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Enganos
O que você faria se descobrisse que toda a sua vida fora uma mentira? Que você apenas
foi mais peça de todo o quebra-cabeça? O que faria se perdesse tudo o que um dia amou? Eu
desistira. De quê? De exatamente tudo. Escola, amigos, amores, família, vida. E foi o que eu fiz.
Abri mão de tudo o que me restava de verdadeiro por ter perdido a vontade de estar na Terra
e ao mesmo tempo não ter coragem suficiente para sair dela.
Minha vida sempre foi muito normal. Tinha uma mãe divorciada há quatro anos, três
amigas, um cachorro, gostava de um menino que, como sempre, não gostava de mim e estava
na 7ª série. Minha escola também não fugia aos padrões, com os mesmos grupos de alunos:
havia quem fosse da turma dos populares, alguns faziam parte do grupo dos NERDS e aqueles
que não participavam de nenhuma turma, como eu.
Eu gostava da minha normalidade, mas coisas estranhas começaram a acontecer. A
princípio eu não fazia idéia do que me esperava. Começou com os sonhos. Sempre sonhos.
Quando completei 12 anos, por vezes eu sonhava com uma explosão. Perto dos 13 as noites
de pesadelo se intensificaram. Eram quase que seguidas e as cenas nunca mudavam. Eu me via
no corpo de um bebê, com alguém fugindo comigo no colo. Havia fogo pelas laterais, podia
sentir o calor na minha pele frágil e o vermelho intenso das chamas me cegava. Acordava
sempre quando essa pessoa me entregava a uma mulher. O suor molhava as cobertas e eu não
voltava a dormir.
Depois vieram as perseguições. Sempre surpreendia alguém me observando ao voltar
para casa ou indo ao cinema ou à escola. Alguns carros passavam lentamente por mim e
alguém virava a cabeça para me ver até onde a visão alcançava. Porém eu nunca ficava com
medo ou ao menos preocupada. Minha vida era tão normal que eu nem notava tais fatos,
embora fossem constantes.
Eu não era curiosa, mas uma descoberta em especial despertou em mim esse adjetivo.
Um dia, revirando documentos antigos da minha mãe, descobri uma certidão minha, mas não
de nascimento, de criação. Era um papel azul, simples, com meu nome e algumas inscrições:
“Data de surgimento: vinte e sete de agosto; Identificação: 7V421XL”. No topo, um logotipo e
um nome de empresa, WART. Parecia uma sigla, mas eu não fazia idéia do significado.
Guardei-o.
A partir daí, surgiram perguntas. A normalidade já não me vendava os olhos. Minha
cabeça fervia de curiosidade, de vontade de saber o que significavam aqueles sonhos, quem
eram aquelas pessoas, por que me seguiam, o que fazia meu nome naquele papel. Eu tentava
ligar os fatos, mas não tinha imaginação nem criatividade suficientes para descobrir a verdade
sozinha.
Semanas se passaram e eu com os incessantes questionamentos. Até o dia em que,
retornando da escola, no trecho final do trajeto, onde eu seguia sozinha, um daqueles carros
passou por mim e parou a alguns metros à frente. Enchi-me de esperanças. Finalmente minhas
perguntas seriam respondidas!
Aproximei-me lentamente. A porta do carro já esperava por mim aberta. Ao entrar,
fechei-a. Havia três homens, dois eram fortes e altos, o outro tinha uma expressão fria.
Usavam ternos pretos. Este último estava ao meu lado, no banco de trás. Virou-se para mim e
olhou-me como quem diz “cale a boca e ouça; perguntas para depois”.
-Nós fazemos parte da WART, uma sociedade do governo norte-americano, presente na
maioria dos países das Américas, que visa à criação e treinamento de jovens dotados de
extrema força física e desenvolvimento psíquico a fim de tornarem-se soldados únicos. Há
muito tempo os Estados Unidos teme uma guerra contra os países do Oriente Médio, então o
surgimento de tal sociedade foi primordial para assegurarmo-nos do triunfo do bem sobre os
terroristas asiáticos na futura batalha. Você é uma das crianças que foram perdidas na
explosão de 1998. Agora estamos recuperando-as para prosseguirmos com o treinamento e
darmos continuação ao processo de formação do batalhão especial.
Estava sem reação. Nunca uma verdade dessa magnitude me foi dita. Caramba, eu
deveria ter sido uma soldado. Não, impossível! Eu tinha uma vida tão sem graça, sem
emoções, como poderia ser? Claro, eles estavam enganados. Haveria outra garota parecida
comigo, com a mesma idade, com uma família e nome parecidos. Essa era a única explicação
plausível. Eu jamais faria parte de uma sociedade secreta dos Estados Unidos!
Mas eu vi aquele documento. Era meu nome sob aquele símbolo. E os pesadelos eram
tão reais!
Olhei pensativa pela janela. Estávamos numa rua que eu desconhecia. Morava naquela
cidade há 12 anos e nunca havia visto aquele lugar. Não tinha casas e nenhum tipo de
construção. Aparentemente, o homem nunca havia tocado naquele santuário verde. Só
aparentemente. Ao longe vi surgir uma construção imensa. Muros azuis muito altos cercavam
um prédio de vários andares. Era simples, sem nada em especial. Deveria ser uma tentativa de
não chamar a atenção. Impossível. No meio do nada, algo tão alto com certeza seria notado.
Paramos no portão. Os homens fortes se identificaram e repetiram o código que eu
encontrei naquele papel azul. Certamente seria meu nome dali para frente. O carro prosseguiu
e estacionou num pátio. Vários outros veículos idênticos estavam alinhados e, no meio do
pátio, duas filas de crianças aproximadamente da minha idade. De um lado os garotos, do
outro as garotas. Um dos homens fortes segurou-me pelo ombro e dirigiu-me à fila das
garotas.
À minha chegada, a fila começou a andar. Fomos conduzidas ao terceiro andar do
prédio, onde cada quarto fora reservado a uma dupla de meninas. A minha parceira, Lívia, era
uma ruivinha com sardas leves nas bochechas. Não falava muito, o que era bom para mim.
Nosso relacionamento não passou de coleguismo. Durante os dias que passei nesse quarto,
descobri que os laços familiares que ela tinha eram idênticos aos meus. Mãe divorciada, pai
morando em outra cidade e três amigas.
Isso já era demais. Já não bastava ser preparada para uma guerra, agora eles também
inventaram uma mãe? Mas até mesmo minha lembrança mais remota era dessa mulher!
Como ela poderia não ser minha mãe? E as minhas amigas? Nossa convivência era tão boa,
elas não poderiam ter sido forjadas. Era pura coincidência, só poderia ser. Tinha que ser.
Nos dois dias seguintes, só interrogatórios e testes. Perguntas sobre coisas as quais eu
nunca ouvi falar, sobre temas sobre os quais eu nunca conversei. E, para minha surpresa,
respondia-as corretamente. Se pensasse que não sabia, bastava procurar no fundo da
memória para encontrar a resposta. E os testes eram dos mais variados. Desde resistência
física até capacidade de raciocínio. Eu fiquei maravilhada com as coisas que meu corpo era
capaz de fazer!
No outro dia, exames. Eu fui submetida a todos os tipos imagináveis de exames.
Aparelhos complexos e estranhos, médicos de todos os gêneros. Aquilo tudo para avaliar como
andava o meu sistema. Eles explicaram que, ao nascer, recebíamos uma droga que aumentava
a nossa capacidade. Física, psíquica e imunológica. Éramos as criaturas perfeitas, sem nenhum
efeito colateral que nos prejudicasse.
Era tudo muito bom, mas não para mim. Eu não suportava a idéia de ter uma mãe falsa,
de não ter amigas, e quem sabe até o menino dos meus sonhos não fora contratado para me
seduzir. Meu mundo estava desmoronando, eu já não queria levantar pela manhã. E para
piorar, a ameaça da guerra iminente. Eu precisava sair daquele lugar. Rápido.
Para tanto, não contava com a ajuda de outras garotas, e nem poderia confiar em
ninguém. Não dormia à noite, pensava numa maneira de sair dali, viva ou morta.
Mais uns dias depois, quando todos haviam baixado a guarda – nos primeiros dias, a
segurança fora reforçada, temendo uma tentativa de fuga – me preparei para escapar.
Durante um intervalo no pátio, eu me aproximava do muro. Foi muito fácil, mais do que eu
esperava. Só bastou alguns pulos e uma escalada para atravessá-lo. Não havia seguranças do
lado de fora. Eles subestimaram os jovens soldados.
Nunca observei o quanto eu era capaz de correr. Foi quase como por instinto. Talvez
realmente fosse meu instinto me salvando do perigo. Minhas pernas não obedeciam à mente,
apenas se lançavam à frente de um modo ordenado, sempre aumentando a minha velocidade.
Não prestava atenção ao caminho que seguia apenas me preocupava em me manter em
movimento temendo uma aproximação da WART.
Quando dei por mim, estava na agência bancária da cidade. De imediato não percebi o
porquê de estar ali, mas bastou pensar e planejar um pouco e me encaminhei ao terminal
eletrônico. Vasculhei os bolsos e encontrei o cartão de crédito da conta onde meu pai
depositava todo mês a minha mesada. Havia uma boa quantia, seria suficiente para eu sumir
por uns tempos.
Fui à rodoviária e comprei passagens para a capital. Lá eu decidiria o que fazer. Durante
a viagem, dormi. O incessante sonho me perseguia, e eu tinha a impressão de que ele nunca
me abandonaria. Seria um companheiro pelo resto da minha vida. Ou melhor, existência.
Ninguém pode ter uma vida quando está fugindo de uma sociedade secreta do governo dos
Estados Unidos!
Chegando à capital, já estava com um plano inteiro traçado. Iria para o interior, teria
uma vida sossegada até atingir a maioridade e, a partir daí, iria para a Europa. Uma vez que a
WART lutaria contra o Oriente Médio, não haveria sedes na Europa, ainda mais que não
encontrariam países que se aliassem aos seus objetivos.
Passei numa loja, comprei algumas roupas e uma mala. Retornei ao terminal para
embarcar. Escolhi uma cidade bem distante, onde ninguém jamais ouvira falar de mim, muito
menos daquele grupo idiota. A viagem durou mais de cinco horas.
Era um lugarzinho remoto, que provavelmente nem existia no mapa. Instalei-me numa
pousada, onde pretendia passar os próximos seis anos. Organizei as roupas no armário e saí a
fim de conhecer o ambiente. Só precisei de meia hora para percorrer a cidade de ponta a
ponta. Era agradável. Um clima adequado para a sobrevivência humana, algumas lojinhas, um
posto de gasolina, uma farmácia, uma escola em condições precárias, tudo do mais básico. O
mais incômodo foi o olhar das pessoas. Por onde passava, vários olhares curiosos pousavam
sobre mim.
Não era surpresa, afinal, num lugar tão pequeno não deveria haver novidades
freqüentes. E eu era uma novidade. Uma garota de 13 anos, sozinha, vinda de tão longe, se
hospedando na pousada. Certamente seria tema de muitas fofocas, e por muito tempo.
Dormi por bastante tempo, quando retornei ao meu quarto. Foi um sono tranqüilo, sem
pesadelos desta vez. Ao acordar, já pela manhã, fui tomar café no restaurante da pousada.
Conversei com algumas pessoas, aquelas que seriam minha companhia durante minha estadia
neste lugar. Eu creia que ali estavam sendo formados grandes laços de amizade. E desta vez
eram verdadeiros, e não contratados por uma organização anti-guerra.
O que se seguiu foi casual. Matriculei-me na escola para poder concluir o curso básico,
arranjei um emprego de garçonete no bar da esquina. Eu tinha uma enorme quantia em
dinheiro na minha conta, mas precisava trabalhar para manter as aparências.
Meses depois, me tornei íntima de uma família que morava ao lado da pousada. Eles
encarecidamente me ofereceram um quarto em sua casa e eu recusei de imediato. Insistiram,
disseram que eu poderia pagar aluguel, ou ajudar na casa, caso eu preferisse. Com tais
condições, aceitei. É bem mais confortável e aconchegante esperar os anos passarem em uma
casa de família do que numa pousada medíocre.
Esta parte de minha vida foi monótona como sempre. Ninguém me fazia mais perguntas
do que o necessário, eu estudava, trabalhava, passeava, ia a festas com algumas amigas, e até
conheci um cara com quem namorei dois anos. Contudo, não abri mão da idéia de ir para a
Europa. Já estava me arriscando demais permanecendo no Brasil, mas não poderia sair do país
sem autorização de pais ou responsáveis, coisas que eu não tinha.
No meu aniversário de dezoito anos, promovi uma comemoração que abalou a cidade.
Aquele seria o dia de minha total liberdade. Meu descanso estava próximo. Despedi-me de
todos, retirei minha inscrição da escola, arrumei tudo.
Retornei à capital, tirei passaporte e segui para o aeroporto. Enquanto esperava o avião,
pensei e relembrei. Pensei na minha falsa mãe, na falsa vida que eu levava até aquele carro
aparecer. Eu nunca fui eu mesma. Tudo não passou de uma invenção. Seria eu quem iria salvar
os EUA da ameaça dos terroristas. Pensei nos últimos anos. Nada havia me acontecido naquela
cidade, será que eu não poderia continuar a viver ali? As pessoas daquele lugar gostavam de
mim, e eu gostava delas. Tudo estava tão bom! Porém não poderia continuar lá. Eu poria em
risco, além de mim, toda aquela gente. Não seria justo para com eles. Aquele era um lugar tão
pacato, seria crueldade ferir a paz daquele santuário.
Meu avião decolou, e eu vi pela última vez o meu país de origem. Pelo menos, de
nascença, porque eu servia realmente a outro país, o país que sempre oprimiu outros povos e
sempre incentiva guerras. Foi esse país que permitiu a minha sobrevivência. Talvez fosse
melhor se eu nem existisse.
Vim morar em Londres, cidade grande, governo antiamericano. Com minhas habilidades
adquiridas graças ao programa de treinamento da WART, consegui um emprego bom. Meus
objetivos eram simples: ter um emprego perigoso, esperar dois anos, me acidentar
propositalmente, viver da aposentadoria.
Foi o que aconteceu. Dois anos e meio após a minha chegada, provoquei um acidente na
empresa e fiquei impossibilitada de continuar no mercado de trabalho. O governo londrino me
dá uma aposentadoria boa, e nada mais.
Hoje eu estou aqui, vivendo sozinha no meu apartamento, sem sair para nada. Há uma
governanta que faz tudo para mim. Os empregados nunca fazem questionamentos, ninguém
me visita, eu sou um nada na sociedade. Eu escolhi assim. Preferi não infectar a glória de
Londres com a minha história horrível.
Espero pacientemente minhas células cansarem da inatividade e pedirem por descanso
eterno. Não me preocupo com a morte. Na verdade, nesse momento ela seria uma glória para
mim. Deve estar se perguntando o porquê de eu não me livrar logo desse tormento, não é?
Pois bem, o único motivo real é que certa vez eu ouvi uma historinha que quem se suicida, vai
pro inferno. E eu certamente não quero isso para minha alma que ainda é pura.
Dhay Souza

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  • 1. Enganos O que você faria se descobrisse que toda a sua vida fora uma mentira? Que você apenas foi mais peça de todo o quebra-cabeça? O que faria se perdesse tudo o que um dia amou? Eu desistira. De quê? De exatamente tudo. Escola, amigos, amores, família, vida. E foi o que eu fiz. Abri mão de tudo o que me restava de verdadeiro por ter perdido a vontade de estar na Terra e ao mesmo tempo não ter coragem suficiente para sair dela. Minha vida sempre foi muito normal. Tinha uma mãe divorciada há quatro anos, três amigas, um cachorro, gostava de um menino que, como sempre, não gostava de mim e estava na 7ª série. Minha escola também não fugia aos padrões, com os mesmos grupos de alunos: havia quem fosse da turma dos populares, alguns faziam parte do grupo dos NERDS e aqueles que não participavam de nenhuma turma, como eu. Eu gostava da minha normalidade, mas coisas estranhas começaram a acontecer. A princípio eu não fazia idéia do que me esperava. Começou com os sonhos. Sempre sonhos. Quando completei 12 anos, por vezes eu sonhava com uma explosão. Perto dos 13 as noites de pesadelo se intensificaram. Eram quase que seguidas e as cenas nunca mudavam. Eu me via no corpo de um bebê, com alguém fugindo comigo no colo. Havia fogo pelas laterais, podia sentir o calor na minha pele frágil e o vermelho intenso das chamas me cegava. Acordava sempre quando essa pessoa me entregava a uma mulher. O suor molhava as cobertas e eu não voltava a dormir. Depois vieram as perseguições. Sempre surpreendia alguém me observando ao voltar para casa ou indo ao cinema ou à escola. Alguns carros passavam lentamente por mim e alguém virava a cabeça para me ver até onde a visão alcançava. Porém eu nunca ficava com medo ou ao menos preocupada. Minha vida era tão normal que eu nem notava tais fatos, embora fossem constantes. Eu não era curiosa, mas uma descoberta em especial despertou em mim esse adjetivo. Um dia, revirando documentos antigos da minha mãe, descobri uma certidão minha, mas não de nascimento, de criação. Era um papel azul, simples, com meu nome e algumas inscrições: “Data de surgimento: vinte e sete de agosto; Identificação: 7V421XL”. No topo, um logotipo e um nome de empresa, WART. Parecia uma sigla, mas eu não fazia idéia do significado. Guardei-o. A partir daí, surgiram perguntas. A normalidade já não me vendava os olhos. Minha cabeça fervia de curiosidade, de vontade de saber o que significavam aqueles sonhos, quem eram aquelas pessoas, por que me seguiam, o que fazia meu nome naquele papel. Eu tentava ligar os fatos, mas não tinha imaginação nem criatividade suficientes para descobrir a verdade sozinha. Semanas se passaram e eu com os incessantes questionamentos. Até o dia em que, retornando da escola, no trecho final do trajeto, onde eu seguia sozinha, um daqueles carros passou por mim e parou a alguns metros à frente. Enchi-me de esperanças. Finalmente minhas perguntas seriam respondidas!
  • 2. Aproximei-me lentamente. A porta do carro já esperava por mim aberta. Ao entrar, fechei-a. Havia três homens, dois eram fortes e altos, o outro tinha uma expressão fria. Usavam ternos pretos. Este último estava ao meu lado, no banco de trás. Virou-se para mim e olhou-me como quem diz “cale a boca e ouça; perguntas para depois”. -Nós fazemos parte da WART, uma sociedade do governo norte-americano, presente na maioria dos países das Américas, que visa à criação e treinamento de jovens dotados de extrema força física e desenvolvimento psíquico a fim de tornarem-se soldados únicos. Há muito tempo os Estados Unidos teme uma guerra contra os países do Oriente Médio, então o surgimento de tal sociedade foi primordial para assegurarmo-nos do triunfo do bem sobre os terroristas asiáticos na futura batalha. Você é uma das crianças que foram perdidas na explosão de 1998. Agora estamos recuperando-as para prosseguirmos com o treinamento e darmos continuação ao processo de formação do batalhão especial. Estava sem reação. Nunca uma verdade dessa magnitude me foi dita. Caramba, eu deveria ter sido uma soldado. Não, impossível! Eu tinha uma vida tão sem graça, sem emoções, como poderia ser? Claro, eles estavam enganados. Haveria outra garota parecida comigo, com a mesma idade, com uma família e nome parecidos. Essa era a única explicação plausível. Eu jamais faria parte de uma sociedade secreta dos Estados Unidos! Mas eu vi aquele documento. Era meu nome sob aquele símbolo. E os pesadelos eram tão reais! Olhei pensativa pela janela. Estávamos numa rua que eu desconhecia. Morava naquela cidade há 12 anos e nunca havia visto aquele lugar. Não tinha casas e nenhum tipo de construção. Aparentemente, o homem nunca havia tocado naquele santuário verde. Só aparentemente. Ao longe vi surgir uma construção imensa. Muros azuis muito altos cercavam um prédio de vários andares. Era simples, sem nada em especial. Deveria ser uma tentativa de não chamar a atenção. Impossível. No meio do nada, algo tão alto com certeza seria notado. Paramos no portão. Os homens fortes se identificaram e repetiram o código que eu encontrei naquele papel azul. Certamente seria meu nome dali para frente. O carro prosseguiu e estacionou num pátio. Vários outros veículos idênticos estavam alinhados e, no meio do pátio, duas filas de crianças aproximadamente da minha idade. De um lado os garotos, do outro as garotas. Um dos homens fortes segurou-me pelo ombro e dirigiu-me à fila das garotas. À minha chegada, a fila começou a andar. Fomos conduzidas ao terceiro andar do prédio, onde cada quarto fora reservado a uma dupla de meninas. A minha parceira, Lívia, era uma ruivinha com sardas leves nas bochechas. Não falava muito, o que era bom para mim. Nosso relacionamento não passou de coleguismo. Durante os dias que passei nesse quarto, descobri que os laços familiares que ela tinha eram idênticos aos meus. Mãe divorciada, pai morando em outra cidade e três amigas. Isso já era demais. Já não bastava ser preparada para uma guerra, agora eles também inventaram uma mãe? Mas até mesmo minha lembrança mais remota era dessa mulher! Como ela poderia não ser minha mãe? E as minhas amigas? Nossa convivência era tão boa, elas não poderiam ter sido forjadas. Era pura coincidência, só poderia ser. Tinha que ser.
  • 3. Nos dois dias seguintes, só interrogatórios e testes. Perguntas sobre coisas as quais eu nunca ouvi falar, sobre temas sobre os quais eu nunca conversei. E, para minha surpresa, respondia-as corretamente. Se pensasse que não sabia, bastava procurar no fundo da memória para encontrar a resposta. E os testes eram dos mais variados. Desde resistência física até capacidade de raciocínio. Eu fiquei maravilhada com as coisas que meu corpo era capaz de fazer! No outro dia, exames. Eu fui submetida a todos os tipos imagináveis de exames. Aparelhos complexos e estranhos, médicos de todos os gêneros. Aquilo tudo para avaliar como andava o meu sistema. Eles explicaram que, ao nascer, recebíamos uma droga que aumentava a nossa capacidade. Física, psíquica e imunológica. Éramos as criaturas perfeitas, sem nenhum efeito colateral que nos prejudicasse. Era tudo muito bom, mas não para mim. Eu não suportava a idéia de ter uma mãe falsa, de não ter amigas, e quem sabe até o menino dos meus sonhos não fora contratado para me seduzir. Meu mundo estava desmoronando, eu já não queria levantar pela manhã. E para piorar, a ameaça da guerra iminente. Eu precisava sair daquele lugar. Rápido. Para tanto, não contava com a ajuda de outras garotas, e nem poderia confiar em ninguém. Não dormia à noite, pensava numa maneira de sair dali, viva ou morta. Mais uns dias depois, quando todos haviam baixado a guarda – nos primeiros dias, a segurança fora reforçada, temendo uma tentativa de fuga – me preparei para escapar. Durante um intervalo no pátio, eu me aproximava do muro. Foi muito fácil, mais do que eu esperava. Só bastou alguns pulos e uma escalada para atravessá-lo. Não havia seguranças do lado de fora. Eles subestimaram os jovens soldados. Nunca observei o quanto eu era capaz de correr. Foi quase como por instinto. Talvez realmente fosse meu instinto me salvando do perigo. Minhas pernas não obedeciam à mente, apenas se lançavam à frente de um modo ordenado, sempre aumentando a minha velocidade. Não prestava atenção ao caminho que seguia apenas me preocupava em me manter em movimento temendo uma aproximação da WART. Quando dei por mim, estava na agência bancária da cidade. De imediato não percebi o porquê de estar ali, mas bastou pensar e planejar um pouco e me encaminhei ao terminal eletrônico. Vasculhei os bolsos e encontrei o cartão de crédito da conta onde meu pai depositava todo mês a minha mesada. Havia uma boa quantia, seria suficiente para eu sumir por uns tempos. Fui à rodoviária e comprei passagens para a capital. Lá eu decidiria o que fazer. Durante a viagem, dormi. O incessante sonho me perseguia, e eu tinha a impressão de que ele nunca me abandonaria. Seria um companheiro pelo resto da minha vida. Ou melhor, existência. Ninguém pode ter uma vida quando está fugindo de uma sociedade secreta do governo dos Estados Unidos! Chegando à capital, já estava com um plano inteiro traçado. Iria para o interior, teria uma vida sossegada até atingir a maioridade e, a partir daí, iria para a Europa. Uma vez que a
  • 4. WART lutaria contra o Oriente Médio, não haveria sedes na Europa, ainda mais que não encontrariam países que se aliassem aos seus objetivos. Passei numa loja, comprei algumas roupas e uma mala. Retornei ao terminal para embarcar. Escolhi uma cidade bem distante, onde ninguém jamais ouvira falar de mim, muito menos daquele grupo idiota. A viagem durou mais de cinco horas. Era um lugarzinho remoto, que provavelmente nem existia no mapa. Instalei-me numa pousada, onde pretendia passar os próximos seis anos. Organizei as roupas no armário e saí a fim de conhecer o ambiente. Só precisei de meia hora para percorrer a cidade de ponta a ponta. Era agradável. Um clima adequado para a sobrevivência humana, algumas lojinhas, um posto de gasolina, uma farmácia, uma escola em condições precárias, tudo do mais básico. O mais incômodo foi o olhar das pessoas. Por onde passava, vários olhares curiosos pousavam sobre mim. Não era surpresa, afinal, num lugar tão pequeno não deveria haver novidades freqüentes. E eu era uma novidade. Uma garota de 13 anos, sozinha, vinda de tão longe, se hospedando na pousada. Certamente seria tema de muitas fofocas, e por muito tempo. Dormi por bastante tempo, quando retornei ao meu quarto. Foi um sono tranqüilo, sem pesadelos desta vez. Ao acordar, já pela manhã, fui tomar café no restaurante da pousada. Conversei com algumas pessoas, aquelas que seriam minha companhia durante minha estadia neste lugar. Eu creia que ali estavam sendo formados grandes laços de amizade. E desta vez eram verdadeiros, e não contratados por uma organização anti-guerra. O que se seguiu foi casual. Matriculei-me na escola para poder concluir o curso básico, arranjei um emprego de garçonete no bar da esquina. Eu tinha uma enorme quantia em dinheiro na minha conta, mas precisava trabalhar para manter as aparências. Meses depois, me tornei íntima de uma família que morava ao lado da pousada. Eles encarecidamente me ofereceram um quarto em sua casa e eu recusei de imediato. Insistiram, disseram que eu poderia pagar aluguel, ou ajudar na casa, caso eu preferisse. Com tais condições, aceitei. É bem mais confortável e aconchegante esperar os anos passarem em uma casa de família do que numa pousada medíocre. Esta parte de minha vida foi monótona como sempre. Ninguém me fazia mais perguntas do que o necessário, eu estudava, trabalhava, passeava, ia a festas com algumas amigas, e até conheci um cara com quem namorei dois anos. Contudo, não abri mão da idéia de ir para a Europa. Já estava me arriscando demais permanecendo no Brasil, mas não poderia sair do país sem autorização de pais ou responsáveis, coisas que eu não tinha. No meu aniversário de dezoito anos, promovi uma comemoração que abalou a cidade. Aquele seria o dia de minha total liberdade. Meu descanso estava próximo. Despedi-me de todos, retirei minha inscrição da escola, arrumei tudo. Retornei à capital, tirei passaporte e segui para o aeroporto. Enquanto esperava o avião, pensei e relembrei. Pensei na minha falsa mãe, na falsa vida que eu levava até aquele carro aparecer. Eu nunca fui eu mesma. Tudo não passou de uma invenção. Seria eu quem iria salvar
  • 5. os EUA da ameaça dos terroristas. Pensei nos últimos anos. Nada havia me acontecido naquela cidade, será que eu não poderia continuar a viver ali? As pessoas daquele lugar gostavam de mim, e eu gostava delas. Tudo estava tão bom! Porém não poderia continuar lá. Eu poria em risco, além de mim, toda aquela gente. Não seria justo para com eles. Aquele era um lugar tão pacato, seria crueldade ferir a paz daquele santuário. Meu avião decolou, e eu vi pela última vez o meu país de origem. Pelo menos, de nascença, porque eu servia realmente a outro país, o país que sempre oprimiu outros povos e sempre incentiva guerras. Foi esse país que permitiu a minha sobrevivência. Talvez fosse melhor se eu nem existisse. Vim morar em Londres, cidade grande, governo antiamericano. Com minhas habilidades adquiridas graças ao programa de treinamento da WART, consegui um emprego bom. Meus objetivos eram simples: ter um emprego perigoso, esperar dois anos, me acidentar propositalmente, viver da aposentadoria. Foi o que aconteceu. Dois anos e meio após a minha chegada, provoquei um acidente na empresa e fiquei impossibilitada de continuar no mercado de trabalho. O governo londrino me dá uma aposentadoria boa, e nada mais. Hoje eu estou aqui, vivendo sozinha no meu apartamento, sem sair para nada. Há uma governanta que faz tudo para mim. Os empregados nunca fazem questionamentos, ninguém me visita, eu sou um nada na sociedade. Eu escolhi assim. Preferi não infectar a glória de Londres com a minha história horrível. Espero pacientemente minhas células cansarem da inatividade e pedirem por descanso eterno. Não me preocupo com a morte. Na verdade, nesse momento ela seria uma glória para mim. Deve estar se perguntando o porquê de eu não me livrar logo desse tormento, não é? Pois bem, o único motivo real é que certa vez eu ouvi uma historinha que quem se suicida, vai pro inferno. E eu certamente não quero isso para minha alma que ainda é pura. Dhay Souza