esboçou, para a família, o seu “modelo centro -
americano p uro”.
“Nem comunista nem capitalista (...).” O novo socialismo será “ uma
fraternidade de toda a humanidade (...) e igualmente uma sociedade sem
classes (...)”. Teologicamente falando, “ o universo do homem está em
evolução dialética em direção ao Reino de Deus (...)”.
Muito embora todos “ respeitem a crença dos outros”, Carney con seguiu
ser muito mais honesto do que McGovern a o reconhecer q ue “ (...) d ialético
significa conflitante, avançando por uma série de lutas entre pes soas de
ideologias contraditórias (...)”. Na verdade, Carney ficara con vencido de que o
propósito real da dialética da luta era vencer “ o pecado” do conserva dorismo
que é o pecado peculiar da Igreja Católica Romana. O plano de Deus para a
evolução do mundo e da sociedade humana iria desdobrar -se em conflito e na
revolução armada. A transformação assim provocada seria completa; seria, ao
mesmo tempo, uma mudança “cultural -espiritual” , e uma “mudança econômica,
social e política”.
Carney terminava sua autobiografia com um apelo a todos os cristãos:
“(...) livrem-se de quaisquer preconceitos injustos e não-cristãos que tiverem
contra a revolução armada, o socialismo, o marxismo e o comunismo. (...) Não
existe uma terceira opção entre ser cristão e ser revolucionário (...).”
Isso foi o apelo máximo em favor da práxis.
Mais tarde, naquela primavera de 1971, com a concordância de seus
superiores, Carney atravessou ilegalmente a fronteira, t ornando a entrar em
Honduras para partilhar da vida de ataques e retiradas rápidas de um
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17. comando guerrilheiro. Foi o início de doze anos de práxis a mão armada pelo
“conflito dialético” que ele tinha em alta estima como sendo a cha ve para o
futuro do catolicismo.
De comum acordo com seu superior provincial, padre Jerez, que àque la
altura sofria certa pressão de Roma e do Vaticano, o padre Carney aca bou se
desligando dos jesuítas. O entendimento que tinha com Jerez e seus superiores
era de que poderia tornar a entrar para a Sociedade tão logo a luta terminasse.
A Sociedade, no final das contas, era apenas conveniência. Num mundo em
que tudo já era sobrenatural, como o padre Lupe escreveu dizendo ser essa a
verdade para ele, não havia lugar para regras rígidas; não havia lugar para uma
Igreja Romana infalivelmente autoritária. Não havia necessidade de qualquer
Igreja santificar coisa alguma, porque tudo era sobrenatural e, portanto, já era
santo. A Igreja era apenas uma parte outra da humanidade, ao nível da
humanidade em relação a Deus, aprendendo à medida que a humanidade
aprende, deslocando-se com a humanidade em direção a uma utopia na Terra.
“ Fico desgostoso”, escreveu Carney, “mas quero ser honesto e não
prejudicar os jesuítas ao me unir às guerrilhas como um desobediente fugitivo
da Sociedade, obrigando-os a me expulsarem.” Como demonstra ram outros que
vieram depois dele, Carney não precisava ter -se preocupado com
desobediência ou expulsão. Ainda assim, se o padre Lupe não pre servara os
rudimentos de sua fé católica romana, pelo menos preservara a sua sinceridade
e sua capacidade de fazer uma escolha bem definida.
Em setembro de 1983, a unidade de assalto de Carney, com noventa
homens, foi aniquilada numa batalha com tropas hondurenhas de seu ve lho
inimigo, o general Gustavo Alvarez Martinez, que tantas vezes fora por ele
denunciado em público. Uns poucos de seus homens que sobrevi veram foram
capturados e atirados numa cova retangular na selva, atrás do acampamento
militar hondurenho de Nueva Palestina. Será que Carney era um daqueles
homens? Ninguém conseguiu descobrir. Será que ele morreu? É muito
provável. De esgotamento? Pelo menos de esgotamento. Terá sido interrogado?
É provável. Torturado? É provável. Será que foi deixado para morrer de
inanição? Provavelmente. Será que ainda es tá vivo e ainda é prisioneiro na
selva? Não parece possível; mas jamais se revelou uma notícia precisa.
Este é o tipo de guerra que existe. Não se trata, nem de longe, de saber
quantos anjos podem dançar na cabeça de um alfinete. É uma guerra na qual
sangue é derramado com regularidade e em grandes quantidades. Sacerdotes
como Carney não constituem raras exceções. É claro que nem todos escrevem
testamentos de sua conversão para a violência revolucio nária, a fim de que o
mundo os leia; e nem todos chegam ao ponto de viverem a vida de membros de
unidades de assalto. Mas nos muitos e va riados papéis que eles representam na
arena puramente política do mundo, homens como o padre Carney, S.J., cada
um deles, são essenciais para o sucesso dos jesuítas em sua luta contra o
papado.
Para os jesuítas, a realidade da vida, hoje, é que o nosso mundo
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18. bipolar gira inexoravelmente em torno do marxismo-leninismo soviético e do
capitalismo ao estilo ocidental. A única disputa que pa rece ter importância para
a Sociedade de Jesus neste último quarto do século XX é aquela entre essas
duas esferas de influência. E o fato é que, embora a Sociedade em si não seja
oficialmente marxista, os jesuítas que se diziam ou se di zem marxistas —
porque o padre Lupe não estava sozinho nem mesmo nisso — não são, por esse
motivo, expulsos da Sociedade ou censurados ou silenciados. Ao contrário,
fazem-se os maiores esforços no sentido de protegê -los de ataques. Isso se
tornou tão espalhafatoso que, não faz muito tempo, quando o papa João Paulo
II conheceu um jesuíta indiano que, como verificou, não era marxista,
exclamou, surpreso: “Com que então nem todos vocês são marxistas!”
A guerra entre o papado e os jesuítas parece, então, ser de natureza
política. E, num sentido, é. Mas presumir, como fazem muitos jesuítas da nova
missão, que a sua guerra contra o papado começa e termina com a luta
marxista-capitalista pelo poder, pela autoridade e pelo domínio do mundo, seria
confundir os sintomas de apodrecimento da Sociedade com a condição mais
básica que permite que esses sintomas progridam e se multipliquem. Porque
embora a guerra que eles se decidiram a fazer tenha lugar no plano da
geopolítica, é também, e mais fundamentalmente, uma guerra por causa da
questão da existência mesma do Espírito como a dimensão básica do mundo dos
homens e das mulheres. É sobre o sobrenatural como o elemento que torna cada
um de nós humano e define nossa existência e nosso mundo.
A esse nível, os novos conceitos jesuíticos rela tivos à autoridade na Igreja
e ao propósito da Igreja no mundo representam uma reviravolta da mais
profunda natureza. Para a Sociedade de Jesus, a autoridade má xima para crença
e moralidade já não está na Igreja Católica Romana, com o seu papado e sua
hierarquia de âmbito mundial, mas no “ povo de Deus”. Os resultados dessa
substituição são que, até esta data, não há dogma importante ou lei moral
capital do catolicismo romano que não tenha sido contestada e negada por
jesuítas, a começar com jesuítas das mais altas posições hierárquicas e das mais
elevadas reputações.
Eles têm sido imitados e têm recebido a adesão de uma infinidade de
grupos, tanto católicos como não-católicos, com as mais diversas razões para
defenderem essa nova igreja, o “povo de Deus”, como superior à Igreja
hierárquica Católica Romana. Mas foram eles, os jesuítas, que abriram o
caminho e que deram os maiores e mais consistentes exemplos nessa nova
atitude em relação ao pontífice romano e aos dogmas definidos de Roma.
O teólogo-professor dessa guerra — e o terceiro nome naquele arco do
novo empenho jesuítico — é o homem aceito e celebrado como o maior teólogo
jesuíta dos últimos cem anos, Karl Rahner, S. J. Rahner viveu to da uma vida de
esforços — cautelosamente, a princípio, mas com uma estridência cada vez
maior à medida que o tempo passava — no sentido de alterar a crença católica.
Embora não trabalhasse em campos isolados, sua estatura, sua ousadia que não
ligava para as consequências, e
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19. seu sucesso o destacam como o líder no que pode ser perfeitamente descrito
como o esquadrão de combate de teólogos católicos que, a partir de 1965,
laceraram e cortaram em pedaços não apenas os flancos, mas a própria
substância do catolicismo.
Rahner era tão diferente de seu colega jesuíta James Carney quanto é o
frio do calor. O contraste entre os dois homens é a melhor ilustração do velho
ditado que diz que uma ideia pode provocar um inferno de chamas no coração
de certos homens, mas explode no cérebro de outros. En quanto Carney era um
fazedor impulsivo e apaixonado, Rahner era o intelectual meditativo,
pensativo, impassível. Enquanto Carney podia es crever ilógica mas
emocionalmente para justificar suas ações aos olhos da família, e depois contar
apenas com o amor da família para aceitá-lo como era, Rahner escrevia,
proferia conferências e conversava com lógi ca sutil e mente desprovida de
paixão para desengatar os dogmas de fé mais caros que se achavam na mente de
seus leitores e ouvintes.
Carney ficava zangado com a injustiça, revoltava -se contra a opressão,
clamava dolorosamente contra a miséria humana. Sua munição e suas armas
não eram apenas balas e canhões, mas a sua profunda compaixão, sua fúria
contra a injustiça e sua recusa congênita em fazer a mínima concessão. Era o
seu coração, numa agonia avassaladora, que guiava o seu julgamento.
Rahner, em contrapartida, apontava a artilharia pesada de sua lógica e de
sua imensa reputação como teólogo para a sacrossanta autoridade dos papas.
Escolheu como alvo as imemoriais fórmulas de fé. Tinha à s ua disposição
outras armas com que Carney não contava: a mais arguta das men tes, um
conhecimento realmente enciclopédico, um humor sempre pronto e azedo, e
uma indômita arrogância de intelecto. “Não vou tolerar a in justiça”, era o grito
de Carney. “Não serei um servo”, era o de Rahner.
Num momento crítico e doloroso na moderna história do papado, Rahner
se recusou categoricamente a defender o ensinamento católico so bre o controle
da natalidade ou o pontífice que p ediu aos jesuítas, como “ homens do papa” ,
que o ajudassem em seu desespero. O mesmo aconteceu com virtualmente todos
os outros dogmas e regras da Igreja Católica que Rahner havia jurado defender.
No entanto, sua voz parecia tão autêntica, que ele era considerado por
muitos como tendo maior autoridade do que três papas sucessivos, quando
chegava o momento de interpretar o ensinamento moral da Igre ja Católica. O
próprio Rahner se esforçou muito para representar esse papel de profeta
moderno. Enquanto viajava pela Europa e pelas Américas vestindo seus
corretos ternos de passeio, era incansável na sua crítica mordaz e sarcástica ao
papado e à autoridade romana.
Em Unity of the Churches: An Actual Possibility, o último livro que escreveu
antes de morrer em 1984, Rahner fez a mais notável e patente apresentação da
recém-aceita atitude jesuítica sobre o papado e os dogmas de finidos de sua
Igreja. Trabalhando com um colega jesuíta e co-autor, Heinrich Fries, e com o
imprimatur de seus superiores jesuítas, Rahner apresentou uma proposta radical
e ultrajantemente anti-romana. Para obter a
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20. unidade cristã, disse ele, era necessário parar com toda a insistência na in -
falibilidade papal como dogma, e também acabar com a insistência em to das as
outras doutrinas sobre o pontífice romano e o catolicismo romano que tinham
sido definidas e propostas por papas desde o século IV.
Com efeito, Rahner estava propondo que a Igreja Católica pegasse
oficialmente todo o corpo de leis relativas à fé e aos costumes, tal como
desenvolvido e ensinado pela sua Igreja durant e dezesseis séculos, e o des-vinculasse
da vida diária. Casamento, homossexualidade, ética comercial,
liberdade humana, piedade, todas as esferas da existência humana, tudo teria
que ficar à deriva ao sabor das marés da redefinição, que estavam sempre
mudando. Mas os dogmas da Igreja seriam as principais baixas. Porque aquilo
que a Igreja definiu como básico e obrigatório para a crença católica iria, no
plano de Rahner, tornar-se opcional. A integridade da pessoa de Cristo; o
significado e o valor dos Sete Sacramentos; a existência do Céu e do Inferno; o
caráter divino da autoridade dos bispos; a ver dade da Bíblia; a primazia e a
infalibilidade do papa; o caráter de clero; a Imaculada Conceição e a Assunção
de Maria, mãe de Cristo — tudo ficaria à ecumênica disposição de quem
quisesse.
Acima de tudo isso, entretanto, ficavam os principais alvos de Rah ner, os
bloqueios que ficavam no caminho de tudo o mais: a autoridade papal que ele
queria ver desmantelada e a Igreja Católica Romana hierár quica que ele queria
ver reduzida a mais uma expressão idiossincrática da mensagem de Cristo. Em
outras palavras, a autoridade prática e o propósito espiritual da Igreja —
sempre as verdadeiras questões na guerra entre papado e jesuítas — seriam
rejeitados e substituídos pela autoridade e pela missão materialista que
estivesse em voga.
A nível meramente pessoal, é razoável que se tenha que presumir a falta
total de fé católica em Rahner. Mas o que está em jogo é menos a condição da
alma de Rahner do que a influência prát ica que ele e muitos outros teólogos,
que tenham as mesmas ideias, exercem sobre a vida tal como é vivida em
nosso mundo.
Dizer que Rahner — e Fries como co-autor secundário — estava apenas
exprimindo o sentimento antipapal que era muito corrente entre o s teólogos
católicos em 1984 não é contar a metade da ruína causada por ele. Rahner,
ocupado em ensinar teologia numa prestigiosa universidade jesuítica durante a
maior parte de sua vida, tornou-se ao longo dos anos uma imagem de sabedoria
teológica e bom julgamento para literalmente milhares de pessoas que, por sua
vez, agora são sacerdotes, professores e escritores com comando, influência e
renome próprios.
É de se admitir que esse trabalho pareça, a muitos, ter lugar em tor res de
marfim. Mas homens como Karl Rahner ajudaram poderosamente a moldar o
pensamento e os costumes de padres e bispos que estão, ago ra, envolvidos em
cada nível de questões mundanas em todas as partes do globo. E uma vez
convencidos, mesmo num plano puramente pessoal, de que os Rah ners da
Igreja têm razão e que o papado está errado, não há chance alguma de que o
conflito possa permanecer teórico. Em vez
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21. disso, ele atinge as mais profundas áreas de pensamento, crença e sentimentos
de milhões que são arrastados pelo coração — e pela influência direta ou
indireta de teólogos como Rahner — para um mundo no qual a natureza, o
significado e a mais básica finalidade de suas vidas como cristãos são
redefinidos num cenário puramente racional e materialista.
Sem um gigante como Karl Rahner, é de se duvidar que a Teologia da
Libertação fosse conseguir muito mais do que rachar, oscilar e despencar; ou
que um Francis Carney fosse ser tão pouco severo ao criticar os traba lhos
escritos por Juan Luis Segundo. Apesar de tudo, deve -se dizer que Rahner não
foi um inventor; tampouco o foram os homens de sua geração que foram a sua
ferrotipia. Não foi Rahner quem iniciou a enorme reviravolta teológica na
Sociedade de Jesus ou na Igreja Romana. Sua importância não foi como
inovador, mas como fiel e eficiente evangelista em favor de uma influência
perniciosa e destrutiva que já vinha se espalhando sorrateiramente dentro da
Sociedade de Jesus há décadas antes de ele surgir em cena. Quer proferindo
conferências na Europa, quer se transportando para as Améri cas, envolto no
prestígio que adquirira, incontestável em sua autoridade, apresentando sempre
o rosto não-atrativo do materialista, rápido em qualquer luta interna, e sem se
curvar para ninguém, Rahner foi o ponta -de-lança adequado para o
autocanibalismo católico. Ele ensinou a várias gerações a consumir sua fé com
lógica, ceticismo e desobediência.
Sua dedicação ao ponto de vista antipapal e anticatólico era tão sin cera,
que ele se tornou a sua encarnação, como se poderia dizer. E, no entanto, foi
tão eficiente na manutenção de sua estatura teológica dentro da Sociedade de
Jesus, que deu àquele ponto de vista uma nova respeitabilidade, tanto dentro
como fora da Sociedade e da Igreja. Nenhum superior jesuíta, no seu país natal
ou em Roma, jamais o conteve. Tendo sido a prova em carne e osso da estranha
corrupção que se instalara na Sociedade, Rahner morreu como havia vivido,
numa aura de honra entre seus companheiros e superiores.
Apesar de todas as suas diferenças, os três homens aqui esboçados
— o cientista sócio-político, o guerrilheiro dedicado e o teólogo-professor
— exemplificam, inclusive, a aberração da Sociedade.
É claro que, a esta altura, a Sociedade de Jesus não está sozinha na luta
contra o papado. Ela tem sido imitada e tem recebido a adesão de muitos
grupos — católicos e não-católicos, religiosos e seculares — cada qual com
suas próprias razões para defender a ideia de que uma nova igre ja, o “ povo de
Deus”, substituiu a antiga e hierárquica Igreja Católica Roma na. Mas foram os
jesuítas que abriram aquele caminho; foram eles que estabeleceram os maiores
e mais consistentes exemplos dessa nova atitude em relação ao pontífice
romano e aos dogmas definidos de Roma; e são eles que continuam a trabalhar
nos pontos mais longínquos daquilo que só se pode chamar de política divina.
E foi assim que o atual geral da Sociedade de Jesus, Piet -Hans Kol-venbach,
pôde enfrentar os jesuítas que o elegeram chefe da Ordem em 1983 —
o ano em que James Francis Carney foi engolido numa batalha
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22. na selva; o ano antes daquele em que Karl Rahner voltou a Deus — e prometer,
com uma confiança solene, que, entre outras coisas, sua tarefa seria assegurar a
procura da justiça, escolhida pelos jesuítas, e não ser perturbado “ pelos
gemidos de reclamação de papas”.
Quando se fala que a Sociedade de Jesus está, hoje, em guerra com o pa pado, e
mesmo antes de se perceber que estranha e confrangedora revira volta isso
representa para um corpo de homens cujo principal motivo de fama foram suas
realizações e sua reputação como “ homen s do papa”, não se deve pensar que
essa Ordem Religiosa dos Jesuítas seja apenas mais uma organização humana.
São muitas as organizações desse tipo que têm sua fase áurea e depois decaem,
ossificam-se e acabam por desaparecer.
A Sociedade de Jesus foi criada em 1540 por um obscuro basco chamado
Iñigo de Loyola, mais conhecido como Inácio de Loyola. Não se pode colocar
os jesuítas de Iñigo no mesmo nível de qualquer outra orga nização, pelo
simples motivo de que nenhuma organização que conheçamos pode rivalizar,
até o momento, com os jesuítas no que se refere aos inestimáveis serviços que
prestaram à família humana — muito acima do que fizeram, em nome do
papado e da Igreja Católica Romana do papado.
Iñigo foi um gênio raro. Se Leonardo Da Vinci, contemporâ neo de Iñigo,
tivesse projetado uma máquina, chegando até os detalhes das por cas e
parafusos, que suportasse todos os testes do tempo e das circuns tâncias que se
alteraram ao longo de um período de 425 anos — e se só a destruição de seu
projeto inicial provocasse o colapso da máquina — não seria maravilha maior
do que a Sociedade que Iñigo projetou. Por que, tal como ele a construiu — o
molde de seu jesuitismo, sua estrutura funcional, sua devoção ao papado, seu
caráter e seus objetivos — a Sociedade resistiu a todos os testes de tempo e
circunstâncias, exceto um: a perversão da regra, do papel e do espírito que ele
lhe deu. Fora isso, sua mui extraordinária durabilidade está comprovada.
Nem mesmo Iñigo poderia ter previsto o quase-milagre da organização de
sua Sociedade, seu sucesso meteórico e brilhante, e sua influência universal
sobre o mundo do homem, quando a fundou. Nos 425 anos que se seguiram, as
dezenas de milhares de pessoas que entraram para a Companhia de Iñigo
estabeleceram um recorde que, em sua categoria, não foi igualado na história
passada ou presente — um recorde tanto de serviços à Igreja Católica quanto à
sociedade humana como um todo.
Olhando para trás, um fanático do século XX que parecia um gênio,
Lenin, mal orientado mas com admiração, afirmou, no fim da vida, que se
tivesse contado com doze homens iguais a um daqueles jesuítas pionei ros, o
seu comunismo teria arrebatado o mundo.
Embora poucos em número, os princípios básicos que Iñigo estabe lecera
para a sua Companhia eram catalisadores poderosos. Logo que seus homens
utilizaram suas energias dentro de sua organização no trabalho de âmbito
mundial da Igreja Romana, provocaram um fenômeno sem igual de história
huma na. “Nunca”, escreveu Novalis, o teórico alemão do sé culo
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23. XVIII, “ nunca antes na história do mundo surgiu uma Socieda de igual a essa. O
próprio velho Senado Romano não fez planos de domínio mundial com maior
certeza de sucesso. Nunca a execução de uma ideia maior foi examinada com
maior compreensão. Para todo o sempre, essa Sociedade será um exemplo para
toda sociedade que sentir um desejo orgânico de extensão infinita e duração
eterna (...).”
“Quanto mais universal o seu trabalho”, dissera Iñigo, “mais divi no ele se
torna.” Trinta anos depois que ele fundara a Ordem, s eus jesuítas estavam
trabalhando em todos os continentes e em praticamente todas as formas de
apostolado e campo educacional. Num prazo de cem anos, os jesuítas eram uma
força que se tinha que enfrentar em praticamente todas as fases da vida ao
longo da qual os homens procuram, e às vezes conseguem, poder e glória.
Não havia continente que os jesuítas não alcançassem; nenhuma lín gua
conhecida que não falassem e estudassem ou, em dezenas e dezenas de casos,
desenvolvessem; nenhuma cultura em que não penetr assem; nenhum ramo de
conhecimento e ciência que não explorassem; nenhum tra balho em humanismo,
nas artes, na educação popular, que eles não realizassem e fizessem melhor do
que qualquer outra pessoa; nenhuma forma de violência que não tivessem
sofrido — os jesuítas foram enforcados, arrastados e esquartejados em
Londres; estripados na Etiópia; comidos vivos por índios iroqueses no Canadá;
envenenados na Alemanha; esfolados até a morte no Oriente Médio;
crucificados na Tailândia; mor tos de fome na América do Sul; decapitados no
Japão; afogados em Madagascar; bestializados na União Soviética. Naqueles
primeiros quatrocentos anos, eles deram à Igreja 38 santos canonizados, 134
homens santos já declarados “Benditos” pela Igreja Roma na, 36 já decla rados
“Venerá veis” e 115 considerados como tendo sido “ Servos de Deus”. 1 Desses,
243 foram mártires; isto é, foram mortos por causa de suas crenças.
Viveram entre mandarins chineses, índios norte-americanos, as brilhantes
cortes reais da Europa, brâmanes hindus da Índia, as escolas de “ cerca viva” da
Irlanda penal, navios escravos dos otomanos, imames e ulemás do Islã, o
decoro e o saber dos lentes graduados de Oxford, as multiformes sociedades
primitivas da África subsaariana, e se adaptaram.
E, no longo catálogo de insultos e calúnias que os homens criaram a fim
de injuriar seus inimigos, não havia termo suficientemente forte para se aplicar
aos jesuítas, devido àquela terrível fixação que eles tinham, desde os seus
primórdios, por outro dos princípios de Iñigo: serem “ homens do papa”; os
homens do papa. Iñigo de Loyola, escreveu Thomas Carlyle, foi “ a fonte de
veneno da qual nasciam todos os rios de amargura que inundavam o mundo
agora”.
Insultos como esse têm sido cultuados nas próprias línguas dos homens. O
Webster’s Third New International Dictionary, depois de ter dado o significado
básico de jesuíta como membro da Ordem, fornece os significados negativos:
“pessoa dada à intriga e a subterfúgios; pessoa
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24. ladina”; termos que são ampliados pelo dicionário de Dornseif para “ de duas
caras, falso, insidioso, dissimulador, pérfido (...) insincero, ignó bil, desonesto,
mentiroso”. Um provérbio francês diz que “ sempre que dois jesuítas se juntam,
o Diabo completa o trio”. Um provérbio espanhol alerta va as pessoas, d izendo
“ não confie sua mulher a um monge ou seu dinheiro a um jesuíta”.
Os eternos inimigos do papado nunca poderiam perdoar Iñigo e seus
jesuítas enquanto estivessem em missão do papa, cumprindo o sagrado voto de
obediência, ainda que sujeitos à desonra e à morte. Estava tudo de acordo com
o desejo expresso de Iñigo. “Esperemos”, escreveu ele certa vez, “ que a Ordem
nunca possa ficar muito tempo sem sofrer a hostilidade do mundo!’
Na verdade, seu desejo foi realizado, pois os seus jesuítas eram realmente
homens do papa. Seus primeiros alvos principais: as novas igrejas protestantes
que pululavam pela Europa. Justamente a questão vital que estava em jogo
entre a Igreja Católica e os líderes da revolta protestante
— Lutero, Calvino e Henrique VIII da Inglaterr a — era a autoridade do
pontífice romano e a primazia de sua Igreja Católica Romana.
Os jesuítas levaram a batalha aos próprios territórios daqueles inimigos
papais. Faziam debates públicos com reis, debatiam em universidades
protestantes, pregavam em encruzilhadas e em mercados. Dirigiam-se a
conselhos municipais e instruíam os concílios da Igreja. Infiltravam-se em
territórios hostis, disfarçados, e se deslocavam às escondidas. Estavam em toda
parte, cumulando seus contemporâneos de brilhantismo, sagacidade,
severidade, erudição, devoção. Seu tema constante: “O bispo de Roma é o
sucessor de Pedro o Apóstolo, sobre o qual Cristo fundou sua Igreja (...). Essa
Igreja é uma hierarquia de bispos em comunhão com aquele bispo em Roma.
(...) Qualquer outra instituição eclesiástica é uma rematada heresia, filha de
Satã (...).”
Em outras palavras, todo mundo sabia da existência dos jesuítas; e todo
mundo sabia que os jesuítas eram os defensores sinceros daquela autoridade e
primazia.
Embora a violenta investida dos jesuítas contra os inimigos de Roma
fosse vigorosa, a penetrante influência deles sobre o próprio catolicismo
romano nunca foi igualada. Eles detiveram o monopólio da educação da Europa
durante mais de duzentos anos, e entre seus alunos pelo mundo in teiro se
encontrava gente famosa e gente abominável — incluindo Voltaire, Luis
Bunuel, Fidel Castro e Alfred Hitchcock. Sozinhos, literalmente remodelaram
o ensino da teologia e da filosofia católica romana, de modo a torná -lo outra
vez claro e acessível, mesmo para a nova mentalidade da era turbulenta que
despontava. Proporcionavam novos meios para a prática da devoção popular.
Promoveram o estudo do asceticismo, do misticismo e da missiologia.
Proporcionaram modelos novos para o treinamento de sacerdotes em
seminários. Geraram, pelo exemplo e pela inspiração de seu Preceito Religioso,
toda uma nova família de ordens religiosas. Foram o primeiro corpo de
católicos eruditos que se tornou preeminente em ciências seculares —
matemática, física, astronomia, arqueologia, linguística,
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25. biologia, química, zoologia, paleografia, etnografia, genética. A lista de
invenções e descobertas científicas realizadas por jesuítas enchera núme ros
intermináveis de volumes nos mais diversos campos — engenharia mecânica,
energia hidráulica, aviação, oceanografia, hipnose, cristais, linguística
comparativa, teoria atômica, medicina de doenças internas, man chas solares,
aparelhos de surdez, alfabetos para os surdos e mudos, car tografia. A lista da
qual são extraídos esses exemplos aleatórios entorpece a mente, devido à sua
variedade que abrange todos os setores. Os manuais, livros de texto, tratados e
estudos dos jesuítas eram aceitos em caráter ofi cial e conclusivo em todos os
ramos do saber católico e secular.
Eles eram gigantes, mas com um propósito: a defesa e a propagação da
autoridade papal e do ensinamento papal.
Tampouco suas extraordinárias energias e talentos se limitavam à ciên cia.
Fizeram como se fossem seus, também, todos os setores da arte. Em 1773,
contavam com 350 teatros na Europa, e as atividades teatrais dos jesuítas
lançaram as fundações para o balé moderno. Fundaram o primeiro teatro no
continente norte-americano — precisamente em Quebec em 1640. Ensinaram a
França a fazer porcelana. Levaram para a Europa os primeiros conhecimentos
que os homens ocidentais tiveram da cultura indiana e chinesa. Traduziram os
vedas do sânscrito. Até mesmo as chinoiseries do período rococó tiveram como
base publicações dos jesuítas em chinês. O guarda-chuva, a baunilha, o
ruibarbo, a camélia e o quinino foram inovações jesuíticas na Europa.
As façanhas dos jesuítas como exploradores do Extremo Oriente
ultrapassavam qualquer coisa jamais sonhada por seus contemporâneos, e
constituem uma narrativa épica que tem o sabor de quase má gica. Os nomes de
jesuítas estarão ligados para sempre a lugares que, para a maioria de nós, são
motivos de fantasia — Kambaluc, Catai, Sarkand, Shrinagar, Tcho Lagram,
Tcho Mapang, Manasarovar, Tashi-Ihumpo, Koko Nor, e o nome comprido e
saltitante, Chomolongmo (que nós conhecemos como monte Everest).
Menos de cem anos depois da fundação da Sociedade, os jesuítas se
tornaram os primeiros europeus a penetrarem no Tibet e depois seguirem dali
para a China. O padre jesuíta Matteo Ricci foi a primeira pessoa a provar que a
Catai de Marco Polo era idêntica à China, e não um país diferen te. Em 1626, o
padre Antonio Andrade e o irmão Manuel Marquis abriram a primeira igreja
católica no Tibet, às margens do rio Sutlej, no reino de Guge, em Tsaparang. O
irmão Benito de Goes está sepultado na extremidade noroeste da Grande
Muralha da China. O túmulo do irmão Manuel Marquis fica no cume da
cordilheira Zaskar, que dá vista para o passo Mana, na região ocidental do
Tibet, onde o bom irmão morreu em 1647 depois de longo período de prisão no
posto da fronteira.
Outros jesuítas — austríacos e belgas — foram os primeiros europeus a
atingirem Lhasa a 8 de outubro de 1661, e viram a construção do Palácio
Potala para o Dalai Lama Chenresik. O padre Grueber, um aus tríaco, foi o
primeiro a determinar a posição de Lhassa com exatidão,
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26. a 29 graus, 6 minutos de latitude norte. Ele e seus companheiros foram
sucedidos por uma linha de destacados tibetólogos jesuítas que produzi ram
dicionários, estudos de língua, mapas, estudos geológicos e tratados teológicos.
Seus túmulos, como os de Benito de Goes e Manuel Marquis, pontilham uma
área que era tão remota e amedrontadora para seus contemporâneos quanto o
outro lado da lua ainda continua sendo para nós.
Esses homens e seus pares religiosos noutra parte qualquer não eram
apenas “ os solitários e bravos” celebrados num drama teatral da década de
1940. Em sua mente, não faziam confusão entre as dimensões da Po breza
Religiosa e a pobreza econômica, como aconteceu com tantos je suítas nas
últimas décadas deste século. Não visavam a um objetivo nebuloso,
materialista, como a “ libertação integral do indivíduo huma no”. Eram gigantes
que, proporcionalmente falando, rivalizaram as façanhas posteriores de Scott e
Perry nos pólos, Hilary no monte Everest, e os primeiros astronautas no espaço
e na lua. Mas, mais do que isso, eram missionários jesuítas obedientes à voz do
pontífice romano, vivendo, trabalhando e morrendo fiéis a ele, porque ele
representava o apóstolo Pedro, que representava o Cristo que eles acreditavam
ser o Salvador.
No auge de seus esforços, duzentos anos depois de sua fundação, os
jesuítas exerciam um controle formativo e decisivo na educação e na ciência de
praticamente todos os países da Europa e da América Latina. Ti nham um papel
a representar em todas as alianças políticas da Europa — um cargo influente
junto a todos os governos, uma função de assessoria junto a todo grande
homem e a toda mulher poderosa. Um jesuíta foi o primeiro ocidental a
frequentar a corte do grão-mogol. Outro foi o primeiro a ser declarado
mandarim oficial no palácio do imperador em Beijing. Oliver Cromwell, Filipe
II da Espanha, Luís XIV da França, Catarina a Grande, o cardeal Richelieu, a
rainha Cristina da Suécia, Mary, a rainha dos escoceses, Napoleão,
Washington, Garibaldi, Mussolini, Chiang Kai -shek — a lista dos grandes
vultos da história frequentados pelos jesuítas se estende por várias páginas.
Eles minutavam tratados, negociavam pactos de paz, serviam de mediadores
entre exércitos em guerra, arranjavam casamentos reais, faziam arriscadas
missões de resgate, viviam onde não eram bem-vindos, como agentes secretos
da Santa Sé. Passavam-se por criadores de porcos na Irlanda, bazaaris na
Pérsia, homens de negócios na Prússia, marinheiros mercantes na Indonésia,
pedintes em Calcutá, swamis em Bombaim. Não havia coisa alguma, em parte
alguma, que eles não realizassem, c omo diziam, “ para a maior gló ria de Deus”,
em obediência ao papa romano. Estavam em todo país europeu, africano,
asiático e americano onde fosse possível o mais leve desabrochar do
catolicismo. Toda a influência deles era exercida visando ao atendimento da
vontade papal. Ser jesuíta era ser um papista no senti do exato desse termo que
já foi pejorativo.
O poder de âmbito mundial dos jesuítas se tornou tão grande, que as
pessoas comuns de Roma inventaram um novo título para padre jesuí ta geral.
Elas o chama vam de “O papa negro”, comparando seu p oder
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27. o sua influência globais com os do próprio papa; e fazendo entre os dois uma
distinção apenas com base na batina toda branca do pontífice e a batina simples
e preta do sacerdote comum, que os sucessores de Iñigo usavam imitando seu
exemplo. O apelido popular era um exagero, é claro. Mas os romanos estavam
suficientemente perto do centro das coisas para saberem quem exercia uma
impressionante parte do verdadeiro poder que residia na colina Vaticano.
Como Iñigo ha via pretendido, aquele poder do “ papa negro” e sua
Companhia estava atrelado à vontade papal, mesmo que isso represen tasse a
morte da própria Ordem. Em 1773, quando o papa Clemente XIV decidiu —
certo ou errado — que deveria ser feita uma rígida opção entre a extinção do
papado e a morte da Ordem dos Jesuítas, ele, e somente ele, agindo segundo
decisão pessoal sua, aboliu a Sociedade de Jesus. Por um documento publicado
oficialmente, destituiu os 23.000 jesuítas ao mesmo tempo, e colocou o padre-geral
e seus assessores em calabouços papais, mesmo enquanto impunha o
exílio e a morte lenta a milhares de jesuítas que se viram sem ajuda ou apoio
em partes perigosas do mundo.
O papa Clemente não explicou sua decisão aos jesuítas ou a qual quer
outra pessoa. “As razões [para essa decisão] nós mantemos tranca das em Nosso
Coração”, escreveu ele. Apesar de tudo, os jesuítas obedeceram, colaborando
obedientes com a morte de sua Ordem.
Quarenta e um anos depois, em 1814, o papa Pio VII decidiu que o papado
precisava da Companhia, e com isso a ressuscitou. Os jesuítas, revivificados,
saíram em campo novamente, com renovado zelo pela vontade do papa, e
usaram de enorme dedicação de homens e trabalho para garantir que o Concílio
Vaticano I, em 1860, decretasse que a autoridade infalível do papa era um
artigo de fé e um dogma revelado de forma divina.
O esforço foi tão incisivo e surtiu tanto sucesso, e tão odioso para tantos,
que angariou para os jesuítas pós-supressão um novo epíteto: eles eram os
“ ultramontanos” — pessoas que apoiavam aquele abominável bispo que vivia
“para lá das montanhas” (os Alpes), em Roma. O desprezo contido nesse nome
injurioso é um claro indício daquilo que os jesuítas defendiam com o mesmo
vigor de sempre: a antiga crença católica romana de que, por decreto divino, o
homem que levava em si mesmo toda a autoridade de Cris to na Igreja deveria
ser identificado por um elo físico com um ponto geográfico sobre a face desta
Terra: a cidade de Roma. Esse homem seria, sempre, o bispo legal de Roma. E
vigário pessoal de Cristo.
Os novos inimigos daquela crença moravam, em sua maior parte, na
França, Bélgica, Holanda, Alemanha, Áustria, Suíça e Inglaterra. Eram bispos,
sacerdotes, teólogos e filósofos. Falando do seu lado dos Alpes, eles se
chama vam de “ cismontanos” (pessoas “ do lado de cá das montanhas”, o lado
norte), e se opunham à autoridade e à primazia do bispo romano.
O fato de o catolicismo romano concentrado no papa romano ter
florescido e se mantido na Europa ocidental até o último quarto do sécu lo
XX deveu-se, principalmente, àqueles “ homens do papa” — ao seu
zelo, à sua devoção àquela missão papal, à sua cultura, e à evolução que
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28. eles instigavam na mente católica romana. Porque em qualquer área em que
tocavam, os jesuítas introduziam uma nota de razão, um discurso racional, e
eles o fermentavam com uma fé brilhante e vigorosa.
Em poucas palavras, eles tomaram de assalto a mentalidade dos católicos
no século XVI. Essa mentalidade tinha todas as suas amarras numa esfera pré -
científica, pré-naturalista. No espaço de quatrocentos anos, com o seu próprio
sepultamento no meio, os jesuítas mudaram aquilo tudo. Pelos seus métodos
educacionais, por suas pesquisas e sua intrepidez intelec tual, eles
possibilitaram aos católicos romanos a manutenção de sua posição, como
homens e mulheres crentes e fiéis, no oceano de novas ideias e nova
tecnologia que começou na década de 1770 e nunca mais parou.
Periodicamente, na sua existência de mais de quatrocentos anos, os
jesuítas foram expulsos e banidos de vários países — França, Alemanha,
Áustria, Inglaterra, Bélgica, México, Suécia e Suíça. O termo “ jesuíta” se
tornara tão conhecido como sinônimo de autoridade papal, que a ex pulsão
deles era sempre um sinal claro de que o governo daquele país es tava
determinado a eliminar a autoridade e jurisdição do papa romano. E quando a
força bruta era usada contra eles, passavam para a clandestinidade ou faziam
as malas e partiam, para esperar o dia em que pudes sem voltar. Sempre
voltavam. Mesmo quando a situação não chegava a caso de expulsão, ninguém
tinha qualquer ilusão sobre o que eles representavam — o papado — e muitas
vezes a função dos jesuítas em nome do papado era desvirtuada por seus
inimigos. Na América de início do século XIX, a oposição e o ódio
protestantes aos jesuítas era expresso com vigor: “Eles [os jesuítas] vão fazer
com q ue Roma governe a Uniã o.”
Aquela identificação com o papado e aquela dedicação a ele tinham sido
a vontade e a intenção de Inácio, seu fundador; e fora a condição sob a qual o
papado consentira em criar a Sociedade de Jesus. Na vida e na mor te, os
jesuítas escreveram realmente a história como “ homens do papa”
— fosse o padre jesuíta Peter Claver consumindo sua existência entre es cravos
sul-americanos; ou o padre Matteo Ricci tornando-se um autêntico mandarim
na corte imperial de Beijing; ou o padre Peter Canisius, o Mar telo dos
Hereges, recuperando províncias e cidades inteiras do protestantismo com suas
incansáveis e incessantes viagens, pregações e obras escritas; ou o padre
Walter Ciszek definhando no gulag soviético por dezessete anos; ou o padre
Jacquineau servindo de mediador ente japones es e chineses que guerreavam
por causa de Hong Kong; ou o padre Augustin Bea, viajando clandestinamente
pelos quatro pontos cardeais da União Soviética na época de Stalin, para obter
um retrato fiel das condições para a Santa Sé; ou o padre Tacchi Venturi
levando de um lado para outro as negociações entre o ditador Benito Mussolini
e o papa Pio XII.
Não importa quem fossem ou onde estivessem, ou o que fizessem,
inerente na mente de cada jesuíta estava aquele santa estrutura da Igreja de
Cristo, ancorada por Jesus ao seu vigário pessoal, o papa, e mantida unida pela
hierarquia de bispos e sacerdotes, pessoas religiosas e leigas em união com
aquele vigário pessoal de Cristo. E não importa o ano ou
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29. o século em que trabalhasse, cada jesuíta sabia que a Igreja Católica a que ele
jurara servir sob as ordens do papa era a mesma Igreja que havia existido no
século VI sob Gregório o Grande, no século XI sob Inocêncio IX e em 1540
sob Paulo III.
De lato, o que mantinha a vontade deles com relação ao seu traba lho por
grandes distâncias de espaço e tempo era a lendária obediência jesuítica,
consagrada pelo seu voto especial: o de que todo e qualquer trabalho que
realizassem seria sob a obediência papal.
Para os inimigos dos jesuítas, enquanto isso, eram precisamente o s erviço
e a obediência ao papado que constituíam a abominação jesuíti ca. Seus críticos
nunca cessaram de acusar os jesuítas de terem distorcido a filosofia humanista.
Mas o escritor francês F. R. de Chateaubriand, que não era nada amigo da
Sociedade, foi muito preciso em seu julgamento quando disse que “ o leve da no
que a filosofia pensa lhe ter sido causado pelos jesuítas” não vale a pena ser
lembrado, tendo em vista “ os incomensurá veis serviços que os jesuítas têm
prestado à sociedade humana”.
A mentalidade e a perspectiva criadas pelos jesuítas atingiram seu ponto
máximo de desenvolvimento na primeira metade do século XX. Como
resultado de seus esforços, houve uma pseudo-renascença do catolicismo
social e cultural, permitindo que os católicos fossem cientistas, tecnólogos,
psicólogos, sociólogos, cientistas políticos, líderes, artistas, eruditos, saindo -
se bem mesmo nos campos mais novos do conhecimento e, no entanto,
conciliando tudo com a sua crença firme como um roche do. O testemunho de
tudo isso se encontra em muitas coisas — na poesia e na literatura de um G. K.
Chesterton e um Paul Claudel; na sociologia militante de católicos franceses,
alemães, belgas e italianos entre as duas guerras mundiais; na florescente
missiologia que transformou os campos missionários da Ásia e da África; na
temível escola de apologética na Europa e nos Estados Unidos; na
padronização das devoções populares e dos regulamentos eclesiásticos; no
vibrante catolicismo dos Estados Unidos; e quando nada, no relutante mas
finalmente admitido respeito, por parte tanto de católicos como de não -
católicos, que ficou evidente com relação ao catolicismo no mundo na década
de 1950.
Durante a época de seu maior florescimento, na primeira metade do século
XX, o número de jesuítas atingiu o seu apogeu — cerca de 36.038
— dos quais pelo menos a quinta parte era de missionários. A influência
jesuítica sobre a política papal nunca foi maior, nem antes nem depois; e o
prestígio dos jesuítas entre os católicos e os não-católicos nunca foi mais
elevado.
No entanto, já um pouco de podridão interna estava corroendo tan to os
jesuítas como o corpo eclesiástico católico. Um câncer oculto, inse rido
décadas antes naqueles corpos, ficara neutro, mas não benigno.
Sintomas ocasionais traíam a sua presença — às vezes, revoltas de
jesuítas em caráter individual; de vez em quando, abusos flagrantes na liturgia
por parte de grupos individuais; raramente, mas com regularida de, a confusão
entre atividade espiritual e vantagem política. Mas nada
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30. do que acontecia vaticinava a violenta mudança que aguardava a Igreja, o
papado e os jesuítas na década de 1960.
Com plena visão das realizações sem paralelo, torna -se fascinante
examinar que tipo de característica a Sociedade de Jesus desenvolveu durante
suas atividades ao longo de séculos, e por que ou como, no século XX, ela
transmudou a sua finalidade original. Não que seja esta a primeira vez em que
um ou outro grupo da Igreja saiu de forma e decla rou guerra ao papado. Mas é
a primeira vez que a Sociedade de Jesus se voltou contra o papado com a nítida
ideia de desfazer as prerrogativas do papado, diluir o governo hierárquico da
Igreja Católica e criar uma nova estrutura da Igreja; e é a primeira vez que a
Sociedade de Jesus, tanto em bloco como por seus membros individuais,
empreende uma missão sócio-política.
Iñigo fundou a sua “Companhia de Jesus”, como ele a chamava originalmente,
com uma finalidade: ser a defensora da Igreja e do papado.
O papa que deu à Ordem uma existência oficial, no século XVI, tornou aquela
finalidade a missão da Sociedade e a razão de sua existência. Como instituição,
ela sempre esteve presa ao papa. Seus membros professos sempre estiveram
ligados ao papa por um voto sagrado de absoluta obediência. Durante 425 anos,
eles ficaram ao lado do papado, foram soldados em suas batalhas, ensinaram
suas doutrinas, sofreram suas derrotas, defenderam suas posições,
compartilharam de seus poderes, foram ata cados por seus inimigos, e
constantemente promoveram seus interesses por todo o globo. Eram
considerados por muitos, tal como eles mesmos se consideravam, os “ homens
do papa”; e os muitos privilégios extraordinários concedidos por papas ao
longo dos séculos eram como distintivos da confiança que o papado tinha na
Sociedade.
Nunca, pode-se dizer, a Sociedade de Jesus, como um bloco, se desviou
dessa missão, até 1965. Naquele ano, o Concílio Vaticano II encerrou a última
de suas quatro sessões; e Pedro de Arrupe y Gondra foi eleito para ser o 27º
geral dos jesuítas. Sob a liderança de Arrupe, e na estonteante expectativa de
mudança provocada pelo próprio Concílio, o novo ponto de vista — antipapal e
de natureza sócio-política — que vinha medrando às escondidas há mais de um
século, foi adotado pela Sociedade como pessoa jurídica.
A rápida e completa reviravolta da Sociedade em sua missão e em sua
razão de ser não foi acidente ou obra do acaso. Foi um ato delibera do, para o
qual Arrupe, como geral, proporcionou uma liderança inspiradora, entusiástica
e ardilosa.
As percepções, entretanto, especialmente em questões de grandes ins-tituições
religiosas, não se alteram com facilidade ou rapidez. A reputa ção
angariada pela Sociedade ao longo de centenas de anos foi a melhor
camuflagem para formar uma nova e muito diferente Sociedade que pas sou a
existir nos últimos vinte anos. Com efeito, a história passada e glo riosa da
Sociedade parece ter tornado invisíveis os feitos presentes e possibilitado à
nova liderança jesuítica apresentar ao mundo o seu novo
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31. ponto de vista como sendo a mais recente e melhor expressão da
espiritualidade e da lealdade inacianas.
Para a massa geral dos católicos, clérigos e leigos, era inconcebível
que os jesuítas, logo eles, propagassem uma nova ideia da Igreja; ou que
passassem a combater um só papa, quanto mais três, difamando-o, enganando-o,
desobedecendo-o, esperando que cada um deles morresse, na esperança de
que o papa seguinte lhes desse plenos poderes.
Inevitavelmente, a guerra dos jesuítas contra o papado intensificou -se
durante o pontificado de Karol Wojtyla como João Paulo II. Esse homem
carismático, teimoso, chegou ao papado com sua vivida experiência dos
marxistas na Polônia. Tudo o que se relacionava com ele — mas em especial
seus objetivos, seu plano de ação e sua estratégia como papa — indicava um
bem definido afastamento de tudo o que estivera em voga em Roma desde a
década de 1950.
Desde o momento de sua eleição, ficou evidente que João Paulo sofria
a oposição de muitos elementos da burocracia do Vaticano por ele herdada. O
que estava menos claro, mesmo para os veteranos observadores do Vaticano,
era que ele também sofria forte oposição, e sua autori dade seria violentamente
desafiada, por questões de método de ação, pela Sociedade de Jesus.
Nada que João Paulo tem tentado desde que chegou ao Trono de Pedro em
1978 — e ele já tentou tudo, da persuasão ao confronto e à intervenção direta
— dissipou ou mesmo suavizou a decidida postura jesuítica contra ele. Até
agora, os jesuítas têm frustrado os esforços do pontífice para cercá-los; e o
exemplo deles ainda está sendo seguido em escala cada vez maior.
Mas, como a Sociedade está aprendendo, esse papa polonês não é outro
Paulo VI. Ele se recusa a erguer as mãos em desespero. Ao contrá rio, acaba de
iniciar uma nova campanha na guerra, dessa vez num campo de batalha
escolhido por ele mesmo.
Como João Paulo está aprendendo, os jesuítas serão tão espertos e tão
vivos em sua resposta a cada ofensiva papal como sempre foram em tudo o que
fizeram. De fato, foram os jesuítas, e não o papado, que dis pararam a primeira
salva de tiros na mais recente confrontação direta, num esforço de tirar a
iniciativa do papado e da hierarquia romana.
Seja qual for o resultado dessa campanha mais recente, e de outras que se
seguirão, com toda certeza, não pode haver dúvida de que durante a nossa
geração aquilo que o papado representa tornou-se inaceitável para os jesuítas;
e que aquilo que a Sociedade de Jesus passou ultimamente a defender é hostil
ao papado e, portanto, inaceitável para ele.
No entanto, apesar do fato de que cada qual se coloca num pólo oposto ao
outro, ainda permanecem poderosas similaridades entre o pa pado e a Sociedade
— similaridades que irão significar que a guerra entre eles será mortal a um
nível e a um grau atingidos por poucas guer ras.
A primeira e mais poderosa similaridade é o inextirpável senso de
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32. missão divina que é o instinto motor tanto no papado como nos jesuítas. Cada
um deles alega estar agindo unicamente para o bem-estar do povo de Deus no
mundo inteiro e para a exaltação da Igreja que Cristo fundou sobre Pedro.
Uma segunda é que, como organizações que lidam com potencial humano
e dons naturais, cada qual segura com mão firme as alavancas de um imenso
poder temporal. Cada qual aplica suas energias e seus re cursos a situações
específicas visando a fins particulares, concretos e definidos.
Apesar de tudo — e isto é uma terceira similaridade — em meio à paixão
e à aparente confusão que sempre acompanham a atividade humana, tanto o
papado quanto os jesuítas operam num plano universal e desprovido de pai xão,
com motivos que não permitem a vulnerabilidade dos sentimentos humanos.
Ambos tentam agarrar o valor do momento presente, passageiro. Mas ambos
têm lembranças respeitáveis; ambos medem constantemente seus planos e
ações por um gabarito do futuro que desejam ver tornado realidade; e ambos
partem do pressuposto de que o tempo está do seu lado. Bastante tempo.
É neste ponto capital relativo ao tempo que melhor pode ser percebi do o
inevitável resultado de todas as batalhas. Porque na perspectiva ca tólica
romana — e também na perspectiva do jesuitismo inaciano clássico
— existe outra dimensão, outra condição de existência humana, que ofusca
essa guerra entre o papado e a Sociedade: dois poderes cósmicos — o bem
inteligente e o mal inteligente, personificados em Deus e Lúcifer — estão
atracados numa luta de vida ou morte pela fidelidade de todos os seres
humanos. Essa luta só se torna tangível — pode ser rastreada e identificada —
nos múltiplos detalhes de complexas situações humanas. Mas, pela mesma
razão, tudo o que é tangível, toda e qualquer situação humana, é colorido pelo
que é trans-humano e eterno.
É essencialmente nesse plano que está sendo travada a guerra entre o
papado e a Sociedade de Jesus. E nesse plano, só o papado é que tem a
promessa divina de tempo.
No plano que ocupamos como espectadores dos acontecimentos con-temporâneos,
não temos possibilidade de prever quais as sementes do bem
poderão germinar no que temos que resumir como área de calamidade. Estamos
demasiado próximos desses acontecimentos. Falta-nos perspectiva — bem
como presciência. A visão que temos pelo espelho da história é obscura. Não
podemos, portanto, saber quais as alterações que haveria na Sociedade de
Jesus se todos os extremismos atuais da Ordem dos je suítas fossem eliminados
— entendendo-se por extremismos óbvios o abandono do ensinamento católico
romano básico, a substituição dele por soluções sócio-políticas, e o abandono
inevitavelmente consequente da primordial vocação dos jesuítas de serem
“ homens do papa”. Uma tal reforma da Sociedade e uma nova adesão ao seu
carisma inicial parecem, humanamente falando, improváveis quando se analisa
até mesmo uma branda acusação de suas condições em nossos dias.
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35. 1 . OBJEÇÕES PAPAIS
Todo papa competente estabelece uma estratégia dominante para o seu
papado. Formula muitos planos de ação, persegue vá rios objetivos
determinados: mas todas as políticas e cada objetivo são enquadrados na esfera
daquela estratégia.
A Sociedade de Jesus foi criada pelo papado em 1540 como “ unidade de
combate” muito especial, à disposição total do papa romano — fosse ele quem
fosse. Desde o início, os jesuítas foram concebidos num estilo militar.
Soldados de Cristo, receberam dois objetivos: propagar a doutrina religiosa e a
lei moral do papa romano, e defender os direitos e prerrogativas daquele
mesmo papa. Objetivos puramente espirituais e sobrenaturais. E
especificamente católicos romanos. E o surpreendente foi que, devido a esse
mandato da Sociedade, a própria estratégia papal s e tornou a cunha da
separação entre os jesuítas e o papado — na verdade, a própria arena em que
está sendo travada a batalha entre os dois.
Pio XII, papa de 1939 a 1958, se viu num mundo novo dominado por duas
superpotências rivais, uma das quais — a URSS — ele excomungou. Sua
política de pós-guerra foi de uma intratável oposição ao marxismo soviético e
de apoio à civilização “ ocidental”, centralizada na Europa e protegida pelos
Estados Unidos.
João XXIII, papa de 1958 a 1963, estava convencido de que uma política
de “ janelas abertas, campos abertos” induziria outros — inclusive os soviéticos
— a reformarem suas atitudes e políticas. O papa João arriou tantas barreiras
entre a Igreja e o mundo — inclusive a União Soviética — quanto lhe foi
possível em seu curto e muito ativo pontificado. Chegou, até, a garantir à
União Soviética imunidade aos ataques da Igre ja, uma assombrosa reversão das
atitudes papais.
Foi um enorme jogo. E que só podia funcionar se reinasse entre os
adversários participantes uma dos e adequada de boa vontade.
O jogo fracassou. O grande detalhe comovente foi que, ao morrer, o papa
João, aquele camponês realista, sabia que a sua abertura tinha sido vista como
fraqueza, e dele se tinham aproveitado homens de um espírito muito inferior.
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36. O papa Paulo VI, 1963-1978, cego para as deficiências da política de
João, aprimorou-a ainda mais. A Santa Sé se tornou nada menos do que uma
querelante no tribunal do poder soviético, pleiteando, no âmbi to diplomático,
uma audiência; organizando conversações cautelosas; praticando a arte
irresoluta das aproximações concessórias — e até mesmo se rebaixando ao
mesquinho engano e traição do reconhecidamente difí cil primaz da Hungria,
cardeal Mindszenty, a fim de agradar os soviéti cos e seu castrado representante
húngaro, Janos Kadar.1
Em tudo isso, Paulo VI, pessoalmente o mais delicado de todos os papas
modernos, comprometeu inconscientemente a sua autoridade papal. Sua grande
estratégia para a sua Igreja foi arrebatada e prostituída por terceiros,
reduzindo-o a uma impotência que deixou cicatrizes nos seus últimos anos
atormentados pela doença, até sua morte no dia 6 de agosto de 1978.
Ainda assim, foi Paulo VI que, quando seu período papal já ia mui to
avançado, percebeu que o propósito duplo original da Sociedade de Jesus tinha
sido alterado. Durante o seu pontificado, foi organizado extenso dossiê crítico
sobre a Sociedade. Por enquanto, é suficiente di zer que o que esse dossiê
continha era comprometedor. Era um retra to, na realidade, de uma ordem
jesuítica que, como um cata-vento no alto de um telhado, tivesse sido virada
por um vento diferente. Para os jesuítas, o papado já não tinha a primazia de
posição. O objetivo coletivo da Sociedade era colocar -se, junto com a Igreja, à
disposição de uma mudança radical e puramente sócio-política do mundo, sem
se reportar — na verdade, desafiando — à estratégia, às políticas e aos ob-jetivos
papais.
Em 1973, Paulo VI, alarmado mais do que nunca pela maneira de os
membros da Sociedade se portarem, tentou deter a investida dos acon-tecimentos.
Reuniu-se várias vezes com o chefe da Ordem, o padre-geral
jesuíta Pedro Arrupe. Boa parte desses encontros entre os dois homens foi
tempestuosa. Mais de uma vez, Paulo quis que Arrupe renunciasse ao cargo. De
uma maneira ou de outra, Arrupe sobreviveu a todos os ata ques papais. Paulo
VI insistiu, mesmo, q ue Arrupe transmitisse a seus jesuítas “ nossa ordem de
que os jesuítas continuem leais ao papa”. Ar rupe e seus assistentes em Roma,
àquela época, estavam decididos a se preparar para outra reunião internacional
da Ordem, uma Congregação Geral, como é chamada essa assembleia. Por isso,
foi ganhando tempo, um tempo precioso. Paulo, na sua fraqueza, não
encontrava outra alternativa que não a de esperar.
Paulo fez uma última, mas ineficaz, tentativa de lembrar a obediência da
Sociedade ao papado, durante a assembleia internacional de líde res jesuítas,
que durou 96 dias, a XXXII Congregação Geral de 1974-1975. Seus esforços
encontraram total incompreensão e uma obstinada — farisaica até, alguns
disseram — oposição por parte da Ordem. Papa e jesuítas simplesmente não
conseguiram chegar a um acordo. Os jesuítas não queriam obedecer. Paulo
estava fraco demais para forçar mais o debate.
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37. “Quando se tem pessoas [os jesuítas]”, escreveu o padre jesuíta M.
Buckley a respeito da atitude de Paulo para com aquela XXXII Congre gação
Geral, “que não acham que tenham cometido erro, quer de conteúdo, quer de
procedimento, e quando essas pessoas sofrem a desconfiança, resistência ou
reprovação do próprio homem que elas estão tentando servir (...) tem-se (...) um
problema religioso muito sério.”
Para dizer o mínimo.
O cardeal Albino Luciani, de Veneza, foi eleito para suceder Paulo VI no
dia 26 de agosto de 1978. Mesmo antes de se tornar papa, parece que ele já
tomara uma decisão notadamente desfavorável com relação à Sociedade.
E aparentemente a Sociedade já tomara uma decisão com referência ao
papa João Paulo I. Assim que foi eleito, os jesuítas fizeram suas reivindicações.
O padre Vincent O’Keefe, o mais destacado dos quatro assistentes -gerais de
Arrupe, e que estava sendo preparado para suceder a Arrupe um dia como geral
da Ordem, declarou em entrevista a um jornal holandês que o novo papa deveria
rever a condenação da Igreja ao aborto, à homossexualidade e ao sacerdócio
feminino. A entrevista foi publicada.
O papa João Paulo I ficou enfurecido. Aquilo era mais do que des prezo.
Era uma afirmação de que a Sociedade de Jesus sabia, mais do que o papa,
quais os princípios morais que os católicos deveriam praticar. E era uma
afirmação de que a Sociedade tinha autoridade para dizer o que pensava; isto é,
era uma apropriação direta da autoridade que pertencia exclusivamente ao papa.
João Paulo I mandou chamar Arrupe e exigiu uma explicação. Arrupe
prometeu, humildemente, investigar o caso todo. Mas João Paulo podia sentir o
que estava no ar, tão bem quanto qualquer papa. Com ba se no dossiê crítico de
Paulo VI, e com a ajuda de um velho jesuíta muito experiente, padre Paolo
Dezza, que tinha sido confessor do papa Paulo VI e agora era o confessor de
João Paulo I, o papa redigiu um violento discurso de aviso. Ele planejava
proferi-lo à assembleia internacional de líderes jesuítas com o geral Arrupe, em
outra de suas congregações gerais a ser realizada em Roma em 30 de setembro
de 1978.
Uma das características mais notáveis do discurso era a repetida re ferência
que João Paulo I fazia aos desvios doutrinários por parte dos jesuítas. “Que não
aconteça que os ensinamentos e as publicações dos jesuítas contenham alguma
coisa que cause confusão entre os fiéis.” O desvio doutrinário era, para ele, o
mais ominoso sintoma do fracasso jesuítico.
Encoberto pelo polido verniz de sua graciosa romanità, aquele discurso
continha uma clara ameaça: a Sociedade dever ia voltar ao seu papel adequado e
prescrito, ou o papa seria obrigado a tomar providências.
Que providências? Com base nos memorandos e notas de João Paulo, está
claro que, a menos que fosse factível uma rápida reforma da Ordem,
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38. ele tinha em mente a efetiva liquidação da Sociedade de Jesus tal como existe
hoje — talvez para ser reconstituída mais tarde, numa forma que fosse mais
controlável. João Paulo I recebeu pedidos de muitos je suítas implorando para
que não fizesse aquilo.
O papa nunca proferiu aquele discurso de aviso. Na manhã de 29 de
setembro, depois de 33 dias no Trono de Pedro, e um dia antes de se dirigir à
congregação geral da sociedade, João Paulo I foi encontrado mor to em seu
leito.
Nos dias que se seguiram, o geral jesuíta Arrupe apresentou um pedido ao
cardeal Jean Villot, que como secretário de estado do Vaticano governava a
Santa Sé no período intermediário entre a morte de João Paulo I e a eleição de
seu sucessor: será que os jesuítas poderiam obter uma cópia do discurso?
Depois de uma discussão com o Colégio de Cardeais, que o estava
ajudando nos preparativos para a eleição do próximo papa, o cardeal pru -
dentemente negou o pedido. Arrupe foi avisado de que, na opinião de Villot e
do concílio, “ estava mais do que na hora de os jesuíta s colocarem seus assuntos
em ordem”.
Por sua parte, Arrupe e os jesuítas decidiram não fazer nada e ver quem se
tornaria o papa seguinte. Tempo era o artigo que eles sempre procuravam ter.
Mais do que nenhum de seus dois antecessores imediatos, Karol Wojt yla,
da Polônia, eleito como João Paulo II no dia 16 de outubro de 1978, não podia
hesitar naquela questão dos jesuítas. A grande estratégia papal de João Paulo II
abrangia o Primeiro Mundo do capitalismo, o Segundo Mundo do comunismo
soviético e o Terceiro Mundo dos chamados países subdesenvolvidos e em
desenvolvimento.
Wojtyla foi extremamente sagaz ao analisar o caráter e as limitações da
estratégia papal a partir de 1945. Em sua opinião, Pio XII havia guia do a Igreja
na base de uma mentalidade de “ cer co”, só permitindo à es tratégia papal um
movimento clandestino dentro do império soviético, mas não oferecendo
desafio algum à continuada erosão da Igreja naque la área. A política de
“campos abertos”, de João XXIII, tinha sido um fracasso. A política de Paulo
VI consistira apenas de uma refinação de uma política já defeituosa e
fracassada. Até a época da morte de Paulo VI em 1978, seu Secretariado de
Estado conseguira elaborar protocolos de acordo com mais de um governo -
membro da “ fraternidade” socialis ta soviética, mas nenhum tinha sido
rubricado, quanto mais assinado e transformado em lei. De qualquer maneira,
ainda que aqueles protocolos tivessem sido ratificados, já se tornara claro que
não teriam feito diferença alguma para a situação dos católicos romanos sob
domínio soviético.
Segundo a análise de João Paulo II, enquanto os chamados Primei ro,
Segundo e Terceiro Mundos ficassem trancados no frio glacial da ri validade de
superpotências alimentada indefinidamente pelo sistema de “ bola ao chão”
entre o marxismo-leninismo e o capitalismo rígido, não haveria a mínima
esperança, em termos mundanos, de que alguma coisa
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39. pudesse ser salva — de que qualquer batalha fosse vencida ou de que fosse
encontrada qualquer solução para o perigoso dilema das nações. A situação só
iria se desintegrar, lenta mas inevitavelmente, possivelmente arrasando a
civilização tal como os homens a conheceram no último quarto do século XX, e
reduzindo a história humana a uma longa e angustiada caminhada sonambúlica
até o fim da noite humana.
Wojtyla achou que estava na hora de adotar uma norma de ação
completamente diferente daquela que Pio, João, ou Paulo, tinha adotado antes
dele. Sua abordagem seria na base da “força muscular”: onde os católicos
constituíssem maioria ou, então, uma minoria de bom tamanho, em sociedade
fechadas, deveriam exigir o espaço sócio-político que lhes cabia por direito —
reivindicar seus direitos, em outras palavras, sob a alegação de que a sua
simples presença como católicos romanos seria suficiente para garantir a
defesa daqueles direitos.
Quando cardeal-arcebispo da Cracóvia, na Polônia, Wojtyla já ha via
afiado sua sagacidade no planejamento de uma estratégia pela qual tais
maiorias e minorias católicas que ele tinha em mente pudessem rei vindicar
seus direitos; no entanto, não havia entrado em conflito com o totalitário e
inescrupuloso controle militar característico dos governos comunistas.
O método de “ força” de João Paulo não afastou a hipótese de diá logo e
discurso com os soviéticos e seus representantes. Pelo contrário. Mas seria de
um tipo totalmente diferente daquele que João XXIII ou Paulo VI tinha
adotado. E de fato, nenhum líder mundial de hoje tem falado aos líderes
soviéticos com tanta frequência e de forma tão direta quanto João Paulo II,
logo desde o princípio de seu pontificado. Ele re cebeu o prestigiado Andrei
Gromyko, da União Soviética, que participara de muitos governos, no dia 24 de
janeiro de 1979, pouco mais de três meses depois de sua eleição papal. Foi
apenas o primeiro de oito encontros pessoais entre este pontífice e Gromyko
entre 1979 e 1985. Suas conversas telefônicas com a Europa Oriental e com a
União Soviética são assunto seu; é bastante que se diga que elas acontecem. Se
você é um eslavo dos eslavos, se você fala russo além de duas ou três outras
línguas europeias orientais, se você é papa, e se você é Karol Wojtyla, os
agentes do poder desejam falar com você.
Seria essencial, para a estratégia “ de força” de João Paulo II, que ele
proporcionasse e impusesse, com sucesso, uma nova liderança mundial
alimentada exclusiva e inquestionavelmente por motivos morais e es pirituais.
A fim de ter até mesmo uma esperança de vencer numa estratégia assim tão
ousada e tão radical, João Paulo II teria que demonstrar a lide rança que ele
estava propondo em suas áreas-chave: sua autoridade suprema quanto a
doutrina e moralidade teria que ser defendida e reafirmada dentro de sua Igreja
de âmbito mundial; e deveria haver um exemplo concreto do que aquela
liderança podia oferecer como solução para o dilema internacional.
Daí as duas linhas mais visíveis da atividade papal de João Paulo:
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40. suas viagens pelo mundo todo e sua cuidadosa orientação do movimento
Solidariedade na Polônia. O aparecimento dessa figura papal em todos os
principais países e em muitos outros sem tanta importância seria o meio de
restabelecer aquela autoridade. E se o movimento Solidariedade con seguisse a
liberdade de ação econômica e cultural sob a égide do comu nismo soviético na
Polônia, os comunistas e os capitalistas teriam um exemplo vivo para mostrar
que a política doutrinária não precisa resultar em escravidão, pobreza ou um
devastador militarismo.
Com a orientação e a ajuda financeira de João Paulo II, o primaz da
Polônia, cardeal Stefan Wyszynski, de oitenta anos, estava obtendo progresso
no desenvolvimento de uma atitude na organização do Solida riedade através da
qual a Igreja e seu povo pudessem escapar, cultural e socialmente, das garras
do comunismo. O éthos do Solidariedade foi desenvolvido precisamente pa ra
permitir essa liberdade cultural e social, enquanto deixava intato o controle
político e militar do marxismo. “Não ameacem os marxistas do Partido
Comunista da Polônia, no Parlamento Nacional, no seu exército ou em suas
forças de segurança”, era o lema dos fundadores do Solidariedade. “Deixem-nos
em paz. Vamos reivindicar liberdade nas outras áreas.”
Ao mesmo tempo, no outro lado do mundo, na área que se estende das
fronteiras sul do Texas até à ponta da América do Sul, jesuítas e ou tros
estavam executando uma política própria como criadores e princi pais
fomentadores de uma nova concepção — que eles chama vam de “Teologia da
Libertação”, numa tentativa caracteristicamente eficiente de inspirar um apelo
romântico — baseada em princípios revolucionários marxistas e visando
instalar um sistema comunista de governo. A contra dição entre o modelo
polonês de João Paulo e o modelo de “Libertação” defendido ardorosa e
abertamente pelos jesuítas na América Latina não poderia ter sido mais
completa ou petulante.
João Paulo II, como João Paulo I antes dele, tinha conhecimento do dossiê
sobre os jesuítas compilado na época de Paulo VI. E tinha em seu poder,
também, o discurso de reprovação que João Paulo I havia preparado mas nunca
pronunciara. Em novembro de 1978, um mês após sua eleição, o papa enviou o
discurso de João Paulo I ao padre-geral Arrupe no Gesù, como é chamada a
sede internacional dos jesuítas em Roma.
O papa queria que o gesto tivesse a natureza de um aviso benigno: é como se
este discurso tivesse sido escrito por mim, dizia o gesto. Em respos ta, como era
de se esperar, ele recebeu do geral os devidos protestos de lealdade e
obediência. Mas estes iriam revelar-se apenas isso: protestos.
Na noite de 31 de dezembro, como gesto de boa vontade, o papa fo i à
igreja jesuítica do Gesù, a fim de honrar a Sociedade com a sua presen ça
durante as tradicionais cerimônias religiosas de fim de ano, de dar gra ças a
Deus. João Paulo mandou dizer aos jesuítas, de antemão, que não queria ver
nenhum deles em trajes civis. E não viu. Talvez fosse uma pequena concessão
ao papa, ao qual cada um dos presentes prestara votos importantes e sem igual.
Mas foi a única.
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41. Até mesmo a comitiva de João Paulo observou a polida frieza dos
notáveis jesuítas reunidos para a ocasião. Depois das cerimônias religiosos, o
papa jantou com os jesuítas no refeitório deles. Foi cortês em suas
observações, reclamou um dos jesuítas presentes mais tarde, mas “ não nos fez
a menor insinuação sobre o futuro da Sociedade”.
Aquela reclamação tinha um significado que daria para encher volumes,
Os jesuítas tinham conseguido ignorar Paulo VI e João Paulo I. Por que iriam
precisar de João Paulo II? Os jesuítas teriam simplesmente que ter paciência e
sobreviver a esse papa, como haviam sobrevivido aos doi s anteriores.
Dois meses após aquele encontro de fim de ano entre o papa e seus
jesuítas, nos meses de fevereiro e março de 1979 o geral Arrupe convocou
entrevistas coletivas no México e em Roma, nas quais afirmou afavelmente
que não havia atrito algum ent re o santo padre e os jesuítas. Sim, confirmou
Arrupe a jornalistas no Gabinete Internacional de Imprensa da Santa Sé, ele
havia recebido aquele discurso de João Paulo I, que João Paulo II havia
assumido como sendo dele próprio. Falava -se, continuou ele, que o
documento “ tinha um sentido pejorativo e era uma reprimenda” dirigida às
alterações feitas na Sociedade sob a liderança de Arrupe que já durava
quatorze anos. Mas aquilo era um absurdo, disse Arrupe. O papa sabia que,
“ naturalmente, a Sociedade de Je sus ha via mudado”, conti nuou ele. “Não
poderia ser de outra maneira, ao ver que a própria Igreja havia mudado.” Não
havia, na realidade, atrito algum, concluiu ele.
Sua Santidade pensava o contrário: havia um grave atrito. Aquilo que
João Paulo chamava de “ atrito sobre pontos fundamentais”.
Teólogos e escritores jesuítas, na Europa e nas Américas, tinham estado,
e ainda estavam, ensinando e escrevendo sobre crenças e leis católi cas de uma
maneira que se opunha aos ensinamentos papais tradicionais e aos
ensinamentos anteriores da Igreja como um todo — sobre a autoridade papal;
sobre o casamento entre o marxismo e a cristandade; sobre a moralidade
sexual em todos os seus aspectos; sobre crenças sagradas católicas como a
Conceição da Virgem Maria, a existência do Inferno,
o sacerdócio. Eles estavam, na verdade, redefinindo e remodelando tudo do
catolicismo que os católicos sempre consideraram como valores pelos quais
valia a pena viver e morrer — inclusive a própria natureza e consti tuição da
Igreja que Cristo fundou.
O geral Arrupe continuou a permitir a publicação de livros que con -
tradiziam toda a gama de ensinamentos tradicionais, e a defender seus homens
que escreviam e ensinavam segundo aquela orientação. Nenhum apelo papal ao
padre Arrupe jamais pareceu ter qualquer efeito, diante da complicada e
engenhosa delonga do geral jesuíta.
Arrupe iria examinar a situação, prometia ele ao santo padre. Dizia ele
que já tinha inquéritos em mãos. Iria mandar informações o mais rá pido
possível. Era difícil separar a verdade de boatos malévolos. Ele fa ria esforços
no sentido de esclarecer posições. Era preciso tempo. Seus homens estavam
fazendo o possível. Seus pontos de vista tinham sido dis torcidos.
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