Comunicação no âmbito das Jornadas de Psiquiatria do Hospital Garcia de Orta, na mesa novas tecnologias e saúde mental. O objetivo foi, de uma forma superficial, perceber como as chamadas "novas tecnologias" podem (ou não) interferir com a nossa saúde mental. Espero que apreciem.
1. Novas tecnologias e psicopatologia
Diogo Frasquilho Guerreiro
Médico Psiquiatra
30 Maio 2019
2. Novas tecnologias?
Não tão recentes quanto isso?... Ou talvez sim?
3 milhões de anos: os humanos fabricam as primeira ferramentas, de
pedra, ossos, madeira, etc.
1 a 2 milhões de anos: descoberta do fogo
3.500 anos AC: descoberta da roda
700-900 DC: descoberta da pólvora
1880: Thomas Edison patenteia a lâmpada incandescente
1958: lançamento do primeiro satélite (Sputnik), pela URSS
1971: primeiro computador com microprocessador
1973: primeiro telemóvel
1990: lançamento da world wide web (internet)
1998: nasce o Google (2003 – palavra “Googlar” surge no dicionário)
2001: nasce a wikipedia
2005: nasce o youtube
2006: nasce o facebook
2019: Smooth-talking A.I. assistants, inteligência artificial que compreende
com mais facilidade a semântica da linguagem humana
3. A evolução da comunicação
Muitos milhares de anos de evolução humana vs +/- 200 anos de
evolução da comunicação em massa e imediata
4. A evolução do cérebro humano
Homo sapiens - latim para "homem sábio" (nomenclatura introduzida
1758 por Carl Linnaeus). Idade: +/- 300.000 anos
5. Tempos de evolução comparados
+/- 4 milhões de anos
para evoluirmos para
homo sapiens sapiens
+/- 200 anos de evolução da
comunicação em massa e
imediata
VS
6. Isto levanta algumas questões...
Estará o nosso cérebro adaptado a estes avanços
tecnológicos, especialmente no que concerne às tecnologias
da informação e comunicação em massa?
Tempo de evolução “natural” vs “pressão tecnológica”
Quais os efeitos que a nova realidade (ecossistema atual do ser
humano) têm no corpo (e cérebro) humano?
Não há dúvidas que a espécie humana contínua a evoluir, mas o
tempo para a “evolução genética” conta-se em “milhares de anos” -
Stock JT (2008),EMBO reports.
Estaremos no limite da nossa capacidade de adaptação ao
stress ambiental?
Terá esta evolução tecnológica ultrarrápida consequências ao
nível da nossa saúde mental?
Poderá responsabilizar-se a tecnologia por psicopatologia?
7. Long story short
Ainda não tivemos tempo suficiente para
saber as respostas a estas perguntas!
8. Mas algumas coisas já sabemos...
A forma como os adolescentes de hoje aprendem, brincam e interagem
mudou mais nos últimos 15 anos do que nos 570 anteriores desde
a popularização da imprensa escrita por Gutenberg.
A Internet, os iPads, os telefones celulares, o Google, o Twitter, o Facebook
e outras “maravilhas modernas” fornecem uma enorme quantidade de
informações para o cérebro adolescente
2010: Adolescentes dos EUA passam em média 8.5h/dia em interação
com tecnologia digital (uma subida de 6.5h/dia desde 2006)
30% desde tempo a usar mais do que um aparelho
Mas porque é que isto interessa?...
Giedd JN (2012). The digital revolution and adolescent brain evolution. J Adolesc Health
9. Cérebro em desenvolvimento
Cérebro adolescente = Work in progress!
Gogtay N , et al (2004). Dynamic mapping of human cortical development during childhood through early adulthood.
Proceedings of the National Academy of Sciences
Maturação do cérebro
vai até bem para lá dos
20 anos
Córtex frontal, sede das
“funções executivas”
(planeamento, decisões
morais, memória de
trabalho, controle de
impulsos) é das últimas
áreas do cérebro a
amadurecer.
Pelos 12 anos o cérebro
começa a eliminar as
ligações em excesso,
(pruning), preservando
apenas aquelas que são
úteis
10. “Use it or lose it”
Tendo em conta as extensa mudanças que ocorrem (naturalmente) no
cérebro durante a nossa infância, adolescência e inicio da vida adulta
e...
...sabendo a seleção das ligações entre os neurónios, ocorre baseada
num fundamento “utiliza-os ou perde-os”. Então não será
surpreendente que:
A forma como a criança e o adolescente estimulam o cérebro é decisiva”
O tipo de interações sociais que estabelecem é decisiva (online ou offline)!
A exposição a fatores “neurotóxicos” (substâncias, stress crónico,
adversidades precoces) pode perturbar o desenvolvimento!
As “novas tecnologias” estarão certamente a mudar a forma de
desenvolvimento do cérebro dos nossos jovens!
Shors TJ et al (2012). Use it or lose it: how neurogenesis keeps the brain fit for learning. Behav Brain Res.
11. Voltando ao tema...
Que evidências temos sobre o uso de novas tecnologias e
psicopatologia?
Redes sociais – depressão e ansiedade
Videojogos – impulsividade e problemas de atenção
Desafios “online” – comportamentos autolesivos e suicídio
Tecnologia no local de trabalho – “multitasking” e stress
12. Redes sociais
Estudo longitudinal, n= 1730, idades
entre 19-32 anos, EUA
Caracterização do padrão de uso de
redes sociais:
Tempo, frequência, número de
plataformas, padrão de uso problemático,
intensidade emocional
Análise de clusters (grupos de acordos com
padrão uso)
Avaliação de sintomas depressivos e
ansiosos
Shensa A, et al (2018). Social Media Use and Depression and Anxiety
Symptoms: A Cluster Analysis. Am J Health Behav.
13. Percentagens de “high”?
• Tempo: > 60mn/dia
• Frequência: > 30 visitas/ semana
• Plataformas múltiplas: > 3 redes
Redes sociais
Shensa A, et al (2018). Social Media Use and Depression and Anxiety Symptoms: A Cluster Analysis. Am J Health Behav.
Offline
Uso
moderado
Uso muito
intenso
Uso
problemático
• Uso problemático: Escala
• Intensidade: Escala
14. Redes sociais
Shensa A, et al (2018). Social Media Use and Depression and Anxiety Symptoms: A Cluster Analysis. Am J Health Behav.
Offline
Uso
moderado
Uso muito
intenso
Risco 2 a 3x superior de depressão e ansiedade
Dependendo do padrão de uso
Uso
problemático
15. Redes sociais
Seabrook EM, et al (2016). Social Networking Sites, Depression, and Anxiety: A Systematic Review. JMIR Ment Health.
Mas também existem estudos que revelam aspetos positivos na
utilização de redes sociais:
Utilizadores com ansiedade social ou em estados de isolamento podem
beneficiar destas tecnologias:
Aumento das interações sociais
Suporte social ou de grupo
Interações positivas com outros utilizadores
Tal como na ”vida real” tudo depende da qualidade das interações, da
forma cognitiva e emocional como é vivida o uso das redes sociais.
A vasta literatura neste campo é pautada por resultados muito
contraditórios e o caso “permanece em aberto”
16. Redes sociais
Seabrook EM, et al (2016). Social Networking Sites, Depression, and Anxiety: A Systematic Review. JMIR Ment Health.
Fatores que estão associados a piores resultados ao nível da
depressão e ansiedade:
Interações sociais negativas (comentar negativamente, “gozar”, “dizer
mal”, “cyberbullying”)
Comparações sociais frequentes (“quem me der ter esta vida”, “ele tem
mais amigos”, “eu sou mais feio”)
Uso problemático (“vício de redes sociais”)
Estilo cognitivo do tipo ruminativo (“não consigo deixar de pensar
naquele post ou naquela fotografia”)
Estilo cognitivo inflexível ou demasiado exigente (“eu tenho de conseguir
ter o que ele tem”, “se não consigo aquela vida então não quero mais nada”)
17. Videojogos
Estudo longitudinal, n= 3,034, idades entre 8-17 anos, seguimento ao
longo de 3 anos, Singapura
Caracterização do padrão de uso de videojogos:
Horas de uso, altura do dia, dia de escola vs dias livres, videojogos
violentos (calculados pela “mortandade” de criaturas ou pessoas numa escala de
likert)
Avaliação de atenção (Current ADHD Symptoms Scale Self-Report),
impulsividade (Barratt Impulsiveness Scale) e performance escolar
Gentile DA, et al (2012). Video game playing, attention problems, and
impulsiveness: Evidence of bidirectional causality. Psyc Pop Med Cult
18. Videojogos
Preditores de problemas de atenção e impulsividade:
Tempo total utilizado a jogar videojogos (o mais robusto fator preditor)
Uso preferencial de jogos violentos (aumenta ainda mais o risco)
Sexo, idade, estatuto socioeconómico não mostraram ser fatores
moderadores
Por outro lado, jovens que previamente apresentavam
problemas de atenção e impulsividade têm maior propensão
para:
Maior Tempo total utilizado a jogar videojogos
Maior uso preferencial de jogos violentos
E já agora: > impulsividade e >desatenção levaram a pior performance
escolar
Gentile DA, et al (2012). Video game playing, attention problems, and impulsiveness: Evidence of bidirectional causality.
Psyc Pop Med Cult
Um ciclo vicioso?
19. Videojogos
Mas, mais uma vez, as evidências podem ser contraditórias!
Uso de videojogos (dos jovens a idosos) também tem sido associado a:
Melhoria de perícias cognitivas, nomeadamente velocidade de
processamento e tempo de reação – jogos de ação, aventura e puzzles
Melhores resultados ao nível da memória de trabalho visual e espacial
Indução de emoções positivas e redução dos níveis de stress (em adultos
saudáveis)
Mais uma vez temos um “caso em aberto”, o uso de videojogos pode
aumentar ou diminuir a psicopatologia...
Com certeza dependente do padrão de uso de videojogos, dos videojogos
em si, de fatores individuais, de risco de psicopatologia e de uma
multiplicidade de variáveis psicossociais.
Pallavicini F, et al (2018). Video Games for Well-Being: A Systematic Review on the Application of Computer Games for
Cognitive and Emotional Training in the Adult Population
20. Desafios online
Adolescentes incentivados a cumprir
“desafios” por “curadores” anónimos:
Comportamentos de risco
Comportamentos autolesivos
Suicídio?
Jovens abordados através de redes sociais
(whatsapp) e jogos online (minecraft)
Baleia Azul ou desafio Momo
“Acorda a meio da noite”
“Vê um filme de terror”
“Corta o braço na forma de uma baleia”
“Não contes a ninguém”
Etc...
21. Desafios online
Número incerto de casos
Mas que os há, há...
Sobretudo adolescentes mais jovens
Suicídios consumados?
Grande alarme a nível social
Media
Ativação das unidades de cibercrime
Criador do desafio Baleia Azul, jovem Russo de 21 anos, atualmente preso
por incentivo ao suicídio de 16 jovens e que alega:
“O objetivo era limpar a sociedade”
“As vitimas eram lixo biológico”
Lupariello F et al (2019). Self-harm Risk Among Adolescents and the Phenomenon of the "Blue Whale Challenge": Case
Series and Review of the Literature.. J Forensic Sci.
22. Desafios online
A autolesão em adolescentes é presentemente vista como o resultado de
uma complexa interação entre fatores genéticos, biológicos,
psiquiátricos, psicológicos, sociais e culturais.
(Hawton et al., 2012)
Doença Psiquiátrica Genética Neurobiologia
Fatores Psicológicos Fatores Sociais Fatores culturais
Comportamentos
autolesivos/ atos suicidas
23. Desafios online
Existem pessoas “más”
Perturbação de Personalidade Antissocial – vulgo “psicopata”
Existem jovens com vulnerabilidades para autolesão e suicídio:
Doença psiquiátrica
Disfunção familiar
Impulsividade
Abuso substâncias
Situações de stress psicossocial
Poucos recursos de coping adaptativos
Experiências adversas precoces
Exposição ao suicídio e comportamentos autolesivos
Isolamento social
Guerreiro DF et al (2013). Comportamentos autolesivos em adolescentes: uma revisão da literatura com foco na
investigação em língua portuguesa. Rev. Port. Sau. Pub
24. Desafios online
Uma “combinação perigosa”:
Pessoas “más”
Jovens com vulnerabilidades (e mais facilmente manipuláveis)
Facilidade de acesso, anónimo, através de media digital
Pode levar, de facto, ao aumento dos comportamentos autolesivos
(CAL) numa população específica:
Números imprecisos...
Qual a preponderância do “desafio” em si? Muitos destes jovens já
apresentavam CAL antes da exposição ao desafio...
Uma vez começados os CAL tendem a ser cada vez mais repetitivos e
mais perigosos
Os CAL são o principal preditor de suicídio consumado em jovens!
Lupariello F et al (2019). Self-harm Risk Among Adolescents and the Phenomenon of the "Blue Whale Challenge": Case
Series and Review of the Literature. J Forensic Sci.
25. Desafios online
Internet e suicídio:
Sites pró-suicídio vs Sites de prevenção de suicídio
Fóruns de partilha de comportamentos autolesivos ou métodos de
suicídio vs Fóruns de apoio
Informação adequada vs desadequada
Desafios online vs Apps e sites de promoção de saúde mental
Um claro ponto de interseção entre “novas tecnologias” e
“psicopatologia”
Para o bem e para o mal!
Sem dúvida:
Algo para os clínicos, decisores e população em geral terem em conta!
Biddle L, et al (20118). Using the internet for suicide-related purposes: Contrasting findings from young people in the
community and self-harm patients admitted to hospital. PLoS One
26. Tecnologia, trabalho e multitasking
O nosso “hardware” (cérebro) permite
multitasking?
R: Não!
O busílis da questão:
Mais do que em algum tempo na
história do Homem, se pretende que
jovens e adultos (e mesmo crianças e
idosos!), acompanhem o “ritmo das
coisas”
O “verdadeiro profissional” deve estar
sempre a par de tudo, contactável
24/24h, 7/7 dias. Sabendo tudo,
tratando de várias tarefas ao mesmo
tempo.
Rothbart MK, et al (2015). The developing brain in a multitasking world. Dev
Rev.
27. Tecnologia, trabalho e multitasking
O que é que o nosso “hardware” (cérebro) permite?
Fracionar a capacidade de atenção, mudando o foco rapidamente de
uma tarefa para a outra
Resistir a distrações
Estas capacidades dependem principalmente da rede de atenção
executiva (que incluí o cingulado anterior, a ínsula anterior e o corpo
estriado) e a sua “eficácia” varia de pessoa para pessoa:
Depende da conectividade e eficiência dos circuitos neuronais
Rothbart MK, et al (2015). The developing brain in a multitasking world. Dev Rev.
28. Tecnologia, trabalho e multitasking
Estudo laboratorial de 21 adultos saudáveis
Método: “The multitasking Framework” – 8 tarefas, apresentadas de forma
singular ou até 4 ao mesmo tempo num ecrã.
29. Tecnologia, trabalho e multitasking
Avaliou-se:
Reatividade cardiovascular
Intensidade do trabalho não mostrou efeito significativo
“Multitasking” (durante 15mn!) levou a aumento da frequência
cardíaca, dos valores de tensão arterial e maior tempo de
recuperação pós-exposição.
Reatividade emocional
Aumento da intensidade tem relação dose-resposta (potenciada por
“multitasking”) com:
Aumento do estado de alerta e maior tempo de recuperação
Diminuição nos níveis de calma (“calmness”) e maior TDR.
Diminuição dos níveis de contentamento com a tarefa
Wetherell MA, et al (2014), The Multitasking Framework: The Effects of Increasing Workload on Acute Psychobiological
Stress Reactivity. Stress Health
30. Tecnologia, trabalho e multitasking
E aquilo que se vê no dia a dia:
Wetherell MA, et al (2014), The Multitasking Framework: The Effects of Increasing Workload on Acute Psychobiological
Stress Reactivity. Stress Health
31. Tecnologia, trabalho e multitasking
O que a investigação nos diz sobre os risco do multitasking:
Pode atrofiar o nosso cérebro – menor densidade matéria cinzenta no
córtex anterior cingulado (Loh KK, 2014, PLoS One)
Pode levar a problemas de memória (Uncapher MR, 2016, Psychon Bull Rer)
Pode aumentar a distratibilidade (Moisala M, 2016, NeuroImage)
Pode levar a mais acidentes de viação (Nijboer M, 2016, Front Psychol)
Pode levar a redução da performance académica e escolar (Rothbart MK,
2015, Dev Ver)
Pode levar a mais quedas e fraturas nos idosos (Johansson J, 2016, J Am Med
Dir Assoc.)
Pode prejudicar as nossas relações íntimas – medindo qualidade da
relação e intensidade do uso do smartphone (Amichai-Hamburger Y, 2016, Psychol
Rep.)
Pode levar a aumento dos marcadores de stress crónico – resistência
ao cortisol, hiperativação do eixo hipotálamo-hipófise-suprarrenal (Wetherell
MA, 2017, Neurobiol Stress)
32. Sugestão de leitura
A propósito deste tema:
“A mente organizada: Como pensar
com clareza na era da sobrecarga de
informação”
Daniel Levitin:
Neurocientista, psicólogo cognitivista,
músico, escritor e produtor de música
Professor psicologia e neurociência
comportamental. Universidade
McGill, Montreal, Canadá
É possível fazer muita coisa e ser
produtivo não fazendo multitasking!
33. Em jeito de conclusão
Cérebro “velho” vs “novas tecnologias”
Mas sabemos que a cérebro (e o ser humano) está em constante evolução...
A tecnologia também...
Quem vai ganhar a corrida?
Exposição às “novas tecnologias” é inevitável
Psicopatologia está claramente associada a novas tecnologias
Mas qual a direção da associação? (Pessoas com mais psicopatologia de
base tendem a ter mais risco de psicopatologia associada às novas
tecnologias)
Claramente depende da quantidade e forma de uso da tecnologia
Encontram-se riscos e benefícios na exposição à tecnologia
VS
34. Muito obrigado pela atenção
Novas tecnologias e psicopatologia
Diogo Frasquilho Guerreiro
dr.diogo.guerreiro@gmail.com
reflexoesdeumpsiquiatra.com