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futebol
muito mais que um jogo
futebol
muito mais que um jogo
Textos retirados da edição electrónica da NATIONAL GEOGRAPHIC - Portugal de Junho de
2006, em http://www.nationalgeographic.pt/revista/0606/feature4/
Montagem, adaptação e traduções por Nuno Leão (2006)
ÍNDICE
Introdução
por Sean Wilsey
4
Método de Vencer: Juju no Campo
por Paul Laity
7
Glória Passada: Domesticar Hooligans
por Nick Hornby
10
Bailado Com a Bola: Uma História de Amor
por John Lanchester
13
Futebol, Lda.: Fanatismo Comercializado
por Matthew Yeomans
15
Peça Moral: o Futebol como Teatro
por Robert Coover
17
Costa do Marfim
Inglaterra
Brasil
Costa Rica
Espanha
Golo Decisivo: Curar um País
por Henning Mankell
20
Ode a Maradona: a Vingança das Malvinas
por Thomas Jones
22
Terapia de Grupo: Nasce Uma Nação
por Courtney Angela Brkic
24
Angola
Argentina
Croácia
Doing a Wheelie fazendo uma bicicleta 27
Heads-up Move cabeças para cima 28
Exuberant Followers seguidores exuberantes 29
Heated Matchup fim de jogo quente 30
A Blizzard of Enthusiasm uma tempestade de entusiasmo 31
Mundial de 2002: Recapitulação, Resultados e Estatísticas
Por Sean Wilseyl
33
Inglaterra
por Nick Hornby
37
Espanha
por Robert Coover
45
Adaptação de “The Thinking Fan's Guide to the World Cup”
Photographies fotografias
E o mundo pára como o futebol governa o globo
mundo pára
e o
Como o futebol
governa o globo
Este mês, 32 selecções medem forças na Alemanha.
Actualmente, o futebol tornou-se muito mais do que um jogo: é uma
religião, um combate ideológico e uma afirmação política.
Fotografia de Marco Anelli, Grazia Neri
3
Introdução por Sean Wilsey (1)
Os adeptos norte-americanos de futebol, como eu, têm muito em comum entre
si. A comunidade em que fomos criados nunca teve por hábito sentar-se em frente
do televisor, de quatro em quatro anos, para um mês de transmissões maciças e
ininterruptas. O nosso país nunca venceu o Mundial. Podemos escolher a equipa de
que mais gostamos e aplaudi-la, sem medo de perder nem de sofrer represálias.
Nunca fomos doutrinados por concidadãos fanáticos, que pregam fidelidades tribais
indesejadas, mas inevitáveis. Somos amadores, na mais pura acepção da palavra.
Por isso, o Campeonato do Mundo que terá lugar na Alemanha durante o próximo
mês, antecipa um mês inteiro passado no Paraíso. É verdade: o Mundial é o único
acontecimento desportivo verdadeiramente internacional do planeta. Os Jogos
Olímpicos, com as suas múltiplas disciplinas desportivas de vitrina para elites, não
têm a mesma importância.
É precisamente isso que farei até ao dia da final. Admito que gostaria de viver
num mundo com o ambiente do Campeonato do Mundo. Aprecio especialmente as
cerimónias protocolares e o elevados valores morais do futebol, a manifestação
apolítica das características nacionais, a revelação de pontos fracos sensíveis e de
pontos fortes inesperados dos jogadores e treinadores e o facto de haver países
inteiros que abandonam o trabalho, ou se levantam às 3 horas da manhã, para ver
homens pontapear uma bola. Alguns países possuem autênticas equipas
multirraciais (como a França, a Inglaterra ou Portugal), enquanto outras equipas são
totalmente louras, ou asiáticas, ou latino-americanas. Um vendedor de pneus
eslovaco, um polícia italiano ou um solista de piano alemão (depois de aprovados
nos testes oficiais de aptidão física) colaborarão na prova como árbitros.
Ouvem-se fãs muito irritantes: “EUA! EUA! EUA!” São afortunadamente poucos.
Vêem-se crianças dando a mão a cada jogador, no momento em que as equipas
entram em campo. Tocam os hinos nacionais. Há homens que se pintam com as
cores da bandeira nacional, chorando copiosamente perante a derrota. Um
comentador desportivo grita: “GOOOOOOOLLLL! GOL, GOL, GOL!” no canal de
televisão de expressão espanhola em que vejo o jogo. O jogo compõe-se de duas
partes de 45 minutos sem interrupções para fins publicitários, com um pequeno
4
intervalo pelo meio. Cito um livro que todos os atletas em viagem encontram no seu
quarto de hotel: “Exultai e rejubilai: pois grande será a vossa recompensa nos céus.”
Ou, como leio no meu exemplar de “O Futebol e as suas Regras”: “Está pronto?
Pronto a levar os jogadores à vitória com os seus aplausos, a deslumbrar-se com a
sua capacidade física, velocidade e técnica, a incitá-los a vencer cada disputa de
bola, pronto a deixar-se arrebatar por um remate potente? Pronto a entusiasmar-se
com a velocidade dos médios-ala, com as incursões dos defesas laterais, com os
pontapés de canto batidos em arco, cheios de efeito, com os ataques habilmente
conduzidos em passes ao primeiro toque e com os golos de grande classe? Pronto
para outro momento num mundo de fantasia?”
Eu estou pronto.
A popularidade do futebol a nível mundial não causa surpresa, se atendermos
aos dois factores que sempre motivaram a humanidade: dinheiro e Deus. Como é
evidente, há muito dinheiro envolvido no futebol. O futebol de clubes (como o
capitalismo) é, no essencial, semelhante ao desejo que uma criança sente em
transformar os sonhos em realidade, concretizado por homens com dinheiro
suficiente para reunir os esforços combinados do melhor avançado brasileiro, do
melhor centro-campista holandês, do melhor defesa britânico e do melhor guarda-
redes alemão e pô-los em campo contra as equipas montadas por outros tantos
bilionários. A situação é injusta, mas representa bem o mundo em que vivemos.
Todavia, o elemento divino também está presente.
Afinal, o que é o futebol, senão tudo aquilo que uma religião deveria ser? Ao
mesmo tempo universal e particular, fonte de esperança infinitamente renovável, por
vezes miraculoso, e regido por regras simples e não controversas que toda a gente
consegue perceber. As leis do futebol regem-se pela igualdade, pela não-violência e
pela contenção, ficando a sua livre reinterpretação ao critério de um árbitro razoável.
Tudo o que o juiz da partida decide é incontestável, mesmo que as suas decisões
contrariem de maneira flagrante o dogma estabelecido. O meu regulamento oficial,
depois de explicar pormenorizadamente as 17 leis do futebol, conclui afirmando que
o árbitro pode pôr tudo de lado para impor o que misticamente define como “o
espírito do fair-play”.
A veia religiosa do futebol exprime-se de forma especialmente profunda em ano
de Campeonato do Mundo. Equipas provenientes de todo o mundo afluem ao país
anfitrião, numa espécie de cruzada atlética, sem armas. E, tal como nas Cruzadas, o
país anfitrião tende a repelir os invasores. Existe um poder estranho na vantagem
5
de ser a equipa da casa. Os anfitriões costumam alcançar um nível de sucesso
desproporcional relativamente ao talento definido no papel, derrotando equipas mais
fortes, como se exercessem uma força de gravidade sobre o jogo, obrigando a que
este seja jogado segundo a sua vontade. Como se, para levar esta metáfora até à
sua inevitável conclusão, Deus estivesse do seu lado.
Sabe-se bem que o futebol, tal como a religião, pode provocar violência. Muitos
americanos têm a ideia de que este jogo se compõe de vandalismo de hooligans e
espezinhamentos em estádios sobrelotados. Mas o futebol também deu provas de
ter capacidade para ultrapassar divergências e derrubar preconceitos nacionais. O
facto de o Campeonato Mundial conseguir realizar-se ao mesmo tempo na Coreia
do Sul e no Japão, como sucedeu em 2002, foi uma vitória da tolerância e do
discernimento. Há meio século, a Coreia do Sul impedia a selecção nacional
japonesa de atravessar as suas fronteiras para um jogo de qualificação para o
Mundial: no espaço de tempo entretanto decorrido, essa atitude evoluiu de tal
maneira que, por fim, o país acabou por co-organizar o torneio com o antigo
ocupante. Daqui a mais 50 anos, é possível que assistamos a um Campeonato
organizado conjuntamente por Israel e pela Palestina.
Porque não? Afinal a universalidade do futebol deve-se à sua simplicidade, ao
facto de o jogo pode ser praticado em qualquer lugar, com qualquer coisa. Na
cidade, as crianças dão pontapés em latas ou em bocados de betão; no campo, os
miúdos pontapeiam uma bola de trapos, jogando em terra, de pé descalço. O
futebol, se bem que talvez desprovido de valores, dá às pessoas algo em que
podem acreditar.
Durante este mês, o futebol atingirá o auge da injustiça, da frustração e do
esplendor no primeiro Mundial disputado na Alemanha unificada. O que torna o
Campeonato do Mundo mais bonito somos nós: reunidos, todo o planeta em união.
A alegria de pertencer a um grupo de cerca de mil milhões de pessoas que assistem
ao espectáculo proporcionado por 32 selecções nacionais cumpridoras das 17 leis
do jogo, enche-me de convicção de que o futebol consegue unir-nos a todos.
(1) Sean Wisley é autor da autobiografia “Oh the Glory of It All” (sem tradução portuguesa) e editor independente
da revista literária “McSweeny's Quarterly”.
6
Método de vencer:
Costa do Marfim
Juju no Campo
Texto de Paul Laity (2)
A festa começou às cinco horas e cinquenta minutos da tarde. A Costa do
Marfim acabara de se qualificar para o Campeonato do Mundo pela primeira vez.
Num ápice, a cidade de Abidjan encheu-se de gente e de ruído. Vestidos com
roupas cor de tangerina, branco e verde, os adeptos acorreram em massa às ruas,
os condutores apitaram forte e feio nas buzinas, a música zouglou ouviu-se bem alto
e a população entreteve-se alegremente a bater em tachos. Os convivas ensaiaram
uma nova dança, a “Drogbacité”, cujo nome homenageia a estrela atacante da
equipa, Didier Drogba: imitaram-lhe as simulações, as rotações e os imparáveis
remates à baliza. Outros experimentaram a fouka-fouka, o conhecido meneio de
ancas de Drogba quando celebra os golos, uma pequena jóia de cultura da Costa do
Marfim conhecida pelos fãs em todo o mundo. Os maquis (cafés ao ar livre, bares e
mini-discotecas) mantiveram-se abertos toda a noite, servindo “Drogbas”, garrafas
de cerveja nacional, assim chamadas devido ao seu tamanho e potência.
Numerosos foliões pintaram no peito “les éléphants”, alcunha da selecção nacional.
Os elefantes simbolizam o poder, dizendo-se igualmente que têm sorte, por
gozarem da protecção de um feitiço. Uma vez que a equipa sofrera um considerável
número de desilusões, considerou-se que o nome parecia adequado. No seu
entusiasmo, os adeptos anunciavam que o futebol podia fazer mais do que qualquer
político para pôr fim à guerra civil.
Nos últimos seis anos, o regime que governa a Costa do Marfim, baseado no
Sul do país, tem fomentado o ódio aos imigrantes e aos muçulmanos; no entanto,
muitos dos seus melhores jogadores de futebol pertencem a famílias muçulmanas e
imigrantes e, por isso, a selecção nacional transformou-se num símbolo irresistível
de unidade. No final do desfile pelas ruas de Abidjan, o presidente da Federação de
Futebol da Costa do Marfim dirigiu um apelo ao presidente do país, Laurent Gbagbo:
“Os jogadores disseram-me que aquilo que mais desejam é que o nosso país
dividido volte a unir-se. Eles querem que esta vitória funcione como um catalisador
pela paz na Costa do Marfim, terminando o conflito e reunificando o seu povo. Este
sucesso deve unir-nos.” Nas ruas, a festa durou mais um dia inteiro.
7
O presidente Gbagbo fez o melhor que pôde para se identificar com a equipa
vencedora. Falou de uma nação rejuvenescida e ofereceu a cada um dos jogadores
o equivalente a uma comenda, além de uma vivenda luxuosa. Porém, foi muito
notada a ausência de Henri Michel, treinador francês da selecção nacional da Costa
do Marfim, nas comemorações realizadas na residência do presidente Gbagbo. A
sua presença seria, presume-se, uma lembrança indesejada do legado colonial. No
entanto, os responsáveis governamentais que actualmente patrocinam os
sentimentos anti-franceses na Costa do Marfim vêem-se a braços com uma grande
dificuldade no que toca ao futebol. Com efeito, entre os jogadores de primeira linha
da selecção nacional, muitos actuam em equipas francesas durante a temporada
oficial e vários deles viveram em França grande parte das suas vidas: Drogba partiu
da Costa do Marfim aos cinco anos de idade para casa de um tio e refere-se
regularmente à sua infância, passada a assistir a jogos de futebol europeu na
televisão.
Gbagbo prefere ignorar a importância da França para o futebol da Costa do
Marfim enquanto a selecção nacional continuar a vencer, mas apregoa alto e bom
som o financiamento concedido pelo seu governo à equipa. No entanto, irá
provavelmente manter-se distante de qualquer outra forma de assistência. Em 1992,
a primeira vez em que a Costa do Marfim disputou a final da Taça das Nações
Africanas, o ministro do Desporto recrutou um batalhão de fétisheurs (magos e
bruxos juju) para dar à equipa nacional uma vantagem sobrenatural contra o Gana.
Segundo reza a história, mais tarde, o ministro recusou-se a cumprir as promessas
de pagamento feitas aos fétisheurs e estes lançaram um feitiço sobre a equipa, que
sofreu uma década de maus resultados. Em Abril de 2002, o ministro da Defesa,
Moise Lida Kouassi, contactou os bruxos com ofertas de indemnização,
recompensando-os com garrafas de gin e grandes somas de dinheiro. O feitiço foi
retirado e, de imediato, a selecção qualificou-se para a fase final do Campeonato do
Mundo.
Os especialistas em bruxaria realizam encantamentos no relvado ou pintam os
postes da baliza com unções mágicas destinadas a manter a bola afastada. Em
1984, nada menos que 150 fétisheurs instalaram-se no mesmo hotel que a selecção
costa-marfinenses antes de um jogo importante para a Taça das Nações Africanas:
cada jogador tomou um banho em água tratada com diversas poções, antes de ser
convidado a formular um desejo ao ouvido de um pombo. Outro clube de futebol foi
levado a tribunal em 1998 porque, após um jogo decisivo para o campeonato,
8
realizado em Bouake, os seus jogadores reconheceram ter ingerido uma beberagem
preparada por um bruxo juju (o caso seria posteriormente arquivado).
Consciente dos prejuízos de imagem causados pelas histórias da bruxaria juju,
a autoridade dirigente responsável pelo futebol em África proibiu recentemente as
selecções nacionais de integrarem “consultores da equipa” nas suas comitivas
oficiais. No entanto, a superstição, de uma forma ou de outra, sempre desempenhou
um papel importante no desporto e o fetichismo irá garantidamente subsistir no
futebol da Costa do Marfim. Antes do crucial jogo de qualificação contra os
Camarões para a fase final do Campeonato Mundial, realizado no passado mês de
Setembro, os esgotos de Abidjan andaram permanentemente vermelhos com
sangue de galinha. Sem juízos de valor num sentido ou noutro, esta é a África
descrita pelo escritor V. S. Naipaul: um lugar de magia, igualmente visível nos
muitos postos de controlo rodoviários existentes no Norte e Oeste do país, onde os
soldados têm a convicção de que os amuletos enrolados em torno do seu pescoço
impedirão as balas de lhes acertar. Também a guerra estimula a superstição.
Toda a gente deseja que a equipa alcance bons resultados na Alemanha.
Porém, a mistura entre futebol e política pode originar situações sinistras. Quando a
equipa da Costa do Marfim foi derrotada pela segunda vez pelos Camarões, na fase
de qualificação, e se julgou que tinha perdido todas as possibilidades, Drogba (cuja
actuação durante o jogo fora brilhante, com dois golos marcados) recebeu ameaças
e mensagens hostis dos fãs e sentiu-se suficientemente alarmado para pensar em
abandonar a selecção nacional. Em 2000, o general Robert Guei, que acabara de
liderar o primeiro golpe militar no país, manteve sob detenção durante dois dias a
selecção nacional, como punição pela eliminação precoce na Taça das Nações
Africanas. Privou os jogadores dos passaportes e telemóveis, denunciou-os em
público e sugeriu que aprendessem alguma disciplina militar. “Deviam ter-nos
poupado esta vergonha”, afirmou.
Garantida que está a qualificação para o Campeonato Mundial, não existe
qualquer vergonha. Pelo menos por agora. Por si só, o futebol nunca conseguirá
gerar a reconciliação nacional. Mas o Verão de 2006 promete lembrar aos cidadãos
da Costa do Marfim, embora fugazmente, que o país tem vida própria, fora da
política.
(2) Paul Laity é editor da “London Review of Books” e joga como defesa esquerdo em jogos amigáveis
9
Glória passada:
Inglaterra
Domesticar Hooligans
Texto de Nick Hornby (3)
Era tudo tão simples, quando comecei a assistir a jogos de futebol na década de
1960. A Inglaterra acabara de conquistar o Campeonato Mundial de 1966 e, por
isso, era sem contestação a melhor equipa do mundo: ponto final, parágrafo, fim da
história. A partir de então, tudo passou a correr mal, aparentemente para sempre.
Em primeiro lugar, cresci, tornei-me adulto e passei a perturbar-me muito mais com
o significado de pertencer a um país. Entretanto, a selecção inglesa portava-se
pessimamente. Talvez não tivesse sentido tanto conflito interior sobre o tema do
patriotismo se os resultados da equipa fossem melhores. Em 1974 e 1978, a equipa
nem sequer conseguiu qualificar-se para a fase final do Campeonato do Mundo, os
jogadores de categoria mundial que nela tinham jogado durante a década de 1960
abandonaram o futebol e, com a década de 1980, toda a questão do patriotismo
misturado com futebol se tornou muito mais complicada.
De memória, os jogos da Inglaterra durante essa década quase só se podiam
ver através de uma nuvem de gás lacrimogéneo, utilizado pelas polícias europeias
para dispersar os tumultos dos nossos hooligans. Os adeptos ingleses
transformaram-se rapidamente numa pandilha sinistra. Para quem assistia aos jogos
da selecção inglesa em Wembley, era frequente ver espectadores executando a
saudação nazi durante o hino nacional e insultando os jogadores negros, mesmo os
que pertenciam à equipa nacional. Por vezes, parecia que o pior da ralé de fãs de
todos os clubes do campeonato nacional se reunia em Wembley, só para fazer
barulhos a imitar macacos e cantar hinos contra o IRA. Se víamos alguém caminhar
na nossa direcção na rua, envergando uma camisola com a bandeira britânica, o
melhor era atravessar para o outro lado. Essa camisola funcionava como uma
alternativa gráfica a uma palavra de ordem do género: “Sou racista, odeio-vos a
todos, seja qual for a cor da vossa pele.”
Por isso, alguns adeptos do futebol começaram a sentir reservas face à sua
selecção nacional. Em 1990, quando a selecção inglesa defrontou os Camarões nos
quartos-de-final do Campeonato Mundial, havia muitas pessoas em Inglaterra (da
burguesia liberal, é verdade, mas mesmo assim, pessoas) que desejavam a vitória
10
dos Camarões. Assisti a esse jogo na companhia de algumas dessas pessoas e,
quando a Inglaterra estava a perder por 2-1 (acabaria por vencer 3-2, durante o
prolongamento), todos davam vivas. Eu percebia porquê, mas, para minha surpresa,
não consegui acompanhá-los nos seus vivas. Aqueles facínoras bêbedos e racistas
vestidos com a bandeira nacional… eram, afinal, a minha gente. E a Inglaterra era a
minha equipa de futebol. Ou seja, não se pode fazer escolhas nesta matéria, não é
verdade? O Campeonato do Mundo de 1990 acabou por ser um ponto de viragem. A
equipa não deixou ninguém ficar mal. Nem os fãs. Após duas décadas de horror, a
selecção nacional voltou a granjear o calor dos afectos nacionais.
Esse renascer foi sol de pouca dura. Após a desastrosa decisão de nomear
Graham Taylor como treinador principal, a selecção nacional voltou a falhar a
qualificação. Em 1998, o futebol tornara-se um jogo diferente. Muitos jogadores da
primeira divisão do campeonato inglês já não eram oriundos das ilhas britânicas. A
globalização do mercado de transferências começou a retirar ao futebol
internacional de selecções grande parte do seu sentido. Noutros tempos, uma
pessoa olhava para os melhores jogadores dos clubes e pensava: “O que
aconteceria se jogassem juntos?” A resposta assemelhava-se à selecção nacional.
Hoje, equipas como o Chelsea, o Manchester United, o Real Madrid, a Juventus, o
AC Milan e o Barcelona substituíram as selecções nacionais como equipas de
sonho no futebol.
Em 1989, a Inglaterra empatou a zero contra a Suécia, resultado que ajudou a
assegurar a qualificação para a fase final do Campeonato do Mundo de 1990. Desse
jogo, ficou a imagem duradoura do capitão inglês, Terry Butcher, de ligadura à volta
da cabeça, com a camisola da selecção inglesa coberta do sangue que lhe
escorrera de uma ferida na cabeça sofrida ao longo da partida. “Fora do relvado,
sempre fui um tipo vulgar, de modos suaves”, afirmou Butcher, em entrevista. “Mas
quando me vestiam o equipamento de futebol, era como se fosse um capacete de
aço e uma baioneta. Morte ou glória.”
Era assim a Velha Inglaterra: imaginário guerreiro, empate zero-a-zero crucial
contra uma equipa modesta, inevitável substituição do estilo e do talento por sangue
e trabalhos forçados. As pessoas que abominam David Beckham, actual capitão da
selecção inglesa, afirmariam que ele só usará um capacete de aço e ligaduras no
dia em que o capacete e as ligaduras se tornarem indumentária obrigatória nalguma
discoteca europeia absurdamente na moda. Isso é uma injustiça porque, apesar da
sua boa aparência e do dinheiro que tem, ele trabalha arduamente para compensar
11
os atributos que lhe faltam como jogador. No entanto, não há dúvida de que ele é o
exemplo perfeito de um novo tipo de desportista inglês: profissional, consciente da
importância dos meios de comunicação, ocasionalmente petulante e muito, muito
rico.
Os adeptos ingleses que presenciaram o jogo amigável de 2005 contra a
Argentina (finalizando com uma insignificante, mas apelativa, vitória por 1-0 no
último minuto) ainda cantavam o seu hino “No Surrender to the IRA” (“Nenhuma
Cedência ao IRA”). É bem possível que preferissem ver jogar Terry Butcher e as
suas baionetas em riste do que David Beckham, um homem que, vistas bem as
coisas, até já foi fotografado vestido uma sarong. A Inglaterra é mesmo assim: se
pudéssemos, ainda andaríamos a bombardear os alemães; no entanto, passados 60
anos, vai-se erguendo uma leve suspeita de que esses tempos não voltarão tão
cedo e que, entretanto, precisamos de contar com rapazinhos bonitos vestidos de
sarong para dar uma sova aos argentinos. Não gostamos, mas o que havemos de
fazer?
(3) O autor escreveu também os livros “Febre no Estádio”, uma autobiografia de uma vida inteira como apoiante
do Arsenal, “Um Grande Salto”, “Era Uma Vez um Rapaz” e “Alta Fidelidade”.
12
Bailado Com a Bola:
Brasil
Uma História de Amor
Texto de John Lanchester (4)
Será que nos apaixonamos pelo futebol? O que acontece? Cá dentro, bem
fundo, o futebol arrebata-nos porque tem beleza e dificuldade. Dois jogadores de
uma equipa trocando a bola entre si, passando-a para um espaço vazio que, de
repente, é preenchido por um jogador que ali não estava há dois segundos,
correndo a toda a velocidade. Sem olhar para o espaço vazio e sem perder tempo,
este jogador passa a bola a um terceiro que seguramente não pode ter visto. Este,
por sua vez, também em velocidade e sem diminuir o ritmo, centra a bola, digamos
que a 100km/h, para esta aterrar na cabeça de um quarto jogador que, depois de
correr quase 70 metros até ao sítio certo salta e cabeceia a bola (gesto de
dificuldade que nem todos conseguem perceber) com uma força e uma precisão
inacreditáveis, exactamente para um canto da baliza onde o guarda-redes previra
que ela fosse parar, executando um complexo movimento totalmente desprovido de
raciocínio consciente, apenas baseado no reflexo músculo-memória, de tal maneira
que toda esta graciosidade, velocidade, músculo, capacidade atlética, atenção ao
pormenor, força e precisão nunca aparecerão numa folha de estatísticas e serão
esquecidas por toda a gente no dia seguinte. Eis a estranha fragilidade do futebol, o
seu carácter efémero. É difícil de descrever e ainda mais difícil de executar, mas
possui uma beleza profunda, uma beleza sobre a qual sentimos dificuldade em falar
e que cada espectador do jogo descobre por si próprio. Eis a razão pela qual o
futebol, apesar de tanta coisa feia que o rodeia e a ele está ligada, continua a
apaixonar-nos: porque é, porque pode ser, extremamente belo.
Nenhum país se esforça tanto por jogar futebol com beleza como o Brasil. É
uma marca ideológica. Por isso, os jogadores brasileiros são tão amados. Não
apenas na América do Sul claro! onde o Brasil tem o estatuto de superpotência
desportiva regional, mas praticamente em todos os outros cantos do mundo. Com
efeito, a equipa de futebol do Brasil goza no mundo do desporto do privilégio único
de ser um super-vencedor adorado. Em geral, os fãs do desporto detestam os
grandes vencedores. Mas o Brasil, única selecção nacional a ter vencido cinco
edições do Campeonato do Mundo, e única a ter conquistado o título fora do seu
13
continente, é amada. Por esse motivo, muitos fãs têm, a nível de selecções
nacionais, duas equipas preferidas: a sua e o Brasil. É o único favorito que é
favorito.
(4) John Lanchester é um romancista cuja carreira começou como comentador de jogos de futebol. A sua
autobiografia “Family Romance” será publicada em 2007
14
Futebol, Lda.:
Costa Rica
Fanatismo Comercializado
Texto de Matthew Yeomans (5)
Valerá a pena transformar o futebol num grande negócio, se os adeptos
continuam a tratar o desporto como outro jogo qualquer? Assistir ao futebol
praticado na Costa Rica sempre foi um passatempo descontraído, comparado com a
loucura associada aos jogos de futebol na Argentina, no México ou no Brasil. Em
primeiro lugar, o jogo praticava-se em estádios rudimentares, em nada parecidos
com os intimidativos caldeirões de Milão, de Madrid ou de Buenos Aires. E os fãs,
embora de vez em quando fossem contaminados pelo fanatismo cego e
omnipresente dos hinchas mais duros, não viam necessidade de se deixarem
arrebatar com regularidade. Talvez fosse devido ao espírito descontraído da
selecção tica, ou o resultado de meio século de fracos resultados. No entanto, num
continente onde dois dos vizinhos da Costa Rica (as Honduras e El Salvador)
chegaram mesmo a entrar em guerra por causa de um jogo de futebol, os adeptos
da Costa Rica aparentavam uma certa falta de convicção na sua atitude.
Por isso, em 1995, o clube de futebol Saprissa decidiu galvanizar a sua base de
fãs. Naquilo que certamente é o primeiro exemplo de recrutamento, por um clube,
de consultores hooligans, Saprissa contratou como colaboradores adeptos
fervorosos do clube chileno Universidade Católica, de forma a desenvolver uma
cultura local de fanáticos. Surgiu assim La Ultra, uma claque que pretendia imitar o
empenho encarniçado dos barras bravas ou hooligans, mais bem organizados:
compuseram-se hinos, os membros de La Ultra começaram a amontoar-se juntos,
vestidos de púrpura, e as bombas de fumo passaram a aparecer nos topos dos
estádios. Seguiu-se pouco depois o clube Alajuelense, que lançou a sua própria
claque de adeptos de linha dura, conhecida como La Doce (o 12.º jogador).
Este investimento no fanatismo dos adeptos deu resultados rápidos e
espectaculares. A cultura de bando associada às claques La Ultra e La Doce
enraizou-se depressa, alimentada por uma crescente percepção, por parte dos ticos
pobres, de que a economia nacional, em expansão, os deixava ficar para trás. Com
isto, surgiu um aumento visível da violência dos fãs durante os jogos de futebol.
Ocorreu pelo menos uma morte num estádio. A tradicional animosidade do habitual
15
clássico entre o Saprissa e o Alajuelense assumiu novos matizes de competitividade
e crueldade.
A violência dos adeptos transformou-se num problema tão grave que o Saprissa
e o Alajuelense tomaram medidas para controlar as claques La Ultra e La Doce.
Actualmente, o crime puro e simples acalmou, mas a fúria dos fãs permanece como
atmosfera subjacente.
(5) Matthew Yeomans é jornalista na cidade galesa de Cardiff e fez a cobertura dos três últimos Campeonatos
do Mundo.
16
Peça Moral:
Espanha
O Futebol como Teatro
Texto de Robert Coover (6)
Espanha, Verão de 1982. A nuvem de poluição que paira sobre Barcelona
assemelha-se à tampa de uma panela de pressão, ardendo sob a luz do sol: cá em
cima, na bancada superior do pequeno estádio de futebol de Sarriá, onde o Brasil, a
Itália e a Argentina se defrontam num grupo de qualificação do Campeonato
Mundial, onde só se apura a equipa em primeiro lugar, os organizadores parecem
ter vendido trinta bilhetes por metro quadrado de espaço disponível. Temos de
chegar lá uma hora e meia antes, só para conseguirmos caber de pé. Nem pensar
em lugares sentados, nem pensar em comprar bebidas: quando o jogo começa, já é
difícil respirar. O meu filho, adolescente, passa todo o tempo da partida pendurado
num corrimão de escada, sobre uma porta de saída. Dia após dia, dizemos um ao
outro: se o jogo não for totalmente sensacional, vamos para um bar e vemos pela
televisão, isto é de loucos. Dia após dia, ficamos sempre.
Já aqui viemos, os dois. Da outra vez, em 1977, dois anos após a morte do
ditador Franco, chovia, estava escuro e o tempo tornava-se frio. Dessa vez, também
ficámos, encolhidos sob o guarda-chuva, nas alturas do telhado, à luz dos holofotes,
debaixo de ventos ululantes e de torrentes de chuva, sentados nos únicos lugares
que arranjámos e satisfeitos por tê-los encontrado. Nessa noite, assistíamos a uma
partida de final de Outono do campeonato espanhol entre os dois arqui-rivais da
cidade, o FC Barcelona e o Real Club Deportivo Español. O jogo é semelhante a
uma reconstituição da guerra civil espanhola.
Por vezes, parece que existem apenas dois jogos universais: a guerra e o
futebol. A guerra aproxima-se talvez mais do reino da fantasia e o futebol do domínio
da realidade, mas ambos partilham esta natureza omnipresente e central, como se
tivessem origem em alguma fonte libidinosa colectiva, primária e intuitiva. Talvez
sejam simples variações do mesmo jogo, ritualizações concebidas na era industrial
contemporânea.
Ainda hoje, continua a haver frequentes interpenetrações entre a guerra e o
futebol. Os responsáveis do futebol “declaram guerra”, os generais aplicam as
tácticas e terminologia futebolísticas, a violência guerreira invade o campo de
17
futebol, alastra às bancadas e, depois, às próprias comunidades, os soldados
apresentam-se no campo de batalha vestidos com as cores do seu clube e as
claques de adeptos são conhecidas como “exércitos”.
Muitas têm sido as formulações propostas para explicar a intensidade e mistério
da força do futebol, o fascínio hipnotizante que caracteriza as grandes partidas e o
domínio exercido a nível mundial sobre todos os outros desportos. Existe a
teatralidade intrínseca do jogo (não o espectáculo comercial dos intervalos dos
desportos americanos), mas os dramas interiores de pecado e redenção, a virtude
posta à prova, a procura de padrão de jogo e coesão, a colisão entre forças
paradoxais. O futebol tem sido frequentemente comparado com a tragédia grega, ou
visto como uma peça com fins morais nunca terminada. Talvez a dificuldade em
marcar golos (e, por isso, a habitual estreita margem de diferença nas vitórias,
mesmo entre equipas com capacidade técnica acentuadamente desigual)
intensifique esta sensação de teatralidade, fazendo com que o desenlace (ou a
catarse colectiva) se veja adiado quase sempre até ao apito final. Até soar esse
apito, também ninguém sente alívio da tirania exercida pela passagem inexorável do
tempo: quem se deixa entrar no jogo, não tem meio de sair. O jogador precisa de
aguentar esse fluir do tempo, manter o ritmo, fazer pressão para conquistar
vantagem e preservar toda a sua técnica, com a mente centrada exclusivamente na
mudança do padrão de jogo; e o espectador, embora defrontando-se com tarefas
menos árduas, partilha essa experiência.
No final, uma pessoa não fica com dados, apenas com imagens impressionistas
de corpos em movimento. Nada de importante sobre o jogo pode ser objecto de
registo estatístico, excepto os pontapés de canto, os remates, os golos e as defesas
(o esforço americano para contabilizar as assistências para golo é admirável, mas é
um pouco inútil). Estes dados quase nada nos dizem sobre o jogo em si. O jogador
que acaba por dar a vitória pode ser aquele que se move do lado oposto do campo,
atraindo sobre si a atenção de um defesa, obrigando a uma nova configuração do
sector defensivo e tornando praticamente inevitável um golo antes impossível,
embora possa acontecer que ninguém tenha consciência disso. Tudo é narrativo,
logo subjectivo: cada jogo é uma história, uma sequência de metáforas
ambivalentes, uma revelação pessoal que se esconde sob a linguagem
impenetrável do futebol. Do que conheço, nenhum jogo depende tanto de conceitos
intangíveis e constantemente mutáveis como “padrão”, “ritmo”, “visão” e “leitura”.
Possivelmente tudo ilusões. E, contudo, ao mesmo tempo é um jogo muito simples:
18
tal como os sonhos, é quase infantil.
(6) O romancista e ensaísta deixou-se obcecar pela primeira vez pelo futebol quando vivia em Espanha. A partir
daí, acompanhou o jogo, num percurso por várias décadas e continentes. Tem vários livros publicados em
português, entre os quais “Rosa Brava” e “O Que Aconteceu a Gloomy Gus”.
19
Golo Decisivo:
Angola
Curar um País
Texto de Henning Mankell (7)
Na primeira vez que visitei Angola, nem me apercebi de que entrara no país.
Estávamos em 1987 e eu vivia no Noroeste da Zâmbia, perto da fronteira angolana.
Estreitas estradas de areia serpenteavam pelo mato sem fim. Era fácil uma pessoa
perder-se enquanto conduzia e, quando viajava até uma aldeia distante,
desorientava-me com frequência. Quando parava para pedir ajuda, se a pessoa me
respondia em português, eu precisava urgentemente de voltar para trás,
atravessando rapidamente para o lado sossegado da fronteira invisível.
Profundamente ferida por um longo período colonial, Angola viu-se sufocada, depois
da independência, por uma violenta guerra civil. Os guerreiros do líder rebelde
Jonas Savimbi, tristemente célebres pelos actos de violência indiscriminada que
cometiam, andavam por todo o lado. Uma geração inteira de angolanos nunca
soube o que era viver num país onde reinasse a paz.
Contudo, havia algo mágico naquela terra do outro lado da fronteira invisível: o
futebol estava presente em toda a parte. Em campos de cascalho e em praias
arenosas, sobre os passeios e nas praças das cidades, viam-se hordas de jovens a
jogar à bola. Bolas feitas com os materiais mais inimagináveis uma t-shirt velha,
uma rede de pesca ou uma carteira de mulher, recheadas de papel e capim. Apesar
disso, as bolas não deixavam de rolar e de saltar, servindo na mesma para cabecear
e para marcar golos. A guerra nunca foi capaz de matar o futebol em Angola. Os
campos de futebol foram declarados zonas desmilitarizadas e os encontros entre
equipas serviam como defesa contra os horrores que grassavam por todo o lado.
Depois de se defrontarem num jogo de futebol, as pessoas têm maior dificuldade em
matar-se umas às outras.
Angola tem assistido ao êxodo de muitos dos seus futebolistas, que saem do
país para ganhar a vida noutros países, sobretudo em Portugal, embora muitos não
renunciem à nacionalidadee angolana. E quando os convocam para envergar os
calções negros e as camisolas e meias vermelhas (as cores da selecção nacional)
nem hesitam. Chamam-lhes carinhosamente “Palancas Negras”.
No dia 8 de Outubro de 2005, Angola entra em campo no Estádio de Amahoro,
20
em Kigali. Nesse momento, vive-se uma situação espantosa: se Angola vencer o
Ruanda por um só golo que seja, qualificar-se-á para a fase final do Campeonato do
Mundo, à frente da Nigéria, independentemente do resultado do jogo entre a Nigéria
e o Zimbabué. É uma espera de pesadelo para todos os angolanos, que aguardam,
sentados, de orelhas pregadas nos rádios. Luanda imobiliza-se. Em Huambo,
Lubango, Namibe, Lobito, Benguela, Malanje, em todas as cidades e aldeias, toda a
gente se reúne à volta de um rádio. É bem possível que, no meio da savana, as
próprias palancas estejam de ouvidos atentos.
No final da primeira parte, mantém-se o empate a zero. Entretanto, a Nigéria
caminha para a vitória contra o Zimbabué. Em Kigali, porém, o jogo prossegue sem
golos. Parece que tudo vai terminar mal para Angola. Imagina-se o que os jogadores
e treinadores terão dito uns aos outros durante o intervalo. O nervosismo instala-se
entre os jogadores. O Ruanda, para quem só a honra está em jogo, quase marca
golo em várias oportunidades. Toda a gente concorda que Angola está a praticar um
péssimo futebol. É uma equipa à beira do esgotamento. Os jogadores falham
passes e desentendem-se. Faltam dez minutos para o fim. No seu desespero, os
angolanos quase perderam a consciência. De súbito, o suplente Zé Kalanga,
entrado há minutos, faz um centro tenso, tão surpreendente como brilhante. Fabrice
“Akwa” Maieco está no lugar certo e, com a cabeça, marca na perfeição o único golo
da partida, depois de a bola ressaltar no chão e ultrapassar o guardião ruandês,
anichando-se nas malhas da baliza.
Seria preciso uma pessoa viver muitos anos em África para compreender o
significado desta vitória. Como é evidente, neste momento ninguém acredita que
Angola vá muito longe no torneio. Mas o futebol é, por natureza, imprevisível. Se
periodicamente os vencidos antecipadamente não derrotassem os vencedores
previsíveis, o futebol perderia interesse.
No entanto, já se conquistou uma grande vitória, mesmo que ela não tenha
dado acesso a qualquer taça resplandecente. Acima de tudo, este triunfo está nos
corações e nos espíritos de todos os angolanos. A qualificação para a fase final do
Campeonato do Mundo de futebol representa muito para a autoconfiança de um
país devastado pela guerra e pelas privações. Um país que, depois de ser castigado
durante tanto tempo, irá de novo ser construído.
(7) Henning Mankell é autor de cerca de 40 romances, entre os quais os romances policiais protagonizados pelo
inspector Kurt Wallander. Divide o seu tempo entre a Suécia e Moçambique, país onde dirige o Teatro Avenida.
21
Ode a Maradona:
Argentina
A Vingança das Malvinas
Texto de Thomas Jones (8)
O melhor elogio que alguém podia receber durante os meus tempos de
adolescência na Inglaterra da década de 1980, era escutar que tínhamos “técnica”.
E ninguém tinha mais técnica do que Diego Armando Maradona. O seu nome era
invocado como a forma suprema de elogio, no campo de futebol e fora dele. Tornou-
se adjectivo em Inglaterra: significava excelência em qualquer campo.
Levei muito tempo a perceber que a palavra correspondia ao nome de uma
pessoa. Um dia, porém, vi-o marcar um golo contra a Itália no Campeonato do
Mundo de 1986, elevando-se bem alto no ar, fora do perímetro da pequena área, e
empurrando com destreza a bola sobre a perna direita estendida do capitão italiano,
ultrapassando os braços estendidos do guarda-redes, fazendo-a entrar na baliza
pelo canto inferior direito. Tornou-se então evidente, mesmo para mim, que
Maradona não era apenas um tecnicista. Ele era a personificação da técnica.
O golo seguinte de Maradona foi marcado a 22 de Junho, no dia em que a
Argentina defrontou a Inglaterra. Quatro anos antes, os dois países tinham-se
igualmente defrontado não num campo de futebol, mas na Guerra das Malvinas,
comparada pelo escritor argentino Jorge Luis Borges “a uma luta entre dois carecas
pela posse de um pente”. Quando a Grã-Bretanha conseguiu reconquistar as ilhas à
Argentina, mais de 900 homens (na sua maioria argentinos) tinham perdido a vida.
Com esta vitória, a popularidade de Margaret Thatcher na Grã-Bretanha disparou
em flecha e a derrota contribuiu para a queda da junta militar direitista que
governava a Argentina desde 1976.
Passados quatro anos, as Malvinas já pertenciam ao passado, ou, pelo menos,
ambas as equipas o afirmaram insistentemente antes do jogo. Maradona marcou os
dois golos da vitória da Argentina sobre a Inglaterra, por 2-1. O segundo, resultante
de 11 segundos de técnica sobre-humana, foi eleito em 2002 como “Golo do Século
XX”. Ao ver Maradona executar um delicado arabesco, deixando a perna direita
elegantemente esticada à retaguarda, não me teria espantado se ele se elevasse no
ar e começasse a voar. Parecia movimentar-se num quadro temporal diferente do
dos jogadores ingleses, que só apareceram para pará-lo quando ele já tinha
22
passado por eles.
Para minha surpresa, nenhuma das pessoas minhas conhecidas quis falar
sobre aquele extraordinário segundo golo. Só queriam comentar o primeiro, por si
marcado, quatro minutos antes, com a mão. Pessoas que antes eram admiradoras
fanáticas de Maradona espumavam de fúria, como se ele tivesse praticado uma
traição pessoal. De um dia para o outro, o seu nome passou a ser um insulto, um
sinónimo de batota. Fiquei perplexo. O incidente a partir de então conhecido como
“Mão de Deus” não me pareceu assim tão grave. Por um lado, acho impressionante
que Maradona, com 1,65m de altura, fosse capaz de bater o guarda-redes, com
quase mais 30cm, e conquistar-lhe a bola. E o árbitro e o fiscal-de-linha não foram
os mais culpados, por não verem a falta e validarem o golo? Sempre suspeitei que a
censura moralista feita à Mão de Deus foi a forma encontrada para disfarçar a
desilusão e frustração sentidas com a derrota da Inglaterra. E que o comportamento
que os adeptos ingleses nunca conseguirão perdoar Maradona não foi a batota, mas
o facto de ele ter passado pelo meio de cinco jogadores da Inglaterra, como se
fossem estáticos postes de madeira, para concretizar o melhor golo alguma vez
marcado e afastar a Inglaterra do Campeonato Mundial.
(8) Thomas Jones é editor e redactor na “London Review of Books”.
23
Terapia de Grupo:
Croácia
Nasce uma Nação
Texto de Courtney Angela Brkic (9)
Há bem pouco tempo, quando a Croácia fazia parte da Jugoslávia, o futebol era
uma expressão de pertença étnica, de orientação política e de identidade. Na
opinião de muitas pessoas, o encontro de futebol realizado em 1990 entre o Dínamo
de Zagreb e o Estrela Vermelha de Belgrado assinalou o início dos combates pela
independência da Croácia. No princípio do jogo, adeptos dos dois clubes entraram
em confronto nas bancadas e no relvado. A polícia, dominada pelos sérvios,
espancou os fãs croatas, ao mesmo tempo que deixava mão livre aos adeptos
sérvios. Os acontecimentos levaram a que as frustrações previamente existentes na
Jugoslávia entrassem em ebulição. Nem sequer os jogadores escaparam à vaga. Ao
ver um polícia espancar um adepto do Dínamo tombado no chão, o centro-campista
Zvonimir Boban deu-lhe um pontapé de karaté, transformando-se num herói do
movimento independentista então em fase de crescimento.
A guerra que se seguiu foi demorada e brutal. Mais de dez milhares de pessoas
foram mortas e mil ainda permanecem desaparecidas. Sem surpresa, os turistas
deixaram de visitar a costa da Croácia e a região foi associada ao sofrimento. Para
um país com um potencial tão rico, tão entusiástico acerca do que poderia
concretizar agora que era independente, ver-se simplesmente classificado como
zona de guerra foi um rude golpe.
A independência da Croácia foi reconhecida em 1992, mas o Campeonato do
Mundo de 1998 trouxe outra forma de reconhecimento. A euforia já começara a
apossar-se do país quando a Croácia derrotou a máquina alemã nos quartos-de-
final. “Será possível?”, pareciam as pessoas perguntar umas às outras, incapazes
de refrear o optimismo. Em Zagreb, foram instalados ecrãs gigantes nas praças da
cidade para os cidadãos poderem assistir, em grupos ruidosos, ao jogo de disputa
do terceiro lugar, entre a Croácia e a Holanda. Era sábado e eu resolvi assistir ao
jogo no meu apartamento, com amigos, deslizando até à varanda para ouvir as
conversas e gritos entusiasmados que se elevavam no ar, vindos dos cafés lá em
baixo. O som de aplausos inundou o ar quando a Croácia marcou. Foi como se a
cidade se transformasse numa gigantesca sala de estar, com toda a gente de olhos
24
postos num único ecrã. O trânsito por pouco não parou e a rua, lá em baixo,
esvaziou-se. Depois de terminar o jogo, com a vitória da Croácia, as ruas encheram-
se de gente, que se apinhou na praça principal. Pela noite fora, ouviu-se sem parar
o canto de vozes felizes e embriagadas.
Volvidos quase três anos após o final da guerra, a vitória foi um momento de
emoção na história do jovem país. Na televisão, os repórteres entrevistavam
homens adultos que não conseguiam parar de chorar. O país nunca assistira a uma
tal comemoração unificada, desde a declaração de independência. Agora, já
ninguém poderia negar à Croácia o seu lugar no mapa.
(9) Courtney Angela Brkic é autora dos livros “Stillness: And Other Stories” e “The Stone Fields: An Epitaph for
the Living” (sem tradução portuguesa).
25
photographies
fotografias
Fotografia de Marco Anelli, Grazia Neri
26
Brazilian midfielder Ronaldinho
executes a bicycle kick to
knock the ball back over his
head in a 2002 World Cup
match against Belgium in Kobe,
Japan. Twice voted the world's
best player by soccer's
international governing body,
FIFA, Ronaldinho used the
maneuver popularized by other
Brazilian soccer stars. Brazil
leads all nations with five World
Cup championships. It will
shoot for number six this month
in Germany at the 18th World
Cup tournament which, except
during the World War II era,
has been held every four years
since 1930.
O médio brasileiro Ronaldinho
executa um pontapé de
bicicleta para chutar a bola
sobre a sua cabeça no jogo
contra a Bélgica em Kobe,
Japão, no Mundial de 2002.
Duas vezes eleito o Melhor
jogador do Mundo pela FIFA,
Ronaldinho utiliza a manobra
celebrizada por outras vedetas
brasileiras. O Brasil é a nação
que mais galardoada, com
cinco Mundiais. Irá atrás do
seu sexto título na Alemanha,
no 18º Campeonato do Mundo,
que tirando o período da 2ª
Guerra Mundial, se realiza de
quatro em quatro anos desde
1930
(NL)
Doing a Wheelie
fazendo uma bicicleta
Photograph by
Domenico Stinellis, Associated Press
Fotografia de
27
In an impoverished
neighborhood outside Lusaka,
Zambia, boys fashioned a ball
by weaving together strips cut
from plastic bags.
Photographer Gideon Mendel
spotted the group in 1993
shortly after a plane crash took
the lives of 18 members of the
national soccer team, a
crippling blow against Zambia's
hopes of qualifying for the 1994
World Cup. After the disaster,
"children everywhere played
with more discipline and
control," Mendel recalls. "They
imitated the hops and skips of
the national team's training
dance." A new national team
carried on but failed to
advance, falling to Morocco by
just one goal.
Num improvisado bairro nos
arredores de Lusaka, Zambia,
rapazes criaram uma bola
juntando pedaços de sacos de
plástico.
O fotográfo Gideon Mendel
fotografou o grupo em 1993,
pouco depois de um acidente
de avião roubar a vida a 18
membros da selecção
Zambiana de futebol,
resultando num duro revés nas
esperanças de qualificação
para o Mundial de 1994.
Depois do desastre, “crianças
em todo o lado jogavam com
mais disciplina e controle,”
relembra Mendel. “Elas
imitavam os pulos e saltos da
dança de treino da seleção
nacional.” Uma nova selecção
emergiu mas falhou a
qualificação ficando atrás de
Marrocos por apenas um golo.
(NL)
Heads-up Move
cabeças para cima
Photograph by
Gideon Mendel, Corbis
Fotografia de
28
Try as they might, die-hard
Jamaica fans couldn't rally their
team to victory in the 1998
World Cup in Paris. Argentina
dominated 5-0, but later lost to
the Netherlands. In Jamaica
and other developing countries,
soccer offers poor but talented
youths a chance to avoid living
out their lives in shantytowns.
Europe has the greatest allure:
Top teams there pay salaries of
one million dollars a year and
more. With commercial
endorsements, superstars can
vault into the stratosphere of
eight-figure incomes.
Tentaram como puderam, os
adeptos jamaicanos não
conseguiram levar a sua
equipa até à vitória no Mundial
de 1998 em Paris. A Argentina
dominou por 5-0, mas mais
tarde perdeu contra a Holanda.
Na Jamaica e em outros países
em vias de desenvolvimento, o
futebol oferece aos pobres mas
talentosos jovens uma
oportunidade de evitarem
viverem as suas vidas nos
bairros de lata. A Europa é a
grande atração: os clubes de
topo pagam salários de um
milhão de dólares por ano ou
mais.
(NL)
Exuberant Followers
seguidores exuberantes
Photograph by
Bruno Barbey, Magnum Photos
Fotografia de
29
Argentine police squared off
against a crowd outside a
Buenos Aires stadium, where
fighting had broken out in the
stands. The March 2002 match
between Charcarita and Boca
Juniors was halted twice
because of violence before
ending in a 1-1 tie. Repeated
incidents between the teams
ultimately led to a two-week
suspension of play in the city, a
sad development for soccer-
mad Argentinines. They aren't
alone in their passion. A 2000
study estimated that more than
120 million players fill the
rosters of 300,000 soccer clubs
worldwide. With school teams
and pickup games added in,
soccer reigns as the world's
most popular and widely played
team sport.
A polícia argentina investe
contra uma multidão no exterior
de um estádio de Buenos
Aires, aonde os confrontos
passaram dos limites.
Em Março de 2002, o jogo
entre Charcarita e o Boca
Juniors foi interrompido duas
vezes devido à violencia, antes
de acabar empatado 1-1.
Repetidos incidentes entre as
equipas conduziram a duas
semanas de interdição de
realizar jogos na cidade, um
triste desfecho para estes
argentinos loucos por futebol.
Eles não estão sozinhos nesta
paixão. Um estudo realizado
em 2000 estimou que mais de
120 milhões de jogadores
preencham os planteis de 300
mil equipas em todo o mundo.
Somando as equipas escolares
e as partidas de rua, o futebol
domina como o desporto mais
popular e mais praticado em
todo o mundo.
(NL)
Heated Matchup
fim de jogo quente
Photograph by
Ferdinando Scianna, Magnum Photos
Fotografia de
30
In Argentina, fans of Quilmes
Athletic Club, the home team,
unleash a storm of confetti
before Quilmes beat Almirante
Brown 1-0 in a 1991 match
near Buenos Aires. Soccer
spawns deeply rooted rivalries
and fan violence. But the action
in the stands isn't always
destructive and the love of the
game can often unite opposing
fans. When Brazil beat the
Netherlands in a 1994 World
Cup quarterfinal match,
"dejected Dutch fans sat down
on a street curb," recalls one
spectator. "Brazilian fans
literally lifted them up. They all
ended up trading caps and
scarves."
Na Argentina, adeptos do
Quilmes Athletic Club, a equipa
da casa, provocam uma
tempestade de confetes, antes
do Quilmes derrotar o
Almirante Brown por 1-0, em
1991 nos arredores de Buenos
Aires. O Futebol desperta as
rivalidades mais profundas e os
adeptos mais exaltados. Mas a
acção nas bancadas não
resulta sempre em destruição e
o amor pelo jogo consegue
mesmo unir fãs rivais.
Quando o Brasil venceu a
Holanda nos quartos-de-final
do Mundial de 1994 (E.U.A.),
“Os adeptos holandeses
sentaram-se desalentados na
berma da rua”, recorda um
espectador. “Os adeptos
brasileiros literalmente
levantara-mos do chão.
Acabaram todos a trocar
cachecóis e bonés.”
(NL)
A Blizzard of Enthusiasm
uma tempestade de entusiasmo
Photograph by
Ricardo Alfieri
Fotografia de
31
Adaptação de “The Thinking Fan's Guide to the World Cup”, de Matt Weiland e Sean Wilsey (editores). Harper Collins, 2006.
Publicado com autorização.
32
guide to the World Cup”
Adaptação e excertos
“The thinking fan’s
Mundial de 2002:
Recapitulação, Resultados e Estatísticas
por Sean Wilsey
O Mundial de 2002 foi inédito, mas decorreu de forma previsível. Pela primeira
vez realizada na Ásia, a competição teve dois co-anfitriões tradicionalmente
inimigos, a Coreia do Sul e o Japão. Os dois organizaram apresentaram uma
proposta conjunta e, depois, já com a organização assegurada, tentaram suplantar-
se mutuamente, primeiro na construção de estádios e depois na própria competição.
A França, vencedora do Mundial de 1998 e do Europeu de 2000, perdeu o jogo
inaugural por 1-0 com a sua antiga colónia e estreante na Taça do Mundo, o
Senegal. Não conseguiu marcar um golo em nenhum dos dois jogos seguintes e foi
para casa depois da fase de grupos. O seu desempenho foi tão pobre que ninguém
se queixou quando a FIFA aboliu a já antiga tradição de qualificação automática do
campeão do Mundo para a edição seguinte da prova.
Outra surpresa da primeira fase foi a eliminação de Portugal. A equipa de Figo
perdeu por 3-2 com os Estados Unidos e, apesar de toda a excitação que rodeou a
equipa de estrelas, os jovens norte-americanos Brian McBride e Landon Donovan
foram uma ameaça mais real. Os Estados Unidos seguiram em frente, empatando
com a Coreia do Sul e vencendo o México, seu rival. A Alemanha esmagou a Arábia
Saudita por 8-0 na fase de grupos e defrontou os Estados Unidos nos quartos-de-
O defesa brasileiro Roque Júnior
disputa a bola com o avançado
alemão Miroslav Klose, na final
do Mundial de 2002, disputada
em Yokohoma (Japão). O Brasil
venceu a Alemanha por 2-0.
Fotografia de Tim De Waele, Corbis
33
final. As artimanhas psicológicas do guarda-redes alemão, Oliver Kahn, negaram a
Donovan um golo seguro, e os Estados Unidos, apesar de terem dominado o jogo,
foram excluídos. Franz Beckenbauer avaliou assim o desempenho alemão: “À
excepção de Kahn, podíamos pegar neles todos, metê-los num saco e bater-lhes
com um pau. Quem apanhasse, só tinha o que merecia.”
A Argentina, designada por sorteio para o chamadoo “grupo da Morte” com a
Inglaterra, Nigéria e Suécia, foi eliminada por um penalty de David Beckham (que
remediou os erros fatais por ele cometido no duelo com os argentinos em 1998) e foi
para casa, juntamente com os portugueses e os franceses.
África mal mostrou a cara depois da fase de grupos. Em prova, ficou apenas o
Senegal; das equipas asiáticas, a da Coreia do Sul e do Japão chegaram ambas à
fase de eliminação directa. O Japão caiu primeiro, vencido por uma Turquia
ocasionalmente arruaceira mas inspirada (a equipa contemplada com mais cartões
amarelos e vermelhos da prova). A Coreia do Sul eliminou a Itália, no jogo mais
excitante de toda a competição. Depois de forçar a squadra azzurra a esfalfar-se
durante quase duas horas, o ponta-de-lança expatriado, Ahn Jung Hwan, jogador
dos italianos do Perugia, ganhou o jogo com um golo de ouro marcado ao 117.º
minuto. A Coreia do Sul tinha um novo herói nacional, e o patrão italiano do herói,
Luciano Gaucci, cancelou rapidamente o contrato com Hwan: “Não tenho intenções
de pagar um salário a alguém que arruinou o futebol italiano.“ Quatro dias depois,
frente à Espanha, a Coreia do Sul jogou mais duas horas, desta vez ganhando por
penalties. A Espanha, com o seu segundo melhor registo desde 1950, teve de
suportar dois golos mal invalidados. “Pensei que o árbitro seria mais justo num jogo
dos quartos-de-final como este, “ disse o treinador José António Camacho. “Lutámos
até ao fim e perdemos porque a Coreia do Sul teve mais sorte que nós.” Nas meias-
finais, a Coreia do Sul defrontou a equipa alemã de Oliver Kahn. Michael Ballack
marcou o único golo do jogo (apenas o terceiro remate, em seis jogos, que
desfeiteou Lee Woon Jae) e terminou a carreira mágica da equipa em frente de
66.625 adeptos que tocavam tambores, vestidos de carmesim e autores de
coreografias de massa. Guus Hiddink, o treinador holandês da Coreia do Sul (e
beneficiário de cidadania honorária), foi judiciosamente apreciativo: “Eles mostraram
o que pode ser o apoio: uma mistura milagrosa de entusiasmo e não-violência.”
Os dois países anfitriões mereceram bem o seu êxito, arrancando marcas
históricas, arriscando, defendendo com determinação e correndo mais do que todos
os outros países no XVII Mundial. Se a FIFA tivesse colocado um pedómetro nos
34
campos da Coreia do Sul e do Japão, a contagem de passos teria duplicado a
registada por qualquer outra das quinze equipas europeias do torneio. A única
excepção seria a Turquia. Com a Holanda ausente (depois de ter sido semifinalista
em 1998 com o treinador Hiddink), calhou ao turcos jogar “futebol total”, à maneira
dos holandeses. Apesar de ter acabado em terceiro lugar, a Turquia foi a segunda
melhor equipa do Mundial de 2002. (Para os consolar, os membros da comitiva
tiveram estádios, pontes e ruas baptizados com o seu nome, no regresso a casa:
uma avenida em Adana para o avançado Hasan Sas, um parque em Istambul para o
treinador Senol Günes e um estádio na cidade costeira de Zonguldak para o médio
Ergün Penbe.)
O melhor jogo do torneio foi seguramente o dos quartos-de-final entre a
Inglaterra e o Brasil, que proporcionou iguais quantidades de intensidade, beleza e
sorte. Michael Owen marcou com característica elegância numa corrida fulgurante,
após um erro da defesa brasileira aos 22 minutos. A Inglaterra liderou o jogo até ao
momento em que Rivaldo empatou após jogada brilhante de Ronaldinho. Minutos
depois do intervalo, Ronaldinho marcou um golo incrível, na sequência de um livre
directo da linha de meio-campo. Apesar das três substituições operadas e de ter
ainda 47 minutos pela frente, a Inglaterra não conseguiu passar Roberto Carlos e
penetrar na defesa brasileira.
Depois do jogo, David Beckham visitou os balneários dos vencedores e
(segundo a revista “Sports Illustrated”) seguiu-se esta conversa:
BECKHAM: Olá, desculpem. Só queria saber se o Ronaldo queria trocar de
camisola comigo.
ROBERTO CARLOS (a ouvir): Eu já troquei de camisola com ele.
RONALDO (regressando com uma camisola): Beckham acabou de me dar isto.
O jogo foi tão bom que Beckham trocou de camisolas duas vezes.
Antes da inevitável desilusão da final, algumas estatísticas elucidativas:

Principais faltosos: Dietmar Hamann, da Alemanha, e Cafu, do Brasil,
empataram com 19.

Defesa mais bem sucedido: Torsten Frings, da Alemanha, que conseguiu
quebrar a fluidez de 55 opositores (embora Zeljko Milinovic da Eslovénia, eliminado
na fase de grupos, tenha tido o maior número de desarmes por hora: uns
espantosos 7.33).

Mais golos evitados: Rüstü Receber, da Turquia: 34.

Maior número de golos concedidos: Mohammad Al Deayea, da Arábia
35
Saudita: 12. Ronaldo, do Brasil, foi o autor de mais remates, 21, mas não logrou
uma única assistência. Seol Ki Hyeon, da Coreia do Sul, que mais bolas perdeu (79
vezes). Ninguém fez mais remates do que Nelson Cuevas, do Paraguai, com uma
média de 8 por jogo. Francesco Totti, de Itália, foi o jogador menos disciplinado do
torneio, com 18 faltas, 3 cartões amarelos e um cartão vermelho.
A final foi significativa. Por um lado, este foi o primeiro encontro entre os dois
países com mais êxito na história da Taça do Mundo, a Alemanha e o Brasil. A
Alemanha, diminuída pela ausência do seu capitão, castigado disciplinarmente, teve
de contar apenas com a perfeição de Oliver Kahn, enquanto rezava por erros
brasileiros. Não aconteceu nem uma coisa nem outra. Ronaldo conseguiu driblar
Kahn ao minuto 66, depois de o alemão ter falhado uma defesa fácil. E repetiu a
proeza ao 78.º minuto. A ganhar 2-0, um Brasil confiante trouxe alguns substitutos
ao jogo - Juninho, que só jogou cinco minutos, parecia pronto a marcar - e tornou-se
óbvio que os campeões tinham as duas melhores equipas do mundo. Uma final
melhor teria sido entre brasileiros titulares e brasileiros suplentes.
Kahn levou para casa o troféu Bola Dourada, para o melhor jogador do
campeonato, com base nos seus anteriores desempenhos. (Antes de Ronaldo,
apenas o irlandês Robbie Keane tinha sido capaz de fazer passar uma bola por ele.)
Analisando o primeiro golo do brasileiro, Kahn disse à imprensa: “Foi o meu único
erro em sete jogos. Mas esse erro foi brutalmente castigado.” Pelos seus oito golos,
Ronaldo levou para casa a Bota de Ouro, prémio para o melhor marcador.
Eufóricos, os sul-americanos usaram o maior estádio do único país do mundo
de maioria shinto para produzir o que deve ter sido o programa de televangelismo
mais visto da história da televisão, quando Kaká, Edmilson e Lucio rasgaram as
camisolas, revelando camisolas interiores onde se lia, em português e em inglês,
“Eu pertenço a Jesus” e “Jesus ama-te”. Outros jogadores brasileiros dançavam ao
som das congas. Agora, louvado fosse Deus, podiam pôr fim aos 40 dias de celibato
imposto pelo treinador Luís Felipe Scolari. Como Ronaldo disse aos jornalistas:
“Sexo vou fazer daqui a minutos, mas nada pode ser tão compensador como o
Campeonato do Mundo.”
Eles tinham ganho os seus sete jogos e, proeza sem precedentes, conquistaram
o Campeonato do Mundo pela quinta vez: eram pentacampeões!
36
Inglaterra
por Nick Hornby
Quando comecei a ver futebol, na década de 1960, era tudo muito fácil de
compreender. A Inglaterra acabara de ganhar o Mundial de 1966 e, por
consequência, era incontestavelmente a melhor equipa do mundo: facto, ponto final,
fim da história. É verdade que o golo que levou à vitória na final não devia ter
contado; também é verdade que os brasileiros e Pelé foram sistematicamente
desancados no torneio de 1966, ao ponto de Pelé ter sido retirado de maca depois
da enésima falta brutal. Sim, e então? Éramos os melhores! Provavelmente! E
fomos, sem dúvida, a segunda melhor equipa em 1970, ainda que seja necessária
alguma criatividade para o provar. Sim, a Inglaterra foi derrotada nos quartos-de-
final. Mas não devia ter sido vencia 2-0 contra os alemães e faltavam 20 minutos de
jogo, mas conseguiu perder 3-2. O Brasil venceu facilmente o Mundial de 1970, mas
só nos venceram nas eliminatórias da fase de grupos, por 1-0. E Jeff Astle falhou um
golo certo quase no final, por isso o jogo devia ter terminado 1-1. O Brasil arrasou
com toda a gente. Recapitulando: incontestavelmente a melhor equipa em 1966 e
realmente a melhor equipa façamos justiça aos brasileiros e digamos que ficámos
em igualdade em 1970.
Depois, de súbito, começou tudo a correr mal, quase sempre. Para começar, eu
A selecção inglesa transporta o
troféu, após a vitória (4-2) contra
a Alemanha Federal, na final do
Mundial de 1966.
Fotografia de Allsport Hutton Archive,
Getty Images
37
tornei-me adulto e começou a perturbar-me muito mais a ideia de pertencer a um
país. Entretanto, a equipa de futebol inglesa era uma nódoa. A segunda melhor
equipa do mundo nem sequer se qualificou para as finais do Mundial de 1974 e
1978; os jogadores de renome mundial com que tínhamos sido abençoados durante
a década de 1960 tinham desaparecido e, de qualquer forma, na década de 1980, o
tema do patriotismo e do futebol tornara-se muito mais complicado. Olhando agora à
distância, os jogos de Inglaterra durante essa década eram com frequência apenas
visíveis através de uma nuvem de gás lacrimogéneo, usado pela polícia europeia
para dispersar os nossos hooligans amotinados. Os adeptos ingleses estavam
rapidamente a tornar-se sinistros. Embora os jogos entre os nossos clubes fossem
frequentemente palco de motins, não se sentia que os hooligans estivessem a
marcar uma tendência. Quem fosse ver a Inglaterra jogar em Wembley, como eu
ainda fui, poderia observar pessoas à sua volta a fazer por vezes a saudação nazi
durante o hino nacional; os insultos aos jogadores negros (mesmo aos jogadores
negros que jogavam na nossa equipa) eram comuns.
Naquele tempo, cabiam em Wembley 92.000 pessoas; convenientemente, havia
(e ainda há) noventa e dois clubes de futebol profissionais em Inglaterra. Às vezes,
parecia que se reuniam em Wembley os mil adeptos mais desprezíveis de cada
clube, imitando macacos e cantando canções contra o IRA. Foram estas pessoas
que ajudaram a criar o receio e o ódio contra as nossas duas bandeiras nacionais.
Quem visse alguém aproximar-se com uma T-shirt com a Cruz de São Jorge ou a
Union Jack, o melhor que tinha a fazer era afastar-se. A T-shirt era uma alternativa
gráfica a um palavra de ordem que podia dizer algo como: “Sou racista, mas odeio-
te, qualquer que seja a tua cor” ou, como dizia um graffiti captado pelo fotógrafo
Zoe Strauss “Vai-te f… se estás a ler isto”. E se ele não nos apanhasse, apanhava-
nos o seu pit bull terrier.
E então, de alguma forma compreensivelmente, alguns adeptos de futebol
começaram a sentir-se zangados com a nossa selecção nacional. Em 1990, quando
a Inglaterra jogou contra os Camarões nos quartos-de-final do Mundial, não foi difícil
encontrar pessoas em Inglaterra teoricamente da classe média e liberais, mas
ainda assim, pessoas que desejavam a vitória dos Camarões. Assisti ao jogo com
algumas dessas pessoas e, quando a Inglaterra estava a perder por 2-1 (acabou por
vencer 3-2 no prolongamento), essas pessoas rejubilaram. Eu compreendi porquê,
mas não consegui partilhar o seu entusiasmo, para minha grande surpresa. Aqueles
rufias racistas e bêbedos, envoltos nas cores nacionais é que eram, vim a descobrir,
38
a minha gente, e não (como pensara anteriormente) os simpáticos amigos liberais
com quem estava a assistir ao jogo, e a Inglaterra era a minha equipa nacional de
futebol. Estas coisas não se podem escolher, certo? O Mundial de 1990 revelou-se
um ponto de viragem. A nossa selecção não era confrangedora pelo menos, depois
dos jogos de abertura. Os adeptos também não eram confrangedores, salvo durante
alguma escaramuça ocasional. E no final, a Inglaterra perdeu, por pouco e
corajosamente, a penalties contra a Alemanha, na meia-final. (Curiosamente, a
Inglaterra foi mandada para casa em quatro dos últimos seis campeonatos
mundiais, quer pela Alemanha, quer pela Argentina, dois países com quem tivemos
desavenças no passado. Quem estiver familiarizado com a natureza belicosa dos
tablóides ingleses consegue imaginar o pouco que estas desventuras fizeram pela
paz mundial.) Após duas décadas horrendas, a selecção e o futebol nacional
recuperaram novamente o calor dos afectos da nação.
O renascimento durou cerca de cinco minutos. Houve uma escolha
administrativa desastrosa, que resultou em mais um fracasso na qualificação. E em
1998, o futebol era um jogo diferente. A França venceu o Mundial de 1998, mas
apenas dois jogadores da equipa jogavam futebol em França. Os homens mais
importantes, Zidane, Desailly e Deschamps jogavam em Itália; os restantes jogavam
em Espanha, Inglaterra ou na Alemanha. Entretanto, as grandes estrelas do futebol
inglês eram Zola, da Itália, Bergkamp, da Holanda, e Schmeichel, da Dinamarca. O
Manchester United, o clube mais importante de Inglaterra, retivera um grupo de
jovens jogadores ingleses, entre os quais David Beckham; mas o Arsenal, a minha
equipa, tinha vencido confortavelmente o campeonato com uma mistura de bravura
inglesa e de estilo franco-holandês. Os jogadores estrangeiros eram, na sua
maioria, melhores, mais aptos e mais baratos, e, além disso, não bebiam muito.
(Pessoas como Bergkamp e o brilhante avançado francês Thierry Henry consideram
a abstinência como o preço a pagar por uma carreira de atleta, mas esta atitude era
vista como uma ingenuidade por muitos jogadores ingleses.) Não tardou que a
maioria dos jogadores da nossa primeira divisão viesse de fora das ilhas Britânicas.
A globalização do mercado de jogadores começava a roubar ao futebol
internacional muito do seu sentido. Antigamente, observávamos os melhores
jogadores das melhores equipas e pensávamos: “Como seria se jogassem juntos?”
A resposta era que pareciam a selecção nacional era essa a ideia, aliás, mesmo
que na realidade a selecção nacional, sobretudo a selecção nacional inglesa, fosse
frequentemente uma balbúrdia mal preparada e heterogénea. O Chelsea, o
39
Manchester United, o Real Madrid, o Juventus, o Milão e o Barcelona substituíram
agora as selecções nacionais como equipas de sonho. Se a nossa equipa nacional
não contém jogadores desses clubes, é porque esses clubes não os querem, o que
significa que a nossa equipa nacional não presta. Durante os últimos anos, a
Inglaterra chegou a ficar ocasionalmente reduzida a escolher jogadores que não
eram primeiras escolhas imediatas para os seus clubes, uma indicação de como
tudo mudou. Antigamente, um jogador internacional estaria em primeiro lugar na
lista de qualquer clube. Agora depende da qualidade do clube e da qualidade do
país.
Todavia, não há dúvida de que as importações estrangeiras arrastaram a nata
dos jogadores ingleses, por vezes de forma relutante, para algo que se aproxima da
competência. Éramos muito trôpegos e limitados (o mesmo se pode dizer de todos
os habitantes do país); não tínhamos de nos preocupar muito com outros países
porque só jogávamos contra eles de dois em dois anos. Os jogadores ingleses
jogam agora todas as semanas com, ou contra os melhores do mundo, e tiveram de
aprender rapidamente, para vencer e manter a profissão. Até algumas pessoas com
juízo começam agora a afirmar que a selecção inglesa contém alguns dos melhores
jogadores do mundo. Wayne Rooney era um adolescente durante o Europeu de
2004, mas quando se retirou, lesionado, no jogo contra Portugal, a equipa
desintegrou-se. Ele é muito forte, incrivelmente talentoso e tanto se presta a
apanhar um cartão vermelho, provavelmente por praguejar, como a marcar um dos
melhores golos jamais vistos. (Num jogo contra o Arsenal, na época passada,
estima-se que Rooney tenha dito “vai-te f…” ao árbitro mais de vinte vezes em
sessenta segundos. Como a “linguagem obscena e abusiva” deve ser uma ofensa
punível com cartão amarelo, presume-se que existam palavras muito, muito feias,
piores do que as palavras f… e c…, que os jogadores conhecem e nós não.) Frank
Lampard e John Terry são os jogadores mais importantes do Chelsea, o que no
actual clima económico significa que são dois dos melhores jogadores da Europa;
se não fossem, já teriam sido enviados para as minas de sal. Ashley Cole é talvez o
melhor defesa-esquerdo do mundo, o que significa que não jogará na minha equipa,
o Arsenal, por muito mais tempo. Pelo menos metade desta selecção inglesa é
francamente boa, por isso, quando forem vencidos nos quartos-de-final, como já vai
sendo costume, o sentimento será de raiva e impotência e não de resignação
deprimida.
Perto do final da pouco inspirada campanha para a qualificação do Mundial de
40
2006, a Inglaterra conseguiu perder 1-0 contra a Irlanda do Norte, cuja maioria dos
jogadores vem dos clubes mais pequenos da Grã-Bretanha; durante o jogo, quase
se podiam ver as estrelas inglesas a pensar “Que porra faço eu aqui, nesta
espelunca, a jogar contra estes falhados?” (O facto de os falhados estarem a vencer
parecia não lhes interessar muito.) Era difícil imaginar o modelo de futebol
internacional durar os noventa minutos inteiros ou, mais difícil ainda, até à final do
campeonato e para além dela. Até que, umas semanas mais tarde, após uma vitória
sem significado, ainda que arrebatadora, contra a Argentina, decidimos todos que a
Inglaterra ia ganhar o Mundial. Isto representa um progresso sem precedentes:
normalmente, a autoconfiança nacional teria sido estimulada por uma vitória à
tangente contra os infelizes irlandeses e demolida por uma equipa competente.
Agora, temos um grupo de sofisticados cosmopolitas (ou de prima-donas mimadas,
consoante a nossa perspectiva, idade e jornal de eleição), que não podem ser
incomodados, a menos que a ocasião o exija.
Há 16 anos, a Inglaterra empatou 0-0 com a Suécia, um resultado que ajudou a
garantir a qualificação para o Mundial de 1990. A imagem que ficou desse jogo foi a
do capitão da equipa, Terry Butcher, envolto em ligaduras, com a camisola de
Inglaterra e os calções cobertos de sangue que lhe escorrera continuamente de uma
ferida na cabeça, durante todo o jogo. “Fora do campo, sempre fui um tipo normal e
plácido”, afirmou Butcher, numa entrevista, anos mais tarde. “Mas vistam-me uma
camisola de futebol e é como se tivesse um capacete de aço e a baioneta em riste.
Morte ou glória.” Era assim a velha Inglaterra: o imaginário da guerra, o empate a
zero crucial contra um rival modesto, a inevitável substituição de estilo e talento por
sangue e trabalhos forçados. Aqueles que odeiam David Beckham, o actual capitão
da equipa inglesa, e tudo aquilo que ele representa, afirmam que ele apenas
envergará capacete de aço e ligaduras quando estes se tornarem moda em alguma
discoteca europeia ridiculamente na moda. Não é justo, porque, apesar de ser bem
parecido e rico, também ele fez um esforço surpreendente para compensar as
qualidades que lhe faltam como jogador, nomeadamente, rapidez. Mas não há
dúvida de que ele é um representante brilhante de um novo género de desportista
inglês: profissional, com conhecimento dos media, ocasionalmente petulante e
muito, muito rico. Os adeptos ingleses que assistiram ao jogo amigável contra a
Argentina (que decorreu, como é agora hábito nestas coisas, em Genebra, por
razões que permanecem obscuras) continuavam a entoar a canção “Não nos
renderemos ao IRA”, e suspeito que preferiam ter visto Terry Butcher e as suas
41
baionetas em riste, do que David Beckham, um homem que, afinal, até já foi
fotografado de sarong. Mas afinal, a Inglaterra é assim mesmo neste momento.
Preferíamos estar ainda a bombardear os alemães, mas após sessenta anos,
começa lentamente a despontar em nós a suspeita de que esse tempo não voltará
tão depressa e que, entretanto, teremos de confiar em jovens multimilionários bem-
parecidos e de sarong para dar cabo dos argentinos. Não nos agrada, mas que
podemos fazer?
O meu momento mais emocionante no Mundial de 1998 foi quando Vieira, do
Arsenal, fez deslizar a bola para Petit, do Arsenal, para o terceiro golo da França na
vitória 3-0 contra o Brasil, na final: fiquei de joelhos. (Na manhã seguinte, a primeira
página do “Daily Mirror”, então editado por um detentor de bilhetes de época do
Arsenal, dizia “ARSENAL VENCE CAMPEONATO MUNDIAL”. Mandei emoldurar a
página.) Esta é que era a minha gente: de qualquer modo, passo a maior parte da
época a odiar os jogadores ingleses; se alguns daqueles estupores do Manchester
United ou do Chelsea tiverem de lutar contra qualquer dos meus lindos e talentosos
rapazes franceses, é escusado agonizar. Afinal, parece que estas coisas sempre se
podem escolher. Allez, les Bleus.
Recordes do Campeonato do Mundo
Ranking da FIFA: 9
Participações no Mundial: 11
Títulos de campeã: 1
Nome da Federação: Federação Inglesa de Futebol
Confederação: UEFA
Fundada: 1863
Filiação na FIFA: 1905
Alcunha: The Three Lions (Os três leões)
Treinador: Sven-Goran Eriksson
Website: www.the-fa.org
Estádio: Wembley
Equipamento principal: branco/azul escuro/branco
Equipamento alternativo: vermelho/branco/vermelho
Patrocinador: Umbro
42
1930: Não participou
1934: Não participou
1938: Não participou
1950: Eliminada na primeira fase
1954: Eliminada nos quartos-de-final
1958: Eliminada na primeira fase
1962: Eliminados nos quartos-de-final
1966: CAMPEÃ
1970: Eliminada nos quartos-de-final
1974: Não se qualificou
1978: Não se qualificou
1982: Eliminada na segunda fase
1986: Eliminada nos quartos de final
1990: 4º lugar
1994: Não se qualificou
1998: Eliminada nos oitavos-de-final
2002: Eliminada nos quartos-de-final
Jogos: 50
Vitórias: 22
Derrotas: 13
Golos marcados: 68
Golos sofridos: 45
Goal average: 23
Pontos: 81
A Inglaterra está em 5º lugar na tabela de todos os tempos do Campeonato do
Mundo
Caminho para a qualificação para o Mundial de 2006
4-Set-04 Áustria 2 Inglaterra 2
8-set-04 Polónia 1 Inglaterra 2
9-out-04 Inglaterra 2 País de Gales 0
13-out-04 Azerbaijão 0 Inglaterra 1
43
26-mar-05 Inglaterra 4 Irlanda do Norte 0
30-mar-05 Inglaterra 2 Azerbaijão 0
3-set-05 País de Gales 0 Inglaterra 1
7-set-05 Irlanda do Norte 1 Inglaterra 0
8-out-05 Inglaterra 1 Áustria 0
12-out-05 Inglaterra 2 Polónia 1
A Inglaterra qualificou-se ao terminar em 1.º lugar o Grupo 6 da Zona Europeia
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Espanha
por Robert Coover
O Verão de 1982 em Espanha foi o mais quente do século. O capacete de smog
tinha o efeito de uma tampa de panela de pressão, ardendo com os reflexos do Sol,
nas bancadas superiores do pequeno estádio de futebol Sarriá, popularmente
conhecido como Bombonera (Caixa de Bombons). Parecia que tinham sido
vendidos dez bilhetes por cada metro quadrado de espaço. Tivemos de ir para lá
uma hora e meia antes para conseguir caber de pé. Sentarmo-nos? Nem pensar.
Não havia hipótese de ir buscar bebidas e, quando o jogo começou, era até difícil
respirar. O meu filho adolescente passou um jogo inteiro pendurado num corrimão
das escadas, sobre uma porta de saída. Todos os dias dizíamos: se não for
espectacular, vamos para um bar qualquer e vemos o jogo na televisão. Isto é de
loucos! Todos os dias, acabámos por voltar.
Já cá tínhamos estado. Da outra vez, em 1977, estava a chover, era noite e
fazia frio. Também dessa vez ficámos encolhidos debaixo de um guarda-chuva perto
do telhado, abaixo dos holofotes, sob vento tempestuoso e chuva torrencial, nos
únicos lugares disponíveis, e muito felizes por tê-los. Nessa noite, assistíamos a
uma partida da liga espanhola no final do Outono, entre dois arqui-rivais desta
cidade, o FC Barcelona e o Real Clube Deportivo Espanyol, que jogava em casa,
O italiano Paolo Rossi protege a
bola do brasileiro Júnior, no
Mundial de 1982. As duas
equipas defrontaram-se no
estádio Sarriá, em Barcelona.
Num dos jogos mais excitantes
da prova, a Itália ganhou por 3-2,
e Rossi marcou três golos. A Itália
prosseguiu e conquistou o título.
Rossi foi o melhor marcador e foi
premiado como jogador mais
valioso da competição.
Fotografia por Getty Images
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um desafio que era mais do que um simples evento desportivo.
Em 1982, foi esse o palco da segunda fase do Mundial, num grupo onde o
destino tinha juntadoa Itália, o Brasil e a Argentina, todos antigos campeões do
mundo. Todos contra todos os outros numa miniliga por um lugar nas meias-finais
(Argentina-Itália, Argentina-Brasil e Brasil-Itália, por essa ordem.) Os jogos
transcenderam o quotidiano, tal como se pode dizer que a guerra transcende o
debate.
Por vezes parece-me que estes são os nossos dois únicos jogos universais, a
guerra e o futebol. Encontramo-los a ambos em todas as culturas, excepto em
algumas subculturas do mundo, raras e remotas (na Melanésia, por exemplo, ou
aqui e ali na América do Norte) e sempre no centro da experiência nacional. A
guerra está talvez mais perto do reino da fantasia, o futebol do da realidade, mas
ambos partilham esta ubiquidade e centralidade, como se cada um se erguesse de
uma qualquer fonte colectiva libidinosa, primária e intuitiva. Talvez eles sejam
variações do mesmo jogo, formações rituais, próprias da era industrial moderna, de
alguma actividade comum do “Tempo-dos-Sonhos” da espécie, de quando ambos
usavam os mesmos jogadores e os mesmos remates ou seja, todos os homens da
tribo e toda a natureza. Ainda hoje eles se misturam um no outro. Os dirigentes do
futebol “declaram guerra”, os generais aplicam tácticas e terminologia de futebol nas
suas campanhas, a violência guerreira invade os campos de futebol, alastra às
bancadas e extravasa para as comunidades (como quando as tensões fronteiriças e
as paixões dos jogos de qualificação do Mundial se diluíram na famosa e sangrenta
“guerra do futebol” de 1969, entre as Honduras e El Salvador - ironicamente dois
dos finalistas de 1982, continuando eles de novo, ou ainda, a disparar uns contra os
outros no terreno bélico), os soldados usam as cores da sua equipa na batalha,
como recompensa, ou desafiam o inimigo em terra de ninguém durante tréguas
temporárias, e as claques de adeptos são conhecidas por “exércitos”.
Nesta inextricável comunhão de batalhas nos jogos e de jogos de batalha
noutros locais da guerra e da revolta, 24 anos mais tarde, em 2006, o mundo pôde
ver emparceirados, no mesmo grupo, o Irão e os Estados Unidos, ou a Inglaterra, ou
o servos e os croatas. Todavia, no Verão de 1982, a guerra do dia era entre a
Argentina e a Inglaterra por causa de um campo estéril conhecido respectivamente
por Malvinas e ilhas Falkland, e ambos os países tinham equipas no Mundial de
1982. Foi esta guerra que ensombrou a defesa argentina do seu campeonato de
1978, mantendo os fãs em casa, consumindo os seus recursos, desmoralizando a
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equipa e a nação à medida que o número de baixas aumentava e diminuíam as
suas esperanças de qualquer saída airosa. Mesmo assim, na véspera do jogo
inaugural do Mundial entre os na altura campeões do mundo e a Bélgica, a Junta
Militar argentina, à beira de uma derrota iminente e catastrófica, decidiu manter a
guerra mais um dia, fazendo entretanto todos os esforços para difundir a
transmissão televisiva do jogo em directo para as tropas que defendiam as ilhas, na
esperança de um milagre. Em vez disso, como se para obrigar o mundo a partilhar a
sua tristeza, apenas perderam mais uns cidadãos. Os seus campeões do mundo
talvez tenham tido coragem suficiente, mas não tiveram balas, e a Bélgica marcou o
único golo de um jogo crítico, cauteloso e algo aborrecido. Poucas horas depois, a
Argentina rendeu-se à Grã-Bretanha, as tropas desligaram os televisores e
regressaram ao continente como fãs desiludidos (alguns cidadãos protestaram, mas
rapidamente desapareceram), e o chefe da Junta, general Leopoldo Galtieri,
“demitiu-se”, pressentindo o destino de muitos dirigentes da sua selecção nacional
antes do Mundial acabar. Com uma expressão cândida, o “London Times” relatou
que, entre os oficiais militares superiores da campanha das Malvinas, o comandante
de comandos, brigadeiro Julian Thompson, fora nomeado “homem do jogo”.
Após o seu embaraço inicial, a Argentina conseguiu ganhar um par de jogos
para se qualificar para a segunda série e recuperar assim algum respeito. O Brasil
era o grande favorito a disputar os apuramentos - na verdade foi favorito de todo o
Mundial 1982 - e o jogo entres estes rivais lendários foi alcunhado de “final latina-
americana”. Ninguém dava nada pela Itália, que passara esta fase com três
empates deprimentes contra equipas sem valor, mas que tinha uma selecção
defensiva obstinada. E foi assim que foi interpretado o primeiro jogo, que os
argentinos perderam para os italianos por 2-1: uma confiança em homens duros,
perícia acima de beleza, uma vitória aborrecida para o futebol “negativo”. A imprensa
queixou-se depois da grosseria e brutalidade italiana. “Antifutebol”, chamaram-lhe,
“algo entre a defesa e o homicídio,” embora mais tarde a sua recordação deste jogo
fosse mais generosa (tal como com a vida, apenas o passado tem o fim em aberto).
Certamente que foram espantosos a tenacidade e o empenho dos jogadores
italianos no calor escaldante e quase palpável o orgulho esmagado dos argentinos.
Talvez tenha sido este empenho apaixonado, juntamente com aquela tendência
peculiar mas universal de um povo para identificar o seu interesse nacional com o
êxito ou falhanço da sua equipa de futebol, que mais nos recordou a última vez que
nos tínhamos aqui sentado, à chuva e ao vento, assistindo àquele jogo nocturno que
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era mais do que um jogo, entre os culés do Barcelona (assim chamados porque
antigamente os fãs se sentavam em bancadas abertas, que presenteavam os
transeuntes com a visão agora celebrada por gerações de cartonistas) e os
“periquitos” do Espanyol. Estava-se em 1977, ou ano 1 d.F. (Depois de Franco) pelo
novo calendário catalão, esse ano eufórico do destape (o saltar da rolha, o abrir da
tampa) que assistiu à demolição nacional quase instantânea de todas as estruturas
do franquismo, a uma vasta amnistia política, à legalização do Partido Comunista,
aos sindicatos livres, à explosão editorial e à Revolução Pornográfica, às primeiras
eleições-gerais desde os dias da República, e na Catalunha, à nova renaixença
cultural, à dança da sardana nas ruas e à restauração do parlamento catalão
autónomo, o Generalitat. Este organismo tinha estado em funcionamento no exílio
desde o fim da guerra civil e um dos grandes momentos do Outono de 1977 foi a
recepção ao seu presidente, Josep Tarradellas, que regressava a casa após quase
40 anos de exílio. Isto aconteceu no aeroporto, nas ruas e praças de Barcelona (que
rapidamente recuperariam os seus antigo nomes catalães anteriores a Franco,
como se para apagar da memória comunitária a vergonha da ocupação castelhana,
ou seja, estrangeira), e finalmente no Camp Nou do FC Barcelona, esse templo
sagrado de catalanismo do outro lado da cidade, onde a tribo se reunira domingo
sim, domingo não, durante a era franquista, numa resistência simbólica e
vociferante.
“Mais que um clube” é a palavra de ordem do Barça, e era fácil compreender o
que ela significava, ali sentado naquele imenso estádio de futebol (o segundo maior
do mundo, com um núcleo de adeptos de 120 mil membros pagantes e uma lista de
espera de anos; só para a fotografia da equipa de 1982, que ia ser tirada logo a
seguir ao Mundial, apareceram 50 mil pessoas mais do que se poderia enfiar no
pequeno estádio antiquado do Espanyol), nesse dia vivo com o adejar das riscas
vermelhas e amarelas das até aí proibidas senyeres catalãs, entrelaçadas com as
cores purpúras e azuis das bandeiras do clube, ouvindo o estrondoso rugido subir
de tom quando Tarradelllas entrou no camarote presidencial para trocar prolongados
abraços com uma direcção quase em lágrimas. E então, depois de uma
apresentação emotiva, Tarradellas invocou numa voz trémula, para todos os
presentes, os seus dias como fã do Barça, nos anos de 1920 e 1930, concluindo
com uma gutural “Viva o Barça! Viva a Catalunha!”. Depois disso, todos se
levantaram para cantar em massa o velho hino proibido da Catalunha, “Els
Segadors”. Tarradellas, aceitando o convite, tinha dito que só viria se o clube, que
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nesse dia jogava com o Las Palmas das Canárias, prometesse ganhar. Durante 45
minutos, pareceu que o iam desiludir, já que as duas equipas se arrastavam
empatadas zero a zero. Com cerca de um quarto de hora da segunda parte já
jogado e quando o velho senhor parecia começar a dormitar, o Barcelona teve uma
recompensa extraordinária, não uma, mas duas penalidades seguidas, e arrebatou
a vitória a um Las Palmas compreensivelmente desmoralizado por 5-0. Benvingut,
President!
Eu era, de certa forma, um adepto do clube de futebol do Barcelona desde que
o meu sogro, médico da equipa do Gimnástic de Tarragona, de uma divisão menor,
e adepto fervoroso do Barça me iniciara no jogo, em finais da década de 1950. Para
dizer a verdade, foi provavelmente a espantosa intensidade das emoções
despertadas todos os anos pelos jogos claramente políticos entre Barcelona e o
Real Madrid que primeiro me chamou a atenção, e não o jogo em si. A esquerda
classifica frequentemente o futebol (como todos os desportos com espectadores)
como uma manipulação e exploração burguesa das classes trabalhadoras,
deflectindo a sua paixão de luta pela liberdade e justiça a favor do outro, para um
sofrimento pseudo-interior e falsificado e para a satisfação do apoio à equipa - ou
seja, do real ao artificial, ao meramente simbólico - e ganhando nisso algum lucro
rápido. Talvez seja assim, mas virtualmente todos os jovens catalães que se
juntaram aos partidos socialista e comunista clandestinos durante a era de Franco
eram totalmente fanáticos do Barça, um paradoxo (se o for) com que tiveram de
aprender a viver, pois não há alívio para tal paixão.
“É estranho”, disse-me um deles, um amigo escritor comunista, num almoço
duas horas antes do jogo Argentina-Brasil. “As coisas dissolvem-se. Todas as
nossas grandes ideias estão cheias de ambiguidades quando tentamos torná-las
realidades. Sob Franco, tudo era mais claro. Contra Franco, gostamos nós de dizer,
vivíamos melhor. Talvez porque o próprio mundo parece mais frágil, o universo é
agora mais familiar mas também mais ameaçador. Aquele vosso astronauta não
sabia o que fazia quando jogou golfe na Lua. E afinal nas más alturas voltamos
sempre à nossa família, à nossa aldeia, à nossa cultura. Ao nosso clube de futebol.”
“E o Mundial?”, perguntei eu. “Tem sido uma coisa boa?”
“Para a Espanha, é um desastre completo”, disse encolhendo os ombros,
“Parecemos crianças. Julgamos que o mundo está cheio de milionários que querem
vir cá dar-nos o dinheiro deles. E depois, mesmo que os roubemos ou enganemos,
julgamos que eles ainda nos amam. Continuamos místicos, está a perceber?
49
Esperamos milagres. E continuamos a adorar ser castigados.” Deu uma olhadela ao
relógio. “Faltam duas horas para a partida”, disse ele com um sorriso pesaroso. Sim,
já era hora de ir ou, com bilhete ou sem ele, não haveria maneira de ver o jogo: sair
para o calor opressivo, apanhar um autocarro fosse como fosse, e furar a multidão
compacta à volta do estádio de Sarriá.
O La Bombonera? nunca foi o Camp Nou do Barça, nada disso. Aí, belgas,
russos e polacos lutavam para decidir quem seria o vencedor deste grupo com
acesso às meias-finais. Naquele grande estádio, com os seus 120 mil lugares, havia
amplo espaço para os 819 fãs polacos, cuidadosamente vistoriados para poderem
assistir ao jogo (e diz-se que metade destes desertaram algures entre Espanha e a
Polónia), outros tantos belgas e tanto quanto se sabia, nenhum russo. Anos depois,
após os Jogos Olímpicos de Barcelona, o Espanyol herdaria o Estádio Olímpico,
mas na caixa de bombons de 1982 não cabia mais que aquilo. Tinha havido uma
pressão tremenda, evidentemente, quer internacional, quer local, para efectuar uma
troca: ter-se-ia traduzido por três vezes mais bilhetes vendidos, para não falar do
aspecto mais generoso de dar aos fãs o que eles queriam. Mas o RCD Espanyol era
demasiado orgulhoso: este era um dos grandes momentos da história do clube e
eles não iam desistir. Um dos directores, ainda por cima, era presidente da Real
Federação Espanhola de Futebol. Era uma questão indiscutível desde o princípio.
É importante compreender as diferenças históricas destes dois clubes.
Barcelona, que sempre foi um dos grandes centros comerciais e industriais de
Espanha, foi beneficiária dos anos de expansão da apertura, a campanha feita pelos
novos tecnocratas durante a enfraquecida última década de Franco para “abrir” a
Espanha. O turismo, a indústria, a banca, os negócios vinham todos parar a
Barcelona. E quanto mais rica esta se tornava, mais crescia. Em 1977, tinha quase
dois milhões de habitantes e o mais alto rendimento total das 50 províncias de
Espanha. A maioria dos recém-chegados não era catalã, é claro, mas os emigrantes
das regiões mais pobres iam para norte para conseguir um quinhão de
prosperidade, a maior parte como trabalhadores indiferenciados ao serviço da
construção civil. Quando chegaram, não foram bem recebidos. Chamavam-lhes
Xamegos. Formaram toda uma nova classe inferior, e a sua simples existência no
local elevou os catalães pobres ao estatuto de pequeno-burgueses. Não tardaram a
descobrir que os catalães tinham tendência a usar a sua língua local (parecida, para
eles, com um ladrar ruidoso) como uma arma contra eles, um código secreto. Era
difícil entrar num jogo do Barcelona, e quando entravam, sentiam-se estrangeiros.
50
Além do mais, eram muito caros. E por isso esses adeptos começaram a derivar
para o Espanyol. Tinha um nome simpático e incluía toda a gente. As pessoas
falavam uma língua decente. Chamavam ao clube Ayth-pan-yo, o que punha as
pessoas à vontade. A direcção tinha fama de ser procentrista, anti-catalã. O estádio
era mais pequeno, um pouco maltratado e estragado. Não se perdiam lá dentro. E
era mais barato. E assim, uma velha rivalidade entre dois clubes catalães assumiu
uma nova dimensão. O Barcelona tornou-se o clube do catalanismo, do
antifranquismo, dos intelectuais, da elite tribal, dos ricos; o Espanyol o clube do
nacionalismo, das antigas hierarquias, da classe trabalhadora, dos emigrantes, dos
pobres. O derby local entre estas duas equipas durante o altamente emotivo Outono
de 1977, apenas duas semanas depois do regresso de Tarradellas, não se podia
perder.
Tal como o sensacional jogo de 1982 entre as duas mais formidáveis equipas da
América Latina das décadas anteriores. No pequeno estádio, não cabia nem mais
um alfinete. Constava que bilhetes como os nossos estavam a ser vendidos no
mercado negro por centenas de dólares, mas nós nem ouvíamos os pregões dos
vendedores, empurrando excitadamente os torniquetes, com os nossos tesouros
impressos em papel colorido. Nessa altura, já quase toda a gente em Espanha
tendo a equipa nacional caído em descrédito estava a torcer pelo Brasil, e o verde e
o dourado imperavam no estádio do Sarriá. Num dos cantos do campo, podia ver-
se, à laia de toldo, uma bandeira do tamanho dum campo de basquetebol, pelo ar
esvoaçavam papagaios de papel, subiam balões, e uma infinidade de tambores
marcava incansavelmente o ritmo do samba. Dir-se-ia que o Brasil jogava em casa!
Equipa alguma, desde a final do Mundial de 1954 [em que a superfavorita Hungria
perdeu frente à Alemanha Federal] se revelara tão unanimemente favorita, não só
por ser a única equipa que naquela altura detinha um recorde perfeito, mas também
por emanar tanta beleza. Numa das suas colunas diárias publicadas em Espanha
antes do jogo inaugural do Brasil em que este venceu a União Soviética, o
romancista peruano Mario Vargas Llosa, comparou o campo de futebol (estarei
errado? os únicos jogos universais talvez sejam o sexo e o futebol…) a uma extensa
zona púbica coberta por uma "provocante pelagem esverdeada", e o golo a "um
orgasmo que permite a um jogador, uma equipa, um estádio, um país, a toda a
humanidade descarregar repentinamente a sua energia vital". Se os países
"jogassem futebol consoante as suas idiossincrasias sexuais," especulou ele, então
o Brasil seria um jogador "descontraído e arrebatador que acaricia ternamente a
51
bola antes de lhe dar um pontapé, a quem é difícil separar-se dela, e que, em vez de
colocar a bola na baliza, prefere acompanhá-la até lá. Contrariamente, o futebolista
russo é triste, melancólico e brutal, dado a explosões violentas e contraditórias, e as
suas relações com a bola evocam a relação de um amante eslavo com a sua
namorada, patente em versos e lamentos que acabam sempre em tiroteio."
Até o aquecimento brasileiro foi emocionante. Vê-los a jogar foi como afundar-
me numa doce fantasia sensual. Foi maravilhoso, um Carnaval interminável do qual
todos queríamos fazer parte. Todos sentíamos vontade de usar as T-shirts amarelas,
agitar as bandeiras sedosas e bater nos tambores. Acima de tudo, todos queríamos
dar a volta ao campo ao lado de Júnior, Eder, Falcão e Zico. Era aparentemente tão
fácil! A bola parecia deslizar, sussurrar entre os seus pés, como se fosse possuída
por um espírito, excitada e orientada pela consciência transcendente da equipa
como um todo (isto parecia emanar da cabeleira hirsuta de Sócrates, o enorme
capitão de equipa, que se deslocava suave e serenamente pelo meio-campo, uma
cabeça ou duas acima dos restantes jogadores) libertando-se contudo aqui e ali
para fazer inspiradas corridas improvisadas. Os argentinos deram tudo por tudo
para se mostrar à altura desta magia brasileira, mas viram gorados os seus
esforços. Os golos foram marcados por Zico, Serginho e Júnior, mas foram tão
colectivos, que poderiam ter sido atribuídos ao guarda-redes. Já no final da partida,
Ramón Diaz ainda marcou um golo de consolação para a Argentina, mas isso não
impediu a espectacular festa brasileira de sair à rua e se espalhar pelo mundo. Na
verdade, no Brasil, até se exagerou um bocado: as comemorações nocturnas
causaram a morte a duas pessoas e deram origem a seis mil feridos.
A Itália e o Brasil iam então defrontar-se num jogo decisivo, tendo cada uma das
equipas vencido já a Argentina, embora o Brasil tivesse vantagem e só precisasse
de um empate para passar às meias-finais. Embora continuassem a ser os favoritos
da grande maioria das pessoas, os brasileiros já não tinham o estádio todo só para
si: ao longo de toda a semana, apoiantes italianos tinham atravessado a fronteira e
tinham descido a costa até chegar a esta distinta zona, aumentando a terrível
congestão, tentando provar, mais uma vez, que há sempre espaço para mais um
anjo na cabeça dum alfinete. Houve quem deixasse o emprego, outros fecharam as
portas do seu negócio, uns interromperam as suas férias em família: em Itália, nada
se mexia, diziam eles, e talvez por não haver quem o substituísse o executivo do
primeiro-ministro Giovanni Spadolini, ameaçado de colapso durante os desastrosos
empates das primeiras eliminatórias, parecia novamente estável devido às recentes
52
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Juju no Campo: Como a Costa do Marfim Usa Rituais para Vencer

  • 2. futebol muito mais que um jogo Textos retirados da edição electrónica da NATIONAL GEOGRAPHIC - Portugal de Junho de 2006, em http://www.nationalgeographic.pt/revista/0606/feature4/ Montagem, adaptação e traduções por Nuno Leão (2006)
  • 3. ÍNDICE Introdução por Sean Wilsey 4 Método de Vencer: Juju no Campo por Paul Laity 7 Glória Passada: Domesticar Hooligans por Nick Hornby 10 Bailado Com a Bola: Uma História de Amor por John Lanchester 13 Futebol, Lda.: Fanatismo Comercializado por Matthew Yeomans 15 Peça Moral: o Futebol como Teatro por Robert Coover 17 Costa do Marfim Inglaterra Brasil Costa Rica Espanha Golo Decisivo: Curar um País por Henning Mankell 20 Ode a Maradona: a Vingança das Malvinas por Thomas Jones 22 Terapia de Grupo: Nasce Uma Nação por Courtney Angela Brkic 24 Angola Argentina Croácia Doing a Wheelie fazendo uma bicicleta 27 Heads-up Move cabeças para cima 28 Exuberant Followers seguidores exuberantes 29 Heated Matchup fim de jogo quente 30 A Blizzard of Enthusiasm uma tempestade de entusiasmo 31 Mundial de 2002: Recapitulação, Resultados e Estatísticas Por Sean Wilseyl 33 Inglaterra por Nick Hornby 37 Espanha por Robert Coover 45 Adaptação de “The Thinking Fan's Guide to the World Cup” Photographies fotografias E o mundo pára como o futebol governa o globo
  • 4. mundo pára e o Como o futebol governa o globo Este mês, 32 selecções medem forças na Alemanha. Actualmente, o futebol tornou-se muito mais do que um jogo: é uma religião, um combate ideológico e uma afirmação política. Fotografia de Marco Anelli, Grazia Neri 3
  • 5. Introdução por Sean Wilsey (1) Os adeptos norte-americanos de futebol, como eu, têm muito em comum entre si. A comunidade em que fomos criados nunca teve por hábito sentar-se em frente do televisor, de quatro em quatro anos, para um mês de transmissões maciças e ininterruptas. O nosso país nunca venceu o Mundial. Podemos escolher a equipa de que mais gostamos e aplaudi-la, sem medo de perder nem de sofrer represálias. Nunca fomos doutrinados por concidadãos fanáticos, que pregam fidelidades tribais indesejadas, mas inevitáveis. Somos amadores, na mais pura acepção da palavra. Por isso, o Campeonato do Mundo que terá lugar na Alemanha durante o próximo mês, antecipa um mês inteiro passado no Paraíso. É verdade: o Mundial é o único acontecimento desportivo verdadeiramente internacional do planeta. Os Jogos Olímpicos, com as suas múltiplas disciplinas desportivas de vitrina para elites, não têm a mesma importância. É precisamente isso que farei até ao dia da final. Admito que gostaria de viver num mundo com o ambiente do Campeonato do Mundo. Aprecio especialmente as cerimónias protocolares e o elevados valores morais do futebol, a manifestação apolítica das características nacionais, a revelação de pontos fracos sensíveis e de pontos fortes inesperados dos jogadores e treinadores e o facto de haver países inteiros que abandonam o trabalho, ou se levantam às 3 horas da manhã, para ver homens pontapear uma bola. Alguns países possuem autênticas equipas multirraciais (como a França, a Inglaterra ou Portugal), enquanto outras equipas são totalmente louras, ou asiáticas, ou latino-americanas. Um vendedor de pneus eslovaco, um polícia italiano ou um solista de piano alemão (depois de aprovados nos testes oficiais de aptidão física) colaborarão na prova como árbitros. Ouvem-se fãs muito irritantes: “EUA! EUA! EUA!” São afortunadamente poucos. Vêem-se crianças dando a mão a cada jogador, no momento em que as equipas entram em campo. Tocam os hinos nacionais. Há homens que se pintam com as cores da bandeira nacional, chorando copiosamente perante a derrota. Um comentador desportivo grita: “GOOOOOOOLLLL! GOL, GOL, GOL!” no canal de televisão de expressão espanhola em que vejo o jogo. O jogo compõe-se de duas partes de 45 minutos sem interrupções para fins publicitários, com um pequeno 4
  • 6. intervalo pelo meio. Cito um livro que todos os atletas em viagem encontram no seu quarto de hotel: “Exultai e rejubilai: pois grande será a vossa recompensa nos céus.” Ou, como leio no meu exemplar de “O Futebol e as suas Regras”: “Está pronto? Pronto a levar os jogadores à vitória com os seus aplausos, a deslumbrar-se com a sua capacidade física, velocidade e técnica, a incitá-los a vencer cada disputa de bola, pronto a deixar-se arrebatar por um remate potente? Pronto a entusiasmar-se com a velocidade dos médios-ala, com as incursões dos defesas laterais, com os pontapés de canto batidos em arco, cheios de efeito, com os ataques habilmente conduzidos em passes ao primeiro toque e com os golos de grande classe? Pronto para outro momento num mundo de fantasia?” Eu estou pronto. A popularidade do futebol a nível mundial não causa surpresa, se atendermos aos dois factores que sempre motivaram a humanidade: dinheiro e Deus. Como é evidente, há muito dinheiro envolvido no futebol. O futebol de clubes (como o capitalismo) é, no essencial, semelhante ao desejo que uma criança sente em transformar os sonhos em realidade, concretizado por homens com dinheiro suficiente para reunir os esforços combinados do melhor avançado brasileiro, do melhor centro-campista holandês, do melhor defesa britânico e do melhor guarda- redes alemão e pô-los em campo contra as equipas montadas por outros tantos bilionários. A situação é injusta, mas representa bem o mundo em que vivemos. Todavia, o elemento divino também está presente. Afinal, o que é o futebol, senão tudo aquilo que uma religião deveria ser? Ao mesmo tempo universal e particular, fonte de esperança infinitamente renovável, por vezes miraculoso, e regido por regras simples e não controversas que toda a gente consegue perceber. As leis do futebol regem-se pela igualdade, pela não-violência e pela contenção, ficando a sua livre reinterpretação ao critério de um árbitro razoável. Tudo o que o juiz da partida decide é incontestável, mesmo que as suas decisões contrariem de maneira flagrante o dogma estabelecido. O meu regulamento oficial, depois de explicar pormenorizadamente as 17 leis do futebol, conclui afirmando que o árbitro pode pôr tudo de lado para impor o que misticamente define como “o espírito do fair-play”. A veia religiosa do futebol exprime-se de forma especialmente profunda em ano de Campeonato do Mundo. Equipas provenientes de todo o mundo afluem ao país anfitrião, numa espécie de cruzada atlética, sem armas. E, tal como nas Cruzadas, o país anfitrião tende a repelir os invasores. Existe um poder estranho na vantagem 5
  • 7. de ser a equipa da casa. Os anfitriões costumam alcançar um nível de sucesso desproporcional relativamente ao talento definido no papel, derrotando equipas mais fortes, como se exercessem uma força de gravidade sobre o jogo, obrigando a que este seja jogado segundo a sua vontade. Como se, para levar esta metáfora até à sua inevitável conclusão, Deus estivesse do seu lado. Sabe-se bem que o futebol, tal como a religião, pode provocar violência. Muitos americanos têm a ideia de que este jogo se compõe de vandalismo de hooligans e espezinhamentos em estádios sobrelotados. Mas o futebol também deu provas de ter capacidade para ultrapassar divergências e derrubar preconceitos nacionais. O facto de o Campeonato Mundial conseguir realizar-se ao mesmo tempo na Coreia do Sul e no Japão, como sucedeu em 2002, foi uma vitória da tolerância e do discernimento. Há meio século, a Coreia do Sul impedia a selecção nacional japonesa de atravessar as suas fronteiras para um jogo de qualificação para o Mundial: no espaço de tempo entretanto decorrido, essa atitude evoluiu de tal maneira que, por fim, o país acabou por co-organizar o torneio com o antigo ocupante. Daqui a mais 50 anos, é possível que assistamos a um Campeonato organizado conjuntamente por Israel e pela Palestina. Porque não? Afinal a universalidade do futebol deve-se à sua simplicidade, ao facto de o jogo pode ser praticado em qualquer lugar, com qualquer coisa. Na cidade, as crianças dão pontapés em latas ou em bocados de betão; no campo, os miúdos pontapeiam uma bola de trapos, jogando em terra, de pé descalço. O futebol, se bem que talvez desprovido de valores, dá às pessoas algo em que podem acreditar. Durante este mês, o futebol atingirá o auge da injustiça, da frustração e do esplendor no primeiro Mundial disputado na Alemanha unificada. O que torna o Campeonato do Mundo mais bonito somos nós: reunidos, todo o planeta em união. A alegria de pertencer a um grupo de cerca de mil milhões de pessoas que assistem ao espectáculo proporcionado por 32 selecções nacionais cumpridoras das 17 leis do jogo, enche-me de convicção de que o futebol consegue unir-nos a todos. (1) Sean Wisley é autor da autobiografia “Oh the Glory of It All” (sem tradução portuguesa) e editor independente da revista literária “McSweeny's Quarterly”. 6
  • 8. Método de vencer: Costa do Marfim Juju no Campo Texto de Paul Laity (2) A festa começou às cinco horas e cinquenta minutos da tarde. A Costa do Marfim acabara de se qualificar para o Campeonato do Mundo pela primeira vez. Num ápice, a cidade de Abidjan encheu-se de gente e de ruído. Vestidos com roupas cor de tangerina, branco e verde, os adeptos acorreram em massa às ruas, os condutores apitaram forte e feio nas buzinas, a música zouglou ouviu-se bem alto e a população entreteve-se alegremente a bater em tachos. Os convivas ensaiaram uma nova dança, a “Drogbacité”, cujo nome homenageia a estrela atacante da equipa, Didier Drogba: imitaram-lhe as simulações, as rotações e os imparáveis remates à baliza. Outros experimentaram a fouka-fouka, o conhecido meneio de ancas de Drogba quando celebra os golos, uma pequena jóia de cultura da Costa do Marfim conhecida pelos fãs em todo o mundo. Os maquis (cafés ao ar livre, bares e mini-discotecas) mantiveram-se abertos toda a noite, servindo “Drogbas”, garrafas de cerveja nacional, assim chamadas devido ao seu tamanho e potência. Numerosos foliões pintaram no peito “les éléphants”, alcunha da selecção nacional. Os elefantes simbolizam o poder, dizendo-se igualmente que têm sorte, por gozarem da protecção de um feitiço. Uma vez que a equipa sofrera um considerável número de desilusões, considerou-se que o nome parecia adequado. No seu entusiasmo, os adeptos anunciavam que o futebol podia fazer mais do que qualquer político para pôr fim à guerra civil. Nos últimos seis anos, o regime que governa a Costa do Marfim, baseado no Sul do país, tem fomentado o ódio aos imigrantes e aos muçulmanos; no entanto, muitos dos seus melhores jogadores de futebol pertencem a famílias muçulmanas e imigrantes e, por isso, a selecção nacional transformou-se num símbolo irresistível de unidade. No final do desfile pelas ruas de Abidjan, o presidente da Federação de Futebol da Costa do Marfim dirigiu um apelo ao presidente do país, Laurent Gbagbo: “Os jogadores disseram-me que aquilo que mais desejam é que o nosso país dividido volte a unir-se. Eles querem que esta vitória funcione como um catalisador pela paz na Costa do Marfim, terminando o conflito e reunificando o seu povo. Este sucesso deve unir-nos.” Nas ruas, a festa durou mais um dia inteiro. 7
  • 9. O presidente Gbagbo fez o melhor que pôde para se identificar com a equipa vencedora. Falou de uma nação rejuvenescida e ofereceu a cada um dos jogadores o equivalente a uma comenda, além de uma vivenda luxuosa. Porém, foi muito notada a ausência de Henri Michel, treinador francês da selecção nacional da Costa do Marfim, nas comemorações realizadas na residência do presidente Gbagbo. A sua presença seria, presume-se, uma lembrança indesejada do legado colonial. No entanto, os responsáveis governamentais que actualmente patrocinam os sentimentos anti-franceses na Costa do Marfim vêem-se a braços com uma grande dificuldade no que toca ao futebol. Com efeito, entre os jogadores de primeira linha da selecção nacional, muitos actuam em equipas francesas durante a temporada oficial e vários deles viveram em França grande parte das suas vidas: Drogba partiu da Costa do Marfim aos cinco anos de idade para casa de um tio e refere-se regularmente à sua infância, passada a assistir a jogos de futebol europeu na televisão. Gbagbo prefere ignorar a importância da França para o futebol da Costa do Marfim enquanto a selecção nacional continuar a vencer, mas apregoa alto e bom som o financiamento concedido pelo seu governo à equipa. No entanto, irá provavelmente manter-se distante de qualquer outra forma de assistência. Em 1992, a primeira vez em que a Costa do Marfim disputou a final da Taça das Nações Africanas, o ministro do Desporto recrutou um batalhão de fétisheurs (magos e bruxos juju) para dar à equipa nacional uma vantagem sobrenatural contra o Gana. Segundo reza a história, mais tarde, o ministro recusou-se a cumprir as promessas de pagamento feitas aos fétisheurs e estes lançaram um feitiço sobre a equipa, que sofreu uma década de maus resultados. Em Abril de 2002, o ministro da Defesa, Moise Lida Kouassi, contactou os bruxos com ofertas de indemnização, recompensando-os com garrafas de gin e grandes somas de dinheiro. O feitiço foi retirado e, de imediato, a selecção qualificou-se para a fase final do Campeonato do Mundo. Os especialistas em bruxaria realizam encantamentos no relvado ou pintam os postes da baliza com unções mágicas destinadas a manter a bola afastada. Em 1984, nada menos que 150 fétisheurs instalaram-se no mesmo hotel que a selecção costa-marfinenses antes de um jogo importante para a Taça das Nações Africanas: cada jogador tomou um banho em água tratada com diversas poções, antes de ser convidado a formular um desejo ao ouvido de um pombo. Outro clube de futebol foi levado a tribunal em 1998 porque, após um jogo decisivo para o campeonato, 8
  • 10. realizado em Bouake, os seus jogadores reconheceram ter ingerido uma beberagem preparada por um bruxo juju (o caso seria posteriormente arquivado). Consciente dos prejuízos de imagem causados pelas histórias da bruxaria juju, a autoridade dirigente responsável pelo futebol em África proibiu recentemente as selecções nacionais de integrarem “consultores da equipa” nas suas comitivas oficiais. No entanto, a superstição, de uma forma ou de outra, sempre desempenhou um papel importante no desporto e o fetichismo irá garantidamente subsistir no futebol da Costa do Marfim. Antes do crucial jogo de qualificação contra os Camarões para a fase final do Campeonato Mundial, realizado no passado mês de Setembro, os esgotos de Abidjan andaram permanentemente vermelhos com sangue de galinha. Sem juízos de valor num sentido ou noutro, esta é a África descrita pelo escritor V. S. Naipaul: um lugar de magia, igualmente visível nos muitos postos de controlo rodoviários existentes no Norte e Oeste do país, onde os soldados têm a convicção de que os amuletos enrolados em torno do seu pescoço impedirão as balas de lhes acertar. Também a guerra estimula a superstição. Toda a gente deseja que a equipa alcance bons resultados na Alemanha. Porém, a mistura entre futebol e política pode originar situações sinistras. Quando a equipa da Costa do Marfim foi derrotada pela segunda vez pelos Camarões, na fase de qualificação, e se julgou que tinha perdido todas as possibilidades, Drogba (cuja actuação durante o jogo fora brilhante, com dois golos marcados) recebeu ameaças e mensagens hostis dos fãs e sentiu-se suficientemente alarmado para pensar em abandonar a selecção nacional. Em 2000, o general Robert Guei, que acabara de liderar o primeiro golpe militar no país, manteve sob detenção durante dois dias a selecção nacional, como punição pela eliminação precoce na Taça das Nações Africanas. Privou os jogadores dos passaportes e telemóveis, denunciou-os em público e sugeriu que aprendessem alguma disciplina militar. “Deviam ter-nos poupado esta vergonha”, afirmou. Garantida que está a qualificação para o Campeonato Mundial, não existe qualquer vergonha. Pelo menos por agora. Por si só, o futebol nunca conseguirá gerar a reconciliação nacional. Mas o Verão de 2006 promete lembrar aos cidadãos da Costa do Marfim, embora fugazmente, que o país tem vida própria, fora da política. (2) Paul Laity é editor da “London Review of Books” e joga como defesa esquerdo em jogos amigáveis 9
  • 11. Glória passada: Inglaterra Domesticar Hooligans Texto de Nick Hornby (3) Era tudo tão simples, quando comecei a assistir a jogos de futebol na década de 1960. A Inglaterra acabara de conquistar o Campeonato Mundial de 1966 e, por isso, era sem contestação a melhor equipa do mundo: ponto final, parágrafo, fim da história. A partir de então, tudo passou a correr mal, aparentemente para sempre. Em primeiro lugar, cresci, tornei-me adulto e passei a perturbar-me muito mais com o significado de pertencer a um país. Entretanto, a selecção inglesa portava-se pessimamente. Talvez não tivesse sentido tanto conflito interior sobre o tema do patriotismo se os resultados da equipa fossem melhores. Em 1974 e 1978, a equipa nem sequer conseguiu qualificar-se para a fase final do Campeonato do Mundo, os jogadores de categoria mundial que nela tinham jogado durante a década de 1960 abandonaram o futebol e, com a década de 1980, toda a questão do patriotismo misturado com futebol se tornou muito mais complicada. De memória, os jogos da Inglaterra durante essa década quase só se podiam ver através de uma nuvem de gás lacrimogéneo, utilizado pelas polícias europeias para dispersar os tumultos dos nossos hooligans. Os adeptos ingleses transformaram-se rapidamente numa pandilha sinistra. Para quem assistia aos jogos da selecção inglesa em Wembley, era frequente ver espectadores executando a saudação nazi durante o hino nacional e insultando os jogadores negros, mesmo os que pertenciam à equipa nacional. Por vezes, parecia que o pior da ralé de fãs de todos os clubes do campeonato nacional se reunia em Wembley, só para fazer barulhos a imitar macacos e cantar hinos contra o IRA. Se víamos alguém caminhar na nossa direcção na rua, envergando uma camisola com a bandeira britânica, o melhor era atravessar para o outro lado. Essa camisola funcionava como uma alternativa gráfica a uma palavra de ordem do género: “Sou racista, odeio-vos a todos, seja qual for a cor da vossa pele.” Por isso, alguns adeptos do futebol começaram a sentir reservas face à sua selecção nacional. Em 1990, quando a selecção inglesa defrontou os Camarões nos quartos-de-final do Campeonato Mundial, havia muitas pessoas em Inglaterra (da burguesia liberal, é verdade, mas mesmo assim, pessoas) que desejavam a vitória 10
  • 12. dos Camarões. Assisti a esse jogo na companhia de algumas dessas pessoas e, quando a Inglaterra estava a perder por 2-1 (acabaria por vencer 3-2, durante o prolongamento), todos davam vivas. Eu percebia porquê, mas, para minha surpresa, não consegui acompanhá-los nos seus vivas. Aqueles facínoras bêbedos e racistas vestidos com a bandeira nacional… eram, afinal, a minha gente. E a Inglaterra era a minha equipa de futebol. Ou seja, não se pode fazer escolhas nesta matéria, não é verdade? O Campeonato do Mundo de 1990 acabou por ser um ponto de viragem. A equipa não deixou ninguém ficar mal. Nem os fãs. Após duas décadas de horror, a selecção nacional voltou a granjear o calor dos afectos nacionais. Esse renascer foi sol de pouca dura. Após a desastrosa decisão de nomear Graham Taylor como treinador principal, a selecção nacional voltou a falhar a qualificação. Em 1998, o futebol tornara-se um jogo diferente. Muitos jogadores da primeira divisão do campeonato inglês já não eram oriundos das ilhas britânicas. A globalização do mercado de transferências começou a retirar ao futebol internacional de selecções grande parte do seu sentido. Noutros tempos, uma pessoa olhava para os melhores jogadores dos clubes e pensava: “O que aconteceria se jogassem juntos?” A resposta assemelhava-se à selecção nacional. Hoje, equipas como o Chelsea, o Manchester United, o Real Madrid, a Juventus, o AC Milan e o Barcelona substituíram as selecções nacionais como equipas de sonho no futebol. Em 1989, a Inglaterra empatou a zero contra a Suécia, resultado que ajudou a assegurar a qualificação para a fase final do Campeonato do Mundo de 1990. Desse jogo, ficou a imagem duradoura do capitão inglês, Terry Butcher, de ligadura à volta da cabeça, com a camisola da selecção inglesa coberta do sangue que lhe escorrera de uma ferida na cabeça sofrida ao longo da partida. “Fora do relvado, sempre fui um tipo vulgar, de modos suaves”, afirmou Butcher, em entrevista. “Mas quando me vestiam o equipamento de futebol, era como se fosse um capacete de aço e uma baioneta. Morte ou glória.” Era assim a Velha Inglaterra: imaginário guerreiro, empate zero-a-zero crucial contra uma equipa modesta, inevitável substituição do estilo e do talento por sangue e trabalhos forçados. As pessoas que abominam David Beckham, actual capitão da selecção inglesa, afirmariam que ele só usará um capacete de aço e ligaduras no dia em que o capacete e as ligaduras se tornarem indumentária obrigatória nalguma discoteca europeia absurdamente na moda. Isso é uma injustiça porque, apesar da sua boa aparência e do dinheiro que tem, ele trabalha arduamente para compensar 11
  • 13. os atributos que lhe faltam como jogador. No entanto, não há dúvida de que ele é o exemplo perfeito de um novo tipo de desportista inglês: profissional, consciente da importância dos meios de comunicação, ocasionalmente petulante e muito, muito rico. Os adeptos ingleses que presenciaram o jogo amigável de 2005 contra a Argentina (finalizando com uma insignificante, mas apelativa, vitória por 1-0 no último minuto) ainda cantavam o seu hino “No Surrender to the IRA” (“Nenhuma Cedência ao IRA”). É bem possível que preferissem ver jogar Terry Butcher e as suas baionetas em riste do que David Beckham, um homem que, vistas bem as coisas, até já foi fotografado vestido uma sarong. A Inglaterra é mesmo assim: se pudéssemos, ainda andaríamos a bombardear os alemães; no entanto, passados 60 anos, vai-se erguendo uma leve suspeita de que esses tempos não voltarão tão cedo e que, entretanto, precisamos de contar com rapazinhos bonitos vestidos de sarong para dar uma sova aos argentinos. Não gostamos, mas o que havemos de fazer? (3) O autor escreveu também os livros “Febre no Estádio”, uma autobiografia de uma vida inteira como apoiante do Arsenal, “Um Grande Salto”, “Era Uma Vez um Rapaz” e “Alta Fidelidade”. 12
  • 14. Bailado Com a Bola: Brasil Uma História de Amor Texto de John Lanchester (4) Será que nos apaixonamos pelo futebol? O que acontece? Cá dentro, bem fundo, o futebol arrebata-nos porque tem beleza e dificuldade. Dois jogadores de uma equipa trocando a bola entre si, passando-a para um espaço vazio que, de repente, é preenchido por um jogador que ali não estava há dois segundos, correndo a toda a velocidade. Sem olhar para o espaço vazio e sem perder tempo, este jogador passa a bola a um terceiro que seguramente não pode ter visto. Este, por sua vez, também em velocidade e sem diminuir o ritmo, centra a bola, digamos que a 100km/h, para esta aterrar na cabeça de um quarto jogador que, depois de correr quase 70 metros até ao sítio certo salta e cabeceia a bola (gesto de dificuldade que nem todos conseguem perceber) com uma força e uma precisão inacreditáveis, exactamente para um canto da baliza onde o guarda-redes previra que ela fosse parar, executando um complexo movimento totalmente desprovido de raciocínio consciente, apenas baseado no reflexo músculo-memória, de tal maneira que toda esta graciosidade, velocidade, músculo, capacidade atlética, atenção ao pormenor, força e precisão nunca aparecerão numa folha de estatísticas e serão esquecidas por toda a gente no dia seguinte. Eis a estranha fragilidade do futebol, o seu carácter efémero. É difícil de descrever e ainda mais difícil de executar, mas possui uma beleza profunda, uma beleza sobre a qual sentimos dificuldade em falar e que cada espectador do jogo descobre por si próprio. Eis a razão pela qual o futebol, apesar de tanta coisa feia que o rodeia e a ele está ligada, continua a apaixonar-nos: porque é, porque pode ser, extremamente belo. Nenhum país se esforça tanto por jogar futebol com beleza como o Brasil. É uma marca ideológica. Por isso, os jogadores brasileiros são tão amados. Não apenas na América do Sul claro! onde o Brasil tem o estatuto de superpotência desportiva regional, mas praticamente em todos os outros cantos do mundo. Com efeito, a equipa de futebol do Brasil goza no mundo do desporto do privilégio único de ser um super-vencedor adorado. Em geral, os fãs do desporto detestam os grandes vencedores. Mas o Brasil, única selecção nacional a ter vencido cinco edições do Campeonato do Mundo, e única a ter conquistado o título fora do seu 13
  • 15. continente, é amada. Por esse motivo, muitos fãs têm, a nível de selecções nacionais, duas equipas preferidas: a sua e o Brasil. É o único favorito que é favorito. (4) John Lanchester é um romancista cuja carreira começou como comentador de jogos de futebol. A sua autobiografia “Family Romance” será publicada em 2007 14
  • 16. Futebol, Lda.: Costa Rica Fanatismo Comercializado Texto de Matthew Yeomans (5) Valerá a pena transformar o futebol num grande negócio, se os adeptos continuam a tratar o desporto como outro jogo qualquer? Assistir ao futebol praticado na Costa Rica sempre foi um passatempo descontraído, comparado com a loucura associada aos jogos de futebol na Argentina, no México ou no Brasil. Em primeiro lugar, o jogo praticava-se em estádios rudimentares, em nada parecidos com os intimidativos caldeirões de Milão, de Madrid ou de Buenos Aires. E os fãs, embora de vez em quando fossem contaminados pelo fanatismo cego e omnipresente dos hinchas mais duros, não viam necessidade de se deixarem arrebatar com regularidade. Talvez fosse devido ao espírito descontraído da selecção tica, ou o resultado de meio século de fracos resultados. No entanto, num continente onde dois dos vizinhos da Costa Rica (as Honduras e El Salvador) chegaram mesmo a entrar em guerra por causa de um jogo de futebol, os adeptos da Costa Rica aparentavam uma certa falta de convicção na sua atitude. Por isso, em 1995, o clube de futebol Saprissa decidiu galvanizar a sua base de fãs. Naquilo que certamente é o primeiro exemplo de recrutamento, por um clube, de consultores hooligans, Saprissa contratou como colaboradores adeptos fervorosos do clube chileno Universidade Católica, de forma a desenvolver uma cultura local de fanáticos. Surgiu assim La Ultra, uma claque que pretendia imitar o empenho encarniçado dos barras bravas ou hooligans, mais bem organizados: compuseram-se hinos, os membros de La Ultra começaram a amontoar-se juntos, vestidos de púrpura, e as bombas de fumo passaram a aparecer nos topos dos estádios. Seguiu-se pouco depois o clube Alajuelense, que lançou a sua própria claque de adeptos de linha dura, conhecida como La Doce (o 12.º jogador). Este investimento no fanatismo dos adeptos deu resultados rápidos e espectaculares. A cultura de bando associada às claques La Ultra e La Doce enraizou-se depressa, alimentada por uma crescente percepção, por parte dos ticos pobres, de que a economia nacional, em expansão, os deixava ficar para trás. Com isto, surgiu um aumento visível da violência dos fãs durante os jogos de futebol. Ocorreu pelo menos uma morte num estádio. A tradicional animosidade do habitual 15
  • 17. clássico entre o Saprissa e o Alajuelense assumiu novos matizes de competitividade e crueldade. A violência dos adeptos transformou-se num problema tão grave que o Saprissa e o Alajuelense tomaram medidas para controlar as claques La Ultra e La Doce. Actualmente, o crime puro e simples acalmou, mas a fúria dos fãs permanece como atmosfera subjacente. (5) Matthew Yeomans é jornalista na cidade galesa de Cardiff e fez a cobertura dos três últimos Campeonatos do Mundo. 16
  • 18. Peça Moral: Espanha O Futebol como Teatro Texto de Robert Coover (6) Espanha, Verão de 1982. A nuvem de poluição que paira sobre Barcelona assemelha-se à tampa de uma panela de pressão, ardendo sob a luz do sol: cá em cima, na bancada superior do pequeno estádio de futebol de Sarriá, onde o Brasil, a Itália e a Argentina se defrontam num grupo de qualificação do Campeonato Mundial, onde só se apura a equipa em primeiro lugar, os organizadores parecem ter vendido trinta bilhetes por metro quadrado de espaço disponível. Temos de chegar lá uma hora e meia antes, só para conseguirmos caber de pé. Nem pensar em lugares sentados, nem pensar em comprar bebidas: quando o jogo começa, já é difícil respirar. O meu filho, adolescente, passa todo o tempo da partida pendurado num corrimão de escada, sobre uma porta de saída. Dia após dia, dizemos um ao outro: se o jogo não for totalmente sensacional, vamos para um bar e vemos pela televisão, isto é de loucos. Dia após dia, ficamos sempre. Já aqui viemos, os dois. Da outra vez, em 1977, dois anos após a morte do ditador Franco, chovia, estava escuro e o tempo tornava-se frio. Dessa vez, também ficámos, encolhidos sob o guarda-chuva, nas alturas do telhado, à luz dos holofotes, debaixo de ventos ululantes e de torrentes de chuva, sentados nos únicos lugares que arranjámos e satisfeitos por tê-los encontrado. Nessa noite, assistíamos a uma partida de final de Outono do campeonato espanhol entre os dois arqui-rivais da cidade, o FC Barcelona e o Real Club Deportivo Español. O jogo é semelhante a uma reconstituição da guerra civil espanhola. Por vezes, parece que existem apenas dois jogos universais: a guerra e o futebol. A guerra aproxima-se talvez mais do reino da fantasia e o futebol do domínio da realidade, mas ambos partilham esta natureza omnipresente e central, como se tivessem origem em alguma fonte libidinosa colectiva, primária e intuitiva. Talvez sejam simples variações do mesmo jogo, ritualizações concebidas na era industrial contemporânea. Ainda hoje, continua a haver frequentes interpenetrações entre a guerra e o futebol. Os responsáveis do futebol “declaram guerra”, os generais aplicam as tácticas e terminologia futebolísticas, a violência guerreira invade o campo de 17
  • 19. futebol, alastra às bancadas e, depois, às próprias comunidades, os soldados apresentam-se no campo de batalha vestidos com as cores do seu clube e as claques de adeptos são conhecidas como “exércitos”. Muitas têm sido as formulações propostas para explicar a intensidade e mistério da força do futebol, o fascínio hipnotizante que caracteriza as grandes partidas e o domínio exercido a nível mundial sobre todos os outros desportos. Existe a teatralidade intrínseca do jogo (não o espectáculo comercial dos intervalos dos desportos americanos), mas os dramas interiores de pecado e redenção, a virtude posta à prova, a procura de padrão de jogo e coesão, a colisão entre forças paradoxais. O futebol tem sido frequentemente comparado com a tragédia grega, ou visto como uma peça com fins morais nunca terminada. Talvez a dificuldade em marcar golos (e, por isso, a habitual estreita margem de diferença nas vitórias, mesmo entre equipas com capacidade técnica acentuadamente desigual) intensifique esta sensação de teatralidade, fazendo com que o desenlace (ou a catarse colectiva) se veja adiado quase sempre até ao apito final. Até soar esse apito, também ninguém sente alívio da tirania exercida pela passagem inexorável do tempo: quem se deixa entrar no jogo, não tem meio de sair. O jogador precisa de aguentar esse fluir do tempo, manter o ritmo, fazer pressão para conquistar vantagem e preservar toda a sua técnica, com a mente centrada exclusivamente na mudança do padrão de jogo; e o espectador, embora defrontando-se com tarefas menos árduas, partilha essa experiência. No final, uma pessoa não fica com dados, apenas com imagens impressionistas de corpos em movimento. Nada de importante sobre o jogo pode ser objecto de registo estatístico, excepto os pontapés de canto, os remates, os golos e as defesas (o esforço americano para contabilizar as assistências para golo é admirável, mas é um pouco inútil). Estes dados quase nada nos dizem sobre o jogo em si. O jogador que acaba por dar a vitória pode ser aquele que se move do lado oposto do campo, atraindo sobre si a atenção de um defesa, obrigando a uma nova configuração do sector defensivo e tornando praticamente inevitável um golo antes impossível, embora possa acontecer que ninguém tenha consciência disso. Tudo é narrativo, logo subjectivo: cada jogo é uma história, uma sequência de metáforas ambivalentes, uma revelação pessoal que se esconde sob a linguagem impenetrável do futebol. Do que conheço, nenhum jogo depende tanto de conceitos intangíveis e constantemente mutáveis como “padrão”, “ritmo”, “visão” e “leitura”. Possivelmente tudo ilusões. E, contudo, ao mesmo tempo é um jogo muito simples: 18
  • 20. tal como os sonhos, é quase infantil. (6) O romancista e ensaísta deixou-se obcecar pela primeira vez pelo futebol quando vivia em Espanha. A partir daí, acompanhou o jogo, num percurso por várias décadas e continentes. Tem vários livros publicados em português, entre os quais “Rosa Brava” e “O Que Aconteceu a Gloomy Gus”. 19
  • 21. Golo Decisivo: Angola Curar um País Texto de Henning Mankell (7) Na primeira vez que visitei Angola, nem me apercebi de que entrara no país. Estávamos em 1987 e eu vivia no Noroeste da Zâmbia, perto da fronteira angolana. Estreitas estradas de areia serpenteavam pelo mato sem fim. Era fácil uma pessoa perder-se enquanto conduzia e, quando viajava até uma aldeia distante, desorientava-me com frequência. Quando parava para pedir ajuda, se a pessoa me respondia em português, eu precisava urgentemente de voltar para trás, atravessando rapidamente para o lado sossegado da fronteira invisível. Profundamente ferida por um longo período colonial, Angola viu-se sufocada, depois da independência, por uma violenta guerra civil. Os guerreiros do líder rebelde Jonas Savimbi, tristemente célebres pelos actos de violência indiscriminada que cometiam, andavam por todo o lado. Uma geração inteira de angolanos nunca soube o que era viver num país onde reinasse a paz. Contudo, havia algo mágico naquela terra do outro lado da fronteira invisível: o futebol estava presente em toda a parte. Em campos de cascalho e em praias arenosas, sobre os passeios e nas praças das cidades, viam-se hordas de jovens a jogar à bola. Bolas feitas com os materiais mais inimagináveis uma t-shirt velha, uma rede de pesca ou uma carteira de mulher, recheadas de papel e capim. Apesar disso, as bolas não deixavam de rolar e de saltar, servindo na mesma para cabecear e para marcar golos. A guerra nunca foi capaz de matar o futebol em Angola. Os campos de futebol foram declarados zonas desmilitarizadas e os encontros entre equipas serviam como defesa contra os horrores que grassavam por todo o lado. Depois de se defrontarem num jogo de futebol, as pessoas têm maior dificuldade em matar-se umas às outras. Angola tem assistido ao êxodo de muitos dos seus futebolistas, que saem do país para ganhar a vida noutros países, sobretudo em Portugal, embora muitos não renunciem à nacionalidadee angolana. E quando os convocam para envergar os calções negros e as camisolas e meias vermelhas (as cores da selecção nacional) nem hesitam. Chamam-lhes carinhosamente “Palancas Negras”. No dia 8 de Outubro de 2005, Angola entra em campo no Estádio de Amahoro, 20
  • 22. em Kigali. Nesse momento, vive-se uma situação espantosa: se Angola vencer o Ruanda por um só golo que seja, qualificar-se-á para a fase final do Campeonato do Mundo, à frente da Nigéria, independentemente do resultado do jogo entre a Nigéria e o Zimbabué. É uma espera de pesadelo para todos os angolanos, que aguardam, sentados, de orelhas pregadas nos rádios. Luanda imobiliza-se. Em Huambo, Lubango, Namibe, Lobito, Benguela, Malanje, em todas as cidades e aldeias, toda a gente se reúne à volta de um rádio. É bem possível que, no meio da savana, as próprias palancas estejam de ouvidos atentos. No final da primeira parte, mantém-se o empate a zero. Entretanto, a Nigéria caminha para a vitória contra o Zimbabué. Em Kigali, porém, o jogo prossegue sem golos. Parece que tudo vai terminar mal para Angola. Imagina-se o que os jogadores e treinadores terão dito uns aos outros durante o intervalo. O nervosismo instala-se entre os jogadores. O Ruanda, para quem só a honra está em jogo, quase marca golo em várias oportunidades. Toda a gente concorda que Angola está a praticar um péssimo futebol. É uma equipa à beira do esgotamento. Os jogadores falham passes e desentendem-se. Faltam dez minutos para o fim. No seu desespero, os angolanos quase perderam a consciência. De súbito, o suplente Zé Kalanga, entrado há minutos, faz um centro tenso, tão surpreendente como brilhante. Fabrice “Akwa” Maieco está no lugar certo e, com a cabeça, marca na perfeição o único golo da partida, depois de a bola ressaltar no chão e ultrapassar o guardião ruandês, anichando-se nas malhas da baliza. Seria preciso uma pessoa viver muitos anos em África para compreender o significado desta vitória. Como é evidente, neste momento ninguém acredita que Angola vá muito longe no torneio. Mas o futebol é, por natureza, imprevisível. Se periodicamente os vencidos antecipadamente não derrotassem os vencedores previsíveis, o futebol perderia interesse. No entanto, já se conquistou uma grande vitória, mesmo que ela não tenha dado acesso a qualquer taça resplandecente. Acima de tudo, este triunfo está nos corações e nos espíritos de todos os angolanos. A qualificação para a fase final do Campeonato do Mundo de futebol representa muito para a autoconfiança de um país devastado pela guerra e pelas privações. Um país que, depois de ser castigado durante tanto tempo, irá de novo ser construído. (7) Henning Mankell é autor de cerca de 40 romances, entre os quais os romances policiais protagonizados pelo inspector Kurt Wallander. Divide o seu tempo entre a Suécia e Moçambique, país onde dirige o Teatro Avenida. 21
  • 23. Ode a Maradona: Argentina A Vingança das Malvinas Texto de Thomas Jones (8) O melhor elogio que alguém podia receber durante os meus tempos de adolescência na Inglaterra da década de 1980, era escutar que tínhamos “técnica”. E ninguém tinha mais técnica do que Diego Armando Maradona. O seu nome era invocado como a forma suprema de elogio, no campo de futebol e fora dele. Tornou- se adjectivo em Inglaterra: significava excelência em qualquer campo. Levei muito tempo a perceber que a palavra correspondia ao nome de uma pessoa. Um dia, porém, vi-o marcar um golo contra a Itália no Campeonato do Mundo de 1986, elevando-se bem alto no ar, fora do perímetro da pequena área, e empurrando com destreza a bola sobre a perna direita estendida do capitão italiano, ultrapassando os braços estendidos do guarda-redes, fazendo-a entrar na baliza pelo canto inferior direito. Tornou-se então evidente, mesmo para mim, que Maradona não era apenas um tecnicista. Ele era a personificação da técnica. O golo seguinte de Maradona foi marcado a 22 de Junho, no dia em que a Argentina defrontou a Inglaterra. Quatro anos antes, os dois países tinham-se igualmente defrontado não num campo de futebol, mas na Guerra das Malvinas, comparada pelo escritor argentino Jorge Luis Borges “a uma luta entre dois carecas pela posse de um pente”. Quando a Grã-Bretanha conseguiu reconquistar as ilhas à Argentina, mais de 900 homens (na sua maioria argentinos) tinham perdido a vida. Com esta vitória, a popularidade de Margaret Thatcher na Grã-Bretanha disparou em flecha e a derrota contribuiu para a queda da junta militar direitista que governava a Argentina desde 1976. Passados quatro anos, as Malvinas já pertenciam ao passado, ou, pelo menos, ambas as equipas o afirmaram insistentemente antes do jogo. Maradona marcou os dois golos da vitória da Argentina sobre a Inglaterra, por 2-1. O segundo, resultante de 11 segundos de técnica sobre-humana, foi eleito em 2002 como “Golo do Século XX”. Ao ver Maradona executar um delicado arabesco, deixando a perna direita elegantemente esticada à retaguarda, não me teria espantado se ele se elevasse no ar e começasse a voar. Parecia movimentar-se num quadro temporal diferente do dos jogadores ingleses, que só apareceram para pará-lo quando ele já tinha 22
  • 24. passado por eles. Para minha surpresa, nenhuma das pessoas minhas conhecidas quis falar sobre aquele extraordinário segundo golo. Só queriam comentar o primeiro, por si marcado, quatro minutos antes, com a mão. Pessoas que antes eram admiradoras fanáticas de Maradona espumavam de fúria, como se ele tivesse praticado uma traição pessoal. De um dia para o outro, o seu nome passou a ser um insulto, um sinónimo de batota. Fiquei perplexo. O incidente a partir de então conhecido como “Mão de Deus” não me pareceu assim tão grave. Por um lado, acho impressionante que Maradona, com 1,65m de altura, fosse capaz de bater o guarda-redes, com quase mais 30cm, e conquistar-lhe a bola. E o árbitro e o fiscal-de-linha não foram os mais culpados, por não verem a falta e validarem o golo? Sempre suspeitei que a censura moralista feita à Mão de Deus foi a forma encontrada para disfarçar a desilusão e frustração sentidas com a derrota da Inglaterra. E que o comportamento que os adeptos ingleses nunca conseguirão perdoar Maradona não foi a batota, mas o facto de ele ter passado pelo meio de cinco jogadores da Inglaterra, como se fossem estáticos postes de madeira, para concretizar o melhor golo alguma vez marcado e afastar a Inglaterra do Campeonato Mundial. (8) Thomas Jones é editor e redactor na “London Review of Books”. 23
  • 25. Terapia de Grupo: Croácia Nasce uma Nação Texto de Courtney Angela Brkic (9) Há bem pouco tempo, quando a Croácia fazia parte da Jugoslávia, o futebol era uma expressão de pertença étnica, de orientação política e de identidade. Na opinião de muitas pessoas, o encontro de futebol realizado em 1990 entre o Dínamo de Zagreb e o Estrela Vermelha de Belgrado assinalou o início dos combates pela independência da Croácia. No princípio do jogo, adeptos dos dois clubes entraram em confronto nas bancadas e no relvado. A polícia, dominada pelos sérvios, espancou os fãs croatas, ao mesmo tempo que deixava mão livre aos adeptos sérvios. Os acontecimentos levaram a que as frustrações previamente existentes na Jugoslávia entrassem em ebulição. Nem sequer os jogadores escaparam à vaga. Ao ver um polícia espancar um adepto do Dínamo tombado no chão, o centro-campista Zvonimir Boban deu-lhe um pontapé de karaté, transformando-se num herói do movimento independentista então em fase de crescimento. A guerra que se seguiu foi demorada e brutal. Mais de dez milhares de pessoas foram mortas e mil ainda permanecem desaparecidas. Sem surpresa, os turistas deixaram de visitar a costa da Croácia e a região foi associada ao sofrimento. Para um país com um potencial tão rico, tão entusiástico acerca do que poderia concretizar agora que era independente, ver-se simplesmente classificado como zona de guerra foi um rude golpe. A independência da Croácia foi reconhecida em 1992, mas o Campeonato do Mundo de 1998 trouxe outra forma de reconhecimento. A euforia já começara a apossar-se do país quando a Croácia derrotou a máquina alemã nos quartos-de- final. “Será possível?”, pareciam as pessoas perguntar umas às outras, incapazes de refrear o optimismo. Em Zagreb, foram instalados ecrãs gigantes nas praças da cidade para os cidadãos poderem assistir, em grupos ruidosos, ao jogo de disputa do terceiro lugar, entre a Croácia e a Holanda. Era sábado e eu resolvi assistir ao jogo no meu apartamento, com amigos, deslizando até à varanda para ouvir as conversas e gritos entusiasmados que se elevavam no ar, vindos dos cafés lá em baixo. O som de aplausos inundou o ar quando a Croácia marcou. Foi como se a cidade se transformasse numa gigantesca sala de estar, com toda a gente de olhos 24
  • 26. postos num único ecrã. O trânsito por pouco não parou e a rua, lá em baixo, esvaziou-se. Depois de terminar o jogo, com a vitória da Croácia, as ruas encheram- se de gente, que se apinhou na praça principal. Pela noite fora, ouviu-se sem parar o canto de vozes felizes e embriagadas. Volvidos quase três anos após o final da guerra, a vitória foi um momento de emoção na história do jovem país. Na televisão, os repórteres entrevistavam homens adultos que não conseguiam parar de chorar. O país nunca assistira a uma tal comemoração unificada, desde a declaração de independência. Agora, já ninguém poderia negar à Croácia o seu lugar no mapa. (9) Courtney Angela Brkic é autora dos livros “Stillness: And Other Stories” e “The Stone Fields: An Epitaph for the Living” (sem tradução portuguesa). 25
  • 28. Brazilian midfielder Ronaldinho executes a bicycle kick to knock the ball back over his head in a 2002 World Cup match against Belgium in Kobe, Japan. Twice voted the world's best player by soccer's international governing body, FIFA, Ronaldinho used the maneuver popularized by other Brazilian soccer stars. Brazil leads all nations with five World Cup championships. It will shoot for number six this month in Germany at the 18th World Cup tournament which, except during the World War II era, has been held every four years since 1930. O médio brasileiro Ronaldinho executa um pontapé de bicicleta para chutar a bola sobre a sua cabeça no jogo contra a Bélgica em Kobe, Japão, no Mundial de 2002. Duas vezes eleito o Melhor jogador do Mundo pela FIFA, Ronaldinho utiliza a manobra celebrizada por outras vedetas brasileiras. O Brasil é a nação que mais galardoada, com cinco Mundiais. Irá atrás do seu sexto título na Alemanha, no 18º Campeonato do Mundo, que tirando o período da 2ª Guerra Mundial, se realiza de quatro em quatro anos desde 1930 (NL) Doing a Wheelie fazendo uma bicicleta Photograph by Domenico Stinellis, Associated Press Fotografia de 27
  • 29. In an impoverished neighborhood outside Lusaka, Zambia, boys fashioned a ball by weaving together strips cut from plastic bags. Photographer Gideon Mendel spotted the group in 1993 shortly after a plane crash took the lives of 18 members of the national soccer team, a crippling blow against Zambia's hopes of qualifying for the 1994 World Cup. After the disaster, "children everywhere played with more discipline and control," Mendel recalls. "They imitated the hops and skips of the national team's training dance." A new national team carried on but failed to advance, falling to Morocco by just one goal. Num improvisado bairro nos arredores de Lusaka, Zambia, rapazes criaram uma bola juntando pedaços de sacos de plástico. O fotográfo Gideon Mendel fotografou o grupo em 1993, pouco depois de um acidente de avião roubar a vida a 18 membros da selecção Zambiana de futebol, resultando num duro revés nas esperanças de qualificação para o Mundial de 1994. Depois do desastre, “crianças em todo o lado jogavam com mais disciplina e controle,” relembra Mendel. “Elas imitavam os pulos e saltos da dança de treino da seleção nacional.” Uma nova selecção emergiu mas falhou a qualificação ficando atrás de Marrocos por apenas um golo. (NL) Heads-up Move cabeças para cima Photograph by Gideon Mendel, Corbis Fotografia de 28
  • 30. Try as they might, die-hard Jamaica fans couldn't rally their team to victory in the 1998 World Cup in Paris. Argentina dominated 5-0, but later lost to the Netherlands. In Jamaica and other developing countries, soccer offers poor but talented youths a chance to avoid living out their lives in shantytowns. Europe has the greatest allure: Top teams there pay salaries of one million dollars a year and more. With commercial endorsements, superstars can vault into the stratosphere of eight-figure incomes. Tentaram como puderam, os adeptos jamaicanos não conseguiram levar a sua equipa até à vitória no Mundial de 1998 em Paris. A Argentina dominou por 5-0, mas mais tarde perdeu contra a Holanda. Na Jamaica e em outros países em vias de desenvolvimento, o futebol oferece aos pobres mas talentosos jovens uma oportunidade de evitarem viverem as suas vidas nos bairros de lata. A Europa é a grande atração: os clubes de topo pagam salários de um milhão de dólares por ano ou mais. (NL) Exuberant Followers seguidores exuberantes Photograph by Bruno Barbey, Magnum Photos Fotografia de 29
  • 31. Argentine police squared off against a crowd outside a Buenos Aires stadium, where fighting had broken out in the stands. The March 2002 match between Charcarita and Boca Juniors was halted twice because of violence before ending in a 1-1 tie. Repeated incidents between the teams ultimately led to a two-week suspension of play in the city, a sad development for soccer- mad Argentinines. They aren't alone in their passion. A 2000 study estimated that more than 120 million players fill the rosters of 300,000 soccer clubs worldwide. With school teams and pickup games added in, soccer reigns as the world's most popular and widely played team sport. A polícia argentina investe contra uma multidão no exterior de um estádio de Buenos Aires, aonde os confrontos passaram dos limites. Em Março de 2002, o jogo entre Charcarita e o Boca Juniors foi interrompido duas vezes devido à violencia, antes de acabar empatado 1-1. Repetidos incidentes entre as equipas conduziram a duas semanas de interdição de realizar jogos na cidade, um triste desfecho para estes argentinos loucos por futebol. Eles não estão sozinhos nesta paixão. Um estudo realizado em 2000 estimou que mais de 120 milhões de jogadores preencham os planteis de 300 mil equipas em todo o mundo. Somando as equipas escolares e as partidas de rua, o futebol domina como o desporto mais popular e mais praticado em todo o mundo. (NL) Heated Matchup fim de jogo quente Photograph by Ferdinando Scianna, Magnum Photos Fotografia de 30
  • 32. In Argentina, fans of Quilmes Athletic Club, the home team, unleash a storm of confetti before Quilmes beat Almirante Brown 1-0 in a 1991 match near Buenos Aires. Soccer spawns deeply rooted rivalries and fan violence. But the action in the stands isn't always destructive and the love of the game can often unite opposing fans. When Brazil beat the Netherlands in a 1994 World Cup quarterfinal match, "dejected Dutch fans sat down on a street curb," recalls one spectator. "Brazilian fans literally lifted them up. They all ended up trading caps and scarves." Na Argentina, adeptos do Quilmes Athletic Club, a equipa da casa, provocam uma tempestade de confetes, antes do Quilmes derrotar o Almirante Brown por 1-0, em 1991 nos arredores de Buenos Aires. O Futebol desperta as rivalidades mais profundas e os adeptos mais exaltados. Mas a acção nas bancadas não resulta sempre em destruição e o amor pelo jogo consegue mesmo unir fãs rivais. Quando o Brasil venceu a Holanda nos quartos-de-final do Mundial de 1994 (E.U.A.), “Os adeptos holandeses sentaram-se desalentados na berma da rua”, recorda um espectador. “Os adeptos brasileiros literalmente levantara-mos do chão. Acabaram todos a trocar cachecóis e bonés.” (NL) A Blizzard of Enthusiasm uma tempestade de entusiasmo Photograph by Ricardo Alfieri Fotografia de 31
  • 33. Adaptação de “The Thinking Fan's Guide to the World Cup”, de Matt Weiland e Sean Wilsey (editores). Harper Collins, 2006. Publicado com autorização. 32 guide to the World Cup” Adaptação e excertos “The thinking fan’s
  • 34. Mundial de 2002: Recapitulação, Resultados e Estatísticas por Sean Wilsey O Mundial de 2002 foi inédito, mas decorreu de forma previsível. Pela primeira vez realizada na Ásia, a competição teve dois co-anfitriões tradicionalmente inimigos, a Coreia do Sul e o Japão. Os dois organizaram apresentaram uma proposta conjunta e, depois, já com a organização assegurada, tentaram suplantar- se mutuamente, primeiro na construção de estádios e depois na própria competição. A França, vencedora do Mundial de 1998 e do Europeu de 2000, perdeu o jogo inaugural por 1-0 com a sua antiga colónia e estreante na Taça do Mundo, o Senegal. Não conseguiu marcar um golo em nenhum dos dois jogos seguintes e foi para casa depois da fase de grupos. O seu desempenho foi tão pobre que ninguém se queixou quando a FIFA aboliu a já antiga tradição de qualificação automática do campeão do Mundo para a edição seguinte da prova. Outra surpresa da primeira fase foi a eliminação de Portugal. A equipa de Figo perdeu por 3-2 com os Estados Unidos e, apesar de toda a excitação que rodeou a equipa de estrelas, os jovens norte-americanos Brian McBride e Landon Donovan foram uma ameaça mais real. Os Estados Unidos seguiram em frente, empatando com a Coreia do Sul e vencendo o México, seu rival. A Alemanha esmagou a Arábia Saudita por 8-0 na fase de grupos e defrontou os Estados Unidos nos quartos-de- O defesa brasileiro Roque Júnior disputa a bola com o avançado alemão Miroslav Klose, na final do Mundial de 2002, disputada em Yokohoma (Japão). O Brasil venceu a Alemanha por 2-0. Fotografia de Tim De Waele, Corbis 33
  • 35. final. As artimanhas psicológicas do guarda-redes alemão, Oliver Kahn, negaram a Donovan um golo seguro, e os Estados Unidos, apesar de terem dominado o jogo, foram excluídos. Franz Beckenbauer avaliou assim o desempenho alemão: “À excepção de Kahn, podíamos pegar neles todos, metê-los num saco e bater-lhes com um pau. Quem apanhasse, só tinha o que merecia.” A Argentina, designada por sorteio para o chamadoo “grupo da Morte” com a Inglaterra, Nigéria e Suécia, foi eliminada por um penalty de David Beckham (que remediou os erros fatais por ele cometido no duelo com os argentinos em 1998) e foi para casa, juntamente com os portugueses e os franceses. África mal mostrou a cara depois da fase de grupos. Em prova, ficou apenas o Senegal; das equipas asiáticas, a da Coreia do Sul e do Japão chegaram ambas à fase de eliminação directa. O Japão caiu primeiro, vencido por uma Turquia ocasionalmente arruaceira mas inspirada (a equipa contemplada com mais cartões amarelos e vermelhos da prova). A Coreia do Sul eliminou a Itália, no jogo mais excitante de toda a competição. Depois de forçar a squadra azzurra a esfalfar-se durante quase duas horas, o ponta-de-lança expatriado, Ahn Jung Hwan, jogador dos italianos do Perugia, ganhou o jogo com um golo de ouro marcado ao 117.º minuto. A Coreia do Sul tinha um novo herói nacional, e o patrão italiano do herói, Luciano Gaucci, cancelou rapidamente o contrato com Hwan: “Não tenho intenções de pagar um salário a alguém que arruinou o futebol italiano.“ Quatro dias depois, frente à Espanha, a Coreia do Sul jogou mais duas horas, desta vez ganhando por penalties. A Espanha, com o seu segundo melhor registo desde 1950, teve de suportar dois golos mal invalidados. “Pensei que o árbitro seria mais justo num jogo dos quartos-de-final como este, “ disse o treinador José António Camacho. “Lutámos até ao fim e perdemos porque a Coreia do Sul teve mais sorte que nós.” Nas meias- finais, a Coreia do Sul defrontou a equipa alemã de Oliver Kahn. Michael Ballack marcou o único golo do jogo (apenas o terceiro remate, em seis jogos, que desfeiteou Lee Woon Jae) e terminou a carreira mágica da equipa em frente de 66.625 adeptos que tocavam tambores, vestidos de carmesim e autores de coreografias de massa. Guus Hiddink, o treinador holandês da Coreia do Sul (e beneficiário de cidadania honorária), foi judiciosamente apreciativo: “Eles mostraram o que pode ser o apoio: uma mistura milagrosa de entusiasmo e não-violência.” Os dois países anfitriões mereceram bem o seu êxito, arrancando marcas históricas, arriscando, defendendo com determinação e correndo mais do que todos os outros países no XVII Mundial. Se a FIFA tivesse colocado um pedómetro nos 34
  • 36. campos da Coreia do Sul e do Japão, a contagem de passos teria duplicado a registada por qualquer outra das quinze equipas europeias do torneio. A única excepção seria a Turquia. Com a Holanda ausente (depois de ter sido semifinalista em 1998 com o treinador Hiddink), calhou ao turcos jogar “futebol total”, à maneira dos holandeses. Apesar de ter acabado em terceiro lugar, a Turquia foi a segunda melhor equipa do Mundial de 2002. (Para os consolar, os membros da comitiva tiveram estádios, pontes e ruas baptizados com o seu nome, no regresso a casa: uma avenida em Adana para o avançado Hasan Sas, um parque em Istambul para o treinador Senol Günes e um estádio na cidade costeira de Zonguldak para o médio Ergün Penbe.) O melhor jogo do torneio foi seguramente o dos quartos-de-final entre a Inglaterra e o Brasil, que proporcionou iguais quantidades de intensidade, beleza e sorte. Michael Owen marcou com característica elegância numa corrida fulgurante, após um erro da defesa brasileira aos 22 minutos. A Inglaterra liderou o jogo até ao momento em que Rivaldo empatou após jogada brilhante de Ronaldinho. Minutos depois do intervalo, Ronaldinho marcou um golo incrível, na sequência de um livre directo da linha de meio-campo. Apesar das três substituições operadas e de ter ainda 47 minutos pela frente, a Inglaterra não conseguiu passar Roberto Carlos e penetrar na defesa brasileira. Depois do jogo, David Beckham visitou os balneários dos vencedores e (segundo a revista “Sports Illustrated”) seguiu-se esta conversa: BECKHAM: Olá, desculpem. Só queria saber se o Ronaldo queria trocar de camisola comigo. ROBERTO CARLOS (a ouvir): Eu já troquei de camisola com ele. RONALDO (regressando com uma camisola): Beckham acabou de me dar isto. O jogo foi tão bom que Beckham trocou de camisolas duas vezes. Antes da inevitável desilusão da final, algumas estatísticas elucidativas:  Principais faltosos: Dietmar Hamann, da Alemanha, e Cafu, do Brasil, empataram com 19.  Defesa mais bem sucedido: Torsten Frings, da Alemanha, que conseguiu quebrar a fluidez de 55 opositores (embora Zeljko Milinovic da Eslovénia, eliminado na fase de grupos, tenha tido o maior número de desarmes por hora: uns espantosos 7.33).  Mais golos evitados: Rüstü Receber, da Turquia: 34.  Maior número de golos concedidos: Mohammad Al Deayea, da Arábia 35
  • 37. Saudita: 12. Ronaldo, do Brasil, foi o autor de mais remates, 21, mas não logrou uma única assistência. Seol Ki Hyeon, da Coreia do Sul, que mais bolas perdeu (79 vezes). Ninguém fez mais remates do que Nelson Cuevas, do Paraguai, com uma média de 8 por jogo. Francesco Totti, de Itália, foi o jogador menos disciplinado do torneio, com 18 faltas, 3 cartões amarelos e um cartão vermelho. A final foi significativa. Por um lado, este foi o primeiro encontro entre os dois países com mais êxito na história da Taça do Mundo, a Alemanha e o Brasil. A Alemanha, diminuída pela ausência do seu capitão, castigado disciplinarmente, teve de contar apenas com a perfeição de Oliver Kahn, enquanto rezava por erros brasileiros. Não aconteceu nem uma coisa nem outra. Ronaldo conseguiu driblar Kahn ao minuto 66, depois de o alemão ter falhado uma defesa fácil. E repetiu a proeza ao 78.º minuto. A ganhar 2-0, um Brasil confiante trouxe alguns substitutos ao jogo - Juninho, que só jogou cinco minutos, parecia pronto a marcar - e tornou-se óbvio que os campeões tinham as duas melhores equipas do mundo. Uma final melhor teria sido entre brasileiros titulares e brasileiros suplentes. Kahn levou para casa o troféu Bola Dourada, para o melhor jogador do campeonato, com base nos seus anteriores desempenhos. (Antes de Ronaldo, apenas o irlandês Robbie Keane tinha sido capaz de fazer passar uma bola por ele.) Analisando o primeiro golo do brasileiro, Kahn disse à imprensa: “Foi o meu único erro em sete jogos. Mas esse erro foi brutalmente castigado.” Pelos seus oito golos, Ronaldo levou para casa a Bota de Ouro, prémio para o melhor marcador. Eufóricos, os sul-americanos usaram o maior estádio do único país do mundo de maioria shinto para produzir o que deve ter sido o programa de televangelismo mais visto da história da televisão, quando Kaká, Edmilson e Lucio rasgaram as camisolas, revelando camisolas interiores onde se lia, em português e em inglês, “Eu pertenço a Jesus” e “Jesus ama-te”. Outros jogadores brasileiros dançavam ao som das congas. Agora, louvado fosse Deus, podiam pôr fim aos 40 dias de celibato imposto pelo treinador Luís Felipe Scolari. Como Ronaldo disse aos jornalistas: “Sexo vou fazer daqui a minutos, mas nada pode ser tão compensador como o Campeonato do Mundo.” Eles tinham ganho os seus sete jogos e, proeza sem precedentes, conquistaram o Campeonato do Mundo pela quinta vez: eram pentacampeões! 36
  • 38. Inglaterra por Nick Hornby Quando comecei a ver futebol, na década de 1960, era tudo muito fácil de compreender. A Inglaterra acabara de ganhar o Mundial de 1966 e, por consequência, era incontestavelmente a melhor equipa do mundo: facto, ponto final, fim da história. É verdade que o golo que levou à vitória na final não devia ter contado; também é verdade que os brasileiros e Pelé foram sistematicamente desancados no torneio de 1966, ao ponto de Pelé ter sido retirado de maca depois da enésima falta brutal. Sim, e então? Éramos os melhores! Provavelmente! E fomos, sem dúvida, a segunda melhor equipa em 1970, ainda que seja necessária alguma criatividade para o provar. Sim, a Inglaterra foi derrotada nos quartos-de- final. Mas não devia ter sido vencia 2-0 contra os alemães e faltavam 20 minutos de jogo, mas conseguiu perder 3-2. O Brasil venceu facilmente o Mundial de 1970, mas só nos venceram nas eliminatórias da fase de grupos, por 1-0. E Jeff Astle falhou um golo certo quase no final, por isso o jogo devia ter terminado 1-1. O Brasil arrasou com toda a gente. Recapitulando: incontestavelmente a melhor equipa em 1966 e realmente a melhor equipa façamos justiça aos brasileiros e digamos que ficámos em igualdade em 1970. Depois, de súbito, começou tudo a correr mal, quase sempre. Para começar, eu A selecção inglesa transporta o troféu, após a vitória (4-2) contra a Alemanha Federal, na final do Mundial de 1966. Fotografia de Allsport Hutton Archive, Getty Images 37
  • 39. tornei-me adulto e começou a perturbar-me muito mais a ideia de pertencer a um país. Entretanto, a equipa de futebol inglesa era uma nódoa. A segunda melhor equipa do mundo nem sequer se qualificou para as finais do Mundial de 1974 e 1978; os jogadores de renome mundial com que tínhamos sido abençoados durante a década de 1960 tinham desaparecido e, de qualquer forma, na década de 1980, o tema do patriotismo e do futebol tornara-se muito mais complicado. Olhando agora à distância, os jogos de Inglaterra durante essa década eram com frequência apenas visíveis através de uma nuvem de gás lacrimogéneo, usado pela polícia europeia para dispersar os nossos hooligans amotinados. Os adeptos ingleses estavam rapidamente a tornar-se sinistros. Embora os jogos entre os nossos clubes fossem frequentemente palco de motins, não se sentia que os hooligans estivessem a marcar uma tendência. Quem fosse ver a Inglaterra jogar em Wembley, como eu ainda fui, poderia observar pessoas à sua volta a fazer por vezes a saudação nazi durante o hino nacional; os insultos aos jogadores negros (mesmo aos jogadores negros que jogavam na nossa equipa) eram comuns. Naquele tempo, cabiam em Wembley 92.000 pessoas; convenientemente, havia (e ainda há) noventa e dois clubes de futebol profissionais em Inglaterra. Às vezes, parecia que se reuniam em Wembley os mil adeptos mais desprezíveis de cada clube, imitando macacos e cantando canções contra o IRA. Foram estas pessoas que ajudaram a criar o receio e o ódio contra as nossas duas bandeiras nacionais. Quem visse alguém aproximar-se com uma T-shirt com a Cruz de São Jorge ou a Union Jack, o melhor que tinha a fazer era afastar-se. A T-shirt era uma alternativa gráfica a um palavra de ordem que podia dizer algo como: “Sou racista, mas odeio- te, qualquer que seja a tua cor” ou, como dizia um graffiti captado pelo fotógrafo Zoe Strauss “Vai-te f… se estás a ler isto”. E se ele não nos apanhasse, apanhava- nos o seu pit bull terrier. E então, de alguma forma compreensivelmente, alguns adeptos de futebol começaram a sentir-se zangados com a nossa selecção nacional. Em 1990, quando a Inglaterra jogou contra os Camarões nos quartos-de-final do Mundial, não foi difícil encontrar pessoas em Inglaterra teoricamente da classe média e liberais, mas ainda assim, pessoas que desejavam a vitória dos Camarões. Assisti ao jogo com algumas dessas pessoas e, quando a Inglaterra estava a perder por 2-1 (acabou por vencer 3-2 no prolongamento), essas pessoas rejubilaram. Eu compreendi porquê, mas não consegui partilhar o seu entusiasmo, para minha grande surpresa. Aqueles rufias racistas e bêbedos, envoltos nas cores nacionais é que eram, vim a descobrir, 38
  • 40. a minha gente, e não (como pensara anteriormente) os simpáticos amigos liberais com quem estava a assistir ao jogo, e a Inglaterra era a minha equipa nacional de futebol. Estas coisas não se podem escolher, certo? O Mundial de 1990 revelou-se um ponto de viragem. A nossa selecção não era confrangedora pelo menos, depois dos jogos de abertura. Os adeptos também não eram confrangedores, salvo durante alguma escaramuça ocasional. E no final, a Inglaterra perdeu, por pouco e corajosamente, a penalties contra a Alemanha, na meia-final. (Curiosamente, a Inglaterra foi mandada para casa em quatro dos últimos seis campeonatos mundiais, quer pela Alemanha, quer pela Argentina, dois países com quem tivemos desavenças no passado. Quem estiver familiarizado com a natureza belicosa dos tablóides ingleses consegue imaginar o pouco que estas desventuras fizeram pela paz mundial.) Após duas décadas horrendas, a selecção e o futebol nacional recuperaram novamente o calor dos afectos da nação. O renascimento durou cerca de cinco minutos. Houve uma escolha administrativa desastrosa, que resultou em mais um fracasso na qualificação. E em 1998, o futebol era um jogo diferente. A França venceu o Mundial de 1998, mas apenas dois jogadores da equipa jogavam futebol em França. Os homens mais importantes, Zidane, Desailly e Deschamps jogavam em Itália; os restantes jogavam em Espanha, Inglaterra ou na Alemanha. Entretanto, as grandes estrelas do futebol inglês eram Zola, da Itália, Bergkamp, da Holanda, e Schmeichel, da Dinamarca. O Manchester United, o clube mais importante de Inglaterra, retivera um grupo de jovens jogadores ingleses, entre os quais David Beckham; mas o Arsenal, a minha equipa, tinha vencido confortavelmente o campeonato com uma mistura de bravura inglesa e de estilo franco-holandês. Os jogadores estrangeiros eram, na sua maioria, melhores, mais aptos e mais baratos, e, além disso, não bebiam muito. (Pessoas como Bergkamp e o brilhante avançado francês Thierry Henry consideram a abstinência como o preço a pagar por uma carreira de atleta, mas esta atitude era vista como uma ingenuidade por muitos jogadores ingleses.) Não tardou que a maioria dos jogadores da nossa primeira divisão viesse de fora das ilhas Britânicas. A globalização do mercado de jogadores começava a roubar ao futebol internacional muito do seu sentido. Antigamente, observávamos os melhores jogadores das melhores equipas e pensávamos: “Como seria se jogassem juntos?” A resposta era que pareciam a selecção nacional era essa a ideia, aliás, mesmo que na realidade a selecção nacional, sobretudo a selecção nacional inglesa, fosse frequentemente uma balbúrdia mal preparada e heterogénea. O Chelsea, o 39
  • 41. Manchester United, o Real Madrid, o Juventus, o Milão e o Barcelona substituíram agora as selecções nacionais como equipas de sonho. Se a nossa equipa nacional não contém jogadores desses clubes, é porque esses clubes não os querem, o que significa que a nossa equipa nacional não presta. Durante os últimos anos, a Inglaterra chegou a ficar ocasionalmente reduzida a escolher jogadores que não eram primeiras escolhas imediatas para os seus clubes, uma indicação de como tudo mudou. Antigamente, um jogador internacional estaria em primeiro lugar na lista de qualquer clube. Agora depende da qualidade do clube e da qualidade do país. Todavia, não há dúvida de que as importações estrangeiras arrastaram a nata dos jogadores ingleses, por vezes de forma relutante, para algo que se aproxima da competência. Éramos muito trôpegos e limitados (o mesmo se pode dizer de todos os habitantes do país); não tínhamos de nos preocupar muito com outros países porque só jogávamos contra eles de dois em dois anos. Os jogadores ingleses jogam agora todas as semanas com, ou contra os melhores do mundo, e tiveram de aprender rapidamente, para vencer e manter a profissão. Até algumas pessoas com juízo começam agora a afirmar que a selecção inglesa contém alguns dos melhores jogadores do mundo. Wayne Rooney era um adolescente durante o Europeu de 2004, mas quando se retirou, lesionado, no jogo contra Portugal, a equipa desintegrou-se. Ele é muito forte, incrivelmente talentoso e tanto se presta a apanhar um cartão vermelho, provavelmente por praguejar, como a marcar um dos melhores golos jamais vistos. (Num jogo contra o Arsenal, na época passada, estima-se que Rooney tenha dito “vai-te f…” ao árbitro mais de vinte vezes em sessenta segundos. Como a “linguagem obscena e abusiva” deve ser uma ofensa punível com cartão amarelo, presume-se que existam palavras muito, muito feias, piores do que as palavras f… e c…, que os jogadores conhecem e nós não.) Frank Lampard e John Terry são os jogadores mais importantes do Chelsea, o que no actual clima económico significa que são dois dos melhores jogadores da Europa; se não fossem, já teriam sido enviados para as minas de sal. Ashley Cole é talvez o melhor defesa-esquerdo do mundo, o que significa que não jogará na minha equipa, o Arsenal, por muito mais tempo. Pelo menos metade desta selecção inglesa é francamente boa, por isso, quando forem vencidos nos quartos-de-final, como já vai sendo costume, o sentimento será de raiva e impotência e não de resignação deprimida. Perto do final da pouco inspirada campanha para a qualificação do Mundial de 40
  • 42. 2006, a Inglaterra conseguiu perder 1-0 contra a Irlanda do Norte, cuja maioria dos jogadores vem dos clubes mais pequenos da Grã-Bretanha; durante o jogo, quase se podiam ver as estrelas inglesas a pensar “Que porra faço eu aqui, nesta espelunca, a jogar contra estes falhados?” (O facto de os falhados estarem a vencer parecia não lhes interessar muito.) Era difícil imaginar o modelo de futebol internacional durar os noventa minutos inteiros ou, mais difícil ainda, até à final do campeonato e para além dela. Até que, umas semanas mais tarde, após uma vitória sem significado, ainda que arrebatadora, contra a Argentina, decidimos todos que a Inglaterra ia ganhar o Mundial. Isto representa um progresso sem precedentes: normalmente, a autoconfiança nacional teria sido estimulada por uma vitória à tangente contra os infelizes irlandeses e demolida por uma equipa competente. Agora, temos um grupo de sofisticados cosmopolitas (ou de prima-donas mimadas, consoante a nossa perspectiva, idade e jornal de eleição), que não podem ser incomodados, a menos que a ocasião o exija. Há 16 anos, a Inglaterra empatou 0-0 com a Suécia, um resultado que ajudou a garantir a qualificação para o Mundial de 1990. A imagem que ficou desse jogo foi a do capitão da equipa, Terry Butcher, envolto em ligaduras, com a camisola de Inglaterra e os calções cobertos de sangue que lhe escorrera continuamente de uma ferida na cabeça, durante todo o jogo. “Fora do campo, sempre fui um tipo normal e plácido”, afirmou Butcher, numa entrevista, anos mais tarde. “Mas vistam-me uma camisola de futebol e é como se tivesse um capacete de aço e a baioneta em riste. Morte ou glória.” Era assim a velha Inglaterra: o imaginário da guerra, o empate a zero crucial contra um rival modesto, a inevitável substituição de estilo e talento por sangue e trabalhos forçados. Aqueles que odeiam David Beckham, o actual capitão da equipa inglesa, e tudo aquilo que ele representa, afirmam que ele apenas envergará capacete de aço e ligaduras quando estes se tornarem moda em alguma discoteca europeia ridiculamente na moda. Não é justo, porque, apesar de ser bem parecido e rico, também ele fez um esforço surpreendente para compensar as qualidades que lhe faltam como jogador, nomeadamente, rapidez. Mas não há dúvida de que ele é um representante brilhante de um novo género de desportista inglês: profissional, com conhecimento dos media, ocasionalmente petulante e muito, muito rico. Os adeptos ingleses que assistiram ao jogo amigável contra a Argentina (que decorreu, como é agora hábito nestas coisas, em Genebra, por razões que permanecem obscuras) continuavam a entoar a canção “Não nos renderemos ao IRA”, e suspeito que preferiam ter visto Terry Butcher e as suas 41
  • 43. baionetas em riste, do que David Beckham, um homem que, afinal, até já foi fotografado de sarong. Mas afinal, a Inglaterra é assim mesmo neste momento. Preferíamos estar ainda a bombardear os alemães, mas após sessenta anos, começa lentamente a despontar em nós a suspeita de que esse tempo não voltará tão depressa e que, entretanto, teremos de confiar em jovens multimilionários bem- parecidos e de sarong para dar cabo dos argentinos. Não nos agrada, mas que podemos fazer? O meu momento mais emocionante no Mundial de 1998 foi quando Vieira, do Arsenal, fez deslizar a bola para Petit, do Arsenal, para o terceiro golo da França na vitória 3-0 contra o Brasil, na final: fiquei de joelhos. (Na manhã seguinte, a primeira página do “Daily Mirror”, então editado por um detentor de bilhetes de época do Arsenal, dizia “ARSENAL VENCE CAMPEONATO MUNDIAL”. Mandei emoldurar a página.) Esta é que era a minha gente: de qualquer modo, passo a maior parte da época a odiar os jogadores ingleses; se alguns daqueles estupores do Manchester United ou do Chelsea tiverem de lutar contra qualquer dos meus lindos e talentosos rapazes franceses, é escusado agonizar. Afinal, parece que estas coisas sempre se podem escolher. Allez, les Bleus. Recordes do Campeonato do Mundo Ranking da FIFA: 9 Participações no Mundial: 11 Títulos de campeã: 1 Nome da Federação: Federação Inglesa de Futebol Confederação: UEFA Fundada: 1863 Filiação na FIFA: 1905 Alcunha: The Three Lions (Os três leões) Treinador: Sven-Goran Eriksson Website: www.the-fa.org Estádio: Wembley Equipamento principal: branco/azul escuro/branco Equipamento alternativo: vermelho/branco/vermelho Patrocinador: Umbro 42
  • 44. 1930: Não participou 1934: Não participou 1938: Não participou 1950: Eliminada na primeira fase 1954: Eliminada nos quartos-de-final 1958: Eliminada na primeira fase 1962: Eliminados nos quartos-de-final 1966: CAMPEÃ 1970: Eliminada nos quartos-de-final 1974: Não se qualificou 1978: Não se qualificou 1982: Eliminada na segunda fase 1986: Eliminada nos quartos de final 1990: 4º lugar 1994: Não se qualificou 1998: Eliminada nos oitavos-de-final 2002: Eliminada nos quartos-de-final Jogos: 50 Vitórias: 22 Derrotas: 13 Golos marcados: 68 Golos sofridos: 45 Goal average: 23 Pontos: 81 A Inglaterra está em 5º lugar na tabela de todos os tempos do Campeonato do Mundo Caminho para a qualificação para o Mundial de 2006 4-Set-04 Áustria 2 Inglaterra 2 8-set-04 Polónia 1 Inglaterra 2 9-out-04 Inglaterra 2 País de Gales 0 13-out-04 Azerbaijão 0 Inglaterra 1 43
  • 45. 26-mar-05 Inglaterra 4 Irlanda do Norte 0 30-mar-05 Inglaterra 2 Azerbaijão 0 3-set-05 País de Gales 0 Inglaterra 1 7-set-05 Irlanda do Norte 1 Inglaterra 0 8-out-05 Inglaterra 1 Áustria 0 12-out-05 Inglaterra 2 Polónia 1 A Inglaterra qualificou-se ao terminar em 1.º lugar o Grupo 6 da Zona Europeia 44
  • 46. Espanha por Robert Coover O Verão de 1982 em Espanha foi o mais quente do século. O capacete de smog tinha o efeito de uma tampa de panela de pressão, ardendo com os reflexos do Sol, nas bancadas superiores do pequeno estádio de futebol Sarriá, popularmente conhecido como Bombonera (Caixa de Bombons). Parecia que tinham sido vendidos dez bilhetes por cada metro quadrado de espaço. Tivemos de ir para lá uma hora e meia antes para conseguir caber de pé. Sentarmo-nos? Nem pensar. Não havia hipótese de ir buscar bebidas e, quando o jogo começou, era até difícil respirar. O meu filho adolescente passou um jogo inteiro pendurado num corrimão das escadas, sobre uma porta de saída. Todos os dias dizíamos: se não for espectacular, vamos para um bar qualquer e vemos o jogo na televisão. Isto é de loucos! Todos os dias, acabámos por voltar. Já cá tínhamos estado. Da outra vez, em 1977, estava a chover, era noite e fazia frio. Também dessa vez ficámos encolhidos debaixo de um guarda-chuva perto do telhado, abaixo dos holofotes, sob vento tempestuoso e chuva torrencial, nos únicos lugares disponíveis, e muito felizes por tê-los. Nessa noite, assistíamos a uma partida da liga espanhola no final do Outono, entre dois arqui-rivais desta cidade, o FC Barcelona e o Real Clube Deportivo Espanyol, que jogava em casa, O italiano Paolo Rossi protege a bola do brasileiro Júnior, no Mundial de 1982. As duas equipas defrontaram-se no estádio Sarriá, em Barcelona. Num dos jogos mais excitantes da prova, a Itália ganhou por 3-2, e Rossi marcou três golos. A Itália prosseguiu e conquistou o título. Rossi foi o melhor marcador e foi premiado como jogador mais valioso da competição. Fotografia por Getty Images 45
  • 47. um desafio que era mais do que um simples evento desportivo. Em 1982, foi esse o palco da segunda fase do Mundial, num grupo onde o destino tinha juntadoa Itália, o Brasil e a Argentina, todos antigos campeões do mundo. Todos contra todos os outros numa miniliga por um lugar nas meias-finais (Argentina-Itália, Argentina-Brasil e Brasil-Itália, por essa ordem.) Os jogos transcenderam o quotidiano, tal como se pode dizer que a guerra transcende o debate. Por vezes parece-me que estes são os nossos dois únicos jogos universais, a guerra e o futebol. Encontramo-los a ambos em todas as culturas, excepto em algumas subculturas do mundo, raras e remotas (na Melanésia, por exemplo, ou aqui e ali na América do Norte) e sempre no centro da experiência nacional. A guerra está talvez mais perto do reino da fantasia, o futebol do da realidade, mas ambos partilham esta ubiquidade e centralidade, como se cada um se erguesse de uma qualquer fonte colectiva libidinosa, primária e intuitiva. Talvez eles sejam variações do mesmo jogo, formações rituais, próprias da era industrial moderna, de alguma actividade comum do “Tempo-dos-Sonhos” da espécie, de quando ambos usavam os mesmos jogadores e os mesmos remates ou seja, todos os homens da tribo e toda a natureza. Ainda hoje eles se misturam um no outro. Os dirigentes do futebol “declaram guerra”, os generais aplicam tácticas e terminologia de futebol nas suas campanhas, a violência guerreira invade os campos de futebol, alastra às bancadas e extravasa para as comunidades (como quando as tensões fronteiriças e as paixões dos jogos de qualificação do Mundial se diluíram na famosa e sangrenta “guerra do futebol” de 1969, entre as Honduras e El Salvador - ironicamente dois dos finalistas de 1982, continuando eles de novo, ou ainda, a disparar uns contra os outros no terreno bélico), os soldados usam as cores da sua equipa na batalha, como recompensa, ou desafiam o inimigo em terra de ninguém durante tréguas temporárias, e as claques de adeptos são conhecidas por “exércitos”. Nesta inextricável comunhão de batalhas nos jogos e de jogos de batalha noutros locais da guerra e da revolta, 24 anos mais tarde, em 2006, o mundo pôde ver emparceirados, no mesmo grupo, o Irão e os Estados Unidos, ou a Inglaterra, ou o servos e os croatas. Todavia, no Verão de 1982, a guerra do dia era entre a Argentina e a Inglaterra por causa de um campo estéril conhecido respectivamente por Malvinas e ilhas Falkland, e ambos os países tinham equipas no Mundial de 1982. Foi esta guerra que ensombrou a defesa argentina do seu campeonato de 1978, mantendo os fãs em casa, consumindo os seus recursos, desmoralizando a 46
  • 48. equipa e a nação à medida que o número de baixas aumentava e diminuíam as suas esperanças de qualquer saída airosa. Mesmo assim, na véspera do jogo inaugural do Mundial entre os na altura campeões do mundo e a Bélgica, a Junta Militar argentina, à beira de uma derrota iminente e catastrófica, decidiu manter a guerra mais um dia, fazendo entretanto todos os esforços para difundir a transmissão televisiva do jogo em directo para as tropas que defendiam as ilhas, na esperança de um milagre. Em vez disso, como se para obrigar o mundo a partilhar a sua tristeza, apenas perderam mais uns cidadãos. Os seus campeões do mundo talvez tenham tido coragem suficiente, mas não tiveram balas, e a Bélgica marcou o único golo de um jogo crítico, cauteloso e algo aborrecido. Poucas horas depois, a Argentina rendeu-se à Grã-Bretanha, as tropas desligaram os televisores e regressaram ao continente como fãs desiludidos (alguns cidadãos protestaram, mas rapidamente desapareceram), e o chefe da Junta, general Leopoldo Galtieri, “demitiu-se”, pressentindo o destino de muitos dirigentes da sua selecção nacional antes do Mundial acabar. Com uma expressão cândida, o “London Times” relatou que, entre os oficiais militares superiores da campanha das Malvinas, o comandante de comandos, brigadeiro Julian Thompson, fora nomeado “homem do jogo”. Após o seu embaraço inicial, a Argentina conseguiu ganhar um par de jogos para se qualificar para a segunda série e recuperar assim algum respeito. O Brasil era o grande favorito a disputar os apuramentos - na verdade foi favorito de todo o Mundial 1982 - e o jogo entres estes rivais lendários foi alcunhado de “final latina- americana”. Ninguém dava nada pela Itália, que passara esta fase com três empates deprimentes contra equipas sem valor, mas que tinha uma selecção defensiva obstinada. E foi assim que foi interpretado o primeiro jogo, que os argentinos perderam para os italianos por 2-1: uma confiança em homens duros, perícia acima de beleza, uma vitória aborrecida para o futebol “negativo”. A imprensa queixou-se depois da grosseria e brutalidade italiana. “Antifutebol”, chamaram-lhe, “algo entre a defesa e o homicídio,” embora mais tarde a sua recordação deste jogo fosse mais generosa (tal como com a vida, apenas o passado tem o fim em aberto). Certamente que foram espantosos a tenacidade e o empenho dos jogadores italianos no calor escaldante e quase palpável o orgulho esmagado dos argentinos. Talvez tenha sido este empenho apaixonado, juntamente com aquela tendência peculiar mas universal de um povo para identificar o seu interesse nacional com o êxito ou falhanço da sua equipa de futebol, que mais nos recordou a última vez que nos tínhamos aqui sentado, à chuva e ao vento, assistindo àquele jogo nocturno que 47
  • 49. era mais do que um jogo, entre os culés do Barcelona (assim chamados porque antigamente os fãs se sentavam em bancadas abertas, que presenteavam os transeuntes com a visão agora celebrada por gerações de cartonistas) e os “periquitos” do Espanyol. Estava-se em 1977, ou ano 1 d.F. (Depois de Franco) pelo novo calendário catalão, esse ano eufórico do destape (o saltar da rolha, o abrir da tampa) que assistiu à demolição nacional quase instantânea de todas as estruturas do franquismo, a uma vasta amnistia política, à legalização do Partido Comunista, aos sindicatos livres, à explosão editorial e à Revolução Pornográfica, às primeiras eleições-gerais desde os dias da República, e na Catalunha, à nova renaixença cultural, à dança da sardana nas ruas e à restauração do parlamento catalão autónomo, o Generalitat. Este organismo tinha estado em funcionamento no exílio desde o fim da guerra civil e um dos grandes momentos do Outono de 1977 foi a recepção ao seu presidente, Josep Tarradellas, que regressava a casa após quase 40 anos de exílio. Isto aconteceu no aeroporto, nas ruas e praças de Barcelona (que rapidamente recuperariam os seus antigo nomes catalães anteriores a Franco, como se para apagar da memória comunitária a vergonha da ocupação castelhana, ou seja, estrangeira), e finalmente no Camp Nou do FC Barcelona, esse templo sagrado de catalanismo do outro lado da cidade, onde a tribo se reunira domingo sim, domingo não, durante a era franquista, numa resistência simbólica e vociferante. “Mais que um clube” é a palavra de ordem do Barça, e era fácil compreender o que ela significava, ali sentado naquele imenso estádio de futebol (o segundo maior do mundo, com um núcleo de adeptos de 120 mil membros pagantes e uma lista de espera de anos; só para a fotografia da equipa de 1982, que ia ser tirada logo a seguir ao Mundial, apareceram 50 mil pessoas mais do que se poderia enfiar no pequeno estádio antiquado do Espanyol), nesse dia vivo com o adejar das riscas vermelhas e amarelas das até aí proibidas senyeres catalãs, entrelaçadas com as cores purpúras e azuis das bandeiras do clube, ouvindo o estrondoso rugido subir de tom quando Tarradelllas entrou no camarote presidencial para trocar prolongados abraços com uma direcção quase em lágrimas. E então, depois de uma apresentação emotiva, Tarradellas invocou numa voz trémula, para todos os presentes, os seus dias como fã do Barça, nos anos de 1920 e 1930, concluindo com uma gutural “Viva o Barça! Viva a Catalunha!”. Depois disso, todos se levantaram para cantar em massa o velho hino proibido da Catalunha, “Els Segadors”. Tarradellas, aceitando o convite, tinha dito que só viria se o clube, que 48
  • 50. nesse dia jogava com o Las Palmas das Canárias, prometesse ganhar. Durante 45 minutos, pareceu que o iam desiludir, já que as duas equipas se arrastavam empatadas zero a zero. Com cerca de um quarto de hora da segunda parte já jogado e quando o velho senhor parecia começar a dormitar, o Barcelona teve uma recompensa extraordinária, não uma, mas duas penalidades seguidas, e arrebatou a vitória a um Las Palmas compreensivelmente desmoralizado por 5-0. Benvingut, President! Eu era, de certa forma, um adepto do clube de futebol do Barcelona desde que o meu sogro, médico da equipa do Gimnástic de Tarragona, de uma divisão menor, e adepto fervoroso do Barça me iniciara no jogo, em finais da década de 1950. Para dizer a verdade, foi provavelmente a espantosa intensidade das emoções despertadas todos os anos pelos jogos claramente políticos entre Barcelona e o Real Madrid que primeiro me chamou a atenção, e não o jogo em si. A esquerda classifica frequentemente o futebol (como todos os desportos com espectadores) como uma manipulação e exploração burguesa das classes trabalhadoras, deflectindo a sua paixão de luta pela liberdade e justiça a favor do outro, para um sofrimento pseudo-interior e falsificado e para a satisfação do apoio à equipa - ou seja, do real ao artificial, ao meramente simbólico - e ganhando nisso algum lucro rápido. Talvez seja assim, mas virtualmente todos os jovens catalães que se juntaram aos partidos socialista e comunista clandestinos durante a era de Franco eram totalmente fanáticos do Barça, um paradoxo (se o for) com que tiveram de aprender a viver, pois não há alívio para tal paixão. “É estranho”, disse-me um deles, um amigo escritor comunista, num almoço duas horas antes do jogo Argentina-Brasil. “As coisas dissolvem-se. Todas as nossas grandes ideias estão cheias de ambiguidades quando tentamos torná-las realidades. Sob Franco, tudo era mais claro. Contra Franco, gostamos nós de dizer, vivíamos melhor. Talvez porque o próprio mundo parece mais frágil, o universo é agora mais familiar mas também mais ameaçador. Aquele vosso astronauta não sabia o que fazia quando jogou golfe na Lua. E afinal nas más alturas voltamos sempre à nossa família, à nossa aldeia, à nossa cultura. Ao nosso clube de futebol.” “E o Mundial?”, perguntei eu. “Tem sido uma coisa boa?” “Para a Espanha, é um desastre completo”, disse encolhendo os ombros, “Parecemos crianças. Julgamos que o mundo está cheio de milionários que querem vir cá dar-nos o dinheiro deles. E depois, mesmo que os roubemos ou enganemos, julgamos que eles ainda nos amam. Continuamos místicos, está a perceber? 49
  • 51. Esperamos milagres. E continuamos a adorar ser castigados.” Deu uma olhadela ao relógio. “Faltam duas horas para a partida”, disse ele com um sorriso pesaroso. Sim, já era hora de ir ou, com bilhete ou sem ele, não haveria maneira de ver o jogo: sair para o calor opressivo, apanhar um autocarro fosse como fosse, e furar a multidão compacta à volta do estádio de Sarriá. O La Bombonera? nunca foi o Camp Nou do Barça, nada disso. Aí, belgas, russos e polacos lutavam para decidir quem seria o vencedor deste grupo com acesso às meias-finais. Naquele grande estádio, com os seus 120 mil lugares, havia amplo espaço para os 819 fãs polacos, cuidadosamente vistoriados para poderem assistir ao jogo (e diz-se que metade destes desertaram algures entre Espanha e a Polónia), outros tantos belgas e tanto quanto se sabia, nenhum russo. Anos depois, após os Jogos Olímpicos de Barcelona, o Espanyol herdaria o Estádio Olímpico, mas na caixa de bombons de 1982 não cabia mais que aquilo. Tinha havido uma pressão tremenda, evidentemente, quer internacional, quer local, para efectuar uma troca: ter-se-ia traduzido por três vezes mais bilhetes vendidos, para não falar do aspecto mais generoso de dar aos fãs o que eles queriam. Mas o RCD Espanyol era demasiado orgulhoso: este era um dos grandes momentos da história do clube e eles não iam desistir. Um dos directores, ainda por cima, era presidente da Real Federação Espanhola de Futebol. Era uma questão indiscutível desde o princípio. É importante compreender as diferenças históricas destes dois clubes. Barcelona, que sempre foi um dos grandes centros comerciais e industriais de Espanha, foi beneficiária dos anos de expansão da apertura, a campanha feita pelos novos tecnocratas durante a enfraquecida última década de Franco para “abrir” a Espanha. O turismo, a indústria, a banca, os negócios vinham todos parar a Barcelona. E quanto mais rica esta se tornava, mais crescia. Em 1977, tinha quase dois milhões de habitantes e o mais alto rendimento total das 50 províncias de Espanha. A maioria dos recém-chegados não era catalã, é claro, mas os emigrantes das regiões mais pobres iam para norte para conseguir um quinhão de prosperidade, a maior parte como trabalhadores indiferenciados ao serviço da construção civil. Quando chegaram, não foram bem recebidos. Chamavam-lhes Xamegos. Formaram toda uma nova classe inferior, e a sua simples existência no local elevou os catalães pobres ao estatuto de pequeno-burgueses. Não tardaram a descobrir que os catalães tinham tendência a usar a sua língua local (parecida, para eles, com um ladrar ruidoso) como uma arma contra eles, um código secreto. Era difícil entrar num jogo do Barcelona, e quando entravam, sentiam-se estrangeiros. 50
  • 52. Além do mais, eram muito caros. E por isso esses adeptos começaram a derivar para o Espanyol. Tinha um nome simpático e incluía toda a gente. As pessoas falavam uma língua decente. Chamavam ao clube Ayth-pan-yo, o que punha as pessoas à vontade. A direcção tinha fama de ser procentrista, anti-catalã. O estádio era mais pequeno, um pouco maltratado e estragado. Não se perdiam lá dentro. E era mais barato. E assim, uma velha rivalidade entre dois clubes catalães assumiu uma nova dimensão. O Barcelona tornou-se o clube do catalanismo, do antifranquismo, dos intelectuais, da elite tribal, dos ricos; o Espanyol o clube do nacionalismo, das antigas hierarquias, da classe trabalhadora, dos emigrantes, dos pobres. O derby local entre estas duas equipas durante o altamente emotivo Outono de 1977, apenas duas semanas depois do regresso de Tarradellas, não se podia perder. Tal como o sensacional jogo de 1982 entre as duas mais formidáveis equipas da América Latina das décadas anteriores. No pequeno estádio, não cabia nem mais um alfinete. Constava que bilhetes como os nossos estavam a ser vendidos no mercado negro por centenas de dólares, mas nós nem ouvíamos os pregões dos vendedores, empurrando excitadamente os torniquetes, com os nossos tesouros impressos em papel colorido. Nessa altura, já quase toda a gente em Espanha tendo a equipa nacional caído em descrédito estava a torcer pelo Brasil, e o verde e o dourado imperavam no estádio do Sarriá. Num dos cantos do campo, podia ver- se, à laia de toldo, uma bandeira do tamanho dum campo de basquetebol, pelo ar esvoaçavam papagaios de papel, subiam balões, e uma infinidade de tambores marcava incansavelmente o ritmo do samba. Dir-se-ia que o Brasil jogava em casa! Equipa alguma, desde a final do Mundial de 1954 [em que a superfavorita Hungria perdeu frente à Alemanha Federal] se revelara tão unanimemente favorita, não só por ser a única equipa que naquela altura detinha um recorde perfeito, mas também por emanar tanta beleza. Numa das suas colunas diárias publicadas em Espanha antes do jogo inaugural do Brasil em que este venceu a União Soviética, o romancista peruano Mario Vargas Llosa, comparou o campo de futebol (estarei errado? os únicos jogos universais talvez sejam o sexo e o futebol…) a uma extensa zona púbica coberta por uma "provocante pelagem esverdeada", e o golo a "um orgasmo que permite a um jogador, uma equipa, um estádio, um país, a toda a humanidade descarregar repentinamente a sua energia vital". Se os países "jogassem futebol consoante as suas idiossincrasias sexuais," especulou ele, então o Brasil seria um jogador "descontraído e arrebatador que acaricia ternamente a 51
  • 53. bola antes de lhe dar um pontapé, a quem é difícil separar-se dela, e que, em vez de colocar a bola na baliza, prefere acompanhá-la até lá. Contrariamente, o futebolista russo é triste, melancólico e brutal, dado a explosões violentas e contraditórias, e as suas relações com a bola evocam a relação de um amante eslavo com a sua namorada, patente em versos e lamentos que acabam sempre em tiroteio." Até o aquecimento brasileiro foi emocionante. Vê-los a jogar foi como afundar- me numa doce fantasia sensual. Foi maravilhoso, um Carnaval interminável do qual todos queríamos fazer parte. Todos sentíamos vontade de usar as T-shirts amarelas, agitar as bandeiras sedosas e bater nos tambores. Acima de tudo, todos queríamos dar a volta ao campo ao lado de Júnior, Eder, Falcão e Zico. Era aparentemente tão fácil! A bola parecia deslizar, sussurrar entre os seus pés, como se fosse possuída por um espírito, excitada e orientada pela consciência transcendente da equipa como um todo (isto parecia emanar da cabeleira hirsuta de Sócrates, o enorme capitão de equipa, que se deslocava suave e serenamente pelo meio-campo, uma cabeça ou duas acima dos restantes jogadores) libertando-se contudo aqui e ali para fazer inspiradas corridas improvisadas. Os argentinos deram tudo por tudo para se mostrar à altura desta magia brasileira, mas viram gorados os seus esforços. Os golos foram marcados por Zico, Serginho e Júnior, mas foram tão colectivos, que poderiam ter sido atribuídos ao guarda-redes. Já no final da partida, Ramón Diaz ainda marcou um golo de consolação para a Argentina, mas isso não impediu a espectacular festa brasileira de sair à rua e se espalhar pelo mundo. Na verdade, no Brasil, até se exagerou um bocado: as comemorações nocturnas causaram a morte a duas pessoas e deram origem a seis mil feridos. A Itália e o Brasil iam então defrontar-se num jogo decisivo, tendo cada uma das equipas vencido já a Argentina, embora o Brasil tivesse vantagem e só precisasse de um empate para passar às meias-finais. Embora continuassem a ser os favoritos da grande maioria das pessoas, os brasileiros já não tinham o estádio todo só para si: ao longo de toda a semana, apoiantes italianos tinham atravessado a fronteira e tinham descido a costa até chegar a esta distinta zona, aumentando a terrível congestão, tentando provar, mais uma vez, que há sempre espaço para mais um anjo na cabeça dum alfinete. Houve quem deixasse o emprego, outros fecharam as portas do seu negócio, uns interromperam as suas férias em família: em Itália, nada se mexia, diziam eles, e talvez por não haver quem o substituísse o executivo do primeiro-ministro Giovanni Spadolini, ameaçado de colapso durante os desastrosos empates das primeiras eliminatórias, parecia novamente estável devido às recentes 52