SlideShare ist ein Scribd-Unternehmen logo
1 von 69
SHEENA
O CAMINHO DO TIGRE

  Daniel Paixão Fontes
     1996 – 1997 - 2003


                          1
PARTE I - O TREINAMENTO
       Algo me fazia temer a escuridão. Um medo ingênuo de que eu ficaria cego,
ou que monstros que só a luz pode afastar viriam me capturar. Mas, no final das
contas, eu acabei gostando mais da escuridão do que da própria luz. Não
subjetivamente, não! Eu ainda amo a Deus e o venero! Mas gostei da escuridão
como ausência de pura luz física, dita e simples, assim. É na escuridão onde eu me
sinto mais aconchegado. Não posso ser visto em minha solidão doentia. Isso é bom.

        Mas como todos as noites são curtas, os dias são longos. E é um belo dia do
ano de 1098 da era cristã. O sol nasce belo e forte ao leste das montanhas Shizu.
Yoan, meu mestre, já esta à mesa comendo os preparos que Sho Win preparara.
Como de costume, nenhuma palavra é dita durante toda a refeição. Isso é difícil de
aceitar para um jovem recém saído de sua família de 7 irmãos. O silêncio só seria
quebrado em exatas 2 horas, início do treinamento diurno, e voltaria ao anoitecer,
quando todos deveriam meditar. Fazem exatos 4 dias que cheguei aos montes Shizu,
e meu pai, Wong, havia me arrumado esta enrascada.

        Yoan era o maior mestre que a China tinha. Pessoas morriam para por seus
filhos em sua custódia, sob seu treinamento. Só 4 eram selecionados, a cada 10
anos, para tal honra. Eu era um dos 4 escolhidos, e até daqui a 3 anos, eu e os
outros 3 ficaríamos incomunicáveis entre nós. Eu ainda era o mais bem amparado.
Eu estava dormindo na casa de Yoan, comia a comida de Sho Win e treinava
supervisionado pelo próprio mestre mais de 3 vezes por semana. Os outros deviam
me odiar.

        Mas nem sempre o que fica na casa do mestre é o mais forte dos 4. Meu
próprio pai foi discípulo de Yoan, e nunca foi um grande lutador. Ele, assim como eu,
ficou na casa com o mestre. Os outros 3, ao contrário , sempre eram mais fortes.
Viviam nos picos das montanhas, nas galerias geladas abaixo da montanha ou nas
florestas ao sul de nossa morada.

       E para piorar, esta turma será a última de Yoan em toda sua vida. Ele estava
completando seus 95 anos de vida, e um treinamento de 10 anos é muito exaustivo.
Eu tenho apenas 13 anos, e nem sequer me imagino com tanta idade. Mas dizem
ainda que ele agüenta umas 2 ou 3 turmas novas. Na verdade ele esta muito bem
para um homem com tal idade. Ainda é capaz de correr mais rápido do que eu, pular
mais alto e bater muito, muito mais forte. Na verdade os homens daqui sempre
relutaram muito em morrer cedo. Meu avô morreu com 128 anos. Assim mesmo, foi
morto a pedradas na cabeça por um doente mental, meu tio.

       Bem, mas meu pai intercedeu junto a Yoan para que ele me aceitasse. Feito
isso, deixei para trás minha numeroso família, poucos amigos e meus sonhos de ser
um grande fazendeiro. Seria agora um grande lutador. Eu não queria lutar, mas
durante estes quatro dias algo dentro de mim floresceu. Não era ódio, nem mágoa,
mas ainda era algo estranho, que queimava por dentro. Eu fui morrendo pouco a
pouco, para dar lugar ao homem que eu seria em pouco tempo. Um grande
guerreiro, quem sabe, ou um grande covarde, mas seria um novo homem.

        Terminada a refeição, Yoan sai para apreciar a manhã. Respira
profundamente, e inicia um Kati belo e harmônico que repete toda manhã. Eu não
sei se ele quer que eu o acompanhe nestes movimentos, mas eu só me contento em
olhar alguém se mover com tanta graça e habilidade como ele. Terminados os


                                                                                   2
movimentos, ele corre por cerca de 10 milhas, sem ao menos aumentar a
respiração. Ele se volta para mim. É hora de iniciar mais um dia de treinamento.

        Inicialmente (e isso era rotina nos demais dias, pelos próximos 15 meses)
fazíamos um alongamento completo do corpo. Doía muito no início, e ele me
mandava relaxar. Parece absurdo, mas funcionava. 50 minutos exatos de
alongamento. Era isso. Depois, uma bela corrida de 20 quilômetros. Yoan percorria
em exatas uma hora e meia, eu levava de duas a quatro horas para completar esse
percurso. Ele me olhava, paciente, como se já soubesse que eu era frágil e que tinha
que ter cuidado comigo, assim como meu pai. Era este o olhar dele. Deus, como eu
queria surpreendê-lo! Fazer ele compreender que ele estava errado, que eu podia
ser forte!

        Depois, nadávamos contra a correnteza do pequeno rio que havia ali por
perto. Não era muito forte, mas eu quase me afoguei umas 3 ou 4 vezes no início.
Yoan, por incrível que pareça, após me salvar, dava gargalhadas, se jogava de volta
no rio e nadava de maneira magistral. Ele era de ferro.

       Após o nado, íamos comer. Sho Win nos esperava, com um grande sorriso e
muita comida. Ela era nova, quase tão nova quanto eu. Era muito quieta, e
obediente. Yoan havia lhe criado desde seu nascimento, disso eu sei, mas não sabia
se ele realmente era pai dela, e isso eu não sei até hoje. Mas, enfim, ela era uma
bela moça com seus 18 anos, e cozinhava muito bem. Após comer e descansar por 2
horas, nós retomávamos o treino.

        Yoan se sentou em uma pedra e apenas me observava. Eu aguardava suas
ordens, e então ele me mandou sentar a sua frente. Estávamos no lugar mais belo
que eu já havia visto em toda a minha vida. Era recoberto por grama verde e farta,
havia a pedra onde o mestre estava sentado, havia uma grande árvore ao seu lado,
e ao fundo uma grande cascata de água caía, formando uma expeça nuvem. Tudo
isso aliado ao céu azul e ao sol poderoso que pairava naquele dia, juntamente com o
aspecto sombrio que as demais montanhas faziam ao fundo, o que me agradava,
pois eu ainda gostava mais do escuro do que da claridade. Eu simplesmente me
apaixonara pelo lugar.

- Você gostou deste lugar, Ling ?
- Sim, mestre.
- Você deve escolher um lugar que seja seu nesta montanha, Ling. Um lugar seu,
para que você possa vir aqui sempre que necessitar de respostas.
- O lugar que eu escolher vai me dar respostas?
- Não. Todas as respostas que você tanto anseia estão dentro de você mesmo, Ling.
Você só precisa de um lugar seu para que elas lhe venham. Um lugar seu.
- Mas mestre, este é o seu lugar! Eu já o vi aqui meditando todas as noites.
- Agora ele será o seu lugar, Ling. Eu o deixo para você.
- Por que mestre?
- Por que eu já tenho todas as respostas que preciso. Este lugar é bom, e agora é
seu.

      Ele se cala por completo, e fecha os olhos, realizando uma prece interna e
pessoal, como se estivesse se despedindo do lugar que lhe serviu durante décadas.

       Partimos então para o grande rochedo que havia ao norte. Ali eu tinha que
socar a rocha até que minha mão começasse a sangrar. Devido aos últimos dias e os



                                                                                  3
ferimentos que eu havia adquirido, logo isso acontecia. Mas o mestre me mandou
continuar a socar a rocha. Não com tanta força, para não quebrar ossos, mas com
força o suficiente para me rasgar a carne dos dedos. O local que eu socava ficou
manchado de sangue. E assim fiquei por uma hora inteira. As lágrimas caiam, mas
Yoan não me permitia parar. Ataduras eram colocadas nos ferimentos, mas eu não
podia parar de socar a rocha. Por fim, ele me pediu para parar. E eu parei. Ele me
olhava com orgulho, eu, ali, com lágrimas nos olhos, sangue quente e semi
coagulado pingando de minhas mãos, o suor a tomando conta de todo o meu rosto e
meu coração disparado. Eu não havia parado até ele me mandar. Ele não me disse
uma só palavra, mas eu vi em seus olhos o orgulho que sentia de mim por não ter
parado ou reclamado um só minuto. Eu o havia finalmente surpreendido.

       Saímos do lugar, e rumamos para um bosque. Eu devia, agora, pular por
entre tocos de árvores dispostos a mais de dois metros uns dos outros, no mínimo.
Cai muitas vezes, é verdade, mas dei pulos muito bons. Yoan, para me demonstrar
como deveria ser feito, deu saltos impressionantes. Mais uma hora. Pulos e pulos.
Meus músculos gritavam por piedade, mas eu sabia que nunca poderia pedir
piedade, pois quebraria aquele elo de admiração e orgulho que estávamos criando
entre nós.

       Após isso, o penúltimo exercício: golpear com mãos, braços, pernas, pés e
principalmente canelas, árvores finas e grossas até a noite iniciar. Isso doía muito.
Mas Yoan me demonstrou mais uma vez como é que deveria ser feito, e partiu uma
árvore média com um forte golpe de canela. Ele me pediu para não tentar aquilo
ainda, pois com certeza eu quebraria algo, mas não a árvore. E eu ficava ali,
golpeando, golpeando, sob o atento olhar dele. Parecia que o dia não ia acabar
nunca. Por fim ele me manda encerrar o treinamento por hoje.

       Voltamos até a frente da casa. O mestre entra para se banhar, enquanto que
eu deveria tomar banho no pequeno rio e depois fazer mais exercícios de
alongamento. O silêncio dominara mais uma vez. Eu me dispo e caio na água gelada,
que é até boa, pois meu corpo acabado se sente melhor. Ouço uma risada e olho ao
redor para ver de onde vem. Vem de trás de uma pedra, de onde Sho Win me
espiava. Ao ver que fora descoberta, ele dispara em corrida para dentro da casa.

        Eu termino o banho, visto roupas secas e limpas, e realizo o alongamento,
assim como Yoan me ensinara. Entro para comer. O jantar é no mais completo
silêncio. Depois, vou para meu lugar, aquele que Yoan me cedera. Uma noite clara e
limpa exibe uma coberta de estrelas incrível. Eu me sento na pedra, e fico a observar
toda aquela beleza escura, sob a luz de uma lua tão cheia quanto pode. Eu medito
por um longo tempo. Eu não tenho perguntas para serem respondidas ainda, por
isso eu apenas explorei o local com meus sentidos.

       O Inverno veio, e eu ficava horas e horas de baixo da neve gelada, sem
agasalhos. Eu meditava a noite sob tal neve, que de certa forma me purificava a
alma sangrada durante o treinamento. Mesmo nos dias em que o mestre dormia
fora, para treinar os outros 3 alunos, eu seguia a risca o treinamento. Minhas mãos
foram ficando resistentes, e não sangravam mais ao bater na rocha. Meu corpo,
pouco a pouco, ia se transformando, ficando forte e belo. Eu podia notar os olhos de
Sho Win sobre mim durante o dia todo. Eu não sentia mais as dores que sentia
antes. Eu estava forte, como um verdadeiro lutador, ao fim de 15 meses. Mas não
havia sido treinado em técnica.




                                                                                   4
Um dia, em meditação, eu compreendi a razão de tudo isso: eu estava sendo
preparado para absorver o conhecimento. Kung Fu não era fácil, e ainda mais com
Yoan. Seu objetivo não era nos tornar meros lutadores, mas sim verdadeiros
mestres, versados em todos os estilos conhecidos.

        Sim, eu ainda era um mero aprendiz. Um dia, quando o mestre me permitiu
fazer algumas perguntas, eu lhe falei de minha conclusão. Ele sorriu, e apenas disse:

- Você medita buscando respostas para suas perguntas. Elas sempre serão corretas.

       Ainda deveríamos continuar por mais tempo com este treinamento padrão.
Até completar 3 anos, para então nós quatro nos unirmos e juntos iniciarmos o
treinamento. O mestre se calou, e assim, nós observamos um pequeno grupo de
aves voando para o sul.

       Cerca de 6 dias depois disto, o mestre declara a mim e a Sho Win que ficaria
fora por 3 semanas, uma com cada um dos outros 3 alunos. Sho Win deu um sorriso
maroto, e eu soube, na hora, que correria certo perigo durante este tempo. Mas que
perigo? Yoan parte, levando consigo pouca coisa. O que será que os outros faziam
para comer, dormir...? Yoan some no caminho que segue, e eu inicio meu
treinamento. Corro, nado na água parcialmente congelada, pulo, bato, alongo... e lá
se vai mais um dia.

       Sho Win me observa o dia inteiro, só que agora de forma mais explícita, pela
ausência de Yoan. A noite, durante o jantar, ela fala algo, como que o dia foi frio,
que a sopa esta sem sal... eu não prestei atenção e nem respondi. Estava
desabituado a falar durante minha alimentação. Ela não se importou. Durante estes
quase dois anos nós nunca conversamos muita coisa além do necessário. Mas
sempre nos olhávamos. Ela me observava com grande desejo, eu podia ver
claramente, e o pior, eu estava lhe retribuindo os olhares já fazia algum tempo.

        Ciente da situação, logo após comer eu fui até a pedra, meditar, e de certa
forma, fugir. O que eu deveria fazer? A resposta veio, não de minha mente, mas sim
dos lábios quentes e úmidos de Sho Win. Um ardente beijo foi trocado. Nós nos
amamos ali mesmo, sobre a grama gelada, com a neve caindo sob nossos corpos
nus. Nunca em toda minha vida eu havia feito coisa semelhante, e nunca foi tão bom
estar vivo como naquele momento de prazer infinito. Ficamos ali por vários minutos.
Por fim, voltamos para a casa de Yoan, e continuamos esta troca de prazeres até
amanhecer. Pela primeira vez desde minha chegada ao monte Shizu eu não sai para
treinar.

       Os demais dias transcorreram normalmente. Eu treinava o dia inteiro e de
noite eu e Sho Win dormíamos juntos. E assim foi seguindo. Eu abdicava de minha
meditação para ficar ao lado de Sho Win por mais tempo. Isso me fazia um certo
mal. Eu não estava mais pensando tão claramente como antes.




                                                                                   5
Sho Win entendeu quando eu lhe expliquei que teríamos que nos ver por
menos tempo. Eu voltei e meditar, e perguntas incríveis me vinham à mente. Mas,
agora, eu não estava obtendo respostas. Era como se aquele lugar fosse novo para
mim desde aquela noite com Sho Win. Resolvi relaxar e buscar com meus sentidos,
mais uma vez, toda a expansão do lugar que me pertencia. Reconheci-o de novo. As
respostas me voltaram, e eu pude dormir mais uma vez purificado de corpo e alma
por aquela neve, que era a encarnação da paz que eu obtinha novamente. Sho Win
me abraçava como se o mundo fosse terminar. Nos amamos mais uma vez.
Dormimos agarrados um ao outro, como dois amantes que éramos.


                              ******************

        Yoan voltara. Para surpresa minha, e de Sho Win, ele trazia consigo 3
rapazes. Os 3 outros alunos de que ele havia falado. Os 4 finalmente ficariam juntos
e o treinamento teria início.

- Mas mestre, ainda não se passaram 3 anos, como o Sr. havia dito.
- Vocês já estão prontos, Ling. Venha, junte-se a nós.

       Os três observavam Ling com um olhar de admiração, inveja e ódio. Eles
seriam grandes amigos.

- Apresente-se a Ling - manda Yoan.

       O maior de todos nós era Lyu. Era belo, forte e rápido. Isso o tornava meu
maior competidor em relação a Sho Win. Ainda não tenho certeza se ela realmente
me ama ou se só meu usou para suprir seus desejos carnais, e não tendo mais
ninguém por perto além de mim...

       O outro era Lao, baixo, cabeludo e mortal. Já quebrava árvores com suas
canelas, mesmo Yoan o repreendendo. Era uma boa pessoa, dedicada e leal.

       Por último havia Sakazama, o único estrangeiro, um japonês. Era o mais
calado dos três, e segundo Lao, o mais perigoso. Eles brincavam muito com Sak,
como nós o chamávamos, por ele ser do Japão. Ele não se demonstrava nervoso ou
agressivo. Nem um pouco. Isso assustava.

      Os dias seguiram, eu e Sho Win nos encontrávamos às escondidas de noite, e
ela nem sequer olhava para qualquer um dos outros. Ela gostava de mim mesmo,
mas o que me preocupava é se um deles tentasse alguma coisa "intima" com ela.
Mas eu nada falei a ela.

       O treinamento seguia normalmente, sem alterações, segundo Yoan, por mais
alguns meses. Mesmo sendo evidente que eu era o mais fraco de todos, Yoan ainda
me olhava com orgulho, coisa que ele não fazia com os demais. Sak, por sua fez, se
esforçava ao máximo, e mesmo assim Yoan não se importava. Os quatro logo
ficaram amigos. Sak, porém, só falava com Yoan. Mas um dia, quando estava
meditando, ele veio até a mim. Passou pelo meu lado e ficou a admirar a paisagem
noturna como eu mesmo fazia.

- É um belo lugar, não acha? – perguntei.



                                                                                   6
-   É - disse ele. Ainda nevava, muito pouco, mas nevava.
-   Olhe para este floco de neve - disse ele, pegando um com a mão.
-   É tão frio e bonito... mas derrete com o mais leve contato com a pele.
-   É, ...

       Ele se vira e soca o ar com tal precisão e segurança que acerta uma única
folha da árvore que estava caindo atrás de si. Ela voa para mais longe.

- Como você sabia que ela estava lá? - pergunto eu
- Medite sobre isso... e talvez encontre a resposta, um dia - diz ele, indo embora.

      Eu me encontro mais uma vez com Sho Win, mas não conseguia me
concentrar nela.

- O que foi, Ling?
- Yoan falou que o treinamento começa amanhã.
- E daí?
- Eu me sinto despreparado. Os outros já sabem tanto...
- Você também já sabe. Esqueceu o que o mestre sempre diz? "Nós já sabemos tudo
o que temos que saber. Só que ainda não sabemos disso"
- Sim, mas...
- Não quero mais ouvir uma palavra. Você é o melhor dos quatro - diz ela, dando um
grande beijo em mim. Adormecemos ali mesmo, juntos. Por sorte Lao, que sabia de
nosso romance sei lá como, veio nos acordar.
- Se o mestre pega vocês aqui ele vai te mandar embora Ling! Tomem mais cuidado!

         Ele vai embora. Eu sabia que pelo menos em um eu podia confiar.


                                 ******************

       O sol nasce mais uma vez, belo e forte como no primeiro dia em que eu
cheguei. Nem parecia que havia nevado a menos de um dia ainda... mas agora o
tempo era perfeito. Yoan nos reúne na frente da casa. Sho Win retira água do riacho
para seus afazeres, embora eu percebesse que ela nos observava, com os olhos
voltados para mim.

- Hoje o verdadeiro treinamento terá início. Vocês se tornarão os maiores guerreiros
de sua geração. Serão versados, a partir de agora, em todos os estilos possíveis - diz
Yoan.
- Mas antes vocês tem que compreender que uma luta é o último ato de uma
tragédia. Vocês tem que evitar, a todo custo, um confronto. Não por que são fracos,
mas sim por que são fortes, mais fortes que os demais. Os homens são todos iguais
em sua essência. Não existe motivo para disputas. Vocês tem que entender que tudo
o que eu ensinar hoje só lhes servirá, realmente, se vocês compreenderem que uma
palavra tem a força de mil golpes. Nunca ataque, somente defesa. Nunca caos, só
harmonia. Nunca luta, só paz.

       Todos nós, pelo menos aparentemente, compreendemos profundamente o
que ele queria dizer. A luta é como uma espada, que só deve ser tirada da bainha
quando for realmente necessária, pois quando despida, ela sempre terá que ser
usada. Tínhamos o resto do dia de folga (a primeira em dois anos e meio de
treinamento). No dia seguinte, iríamos para o cume de Shizu, iniciar nosso



                                                                                      7
aprendizado real. Neste dia, nos separamos em dois grupos. Eu, Sho Win e Lao
fomos caminhar pelo bosque. O restante, incluindo Yoan, ficaram no riacho,
nadando.

- Eu também já tive uma namorada, sabe? O nome dela era Kiy. Mas agora eu acho
que ela deve estar com outro... huum, é, faz muito tempo desde que eu parti para
cá e a deixei só. Ela definitivamente já deve ter arrumado outro...
- Não fale assim, Lao. Ela pode estar lhe esperando... - diz Sho Win, segurando em
minha mão, como namorados.
- Não, eu falei pra ela não me esperar. Ela sabia para onde eu estava indo e quanto
tempo ia demorar.

      Um silêncio mórbido domina o ambiente, com o vento calmo balançando a
copa das árvores, os pássaros a cantar e nós a caminhar.

- Qual é a sua história, Lao? - pergunto eu, abraçado a Sho.
- Eu morava nos becos de Goku, um feudo não muito distante daqui. Eu era ladrão,
sabe? Minha mãe era doente e vivia pedindo esmolas nas ruas. Eu jurei que nunca ia
pedir daquele jeito. Mas acabaram matando ela. Pra me virar nas ruas eu tive que
aprender a bater forte pra sobreviver. Foi ai que eu encontrei Kiy. Ela era filha de um
ex-aluno de Yoan. Ele nos descobriu um dia e ficou impressionado em como eu
agüentava apanhar e como meu soco era forte para o de um garoto. É que ele me
bateu pra valer, sabe, mas eu também bati nele. Ele então me falou que para eu ser
digno dela eu teria que me tornar um grande lutador a ponto de derrotá-lo. Chamou
Yoan, que de início me considerou fraco e incapaz do treinamento. Porém, no último
dia em que ele estava no feudo, 4 idiotas um pouco maiores que eu vieram me
bater, por que eu já tinha fama de bom de briga entre os pequenos ladrões da
cidade. Yoan apenas observou. Eu acabei com cada um daqueles cretinos em apenas
5 minutos. Yoan me trouxe para cá na hora. Mas duvido que Kiy me espere. Eu
estou aqui mais por causa de mim mesmo. Não gosto e nem gostava de roubar.
Quero ser um grande lutador e oferecer meus serviços ao Imperador como guarda
pessoal.

       Ficamos calados.

- Sabe, eu morava neste bosque. Eu te vi muitas vezes aqui, Ling.Você pula
desajeitado!
- Eu melhorei! - dizemos em tom de brincadeira e provocação.
- Então prove - diz ele.

      Eu pulo em cima do primeiro tronco, onde me equilibro facilmente. Lao pula
em outro tronco e vira seu rosto em minha direção.

- Vejamos se pode fazer algo melhor que isso:

      Ele pula de forma sobrenatural, dando piruetas invertidas, se equilibrando em
um só pé e saltando como uma rã. Ao final de 1 minuto ele para, ofegante.

- Agora você - diz ele.

      Eu olho para Sho Win, que também me observa, cheia de esperanças. Ela
nunca havia me visto fazer acrobacias ou lutar. Acredito que nunca houvesse visto
ninguém fazer aquilo antes de Lao. Eu tinha que fazer melhor.



                                                                                     8
Me concentro. Fecho os olhos e respiro profundamente. Um movimento
rápido e potente de músculos e lá estou eu, no ar. Olhos fechados, eu não tenho
medo. Sei onde esta cada tronco, não que tenha memorizado, mas por que eu posso
simplesmente senti-los. Saltos enormes, um mortal duplo, e por fim, caio no último
tronco me equilibrando sobre meu braço esquerdo. Ambos, Sho Win e Lao, me
observam de forma semelhante. Eu havia feito melhor.

       A reação de Lao, para meu espanto, foi de alegria: - Você conseguiu! – disse
ele. Sho Win teve a mesma reação, vindo me beijar ardentemente, deixando Lao
levemente encabulado. Voltamos para a casa de Yoan, que neste momento
simplesmente dormia. Sak e Lyu apenas estavam com seus corpos dentro da água
do riacho, com as cabeças para fora. Lao se juntou a eles, entrando de roupas
mesmo, só se preocupando em tirar as botas. Eu e Sho Win ficamos conversando no
meu lugar de meditação, que era perfeitamente visível do riacho.

        Que casal estranho nós éramos. Ela era bem mais alta que eu, linda, delicada
e amorosa. Eu era mais baixo, forte, e evidentemente mais novo. Ela contava seus
21 anos e eu os meus 15. Era proibido e por isso mesmo tão bom. Sabíamos que
ficaríamos algum tempo sem nos ver. Nos beijamos novamente. Senti os olhos de
Lyu a nos observar, com raiva. Ele aparentemente estava com seus 19 ou 20 anos,
bem mais compatível com a idade de Sho Win que a minha. Eu sabia que ele a
desejava mais do que qualquer coisa ali, mais do que aprender com Yoan.

       Isso estava tornando as coisas perigosas. Ele era o maior e mais rápido de
todos nós. Talvez ele seja no final o melhor lutador. Mas não posso permitir que ele
tente algo contra nós. Resolvo fingir que não percebi seu olhar, e continuo a beijar
Sho Win, agora de forma mais ardente. Minha mão inicia uma dança pelo corpo dela,
de cima até em baixo. Seus seios, grandes para uma chinesa comum, mas perfeitos
para ela, eram macios e quentes. Suas costas, lisas; suas coxas, delicadas iscas de
amor... ela também, por sua vez, retribuía as carícias, me alisando o peito seminu
da camisa aberta, minhas coxas, minhas nádegas e meu sexo por cima de minha
calça.

       Lyu estava visivelmente odiando a mim cada vez mais e mais. Mas eu não me
importava. Sho Win e eu rumamos para o bosque mais uma vez, desta vez sós, de
onde só retornamos a noite.

       Próximo a casa, Yoan nos observa, com olhos cerrados. Nós paramos. Havia
ele descoberto? Eu não sei, mas ele sorriu para nós e entrou mais uma vez na casa.

                          *************************

- Acorde, vamos, acorde! - diz Lao, me empurrando e, por fim, me despertando.
- O que foi? - pergunto eu.
- Está na hora, vamos, se arrume, está na hora! - diz ele, eufórico.
- Na hora do que, Lao? O sol ainda não nasceu...
- Está na hora do teste, Ling, o teste! Yoan me pediu para lhe acordar e lhe chamar!
Vamos, vamos!
- Que teste é esse, pra onde a gente vai... - pergunto eu inutilmente a Lao, que me
empurra para fora, dizendo "Vamos, vamos, os outros estão esperando, vamos!".




                                                                                  9
Chegamos ao lado de fora da casa. Fogueiras ardiam em quatro cantos
diferentes. Assim como quatro pequenas toras dispostas lado a lado no centro das
fogueiras.

- A natureza é formada pelos quatro elementos. Só depois de dominarem cada um
dos elementos é que vocês estarão prontos realmente - disse Yoan, em tom sinistro.
- Mas o senhor falou que hoje iríamos para o cum... POF! - um golpe certeiro em
meu rosto que Yoan desferiu em tal velocidade e força que me custou acreditar que
fora um soco que havia me derrubado.
- Silêncio! Não questione seu mestre, jamais. Vocês nada treinaram até agora. Vocês
são tão nada quanto no dia em que chegaram aqui.São crianças, frágeis e inocentes.
Mas já tem um corpo de homem. Isso é quase tudo que é necessário para iniciarmos
o treinamento. Com meus antigos alunos era tudo o que bastava. FORÇA! Mas agora
eu creio que errei ao treinar apenas o corpo das pessoas. É preciso treinar também o
espírito, e a coragem, e a ética! Sem isso, nada adianta ter treinado o corpo. Sem
isso, apenas estarei treinando assassinos, loucos ou covardes, como o deu pai, Ling.
Eu o aceitei por que queria remediar o mal que havia cometido no treinamento de
seu pai. E acredite, você é idêntico a ele. Mas agora vocês são minha última turma, e
eu não quero fazer de vocês meros lutadores, os maiores guerreiros de sua geração,
NÃO, eu quero fazer de vocês os melhores lutadores de todos os tempos! Sim, nunca
existiu ou vai existir lutadores como vocês em todo o mundo. E para isso, o
treinamento foi totalmente refeito. Esta será a primeira e a ultima fez que eu
ensinarei o Caminho do Tigre. E esta será a entrada para este caminho. Vençam o
elemento. Vençam o FOGO! Caso contrário voltarão para o lugar de onde vieram
imediatamente. Esta é a ultima chance de saírem com vida caso não se achem aptos
para o árdua treinamento. Vençam o FOGO, AGORA! - Grita ele.

        Ele nunca havia falado tanto e tão violenta e seriamente quanto agora.
Admito que senti vontade de chorar, mas como sempre, me contive. E revoltado com
o recém tratamento rígido que ele adotara eu sou o primeiro a perguntar o que devia
ser feito.

- Está vendo as quatro fogueira? Escolha uma para enfrentar.

       Eu aponto para uma, a que eu acho mais ardente.

- Você pode morrer se cometer um único deslize, Ling.

       Eu o olho de forma nova, que, novamente, o surpreende. E ainda digo:

- Eu não vou errar.
- Pois bem. Entre na fogueira e quebre a pequena tora. Não pense que será fácil. Ela
não está queimada ou amolecida, é uma madeira especial, das mais duras que tem
no bosque. Quebre-a com um golpe de canela, Ling. E traga um dos pedaços dela
para mim. VÁ!

       Eu paro em frente a fogueira. Ela brilha e arde, muito. Eu adoro a escuridão,
e ela é tão brilhante... eu não posso tentar, eu tenho que conseguir! O ódio ainda
pulsava dentro de mim, em harmonia com a dor latejante do golpe dado por Yoan.
Eu queria mostrar para aquele velho que eu era o melhor, e era isso que eu lhe
mostraria: o melhor.




                                                                                  10
Tomo impulso, corro de forma dinâmica em direção ao brilho extremamente
quente. Eu sabia que ele não queria exatamente que eu entrasse na fogueira, por
isso eu simplesmente pulei para dentro dela. A tora era visível. Eu dou o golpe mais
forte que posso contra ela. De uma dureza incrível, por um segundo eu chego a
pensar que havia falhado. Mas ai percebo que havia partido a madeira
perfeitamente. Eu atravesso a fogueira sem tocar o chão, mesmo tendo perdido
velocidade com o golpe. Não me preocupo em recolher a parte da madeira, pois ela
havia caído muito próximo do lugar onde eu pousaria em breve, fora das chamas.
Um belo salto, sem dúvida. Um único salto. Em pleno ar adentrar no fogo, partir a
tora e pousar do outro lado, de forma brilhante.

        Minha canela doía muito, é verdade, mas não estava fraturada. A carne no
local havia se rasgado e havia um sangramento, mas eu ainda podia andar
perfeitamente.

     Todos olhavam abismados. Eu havia conseguido, e de forma incrível. Meio
mancando, eu trago a madeira até o mestre. Jogo-a aos seus pés, ainda quente.

- Você venceu - diz Yoan.
- QUEM eu venci? - pergunto eu - A mim ou ao senhor? - e saio mancando para me
sentar em um banco de madeira, e observo todos. Yoan sorri levemente, porém,
escondendo de todos. "O garoto é atrevido, mas sabe usar o ódio de forma perigosa.
Ele me surpreendeu novamente", pensa ele.
- Mestre, permita-me ir agora - diz Sak.
- Vá.

        Sak não parece preocupado. Aquilo parecia uma coisa normal para ele. Ele
estava calmo e realizou movimentos soberbos. Deu um grande salto, e logo após um
violentíssimo golpe contra a tora de sua fogueira. Trouxe-a para Yoan, que mais uma
vez, disse: Você venceu. Sak veio sentar-se ao meu lado.

- Como está a perna? - pergunta ele de forma simples.
- Está boa - digo eu, mentindo.
- Vá para dentro e veja com Sho Win o que pode ser feito, ela está péssima! O
sangue está brotando a olhos vistos - diz ele apontando para meu ferimento.
- Certo... obrigado - digo eu.
- Espere - diz ele - Me traga algo também, certo ? - diz ele, segurando sua perna
com um ferimento se não igual, pior que o meu.
- Certo - digo eu, mancando para a casa.

      Enquanto isso, Lao se apronta para saltar. Eu paro a caminhada para
observar sua vez. Ele pula e atravessa a fogueira rapidamente. Trás a madeira para
o mestre, sorrindo.

- Você venceu - diz Yoan, como um mal espírito.
- Vejam, não cortei a perna! - diz ele alegre e orgulhoso, indo sentar-se com Sak.

       Lyu era o ultimo. Eu não queria vê-lo saltar para não ter que desejar-lhe má-
sorte, e por isso eu estava quase que para adentrar na casa quando eu o vi tirar a
camisa. Eu não o havia visto despido antes, e ele tirou toda a roupa. Havia uma
enorme figura de um dragão vermelho em suas costas. Até mesmo Yoan ficou
preocupado. Aquela era a marca do temido clã de ninjas assassinos JitSu, que havia
criado uma técnica de combate inspirada nas próprias sombras.



                                                                                     11
Ele desfilou por entre as fogueiras, completamente nu. Sho Win, que havia
vindo ver o que ocorria, o contemplou então. Ele a olhou também, e logo depois,
entrou na fogueira, caminhando. Todos se preocuparam, mas Yoan estava calmo.
Por ali ficou ele alguns segundos. Logo depois, apareceu novamente com o pedaço
de madeira e nenhuma escoriação nas pernas ou braços, nem sinais de
queimaduras. Deixou a madeira aos pés de Yoan, e disse em tom forte: "Eu venci".

       Sho Win ainda o observava. Ela não havia me visto. Eu podia ver o desejo em
seus olhos, o mesmo desejo que eu vi quando ficamos sós pela primeira vez. Neste
instante eu soube perfeitamente que eu a perderia. Eu manco em sua direção, e só
então ela me percebe.

- Me de algumas ataduras e alguma erva para cicatrização.

      Ela fica enrubescida, vendo em meus olhos que eu sabia o que passava em
sua mente.

- Sim, um momento.

       Ela volta logo depois com o material. Eu dou as costas a ela e me dirijo para
Sak, que me aguardava, ansioso em limpar a ferida e fechá-la. Lyu já havia se
vestido, mas Sho ainda o observava, assim como ele olhava para ela. Uma troca de
olhares tão explicita que eu não podia mais ver. Rumo para o bosque.

- Partiremos quando o sol nascer - diz Yoan. Eu nada respondo.

       Lao e Sak apenas me observam adentrando na negra e densa mata que se
formava logo a minha frente. Isolado, dentro do mato, eu faço o que não fazia a
muito tempo: eu choro. Choro por que estou vivendo de forma inigualavelmente má.
Separado da família, rejeitado pela amada, sentindo a dor percorrer seus ossos
brancos... eu choro até o amanhecer. Voltando para o lar de Yoan, vejo Sho e Lyu na
parte de trás da casa. Eles não me vêem. Ambos se beijam loucamente. Enquanto os
outros arrumam suas coisas para a viajem, eles se amam sob a proteção do céu azul
que nascia belo, e agora triste.

       Eu ainda choro . Lágrimas de prazer escorrer pelo rosto de Sho Win que cerra
os dentes e geme fracamente; ambos arfam. Algo rápido e proibido, assim como era
conosco. Sem ao menos terem tirado as roupas, ambos se levantam, se beijam mais
uma vez, e vão embora. Eu engulo as lágrimas, engulo o ódio. Jogo tudo em uma
grande fogueira que arde em meu peito, fogo este que move agora meu corpo.

       "Seremos os maiores lutadores do mundo em todos os tempos, e eu ainda
serei o melhor de nós quatro. Meu sangue não mais será derramado sem vingança
mortal contra meu oponente. E que isto não seja uma promessa, mas sim a
realidade".

      Me levanto também, e dou a volta, entrando na casa e arrumando minhas
poucas coisas.

                             *********************

- Não vai se despedir de Sho Win, Ling? - fala Lao.



                                                                                  12
Eu me arrasto até ela, que me olha de forma semi-diferente, mas aos demais
olhos, como sempre havia feito. Apenas uma diferença sublime, que só eu podia
perceber. Ela me dá um abraço, e me beija, sem que eu retribua o gesto.

- O que foi Ling? - pergunta ela de forma sonsa.
- Você está gostando de me tocar, Sho Win? Aproveite, pois se eu voltar a lhe tocar
algum dia não será de forma amorosa, mas sim com um forte chute, assim como eu
fazia com os cachorros de onde eu morava.

- Ling!!! - responde ela tentando parecer inocente.
- É isso mesmo, não é? Afinal você não passa de uma maldita cadela!

      Ela responde me dando um forte tapa no rosto, mas nem sequer chora, pois
sabe que eu estou falando a verdade.

- Como pode?!! - diz ela, agora tentando iniciar um choro.

       Eu respondo com apenas duas ásperas e fortes palavras, sussurradas em seu
ouvido.

- Eu vi.

       Ela compreende, e para de chorar. Fica imóvel, como se soubesse que eu
queria matá-la naquele instante.

- Nunca mais sequer olhe para mim - digo eu, saindo da sala. Ela permanece parada.
- Vamos todos agora. Onde está Ling? - pergunta Yoan, na frente de Lao e Sak.
- Estou aqui, mestre - respondo eu secamente.
- O que é isso em seu rosto, Ling ? Parece uma panc...
- Não é nada Lao, não é nada.
- E agora, onde está Lyu? - pergunta Sak.
- Deveríamos deixá-lo aqui. Vocês viram as costas dele... ele é do clã JitSu. O senhor
ainda vai treiná-lo, mesmo sabendo que ele vai se tornar um assassino? - pergunta
Lao.

        Yoan nada responde, apenas observa o nascer do sol. Eu, por minha vez,
posso ver Lyu e Sho Win, semi escondidos, em um lugar que só eu podia ver, na
frente da casa de Yoan. Eles se beija mais uma vez. Só que agora é Lyu que me
observa enquanto acaricia todo o corpo de Sho. Eu abaixo a cabeça, e ignoro. A
partir daquele dia eu saberia que Sho Win fazia parte de meu passado. Logo após
isso, Lyu se reúne a nós.

- Vamos agora - exclama Yoan.

       Marchamos em direção aos picos gelados da montanha, onde Sak havia
treinado a tanto tempo. Mesmo estando à frente, eu podia perceber os olhos de Lyu
sobre mim. Ele ainda não estava satisfeito em ter tomado a mulher que eu amava,
ele queria algo mais. Eu ignoro e continuo a marchar, logo atrás de Yoan.

      Cerca de 2 horas depois chegamos ao local. Uma cabana de madeira, onde
Sak dormia e comia durante sua estada lá, estava semi apodrecida. Mas ainda era




                                                                                   13
um bom abrigo contra os fortes e gélidos ventos sopravam violentamente durante
todo o tempo.

- Deixem suas coisas na cabana, vamos iniciar o treinamento logo. "Ronin", mostre o
lugar ao demais. Eu vou descansar um pouco.
- Sim, mestre - responde Sakazama. Deixamos nossas coisas na cabana e seguimos
Sak. Eu estava meio preocupado, nós nunca havíamos ficado a sós durante este
tempo todo, não nós quatro juntos. Isso podia ficar complicado.
- Que tipo de apelido é "Ronin"? - pergunta Lao a Sakazama.
- Na língua de meu povo, "Ronin" é um Samurai sem senhor. Um cavaleiro errante,
em busca da morte por ter permitido que seu senhor morresse. Essa é a maior
desgraça possível em toda a vida de um Samurai - diz ele, em tom melancólico.
- E por que ele te chama assim? - pergunto eu.
- Por que seu pai era um - diz Lyu, em tom sarcástico.

     Sak apenas olha Lyu com o canto de seus olhos, sem alterar seus
movimentos ou virar a cabeça, em tom superior. Ele nada fala.

- Ronin. É melhor que Sak. Vai ser Ronin agora - diz Lao, brincando - Paramos.
Havia um grande paredão de rocha a nossa frente. Ficamos a olhá-lo.
- Este era o meu desafio pessoal. Por dois anos inteiros eu subia ele todos os dias
em uma hora.

        Olhávamos para a parede de rocha e para Ronin sem entender como ele fazia
aquilo. Era uma parede completamente vertical. Fora algumas saliências ou buracos,
era completamente lisa. A altura era enorme, uma queda e seria morte na certa.
Ronin observava a parede como se esta fosse sua única amiga, confirmando minhas
suspeitas de que ele havia passado pouco tempo com o mestre ou qualquer outra
pessoa durante todo o treinamento. Seus próprios desafios se tornaram seus
amigos.

- Vamos, por aqui ha uma coisa que eu quero lhes mostrar. Venham - diz ele indo na
frente. Nós o seguimos. Andamos até uma surpreendente lagoa natural que o riacho
formava.
- Coloquem a mão na água - diz o Ronin. Obedecemos. A água estava quente! Sim,
e era mais cristalina e clara do que próxima a casa de Yoan.
- Como? A água de lá era gelada e aqui está agradavelmente quente!
- Uma bolsa termal embaixo da terra faz isso. Este monte era, a muito tempo, um
vulcão. Agora adormecido, seu sangue aquece a água deste local, que logo adiante
encontra a neve eterna das montanhas, a tornando gelada mais uma vez - diz Ronin.
- Incrível! - diz Lao.
- Venham, vamos para a cabana. O mestre já deve ter descansado.
- É, vamos logo para a cabana, pequenino Ronin. - diz Lyu.

        Sak o olha novamente, mas agora de frente, com um olhar profundo. Lao
interfere, puxando Sakazama.

- Vamos logo, vamos logo - dizia ele.

     Lyu ainda me olhava de forma perigosa. Algo aconteceria, e logo.
Chegamos à cabana, onde Yoan nos esperava.

- Sentem-se - disse ele. Nós obedecemos.



                                                                                 14
- Hoje de manhã vocês iniciaram sua jornada. Vocês agora trilham o Caminho do
Tigre. Não existe mais volta - o silêncio domina a todos.
- A partir de hoje um novo treinamento será iniciado, mas os antigos também serão
incorporados. Agora vocês se tornarão Tigres.
        Muita coisa foi ensinada naquele dia mesmo. Absorvíamos os ensinamentos
mais rápido que absorvíamos os golpes dados por nosso mestre. Lyu parecia se
divertir muito com tudo aquilo, estava sempre com um sorriso, muito cínico.
Desviava dos golpes de Yoan de tal modo que se mostrava em equiparação com ele.
Não havia o que se ensinarem e nem o que aprenderem. Aqueles que treinavam na
nossa frente não eram aluno e mestre, mas sim oponentes. Naquele dia eu vi pela
primeira vez Yoan sangrar. Lyu não sofreu um golpe sequer. Só parou quando o
Mestre sangrou com um golpe certeiro em sua boca.

- Desculpe mestre - dizia ele descaradamente.
- Não ha do que se desculpar, Lyu. Você fez muito bem - disse Yoan, visivelmente
cansado.

        Os combates acabaram por aquela semana. Treinamos golpes e movimentos
incríveis. Os exercícios de alongamento, corrida e nado continuaram, assim como
todos os outros que estávamos habituados. Eu os ensinava a bater na rocha com as
mãos nuas, Ronin nos ensinava a escalar o paredão e Lao nos mostrava como
arrebentar coisas com seus potentes golpes com a canela. Lyu, por sua vez, ria de
nós, e se indispunha a realizar exercícios tão primários. Ele apenas observava, e
nada ensinava. Isso nos provocava ira. Ainda não fazíamos idéia do por que é que
ele estava conosco.

       Era visível que era mais velho, e um excelente lutador. Sua ligação com o
JitSu me provocava suspeitas terríveis , mas me recusava a aceitá-las. Como Yoan,
um verdadeiro mestre, poderia... não, não poderia. Eu tentava esquecer tudo, mas a
imagem de Sho Win com ele me despertava o fogo interior que mais uma vez me
movia.

       Passada uma semana de treinamento árduo, voltamos para a casa principal.
Sho Win observava a mim e a Lyu, como se estivesse surpresa por não termos nos
atracado e lutado. Eu não lhe dirijo a palavra, passando por ela, assim como todos
os demais, exceto Lyu, que a lambeu na orelha, lhe provocando risos. Eu vi, e eles
não mais se importaram. Logo depois ambos foram para trás da casa. Eu e os
demais fomos para o quarto e dormimos pesadamente. Meu corpo não sentia dor
igual desde a primeira semana de treinamento. Os demais também se sentiam
assim. Estávamos apenas começando.

       No dia seguinte retomamos o treinamento. Novos golpes eram ensinados a
cada semana, e tínhamos que lutar entre nós para os por em prática. Duas duplas
então foram separadas. Lao com Lyu e eu com Ronin. Lutávamos pesadamente, mas
com respeito e afinco. Eu e Ronin nos dávamos bem, e eu sentia que nele nascia um
grande amigo. Lao se dava bem com todos, mas Lyu não se preocupava em não
machucá-lo nos treinos. Um dia, porém, ele bateu muito forte em Lao, que
desacordou. Ronin foi socorrê-lo, enquanto que Lyu se aproximou de mim e disse:
"Aprenda logo, pequeno Ling. Quando lutarmos, não serei tão piedoso como com
ele". Eu respondo: "Eu também não". Ele vai embora, enquanto que Yoan chega
para ajudar Lao.

      A noite, no jantar, Yoan falou, pela primeira vez desde que eu o conhecia.



                                                                                   15
- Lao, você não está em condições de continuar com Lyu como parceiro. É triste,
mas evidente que ele possui um conhecimento muito superior ao de vocês. Por isso
eu espero que você, Ling, seja o novo parceiro de Lyu.
       Um grande e forte calor percorre todo o meu corpo. Eu sabia que era isso que
Lyu queria fazia tempos, mas deixar Sakazama para ele não seria justo, mesmo
sendo o Ronin melhor lutador que eu. Ele queria a mim, e também deixaria
Sakazama como Lao.

- Eu aceito - digo eu. Os olhos de Sho Win saltam. Os demais fazem ar de
desaprovação e Lyu sorri. Yoan diz: "A partir de agora assim o é" e continuamos a
comer.

        Um novo dia nasce. O treinamento é iniciado com um alongamento total, os
demais exercícios que fazíamos no início, só que em escala menor, e depois o
treinamento marcial, ou O Caminho do Tigre, o qual nós percorríamos, segundo
Yoan, de forma lenta e progressiva. No fim da tarde, porém, o combate de treino
seria iniciado. Sak e Lao já lutavam em um pequeno tablado armado ao lado da casa
de Yoan. No outro lado da casa, isolado, Lyu me esperava para a luta. Ninguém nos
observava, a não ser Sho Win, que chorava escondida, mas assim mesmo pude vê-
la.

-   O pequeno Ling veio! Quanta coragem!!! Pensei que havia fugido! - diz ele.
-   Não tenho motivo para fugir Lyu. É só um maldito treino - digo eu.
-   Não, você sabe que não é só um treino - disse ele.
-   Então o que é? - pergunto eu, tomando posição de combate.
-   Um teste. Vamos, me ataque - dizia ele completamente relaxado.

       Eu não tenho que pensar muito. Vôo para sua direção. Ele se move de forma
rápida, feroz como um verdadeiro dragão. Me acerta um forte chute invertido,
levantando sua perna na altura em que eu estava. Eu caio espatifado no chão.

- Você realmente não passa de um garoto, Ling. Eu TENHO que matá-lo.
Compreenda, você não devia ter me provocado daquela maneira antes.

O ódio crescia dentro de mim. Eu levanto.

- O que? Ainda de pé? Você não deveria ter levantado, Ling, seria muito mais rápido
- diz ele me atacando rapidamente. Em um lance de puro reflexo, eu desvio. Lyu não
acredita. O ódio estava queimando forte em mim. Meus olhos estava a ponto de
explodir. A dor que havia em meu abdômen havia desaparecido. Eu estava possuído
pelo ódio e pela raiva. Eu me tornara perigoso, mesmo estando apenas no início do
treinamento. Lyu investe mais uma vez. Agora, além de me desviar, eu lhe acerto
um fortíssimo golpe de joelho em seu rosto, ao estilo do Muai Tai que Sak havia
aprendido e estava me mostrando no dia anterior. Lyu cai com o rosto sangrando,
desacordado. Sho Win corre em nossa direção.

- Seu monstro, você matou ele!!! - gritava ela, chorando.
- O monstro aqui não sou eu, cadela. E o monstro ainda esta vivo - disse eu
apontando para Lyu. Eu ainda pude ver Yoan, que estava observando a luta o tempo
todo. Ele sorri para mim, e some mais uma vez por entre a mata cercava o local. Lao
e Ronin correm para ver o que estava acontecendo. Eles olham para Lyu caído ao
chão e eu posso ver suas dificuldades em segurarem risadas.



                                                                                 16
- Vamos levá-lo para dentro - diz Sakazama, carregando-o por um dos braços
enquanto que Lao o carrega pelo outro. Yoan entra com eles para prestar ajuda
médica, conhecimento que ele praticava muito bem. Sho Win e eu ficamos a sós.

- Você bateu nele. Como pode ? - pergunta ela.
- Eu apenas fiz o que devia ser feito. Estou trilhando o Caminho do Tigre. É parte do
aprendizado.
- E eu, também fui parte do aprendizado? - pergunta ela.
- Eu achava que não, mas agora, vendo bem, eu acho que você não passou disso
mesmo, de uma lição.

       Ela se despe de seu vestido vermelho, ficando nua na minha frente. Ela se
toca, se alisa, se acaricia.

- Você me quer, Ling, eu sinto. Você sente saudades. Venha então, me possua.

        Ela é linda, uma estátua perfeita feita para o amor. Seu tom de pele,
claríssimo, contrastava com a negritude de seus longos cabelos. Ela era perfeita,
tentadora, surrealista. Eu sinto a chama do ódio se apagar dentro de meu coração. E
a do amor reascender das cinzas. Eu a toco.

- Sim, sim meu amor... - diz ela, fechando os olhos. Mas rapidamente eu retiro a
mão de seu seio e lhe desfiro um forte tapa no rosto, tão forte que ela desaba no
chão, chorando.
- Por que, Ling? Por que? - diz ela, chorando e gemendo baixinho de dor.
- Eu só estou lhe tratando como você deve ser tratada, maldita cadela.

       Eu saio do local e vou para dentro da casa, e a vejo ali, no tablado, caída ao
chão, nua, semi enrolada em seus panos vermelhos, chorando. Deus, o que eu havia
feito? Que cena mais bela e triste. No que eu estava me tornando? Eu nem sequer
queria bater nela. Deus, eu a amo mais do que tudo, mas não posso voltar para ela.
E por que eu havia batido nela, por que?

        A noite, com tantas perguntas explodindo em minha cabeça, eu vou para meu
lugar. Lao pergunta se pode vir junto e eu digo que sim. Meditamos.

       A mesma noite, bela e limpa, que eu conhecia.Só a noite, a escuridão. As
respostas vem aos poucos, a confusão se acaba como uma névoa indesejada. A paz
retorna, mansa, ao meu espírito dolorido. Eu estava me tornando um homem, essa
era a resposta. Não um simples homem, mas um Homem.

        Passos pesados atrás de nós denunciam alguém se aproximando. Uma voz
cortante diz:
- Lao, saia daqui - era Lyu quem estava ali. Lao se levanta e encara Lyu.
- Não - diz ele.
- Pode sair, Lao. Por favor. - digo eu.

       Ele olha mais uma vez para Lyu, de cima em baixo, e sai, devagar.

- Qualquer coisa é só gritar, Ling - diz ele.

       Com o rosto inchado, Lyu se posiciona logo a minha frente.




                                                                                   17
- Foi um bom golpe, Ling. Bom mesmo. Ninguém havia me acertado desde meu
próprio mestre, meu pai. Você merece meu respeito - diz ele, seriamente.
- Eu quero lhe pedir desculpas se fui arrogante. Não que você seja melhor que eu,
não,eu lhe dei apenas uma única brecha, e você a enxergou e se utilizou dela, com
perfeição. Isso é muito para um aluno em início de treinamento.
       Eu escuto tudo em silêncio, com os olhos fechados e a cabeça baixa. Lyu
desfere um forte e rápido soco em direção ao meu rosto. Sem abrir os olhos ou
mover a cabeça, eu seguro sua mão e bloqueio o golpe de forma surpreendente. Ele
se espanta.

- Como você sabia que minha mão estava ai?
- Medite sobre isso... e talvez encontre a resposta, um dia - digo eu, indo embora.

        Nos dias seguintes nossos combates ficaram mais amenos, mas como havia
dito, ele era muito melhor que eu. Nenhum golpe o acertava, enquanto que ele me
acertava quase todos. Porém, ele interrompia o combate várias vezes para me
explicar como certo golpe sairia melhor se desferido de certa fora, como pular e se
defender e, principalmente, ele estava me ensinando golpes que Yoan não ensinava,
golpes de Nin JitSu e outras artes desconhecidas de nós. Ele estava me ensinando!

         E dia a dia eu chegava mais e mais perto dele. Sho Win não permanecia mais
com nenhum de nós. Sozinha, ela se entretinha a arrumar a casa e a fazer a comida.
Nos jantares meus olhos cruzavam com os dela. Ela me olhava da mesma forma
inicial, com desejo. Ela ficava, depois do jantar, nos fundos, talvez para meditar, ou
o que eu acho o mais provável, a minha espera. Eu nunca mais a havia visto com
Lyu. E nestas oportunidades ela sempre estava com ele. Mas eu ainda não podia
esquecer o que ela havia feito. Eu a amava, e a amo, mas o que ela fez era
imperdoável. Eu não ia lhe encontrar, e sim meditar, no meu lugar.

Certo dia perguntei a Lyu se eles ainda estavam juntos.

- Não, Ling, você ainda não percebeu? - disse ele.
- Eu a usei. Usei para você me odiar, para lutar comigo da melhor forma possível
para que eu pudesse testá-lo. Você passou no teste, e agora tem dois mestres,
trilha dois caminhos distintos. Ela me odeia tanto quanto você me odiava, Ling - diz
ele bebendo um grande gole de água do cantil.
- Usou? Como pode? - pergunto eu.
- Eu não tenho escrúpulos, Ling. Fui banido do JitSu por ser considerado piedoso
demais para com meus inimigos. Precisava fazer algo que surpreendesse a eles para
poder voltar, e ensinar ao melhor aluno de Yoan seria algo muito bom, mas eu não
sabia quem era o melhor. Me candidatei ao cargo de aluno e passei . Estou dentro
para encontrar o melhor de todos, e encontrei. Agora, estou lhe ensinando ao
mesmo tempo que Yoan.

Eu podia ver a mentira em seus olhos.

- Não é por isso que você está aqui, Lyu. Eu sou um acidente. O que você quer
realmente aqui?
- Eu não devo lhe responder mais nada, pequeno Ling. Sho Win e eu não temos mais
nada em comum, a não ser grande simpatia por você.
- Então vocês nunca mais se encontraram?
- Não, desde aquele dia em que eu o testei, nunca mais.




                                                                                      18
Um grande trovão corta o silêncio que estava sobre nós. O céu se fecha. Uma chuva
inicia sua queda.
- Vamos, não é uma chuva idiota que vai me impedir de te comer terra - diz Lyu,
brincando.
- Vamos ver quem vai comer terra aqui, Lyu - digo eu, me ponde em posição.
Iniciamos uma luta, que se estende até a noite.

                        ****************************

        Assim se passaram os próximos dois anos. Yoan ia ficando cada vez mais
debilitado fisicamente. Já não fazia os exercícios conosco, mas sim com Sho Win, no
final da tarde, e de forma muito mais amena. Nós, ao contrário, íamos intensificando
os exercícios. Nós havíamos nos tornado verdadeiros homens, grandes lutadores. Eu
despontava, pois estava tenho duplo ensinamento. Mas Ronin e Lao me davam boas
surras em nossas lutas mistas. Estávamos no mesmo patamar, só que eu um pouco
mais adiantado. Lyu não era comparável a nós, e agora ele era amigo de todos. Sho
Win ainda estava só, e mais bela e tentadora ainda. Ela continuava a me olhar e a
me esperar atrás da casa todas as noites, sem que eu comparecesse.

       Um dia, porém, Yoan nos deu um dia de folga. Algo aconteceria no dia
seguinte. Ele havia falado em vencermos os elementos, e até agora só havíamos
enfrentado o Fogo. De qualquer forma, eu e Sho Win tivemos que ir de montaria até
a vila em que ela e Yoan pegavam alimentos todos os meses. Yoan, por estar se
sentindo indisposto, ficara deitado em sua cama. Eu e Sho Win não trocamos uma
palavra nos 25 quilômetros que separavam o pé da montanha da vila. O dia,
ensolarado, estava especialmente quente. Eu tive que tirar a camisa. Sho admirou
meus novos músculos e minha estatura, agora maior. Eu já estava na mesma altura
dela, se não maior. Ela me olhava com desejo. Eu não correspondia.

       Chegamos a vila, e um grande choque eu levei, afinal, faziam quase cinco
anos que eu não via outras pessoas a não ser Yoan e o pessoal. Havia tanta gente e
tanta coisa nas ruas... Sho me cutuca e indica o lugar aonde deveríamos ir buscar os
mantimentos. Eu estava hipnotizado por aquela multidão ensandecida, que gritava,
ria, chorava, cantava, corria e comprava. Era lindo. Mas fomos então ao tal lugar.
Um senhor de aparentemente 60 anos entrega a mim e a Sho Win sacolas com a
comida. Prendemos elas nos cavalos, e nos preparamos para partir. Porém Sho Win
vai por outro lado.

- Venha, eu tenho que visitar uma amiga.
- Sho Win... - digo eu agarrando o braço dela. Ela me olha, com uma mistura de
ternura e ódio.
- Me solte. Eu tenho que visitar esta amiga. Vamos, não vai demorar muito, é aqui
perto, venha! - diz ela, galopando em frente com o cavalo. Eu a sigo.

      Entramos por uma viela deserta. Depois, chegamos a uma pequena praça.
Uma casa que ficava logo em frente é para onde rumamos. Sho Win bate palmas.

- Mai Ni ! Main Ni ! - grita ela. Ninguém responde.
- Vamos, não ha ninguém - digo eu, puxando ela.
- Não, espere! - grita ela, pulando do cavalo e entrando na casa.
- Sho Win! - grito eu, correndo atrás dela. Ao entrar na casa, um odor forte de
podridão invade meus pulmões. Tenho que me esforçar para não vomitar.




                                                                                  19
- Sho Win? - falo eu, procurando-a pelos cômodos da velha casa. A encontro em um
quarto, agarrada a uma velha camisa, chorando.
- Sho Win... o que houve?
- Ela se foi, Ling. Ela morreu.
- Ela estava doente?
- Sim, já estava velha e não podia mais se cuidar. Eu não podia ficar aqui, tinha que
ficar com o mestre. Mas sempre que vinha para a cidade eu a visitava, limpava a
casa, lavava as roupas, fazia comida... mas agora... ela se foi - Deus, como eu
queria abraçá-la!
- Quem era ela, Sho?
- Ela era minha mãe, Ling. Era minha mãe...
- Por que você não abandonou o mestre para ficar com ela?
- Eu... não podia! Ele sempre foi tão bom para mim! Quando meu pai morreu (é,
Yoan não era seu pai) minha mãe não tinha como me sustentar. Yoan era amigo de
meu pai, e se dispôs a me criar. Ele NUNCA, NUNCA levantou a mão para mim.
Sempre foi um verdadeiro pai. Mas eu continuava a ver minha mãe. E agora ela
morreu, ela morreu...
- Venha Sho Win. Vamos embora - digo eu, a pegando delicadamente pelo braço.

       Chegamos até o lado de fora. Nossos cavalos estavam cercados por 6 jovens
da cidade. Jovens que cometeriam seu maior erro. Eles nos vêem sair.

- Se estão procurando a velha podem esquecer, Ela morreu fazem 2 semanas - diz
um. - Sho Win sai da casa. Eles a vêem.
- Uuuuuuuuh, o que temos aqui! O camponês tem uma namorada, e que namorada!
- Vem pra cá, mulher! - diz um deles, a agarrando e a puxando para o meio deles,
onde eles lhe deslizam as mãos ruins pelo vestido bege. Eu dou um passo a frente.
- Hei! Hei! Hei! Temos um herói aqui. Não é mesmo, camponês? - diz ele me dando
um tapa no peito. Eu me contenho. Eles começaram a despir Sho Win.
- Parem agora e deixe-nos passar. Não queremos problemas.
- Você quer que paremos? Pois bem, faças-nos parar! - grita o que estava me
encarando.
- Não posso bater em vocês sem antes TENTAREM me bater - digo eu pacificamente.
- Então tome isso, montanhês! - diz ele desferindo um golpe rápido para os da sua
laia, mas horrivelmente lento para uma pessoa que já percorreu boa parte do
Caminho do Tigre. Eu o bloqueio de forma simples, e logo após eu quebro o seu
braço na altura do cotovelo, invertendo a junta. Ele cai no chão, gemendo e gritando
de dor. Os outros vem tentar me combater e deixam Sho Win livre dos abusos. Ela
se veste, cobrindo seu belo corpo. Os demais já estão em cima de mim.

       Devo admitir que foi não só fácil como também divertido derrubar cada um
deles com um único e diferente golpe. Quebrar um osso diferente em cada um deles
e ouvir seus estalos me deixou de certa forma contente. Eles se recuperariam, mas
nunca mais iriam importunar desconhecidos. Tudo não levou mais do que 2 minutos.
Eu pego Sho Win, que estava caída no chão, ainda chorando, e a ponho em seu
cavalo. Eu monto no meu e então saímos da cidade. Os demais habitantes da vila
me olham com respeito. Iniciamos o longo caminho da volta. Um caminho tão
deserto quanto bonito. Era primavera, e uma infinidade de flores do campo forrava,
juntamente com a grama verde recém nascida, todo o solo do local. No meio do
caminho, Sho Win pede para parar. Quer descansar. Paramos então. Ela desce do
cavalo e caminha pelas flores. Eu observo. Também desço de minha montaria para
andar um pouco.




                                                                                  20
- Você está bem? - pergunto eu. Ela responde com um movimento de cabeça,
fazendo sinal de positivo.

        O maldito calor, mais uma vez. Uma onda quente e abafada que me força a
ficar com o mínimo de roupa. Tiro a camisa mais uma vez. Ela se ascende. Tira o
vestido que a cobria,e fica, mais uma vez , completamente nua. Eu a observo. Ela
me olha, sedenta. Se deita sob seu vestido, e me convida.
- Me possua, Ling. Me possua agora e eu juro pela alma de minha mãe que eu nunca
mais serei de ninguém enquanto eu viver. Me possua - diz ela.

      Eu o faço. Ela estava mais ardente do que nunca. Seria mais uma mentira, ou
enfim ela estaria falando a verdade? Eu deixo estas perguntas para a noite. Me
concentro nela. Nós, entre as flores e a grama, com um sol extremamente forte,
fazemos amor por uma hora. Uma hora inteira. Eu a amo, e descobria agora que ela
também me amava. Abraçados, nus, deitados na grama, ficamos a observar o céu.

- Eu não me deitei com nenhum homem mais desde...
- Eu sei. Esqueça, Sho, pois eu já esqueci.
- Eu te amo, Ling. Me perdoe!
- Eu também te amo, cadela - nós rimos. Nos amamos mais uma vez. Nos vestimos
e rumamos para o monte Shizu.

                        *****************************

       A noite, como era de costume, silêncio total. Lyu nos olhava, ameno. Deu-nos
um sorriso, que Sho Win devolve com uma cara fechada. Depois, atrás da casa,
lugar que ela me esperava toda noite durante dois anos, nós nos encontramos.
Ficamos ali por algum tempo, quando percebi que era hora de entrar e dormir.

      A madrugada, mais uma vez, era a hora do teste. Desta vez foi o Ronin que
veio me despertar. Saímos e nos reunimos, mais uma vez, na frente de Yoan.

- Vocês já iniciaram o Caminho do Tigre a algum tempo, e o vem trilhando com
grande perfeição. Para poderem ter o direito de percorrer tal caminho, vocês tiveram
que desafiar e vencer um dos quatro elementos, cujo total domínio é a chave para
uma melhor compreensão do Caminho. Vocês já desafiaram o fogo, está na hora de
desafiarem e ganharem da terra!
- Diga o que tem que ser feito, mestre.
- Pois bem, sigam-me - diz ele, se encaminhando para o local onde eu outrora
socava rochas. Lá havia uma grande fogueira, para iluminar o ambiente, e grandes
pedras de mármore, uma das mais duras rochas que existiam por lá.
- Pois bem, escolham uma e quebrem-na.
- O que?! Mestre, isso é impossível! Com martelos e estacas demoram horas, com as
mãos nuas seria loucura, não importa o quão forte seja o golpe! - Tenho certeza que
Yoan não batera em Lao por que este estava longe. Yoan apenas falou:
- Garotos insolentes, eu pensava que vocês haviam aprendido tanto! Mas vejo que
nada aprenderam ainda. Vocês não são mais homens comuns, são guerreiros! Suas
mãos podem destruir tudo o que tocam, se souberem como, e principalmente, se
quiserem!!! Olhem para mim! Vocês acham que é impossível quebrar uma pedra
destas com as mãos? Pois vejam! - diz ele, tirando a camisa. Sho Win lhe diz:
- Não mestre, o senhor não esta bem...




                                                                                  21
- Eu estou ótimo, Sho Win. Só estou cansado, mas ainda posso ensinar algo a estes
garotos sobre o que se pode fazer com a força de vontade. Afastem-se! - grita ele,
se aproximando da maior pedra que havia.
- Ele pode se machucar se...
- Shhhhhh! - cochicham Lao e Lyu. Yoan fecha os olhos, e se concentra, não por
muito tempo. Desfere um golpe seco contra a pedra, que permanece parada,
tremendo.
- HAAAAAAAAAAAIIIII!!!! - grita ele ao desferir o golpe.
- Veja a pedra não quebrou! - fala baixinho Lao. Mas, logo depois, a pedra se parte
em duas. Um metade para cada lado. A mão de Yoan perfeitamente saudável é
observada por todos nós.
- Podem olhar. Não está ferida. Lembrem-se da Garra de Gato que eu lhes ensinei a
tempos trás. Não posso mais ajudá-los. Quebrem a pedra ou deixem o Caminho do
Tigre agora!

       Sim, a Garra de Gato. Um golpe impressionante. Um golpe forte com a parte
interna da mão seguido de uma contenção do mesmo logo que em contato com a
superfície que é tocada. Difícil, mas relativamente simples, tanto que fora um dos
primeiros golpes que aprendemos.

- Mestre, quebrar madeira e pedra é uma coisa, mas quebrar Mármore é muito
diferente!
- Não há diferença, Lao. Apenas quebrem-na.

      Todos nós ficamos pasmos. Não sabíamos quebrar pedras como ele nos
mandava fazer agora. Mas Lyu não estava preocupado. Ele toma a frente e fala ao
mestre:

- Eu quebrarei a rocha - fala com tal convicção que todos acreditam que ele
realmente vá conseguir.

        Se põe a frente da rocha escolhida, uma bem grande. Realiza pequenos
movimentos em um kati para se aquecer ou se concentrar, diferentes dos que Yoan
fez quando estava se concentrando, e desferiu um golpe completamente diferente,
sem expelir um só grito. A rocha se partiu não em duas, mas em várias partes, como
se não fosse realmente de mármore, mas sim de calcário. Ele caminha para Yoan e
lhe fala:

- Ainda estou caminhando, Yoan - Ele , por sua vez , nada fala .

       Lao é o próximo. Escolhe uma pedra média. Para em frente a ela. Se
concentra. A Garra de Gato era um golpe soberbo. Podia matar um homem
facilmente, porém, quebrar uma rocha tão dura era algo que nunca havia passado
sob sua mente. Ele desfere o golpe.

- ZAAAAAAAAIIIIIIIY!!! - Nada ocorre com a rocha. Continua intacta.
- Eu... , eu, falhei! - diz ele, pasmo.
- Não, fracasso só em sua mente. Assim como a vitória. Levante, e desfira um
verdadeiro golpe nesta rocha - diz Yoan.

        Lao nem sequer fala. Se levanta, fecha os olhos e dá o mais forte golpe de
canela que podia dar. A pedra de esfacela, assim como sua perna. Seu osso fica
visível, e o sangue brota de forma nauseante. Ele desmaia.



                                                                                 22
- Sho Win, me ajude, rápido! Temos que levá-lo para dentro! - grita Yoan,
carregando Lao para a casa. Só restam eu, Ronin e Lyu, ao redor da fogueira,
esperando o mestre voltar.
- Como você fez aquilo? - pergunto eu a Lyu.
- Técnica secreta JitSu.
- Você admite que faz parte do clã JitSu? O que faz aqui então, Lyu? - pergunta
Ronin.
- Não me permito falar com o filho de um desonrado.
- Meu pai tem mais honra em um punho do que você tem em toda sua vida!
- Do que vocês estão falando? - pergunto eu sem compreender nada.
- Não é nada, Ling - diz Lyu, se acalmando - Você quer saber como eu fiz aquilo?
Você já sabe como fazer isso, Ling!
- Como?
- Pergunte a você.
- Não tenho tempo para isso. Como eu faço?
- Use sua raiva, Ling. TODA sua raiva! Foi assim que venceu o fogo, e foi assim que
me derrotou. E será assim que derrotará a terra. RAIVA!
- Não posso. Tenho que purificar minha alma de todos os sentimentos para alcançar
a perfeição!
- Este é um dos caminhos. Mas é o mais difícil. Limpar-se por completo de emoções
é algo impossível, pelo menos para alguém que ainda trilha o Caminho. EU mesmo
ainda não sou capaz disso, portanto me utilizo da raiva e do ódio para alcançar tal
perfeição.
- Yoan consegue se despir de suas emoções por completo - diz Sakazama.
- Sim, mas Yoan já esta com 100 anos de idade. Sabe o quanto este homem treinou
em sua vida? - responde Lyu.
- Mas, se eu continuar a me utilizar da raiva e do ódio para ser bom, eu nunca mais
poderei me limpar. Entenda, eu não serei mais capaz de me desprender das
emoções e ser puro. Não terei a perfeição completa, nunca, e estarei preso ao ódio e
a raiva para sempre.
- Você não tem escolha, Ling. Ainda não está preparado para se purificar de tal
maneira, é impossível para você ainda. Use o ódio para compensar - Eu não sei o
que dizer. Yoan volta da casa com uma expressão séria.
- Lao derrotou a terra. Mas a terra o feriu gravemente. Ele não poderá estar entre
nos pelos próximos meses - Ninguém esperava isso. Lao, parado por meses? Isso
seria fatal.
- Ele não poderá fazer nenhum esf...
- Não, houve uma fratura muito séria no osso da perna. Deverá ficar imobilizada
completamente. Nada de exercícios por três meses.
- Mas mestre, se ele ficar parado por três meses ele perderá toda a forma física!
- Sim, mas não ha outro meio. Mesmo assim, tentaremos fazer algo para amenizar a
perda.
- Mestre, eu estou pronto para enfrentar a terra - disse o Ronin se encaminhando
para uma das pedras.

       Ele se concentra. Era uma rocha verdadeiramente temperada. Como Ferro.
Ele desfere a Garra de Gato de forma perfeita, sem emanar qualquer ruído, a não ser
o da rocha se quebrando. Ele vencera a terra também.

- Ling, vença a terra também, não acredite nas palavras de Lyu, purifique seu
coração, use o que Yoan nos ensina. Não se torne um assassino como ele - disse
Sakazama ao ir embora.



                                                                                  23
- Vamos, Ling. Quebre a pedra - disse Yoan. Todos me olhavam com atenção. Sho
Win sai da casa para me ver também, preocupada. Mas todos haviam se esquecido
de uma coisa muito importante: meu desafio pessoal era socar rochas todos os dias.
Minhas mãos calejadas e fortes estavam preparadas para tal missão. Só que quebrar
mármore era muito difícil. Eu me afundo em minha alma, e retiro de lá toda a raiva e
ódio que dispunha. Desfiro não uma Garra de Gato e nem uma canelada, mas sim
um direto e forte soco, com todos os sentimentos que haviam em meu coração
ampliados. Amor, ódio, paz, tristeza, felicidade. A pedra se esfacela, assim como a
de Lyu.
- Você venceu a terra. O caminho pode ser seguido adiante agora - diz Yoan. Lyu me
observa com um sorriso. Ronin também. Havia descoberto algo para mover meus
impulsos que não era de todo má e nem de todo bom, mas sim algo ideal para me
tornar um grande guerreiro. Havia encontrado meu Espírito de Luta. Entramos para
tomar comer, mesmo por que o sol já estava nascendo.


                            **********************

       Ouve uma pequena comemoração entre nós. Afinal, já havíamos enfrentado,
com perfeição, 2 dos quatro elementos. Tínhamos aproximadamente mais dois anos
para nos prepararmos para o próximo. O que nos preocupava era o fato de que Lao
estava com a perna muito machucada. Mas ele mesmo estava otimista.

- Não se preocupem, eu ainda tenho a canelada mais forte daqui - brincou ele.

       Haviam se passado 5 anos. Estávamos no meio do caminho. E não havia mais
volta. Não éramos mais homens comuns, tão pouco os seres mortais que Yoan nos
prometeu transformar. Éramos excelentes lutadores apenas. Lyu era mais que isso,
claro. Possuía o conhecimento de um verdadeiro mestre, mas era visivelmente
diferente. Aparentava ser de procedência ruim. Se era, nos enganava muito bem.

        Iniciamos o treinamento, com a forte ausência de Lao. Ele era o mais
descontraído, brincava conosco e tornava as coisas mais leves. Agora o treinamento
era menos prazeroso para nós. Lyu realizava todos os exercícios de forma incrível.
Ele já sabia de tudo o que estávamos aprendendo, por que continuava conosco? Por
que continuava aqui?

        Lao observava sentado em um pequeno banco. A perna toda enfaixada, com
talas lhe impedindo o movimento, e um apoio de madeira para poder caminhar pelas
manhãs, ao lado de Sho Win. Não, eu não tinha ciúmes. Agora eu sabia que ela me
amava verdadeiramente. Lao a tratava como uma irmã mais velha, implicando e
brincando com ela de forma divertida e impertinente, como só ele sabia fazer. Que
saudades de casa! Meus irmãos implicavam comigo do mesmo modo, e como eu
sinto falta! Minha mãe a me chamar para comer, meu pai sentado olhando para o
chão com um ar tão... triste! E a algazarra de nós sete, um bolo de gente se
amontoando para comer a rala comida que havia. Eu era o menor, por isso, o último
a comer. Quase não me restava nada, mas minha mãe era capaz de tirar da comida
dela para me matar a fome. Minha mãe... espero que ela esteja bem, que todos
estejam. Mal vejo a hora de voltar, mas, e Sho Win? O que eu farei com ela? Ela
viria comigo? - neste momento sou atingido por um forte golpe no rosto, que me faz
cair.




                                                                                 24
- Ling, divagando novamente no meio de um combate? Volte já para o tablado e lute
verdadeiramente! Até Sho Win teria visto este golpe! - grita Yoan. Lyu, que estava
lutando comigo, dava gargalhadas.
- Garoto, nunca mais se desconcentre em uma luta como agora. Pode ser a razão de
sua morte - diz ele, seriamente. Eu compreendo. Voltamos a lutar.

       Sakazama, o Ronin, treinava os movimentos que acabávamos de aprender
em um boneco de madeira. Sua velocidade era absurdamente rápida.
Interrompemos a luta para observar. Yoan voltou seus olhos para ele também. O céu
estava nublado. O suor escorria de minha testa. Ainda estávamos no meio do dia.
Partimos para o pequeno rio, onde realizávamos outros exercícios físicos. Lao
observava, impaciente.

      Dia a dia sua musculatura ia perdendo a rigidez. Nós também estávamos
aprendendo mais do que ele, que estava parado. Ele voltaria, mas era provável que
nunca nos alcançasse. Isto era preocupante.

       Dois meses se passaram. Estava sentado em minha pedra, em uma noite de
inverno, quando Sho Win veio até mim. A neve caia macia e continuamente. Era
uma bela noite.

- O que é, Sho Win?
- Estou me sentindo estranha, Ling.
- Como estranha?
- Eu não sei, estranha. Eu não sangro a 3 meses. Isso nunca aconteceu. E veja
isso... - diz ela levantando a saia até a altura dos seios. Eu a toco.
- Não, não, Ling... agora não, eu me sinto estranha... não... olhe, olhe para minha
barriga - diz ela, afastando minha mão de seu corpo. Eu olho.
- Esta maior.
- Sabe o que é?
- Sim. Você tem que parar de comer tanto! - digo eu lhe tocando novamente.
- Não, Ling... não... sim... venha Ling, sim!

       Nos amamos, mais uma vez, sob a neve. Logo depois, conversando com ela,
constatei que poderia ser alguma coisa mais séria.

- Não tenho comido e nem nunca comi muito, você sabe. Estou com medo, não é
obesidade.
- O que pode ser então?
- Eu não sei, mas acho que Yoan pode saber.
- Acha melhor lhe procurar?
- Sim Ling. Estou com medo.
- Então vamos juntos. Algo me diz que tenho que ir com você.

        Entramos na casa. Batemos na porta do quarto de Yoan, que nos recebe. Não
fica espantado ao nos ver juntos.

- Estava esperando o dia em que vocês viessem até a mim - diz ele.
- Sim, mestre - digo eu - Sho Win esta preocupada. Acha que algo de errado está
acontecendo com ela.
- Eu não sei... deixe-me ver. O que sente, minha pequena criança?
- Minha barriga, mestre. Esta maior, e ainda aumenta. Sinto algo latejando dentro
dela, mesmo depois que como - ela levanta o vestido, assim como havia feito



                                                                                 25
comigo. Yoan não demonstra qualquer espanto ou excitação. Aparentava ser normal
ver uma mulher nua. Ele apalpa a barriga, ouve, olha.
- Era o que eu temia - diz Yoan.
- O que foi mestre? É grave? - pergunto aflito.
- Não, apenas infeliz. Vocês vão ter um filho.

      Ficamos paralisados. Um filho? Um filho com Sho Win? Antes de completar o
Caminho do Tigre? Isso era realmente infeliz.

- Durante o Caminho do Tigre você tomou o que julgava ser uma bifurcação, que
daria para um caminho mais belo e que chegaria ao mesmo destino que o antigo.
Mas este caminho, apesar de belo, é cheio de obstáculos e perigos que o outro, feio
e duro, não possuía. É o preço a se pagar pelo prazer. Espero que tenham aprendido
- diz Yoan.
- Sim mestre - dizemos juntamente.
- Mas não vejam esta criança como algo a odiarem. Ele é fruto de seu amor, e este
amor é o que vocês vão ter que expressar para ele. Ele pode ser uma dádiva
disfarçada de desgraça. Aprendam a amá-lo, caso contrário estarão cometendo um
erro maior que o que cometeram.
- Sim mestre. Obrigado - dizemos e saímos.
- Esperem, ainda falta algo - diz Yoan.
- O que, mestre?
- Agora vocês devem oficializar sua união. Amanha eu farei a cerimônia. Se
preparem.
- Certo, mestre - dizemos.

       Um casamento? Um filho? Sim, agora estava completo. Diante de uma
situação tão extrema nenhuma dúvida veio à minha mente. Eu estava decidido, e
Sho Win também. Fomos dormir, pela primeira vez, juntos enquanto todos estavam
próximos.

                            *********************

       A cerimônia não teve nada em especial, a não ser o brilho nos olhos de Sho
Win. Agora tínhamos um quarto só nosso, privacidade e paz. Sai do alojamento que
havia se transformado meu antigo quarto, agora acomodando três jovens, e entrava
em um novo e acolhedor ambiente. Estava casado, e seria pai. Mas eu não podia
para de andar. O Caminho estava incompleto. Havia muito o que aprender ainda.

       Mas nesta semana, nada de lutas. Nada de treinamentos rigorosos. Nada
para lembrar que sou um aprendiz. Que estou me tornando algo diferente do que a
maioria é. Esta semana eu só teria contato com as coisas mais belas que eu podia
imaginar. Tínhamos o direito de passar esta semana inteira a sós, na cabana dos
picos do grande Shizu. Não é necessário dizer o que nos ocupava a maior parte do
tempo. Mas também desfrutamos de outras coisas, coisas que antes não nos
dávamos ao luxo. Nadar nas águas quentes do lago próximo, ficarmos abraçados em
frente ao fogo, quente e brilhante, enquanto a neve caia, lentamente e macia.
Dormir até a hora do almoço... eram coisas relativamente simples, mas que agora
adquiriam um aspecto magnífico, tal qual era o prazer de vivê-las. Estávamos
vivendo. Me passou pela cabeça sumir dali com ela, mas algo, aquele algo novo que
descobri em mim, me impediu de avançar no pensamento. Meu espírito de luta me
dizia para nunca fugir de uma briga. E era isso que eu estava fazendo. Ficando e
lutando.



                                                                                 26
Contei a Sho Win, que sorriu, para logo depois me beijar. Ficamos ali,
parados, observando a dança sinistra que as chamas da fogueira realizavam. Percebi
que não possuía mais predileção pela claridade ou pela escuridão. Eu não estava
mais só. Ao contrário, agora queria ser visível, pois estava feliz. A semana passava
rápida. Os dias eram comidos pela noite, que logo depois sucumbiam à força de um
novo sol. Passados 6 dias, voltamos para a casa central.

        Yoan nos recebera como um pai que recebe seus filhos depois de longa data.
Os demais nos cumprimentam, felizes. Parecia que tudo estava realmente bem. Lao
já estava podendo caminhar e iniciava seus exercícios físicos. A perna havia
cicatrizado, mas ele dizia que ainda doía um pouco, mas não o suficiente para
impedi-lo de nos dar algumas pancadas. Rimos. Ele voltava aos poucos,
progressivamente, assim como a barriga de Sho Win crescia. Passaram-se 5 meses.
Lao estava praticamente recuperado, em termos físicos. Era surpreendente ver como
ele fazia mais exercícios que o pedido. Ficava até a noite no bosque. Corria, saltava,
batia. Tudo igual ao treinamento inicial, mas só que com, no mínimo, o dobro de
intensidade. Voltava para casa e dormia profundamente. O dia nascia, e ele iniciava
tudo novamente. Nós o aguardávamos, treinando e avançando em técnica. Podíamos
lhe passar o que havíamos aprendido em, talvez, 2 meses. Isso o deixaria
equiparado a nós em pouco tempo. Era fantástico. Outra pessoa provavelmente se
acabaria com aquela perna, mas ele estava recuperado por completo.

       Voltou aos combates em pouco tempo. Ele apanhava mais, é claro, afinal
havíamos aprendido golpes que ele não conhecia, mas logo que os levava, ele os
assimilava.

- Ainda tenho a outra canela pra te bater! - gritava ele, e nos vencia com seu forte
golpe. Ele havia voltado.

       Sho Win parara com os afazeres domésticos a mando de Yoan, no que ele
chamava de período crítico, ou 9º mês. A barriga dela parecia que ia explodir!
Estávamos proibidos de fazer sexo a mais de dois meses. Obedecíamos Yoan
severamente. Ela vivia a se queixar de enjôos e dores nas costas. Mas continuava
alegre. Passeávamos durante o crepúsculo, sob o novo sol de primavera. Já haviam
se passado quase que seis anos. Ela estava mais bonita do que no dia em que a vi
pela primeira vez. Ela contava agora 24 anos, eu estava com meus 18.

       Um certo dia paramos próximos a um bambuzal. Os bambus ainda estavam
verdes e grandes. Eram numerosos, e belos. Sho Win os observava enquanto falava.

-   Eu tenho medo, Ling.
-   Medo de que?
-   Não me sinto bem...
-   Claro que não, olhe para sua barriga! - Nós rimos.
-   Não é só isso. Estou sendo um estorvo em sua vida.
-   Como ousa falar isso? Como ousa?!
-   Você não está trilhando o Caminho da forma que Yoan esperava.
-   Claro que não, com você eu o estou trilhando melhor.
-   Obrigada, Ling. Eu sei disso - fala ela. Eu não compreendo, mas não a questiono.
-   O que você sente? - pergunto eu.




                                                                                       27
- Eu não sei, é estranho. Sinto medo e ao mesmo tempo alívio. É como...como lutar,
eu acho. A luta é iniciada, e você tem medo de perder, mas quando termina a luta e
você ganha, você se sente aliviado.
- Sim, eu compreendo - digo a ela, sem realmente entender o que ela queria dizer
com todas aquelas palavras. Voltamos para a casa. A neve residual que o inverno
havia deixado ao início da primavera se iniciava. Entramos.

       Os dias seguintes foram recheados de neve. Parecia que o Inverno havia
voltado com toda sua fúria de encontro ao local. Treinávamos sob a nevasca sem
constrangimento. Ela nos testava, nos forçava. Era só mais um inimigo dentre
tantos. Mas foi ai então que o grito de Sho Win nos fez parar. Corremos para dentro.
Yoan a acudia.

- Tragam-me baldes de água e uma faca, rápido. Panos limpos fervidos em água
também!
- Sim! - dizemos a ele. Mas Yoan me repreende.
- Espere Ling. Você deve ficar comigo - Sho Win gritava de dor.
- Não será fácil, Ling, eu preciso de sua ajuda.
- Mas o que eu posso fazer!!! - grito eu sem compreender por que Sho Win sentia
tanta dor, e ao mesmo tempo indignado pelo fato de que nada podíamos fazer para
ajudá-la.
- Fique com ela, Ling - ela agarra minha mão com mais força que qualquer outro
homem jamais seria capaz de ter. Ela grita mais uma vez.
- Calma Sho Win, eu estou aqui... - sussurro em seu ouvido. Ela soa em bicas. Entre
seus dentes havia algo para não lhe permitir esmigalhar os dentes sob a pressão de
sua mandíbula, que se comprimia a cada novo espasmo de dor. Os demais chegam
com os materiais requisitados pelo mestre.
- Agora saiam.
- Mas mestre...
- SAIAM AGORA! - grita ele. Eles saem, menos Lyu. Ele observa.
- Saia, Lyu - diz Yoan.
- Eu ficarei pois tenho conhecimento médico, assim como você, Yoan - Eles se
calam. Sho grita mais uma vez. Lyu se aproxima - Gostaria de ajudar, se você
permitir - diz ele a mim. Eu lhe permito.
- Apenas ajude ela. Pare com a dor e traga meu filho - digo eu.

       Ele coloca a mão sobre a barriga de Sho Win e a aperta. Ela grita de dor. Eu
agarro a mão dele com força. Ele se desprende, e me olha sério.

- Não interfira, Ling! Isso tem que ser feito! - eu me afasto, chorando. Fazia muito
tempo que eu não chorava, e mais ainda chorar na frente de outros.

      A questão era que eu amava aquela mulher, e agora ela estava sofrendo. O
que eu podia fazer? Nada. Absolutamente nada. Apenas observar.

- Aqui, veja - diz Lyu para Yoan, que aperta a mesma área da barriga de Sho Win
que ele havia indicado. Ela gritava de dor.
- Sim, eu compreendo - diz Yoan.
- O que foi?! - pergunto eu, aflito.
- A criança está sentada dentro da barriga de sua esposa. Ele não vai sair desta
maneira. Temo que seja o fim.
- Como assim o fim? Ajudem Sho Win agora!!! Ajudem!!! - grito eu não querendo
compreender o que eles estavam querendo dizer. Eles continuam calados.



                                                                                  28
- Há uma maneira, não usual, que aprendi a pouco tempo atrás... - diz Lyu.
- O que é? - pergunto eu.
- Consiste em espetá-la com várias farpas de bambu em pontos energéticos do
corpo. Podemos harmonizar desde respiração e batimentos cardíacos até amenizar a
dor.
- Isso resolveria? Salvaria a vida dela?
- Não, mas poderia nos permitir...
- O que?
- Abrir ela. Seria a única maneira de fazer com que a criança nasça.
- Abrir?
- Sim - diz Yoan - Se bloquearmos os plexos nervosos da região, poderíamos abri-la,
bloqueando para um nível mínimo o sangramento na região. Mas é arriscado. Tem
que ser feita de maneira precisa.
- Vocês podem fazer? - Sho Win grita mais uma vez, ao fundo.
- Não temos outra maneira. Deste jeito, ela e a criança morrerão. Se abrirmos, ela
poderá ter uma chance, e a criança nascerá, com certeza.
- Façam! Agora! - grita Sho Win.
- Sho Win... - digo eu, me aproximando.
- Ling, eu lhe amo! Eles tem que fazer isso , por favor ... façam!!! Não deixem o meu
bebê morrer!!! - fala ela, chorando.

        Eu permito. Eles se preparam. Lyu vai até o bambuzal e retira um grande
pedaço de bambu seco. Yoan retira uma garrafa de sakê de seu armário. Uma faca
afiada reflete a luz das velas em meus olhos. Várias farpas são colocadas por Lyu.
Sho Win aparentemente sofre o efeito, parando com os gritos e se acalmando.
Lágrimas rolam por nossos rostos. Mais farpas são colocadas na região abdominal
dela.
- Isto é o máximo que posso fazer, Yoan - O velho dá de beber a Sho Win.
- Agora teremos que cortá-la. Já passou do tempo do nascimento. Temos que ser
rápidos.
- Ling, pegue neve lá fora, encha um balde. Traga-o para nós - diz Lyu. Eu obedeço.
Quando estou na metade do balde, ouso um grande choro de criança. Entro
rapidamente na casa. Sho Win estava completamente desacordada, com um grande
corte em sua barriga. O cheiro de sangue era forte, e Yoan segurava meu filho, uma
menina. Lyu, por sua vez, segurava a barriga de Sho Win, tentando impedir a
abertura do rasgo.
- Não consigo conter o sangramento!!! - gritava ele. Eu derrubo o balde, em
completo estado de choque. Olhava para a criança e depois para Sho Win. Com uma
grande agulha de costura e uma linha, ambos fervidos em água, Lyu literalmente
costura a barriga de Sho Win após conter o sangramento. Ela permanecia
desacordada.
- Não nutra esperanças, Ling. Infelizmente, será muito difícil que ela sobreviva - diz
Yoan, segurando a menina que agora parava de gritar. Eu a olhava com ódio.
- Não! - diz Yoan me batendo no rosto - Não ouse odiar esta criança. Se quer odiar a
alguém odeia a si mesmo! A culpa disto tudo é sua, e dela! - diz ele apontando para
Sho Win, desacordada - Vocês o fizeram com tal intenção?! Não! Mas mesmo assim
sente a necessidade de culpar alguém por isso! Pois culpe a mim, a Lyu, a você e a
Sho Win, menos a esta criança. Entendeu?

      Suas palavras ardem, pois são a verdade. Eu aceito, e tomo a criança em
meus braços. Era linda, como a mãe. Me apaixono por ela instantaneamente. Mas
Sho Win ainda necessitava de mim. Deixo minha filha aos cuidados de Yoan, e vou




                                                                                   29
ficar ao lado de minha esposa. Seguro sua mão, fria. Uma lágrima escorre de seus
olhos. Ali eu passo a noite.

                            ***********************

       No dia seguinte a neve continua forte. A criança também. Mas Sho Win não
acordara. Os treinamentos estavam suspensos, não tanto por nós, mas sim por
causa da grande nevasca que caía. Eu chorava o mais que podia, mas de nada
adiantava. Eu lhe pedia para acordar, se levantar, mas ela nada respondia. Ficava ali
parada, imóvel. Algumas horas depois, ela parava de respirar.

- SHO WIN !!!!! - gritava eu, enquanto que Lyu soprava ar para dentro dela e
massageava seu peito de forma estranha. Yoan me continha. Ali ficou por cerca de 3
minutos. Por fim, ele sai de cima dela, e pela primeira vez em minha vida eu vejo
meus dois mestres chorarem. Yoan, meu guia no Caminho do Tigre, e Lyu, meu
mestre no que ele havia intitulado, a pouco tempo, de Caminho do Dragão, uma
brincadeira com o verdadeiro caminho seguido. Sho Win, de olhos abertos, estava
estática. Ambos me olham seriamente, e deixam a sala. Ela havia morrido.

      Eu sabia disso , mas relutava em compreender. Lhe tomei a mão inerte,
agora mais fria do que antes. Sua boca entre aberta, os olhos estáticos e sem brilho.

- SHO WIIIIIIIIIIIN!!! SHO WIIIIIIIIIN!!! - gritava eu, chorando, e por fim abraçando
o corpo morto de minha esposa.

       Ela me deixara enfim. Me arrasto para fora, e mesmo no meio de toda aquela
neve eu vou até o lugar em que nos amamos pela primeira vez, meu local de
meditação. Choro e grito mais. Fico ali até perder a noção de tempo. Caio, exausto,
no chão. Ronin me encontra semi enterrado na neve, e me leva de volta para a casa
de Yoan. Eu não fui capaz de exprimir uma só palavra durante os próximos 7 dias.
Não saia de meu quarto, não ria, não comia junto aos outros. Só ficava em meu
quarto, eu e minha filha. Eu a chamo de Mai Win. Aparenta ser um nome otimista.

       Eu cuido dela em completo silêncio. Vez ou outra Yoan aparecia e me
ensinava algo para ajudar, como limpá-la, dar comida, estas coisas.

       Ao fim dos 7 dias a neve, enfim, cedera. Podíamos realizar o enterro.
Sepultamos Sho Win próximo à árvore em meu local de meditação. Eu poderia vê-la
todos os dias.

      Yoan diz algumas palavras e então entoa algumas preces budistas para ela.
Eu choro, com Mai em meus braços. Ela, ao contrário de mim, sorria. Confesso que
nunca a vi chorar sem ter sido em seu dia de nascimento. Todos vão embora,
somente eu e Mai permanecemos. As nuvens esburacadas permitiam vez ou outra a
passagem de raios de sol por entre suas fendas. Um grande raio de sol iluminava
exatamente o local de sepultamento em que estávamos.

- Sho Win, meu amor... não me deixe só... não agora - digo eu, baixinho - Não me
contenho e derramo mais lágrimas. Momentaneamente eu fico sério.
- Eu juro, sobre seu túmulo, que eu não deixarei de acreditar nas coisas em que
acreditava antes, em coisas que descobri junto com você. Eu ainda serei o maior
lutador que poderá existir em todos os tempos. Eu juro - Paro as lágrimas, olho para
Mai e me viro.



                                                                                   30
- Adeus meu amor, me aguarde, um dia nos reencontraremos.

      Saio do lugar e vou para a casa de Yoan.

                       *****************************

        Adquiro um ar amargurado, mas no entanto maduro e seguro, como um bom
lutador tinha que ser.Yoan arrumara uma nova ajudante para a casa. Li Wong Pu era
nova, com seus 14 anos. Bonita, tímida e carinhosa, cuidava de minha filha
perfeitamente, desde o primeiro dia. Fazia comida, lavava roupas e tudo o mais. Era
tão boa quanto Sho Win, só que não era ela.

        O treinamento voltou normalmente logo após o dia do enterro. Não fui
poupado, o que achei muito certo e justo. Yoan me admirava. Estava satisfeito
comigo, pois não havia fraquejado como ele provavelmente havia pensado que eu
faria. Ao contrário, fui um forte. Me empenhava agora totalmente no treinamento, de
forma exagerada. Estava treinando até durante a noite. Logo os resultados estavam
aparecendo. Estava muito acima em termos técnicos de Lao e de Ronin. Já estava
me equiparando a Lyu. Começava a ganhar lutas dele. Estava ficando melhor a cada
dia.

       Mai iniciava a falar. Era a mascote da turma. Todos a adoravam. Ela falava
enrolado, de forma engraçada, e eu adorava. Brincava muito, e Li Wong era como
uma verdadeira mãe para ela. Passaram-se ai 18 meses desde a morte de Sho Win.
Já não me doía muito o fato. Ronin e Li se encontravam escondidos, assim como eu
e minha esposa fazíamos. Eu fico feliz, mesmo sabendo que o final poderia ser tão
ou mais trágico que o da minha própria história. Estou maduro, visivelmente
experiente. Minha fala e maneira é a mesma de um homem com o triplo de minha
idade. Eu era um guerreiro.

      Um dia, depois do treinamento, Ronin se aproximou de mim. Estava
meditando, assim como fazia no início, todos os dias.

- O que ha, Sakazama?
- Eu queria conversar, mas não sei sobre o que...
- Fale, apenas fale.
- Eu e Li Wong...
- Sim, eu já sei.
- Como?
- Esqueceu-se que comigo ocorreu o mesmo? Meus olhos vêem coisas que os demais
não são capazes de enxergar.
- Entendo. Ela não quer que eu seja um guerreiro após o treinamento.
- E você? Quer ser?
- Eu tenho o dever! Você não compreende...
- Faça-me compreender - digo eu, calmamente. Ele se senta na minha frente, aflito.
- O único que sabe desta história toda além de mim é Lyu. Agora eu vou contar para
você.
- Conte-a.
- Foi a 10 anos atrás. Eu estava apenas com 9 anos, mas me lembro de tudo muito
bem. Morávamos em Nagoia. Meu pai era um grande guerreiro, um verdadeiro
Samurai. Tínhamos um senhor, o qual meu pai jurou fidelidade e proteção. Proteção
extrema. Sabe o que isso significa para um Samurai? Ter que, se necessário, dar a
própria vida para a proteção de seu senhor. Se algo sair errado e o senhor morrer e



                                                                                 31
o Samurai sobreviver, este se tornará um Ronin. Samurai desonrado e sem mestre.
Pois bem. O dever de meu pai, sendo um Ronin, seria o de se suicidar. Só assim ele
recobraria a honra perdida. Mas eu não tinha mais ninguém, e no final, ainda havia
minha irmã, Suury, com dois anos. Ele abandonou Nagoia, veio para a China e nos
criou. Agora eu treino com Yoan para poder vingar a morte de meu pai.
- E como Lyu soube de tudo isso?
- Por que foi ele que matou o senhor de meu pai, e posteriormente ele em si. Ele é
um assassino, Ling, não sabia disso?
- Um assassino?! Não pode ser, Sak. Ele devia ser tão novo quanto nós naquela
época!
- Sabe quantos anos ele tem? 25! Ele tinha 15 anos na época, e os ninjas assassinos
do JitSu se tornam mortais aos 12 anos. Ele já tinha 3 anos de experiência
assassina!
- E o que ele está fazendo aqui?
- Ele debandou do clã. Foi expulso.
- Por que?
- Achava que não estava ganhando o suficiente de seus mestres. Deixou o clan para
fundar uma ordem mercenária. Está aqui por duas coisas: ou quer nos reunir para
junto com ele sermos assassinos de aluguel ou está apenas trabalhando.
- O que? Ia levar 10 anos para matar uma pessoa?
- Não sei, Ling. Tudo o que sei é que ele é perigoso e está com segundas intenções.
- Por que você nunca fez nada?
- Oh, eu fiz sim. Antes de virmos para cá ele me revelou o mandante da morte,
tanto de meu pai quanto de nosso senhor. Eu o matei.
- Mas e Lyu?
- Ling, ele é apenas uma arma. É o trabalho do maldito. Eu não posso culpá-lo. O
verdadeiro culpado está morto a 6 anos. Podia ter sido qualquer um dos ninjas JitSu.
- Compreendo. Acha que está aqui para matá-lo?
- Não, se esta aqui para matar alguém só pode ser Yoan. Tem muitos inimigos e é o
único que levaria tanto tempo assim para ser morto. Acho que, no fundo, ele está
estudando também.
- Mas ele e Yoan se tratam de forma tão normal...
- Não questione os métodos de um ninja assassino, Ling... ele é uma cobra criada. -
diz ele se levantando.
- O que acha que devo fazer?
- O que você quer fazer, Sakazama?
- Reerguer o nome de minha família, ser um bom Samurai, limpar o nome de meu
pai...
- Você não tem que ser um Samurai para fazer isso, Sakazama. Para falar a
verdade, acho que você já o fez. Olhe-se! Seu pai teria orgulho do que você se
tornou - Ele se olha por um momento.
- Talvez... você tenha razão. Mas eu ainda não sei... o Caminho é tão difícil, do que
me valerá percorrê-lo se não lançarei mão do conhecimento posteriormente?
- Você pode tirar proveito dele mesmo sem ser um guerreiro. O equilíbrio e a paz
que você conquistar agora lhe servirão muito. Além do mais, se surgir um
imprevisto, você não irá necessitar de um Samurai contratado, pois será seu próprio
Samurai.
- Eu... não sei Ling. Eu tenho que pensar - Ele sai andando.
- Obrigado, Ronin.
- Pelo que? - pergunta ele parando, sem voltar seu rosto para o meu, assim como
eu.
- Por confiar em mim.




                                                                                  32
Ele apenas continua andando.


                             ********************

       No dia seguinte nosso treinamento com armas é iniciado. Facas, sabres,
bastões, e uma infinidade de outras coisas mortais estavam a nossa disposição.
Nosso treinamento se triplicara. Pegamos o jeito das armas bem rápido. Novos
golpes eram ensinados e ainda fazíamos exercícios físicos em uma intensidade
inacreditável. Os músculos chegavam a atrapalhar alguns movimentos. Mas logo nos
acostumávamos.
       Chegou então a hora de cada um escolher uma arma específica para
aprendizado total, ou seja, seriam nossas armas eternas, nossas armas de combate.
Seriamos verdadeiros mestres com elas.

       Lyu escolhe primeiro. Pega uma espada média, estilo japonês, de lâmina forte
e corte devastador. Segura, elegante, fatal. A arma de um verdadeiro ninja.

        Lao escolhe em seguida. Escolhe a Sai, mini espadas com espetos nas
extremidades dos cabos. Multiuso. Armas de corpo a corpo, de lançamento, de corte.
Fatais, super afiadas, discretas.

        Eu escolho uma arma estranha e aparentemente inútil: dois pequenos
cilindros de madeira unidos por uma forte corrente de ferro. Um Nun-Chako. Uma
arma japonesa rápida, pequena, forte e não letal.

- Por que escolheu esta arma? - pergunta Yoan.
- Por que a arma mais mortal que eu poderia ter eu já tenho: meu próprio corpo,
mestre.

       Esta era a resposta que ele queria ouvir e a que eu respondi sem pensar. Mas
eu estava mentindo, em parte. Se usada de forma correta, minha arma seria capaz
de neutralizar todas as demais. Não podia confiar muito em armas. Tinha que confiar
em mim. Minha filha observava, no colo de Li Wong. Eu ascendo, ela sorri, e esconde
o rosto.

      Ronin escolhe o bastão. Uma arma elegante, mas grande. Os maiores
mestres sempre o utilizavam. E ele é honrado o suficiente para empunha-la.

       Os dias passam lentamente. As noites são novamente agradáveis, a escuridão
me consola. Sou novamente um solitário, só que agora de coração marcado.
Sangrado pelo amor que teima em me recordar de tal dor e sofrimento. Eu costumo
chorar antes de dormir, e minha filha me observa. Eu nada falo, e ela então
compreende, apenas olhando para meus olhos úmidos. Enquanto todos dormem eu
medito, em busca da paz que perdi com a morte de Sho Win.

        Meu ódio estava novamente dominando meu equilibrado espírito de luta.
Estava mais poderoso, mais perigoso, porém mais cruel e triste. Deveria eu me
sacrificar de tal maneira? Acabar-me de tal forma para me tornar aquilo que eu nem
queria ser? A resposta veio com uma morte. Não poderia ter uma vida feliz.

      Não poderia ser aquilo que gostaria de ser. Meu destino está traçado, e
amaldiçoado. Devo me tornar o maior de todos para por fim ao meu sofrimento. Só



                                                                                 33
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre
O Caminho do Tigre

Weitere ähnliche Inhalte

Was ist angesagt?

Was ist angesagt? (7)

Ogum
Ogum Ogum
Ogum
 
16827349 Espiritismo Infantil Historia 16
16827349 Espiritismo Infantil Historia 1616827349 Espiritismo Infantil Historia 16
16827349 Espiritismo Infantil Historia 16
 
MéDico De Homens E De Almas Juliana Ramires
MéDico De Homens E De Almas   Juliana RamiresMéDico De Homens E De Almas   Juliana Ramires
MéDico De Homens E De Almas Juliana Ramires
 
Testemunho
TestemunhoTestemunho
Testemunho
 
Balan
BalanBalan
Balan
 
Oxossi
OxossiOxossi
Oxossi
 
71557014 vol-2-jornada-dos-anjos
71557014 vol-2-jornada-dos-anjos71557014 vol-2-jornada-dos-anjos
71557014 vol-2-jornada-dos-anjos
 

Ähnlich wie O Caminho do Tigre

As 12 Pedras do Alicerce: Aula 11B: Superando problemas - Siga em frente
As 12 Pedras do Alicerce:  Aula 11B: Superando problemas - Siga em frenteAs 12 Pedras do Alicerce:  Aula 11B: Superando problemas - Siga em frente
As 12 Pedras do Alicerce: Aula 11B: Superando problemas - Siga em frenteFreekidstories
 
Jornada dos anjos (psicografia sandra carneiro espírito lucius)
Jornada dos anjos (psicografia sandra carneiro   espírito lucius)Jornada dos anjos (psicografia sandra carneiro   espírito lucius)
Jornada dos anjos (psicografia sandra carneiro espírito lucius)Eliane Silvério Almeida
 
A quarta dimensão paul yonggi cho
A quarta dimensão paul yonggi choA quarta dimensão paul yonggi cho
A quarta dimensão paul yonggi choprfavinho
 
Auto- Conhecer-se: A chave para o bem estar
Auto- Conhecer-se: A chave para o bem estarAuto- Conhecer-se: A chave para o bem estar
Auto- Conhecer-se: A chave para o bem estarDanilo Galvão
 
Livro diário da nossa paixão
Livro   diário da nossa paixãoLivro   diário da nossa paixão
Livro diário da nossa paixãoJean Marcos
 
A quarta dimensao_-_paul_yonggi_cho_ebooksgospelblogspotcom
A quarta dimensao_-_paul_yonggi_cho_ebooksgospelblogspotcomA quarta dimensao_-_paul_yonggi_cho_ebooksgospelblogspotcom
A quarta dimensao_-_paul_yonggi_cho_ebooksgospelblogspotcomMaressa Almeida
 
Paul yonggi cho a quarta dimensão
Paul yonggi cho   a quarta dimensão Paul yonggi cho   a quarta dimensão
Paul yonggi cho a quarta dimensão Jairo34machado
 
A quarta dimensao paul yonggi cho
A quarta dimensao   paul yonggi choA quarta dimensao   paul yonggi cho
A quarta dimensao paul yonggi choRicardo Leão
 
A quarta dimensao paul yonggi cho
A quarta dimensao   paul yonggi choA quarta dimensao   paul yonggi cho
A quarta dimensao paul yonggi choDecima Renovada
 
A quarta dimensão
A quarta dimensãoA quarta dimensão
A quarta dimensãoFidel Sábio
 
PORQUE AS BORBOLETAS VOAM
PORQUE AS BORBOLETAS VOAMPORQUE AS BORBOLETAS VOAM
PORQUE AS BORBOLETAS VOAMLPOWEN
 

Ähnlich wie O Caminho do Tigre (12)

As 12 Pedras do Alicerce: Aula 11B: Superando problemas - Siga em frente
As 12 Pedras do Alicerce:  Aula 11B: Superando problemas - Siga em frenteAs 12 Pedras do Alicerce:  Aula 11B: Superando problemas - Siga em frente
As 12 Pedras do Alicerce: Aula 11B: Superando problemas - Siga em frente
 
Jornada dos anjos (psicografia sandra carneiro espírito lucius)
Jornada dos anjos (psicografia sandra carneiro   espírito lucius)Jornada dos anjos (psicografia sandra carneiro   espírito lucius)
Jornada dos anjos (psicografia sandra carneiro espírito lucius)
 
A quarta dimensão paul yonggi cho
A quarta dimensão paul yonggi choA quarta dimensão paul yonggi cho
A quarta dimensão paul yonggi cho
 
Auto- Conhecer-se: A chave para o bem estar
Auto- Conhecer-se: A chave para o bem estarAuto- Conhecer-se: A chave para o bem estar
Auto- Conhecer-se: A chave para o bem estar
 
Livro diário da nossa paixão
Livro   diário da nossa paixãoLivro   diário da nossa paixão
Livro diário da nossa paixão
 
O poder de gratidão
O poder de gratidãoO poder de gratidão
O poder de gratidão
 
A quarta dimensao_-_paul_yonggi_cho_ebooksgospelblogspotcom
A quarta dimensao_-_paul_yonggi_cho_ebooksgospelblogspotcomA quarta dimensao_-_paul_yonggi_cho_ebooksgospelblogspotcom
A quarta dimensao_-_paul_yonggi_cho_ebooksgospelblogspotcom
 
Paul yonggi cho a quarta dimensão
Paul yonggi cho   a quarta dimensão Paul yonggi cho   a quarta dimensão
Paul yonggi cho a quarta dimensão
 
A quarta dimensao paul yonggi cho
A quarta dimensao   paul yonggi choA quarta dimensao   paul yonggi cho
A quarta dimensao paul yonggi cho
 
A quarta dimensao paul yonggi cho
A quarta dimensao   paul yonggi choA quarta dimensao   paul yonggi cho
A quarta dimensao paul yonggi cho
 
A quarta dimensão
A quarta dimensãoA quarta dimensão
A quarta dimensão
 
PORQUE AS BORBOLETAS VOAM
PORQUE AS BORBOLETAS VOAMPORQUE AS BORBOLETAS VOAM
PORQUE AS BORBOLETAS VOAM
 

Kürzlich hochgeladen

Ficha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdf
Ficha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdfFicha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdf
Ficha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdfFtimaMoreira35
 
ATIVIDADE PARA ENTENDER -Pizzaria dos Descritores
ATIVIDADE PARA ENTENDER -Pizzaria dos DescritoresATIVIDADE PARA ENTENDER -Pizzaria dos Descritores
ATIVIDADE PARA ENTENDER -Pizzaria dos DescritoresAnaCarinaKucharski1
 
Atividade - Letra da música Esperando na Janela.
Atividade -  Letra da música Esperando na Janela.Atividade -  Letra da música Esperando na Janela.
Atividade - Letra da música Esperando na Janela.Mary Alvarenga
 
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...azulassessoria9
 
PROGRAMA DE AÇÃO 2024 - MARIANA DA SILVA MORAES.pdf
PROGRAMA DE AÇÃO 2024 - MARIANA DA SILVA MORAES.pdfPROGRAMA DE AÇÃO 2024 - MARIANA DA SILVA MORAES.pdf
PROGRAMA DE AÇÃO 2024 - MARIANA DA SILVA MORAES.pdfMarianaMoraesMathias
 
Historia da Arte europeia e não só. .pdf
Historia da Arte europeia e não só. .pdfHistoria da Arte europeia e não só. .pdf
Historia da Arte europeia e não só. .pdfEmanuel Pio
 
FASE 1 MÉTODO LUMA E PONTO. TUDO SOBRE REDAÇÃO
FASE 1 MÉTODO LUMA E PONTO. TUDO SOBRE REDAÇÃOFASE 1 MÉTODO LUMA E PONTO. TUDO SOBRE REDAÇÃO
FASE 1 MÉTODO LUMA E PONTO. TUDO SOBRE REDAÇÃOAulasgravadas3
 
Discurso Direto, Indireto e Indireto Livre.pptx
Discurso Direto, Indireto e Indireto Livre.pptxDiscurso Direto, Indireto e Indireto Livre.pptx
Discurso Direto, Indireto e Indireto Livre.pptxferreirapriscilla84
 
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de..."É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...Rosalina Simão Nunes
 
Revolução russa e mexicana. Slides explicativos e atividades
Revolução russa e mexicana. Slides explicativos e atividadesRevolução russa e mexicana. Slides explicativos e atividades
Revolução russa e mexicana. Slides explicativos e atividadesFabianeMartins35
 
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdf
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdfProjeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdf
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdfHELENO FAVACHO
 
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...licinioBorges
 
Construção (C)erta - Nós Propomos! Sertã
Construção (C)erta - Nós Propomos! SertãConstrução (C)erta - Nós Propomos! Sertã
Construção (C)erta - Nós Propomos! SertãIlda Bicacro
 
About Vila Galé- Cadeia Empresarial de Hotéis
About Vila Galé- Cadeia Empresarial de HotéisAbout Vila Galé- Cadeia Empresarial de Hotéis
About Vila Galé- Cadeia Empresarial de Hotéisines09cachapa
 
PROJETO DE EXTENSÃO - EDUCAÇÃO FÍSICA BACHARELADO.pdf
PROJETO DE EXTENSÃO - EDUCAÇÃO FÍSICA BACHARELADO.pdfPROJETO DE EXTENSÃO - EDUCAÇÃO FÍSICA BACHARELADO.pdf
PROJETO DE EXTENSÃO - EDUCAÇÃO FÍSICA BACHARELADO.pdfHELENO FAVACHO
 
421243121-Apostila-Ensino-Religioso-Do-1-ao-5-ano.pdf
421243121-Apostila-Ensino-Religioso-Do-1-ao-5-ano.pdf421243121-Apostila-Ensino-Religioso-Do-1-ao-5-ano.pdf
421243121-Apostila-Ensino-Religioso-Do-1-ao-5-ano.pdfLeloIurk1
 
INTERVENÇÃO PARÁ - Formação de Professor
INTERVENÇÃO PARÁ - Formação de ProfessorINTERVENÇÃO PARÁ - Formação de Professor
INTERVENÇÃO PARÁ - Formação de ProfessorEdvanirCosta
 
A QUATRO MÃOS - MARILDA CASTANHA . pdf
A QUATRO MÃOS  -  MARILDA CASTANHA . pdfA QUATRO MÃOS  -  MARILDA CASTANHA . pdf
A QUATRO MÃOS - MARILDA CASTANHA . pdfAna Lemos
 

Kürzlich hochgeladen (20)

Ficha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdf
Ficha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdfFicha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdf
Ficha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdf
 
ATIVIDADE PARA ENTENDER -Pizzaria dos Descritores
ATIVIDADE PARA ENTENDER -Pizzaria dos DescritoresATIVIDADE PARA ENTENDER -Pizzaria dos Descritores
ATIVIDADE PARA ENTENDER -Pizzaria dos Descritores
 
CINEMATICA DE LOS MATERIALES Y PARTICULA
CINEMATICA DE LOS MATERIALES Y PARTICULACINEMATICA DE LOS MATERIALES Y PARTICULA
CINEMATICA DE LOS MATERIALES Y PARTICULA
 
Atividade - Letra da música Esperando na Janela.
Atividade -  Letra da música Esperando na Janela.Atividade -  Letra da música Esperando na Janela.
Atividade - Letra da música Esperando na Janela.
 
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
 
Aula sobre o Imperialismo Europeu no século XIX
Aula sobre o Imperialismo Europeu no século XIXAula sobre o Imperialismo Europeu no século XIX
Aula sobre o Imperialismo Europeu no século XIX
 
PROGRAMA DE AÇÃO 2024 - MARIANA DA SILVA MORAES.pdf
PROGRAMA DE AÇÃO 2024 - MARIANA DA SILVA MORAES.pdfPROGRAMA DE AÇÃO 2024 - MARIANA DA SILVA MORAES.pdf
PROGRAMA DE AÇÃO 2024 - MARIANA DA SILVA MORAES.pdf
 
Historia da Arte europeia e não só. .pdf
Historia da Arte europeia e não só. .pdfHistoria da Arte europeia e não só. .pdf
Historia da Arte europeia e não só. .pdf
 
FASE 1 MÉTODO LUMA E PONTO. TUDO SOBRE REDAÇÃO
FASE 1 MÉTODO LUMA E PONTO. TUDO SOBRE REDAÇÃOFASE 1 MÉTODO LUMA E PONTO. TUDO SOBRE REDAÇÃO
FASE 1 MÉTODO LUMA E PONTO. TUDO SOBRE REDAÇÃO
 
Discurso Direto, Indireto e Indireto Livre.pptx
Discurso Direto, Indireto e Indireto Livre.pptxDiscurso Direto, Indireto e Indireto Livre.pptx
Discurso Direto, Indireto e Indireto Livre.pptx
 
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de..."É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...
"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...
 
Revolução russa e mexicana. Slides explicativos e atividades
Revolução russa e mexicana. Slides explicativos e atividadesRevolução russa e mexicana. Slides explicativos e atividades
Revolução russa e mexicana. Slides explicativos e atividades
 
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdf
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdfProjeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdf
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdf
 
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
 
Construção (C)erta - Nós Propomos! Sertã
Construção (C)erta - Nós Propomos! SertãConstrução (C)erta - Nós Propomos! Sertã
Construção (C)erta - Nós Propomos! Sertã
 
About Vila Galé- Cadeia Empresarial de Hotéis
About Vila Galé- Cadeia Empresarial de HotéisAbout Vila Galé- Cadeia Empresarial de Hotéis
About Vila Galé- Cadeia Empresarial de Hotéis
 
PROJETO DE EXTENSÃO - EDUCAÇÃO FÍSICA BACHARELADO.pdf
PROJETO DE EXTENSÃO - EDUCAÇÃO FÍSICA BACHARELADO.pdfPROJETO DE EXTENSÃO - EDUCAÇÃO FÍSICA BACHARELADO.pdf
PROJETO DE EXTENSÃO - EDUCAÇÃO FÍSICA BACHARELADO.pdf
 
421243121-Apostila-Ensino-Religioso-Do-1-ao-5-ano.pdf
421243121-Apostila-Ensino-Religioso-Do-1-ao-5-ano.pdf421243121-Apostila-Ensino-Religioso-Do-1-ao-5-ano.pdf
421243121-Apostila-Ensino-Religioso-Do-1-ao-5-ano.pdf
 
INTERVENÇÃO PARÁ - Formação de Professor
INTERVENÇÃO PARÁ - Formação de ProfessorINTERVENÇÃO PARÁ - Formação de Professor
INTERVENÇÃO PARÁ - Formação de Professor
 
A QUATRO MÃOS - MARILDA CASTANHA . pdf
A QUATRO MÃOS  -  MARILDA CASTANHA . pdfA QUATRO MÃOS  -  MARILDA CASTANHA . pdf
A QUATRO MÃOS - MARILDA CASTANHA . pdf
 

O Caminho do Tigre

  • 1. SHEENA O CAMINHO DO TIGRE Daniel Paixão Fontes 1996 – 1997 - 2003 1
  • 2. PARTE I - O TREINAMENTO Algo me fazia temer a escuridão. Um medo ingênuo de que eu ficaria cego, ou que monstros que só a luz pode afastar viriam me capturar. Mas, no final das contas, eu acabei gostando mais da escuridão do que da própria luz. Não subjetivamente, não! Eu ainda amo a Deus e o venero! Mas gostei da escuridão como ausência de pura luz física, dita e simples, assim. É na escuridão onde eu me sinto mais aconchegado. Não posso ser visto em minha solidão doentia. Isso é bom. Mas como todos as noites são curtas, os dias são longos. E é um belo dia do ano de 1098 da era cristã. O sol nasce belo e forte ao leste das montanhas Shizu. Yoan, meu mestre, já esta à mesa comendo os preparos que Sho Win preparara. Como de costume, nenhuma palavra é dita durante toda a refeição. Isso é difícil de aceitar para um jovem recém saído de sua família de 7 irmãos. O silêncio só seria quebrado em exatas 2 horas, início do treinamento diurno, e voltaria ao anoitecer, quando todos deveriam meditar. Fazem exatos 4 dias que cheguei aos montes Shizu, e meu pai, Wong, havia me arrumado esta enrascada. Yoan era o maior mestre que a China tinha. Pessoas morriam para por seus filhos em sua custódia, sob seu treinamento. Só 4 eram selecionados, a cada 10 anos, para tal honra. Eu era um dos 4 escolhidos, e até daqui a 3 anos, eu e os outros 3 ficaríamos incomunicáveis entre nós. Eu ainda era o mais bem amparado. Eu estava dormindo na casa de Yoan, comia a comida de Sho Win e treinava supervisionado pelo próprio mestre mais de 3 vezes por semana. Os outros deviam me odiar. Mas nem sempre o que fica na casa do mestre é o mais forte dos 4. Meu próprio pai foi discípulo de Yoan, e nunca foi um grande lutador. Ele, assim como eu, ficou na casa com o mestre. Os outros 3, ao contrário , sempre eram mais fortes. Viviam nos picos das montanhas, nas galerias geladas abaixo da montanha ou nas florestas ao sul de nossa morada. E para piorar, esta turma será a última de Yoan em toda sua vida. Ele estava completando seus 95 anos de vida, e um treinamento de 10 anos é muito exaustivo. Eu tenho apenas 13 anos, e nem sequer me imagino com tanta idade. Mas dizem ainda que ele agüenta umas 2 ou 3 turmas novas. Na verdade ele esta muito bem para um homem com tal idade. Ainda é capaz de correr mais rápido do que eu, pular mais alto e bater muito, muito mais forte. Na verdade os homens daqui sempre relutaram muito em morrer cedo. Meu avô morreu com 128 anos. Assim mesmo, foi morto a pedradas na cabeça por um doente mental, meu tio. Bem, mas meu pai intercedeu junto a Yoan para que ele me aceitasse. Feito isso, deixei para trás minha numeroso família, poucos amigos e meus sonhos de ser um grande fazendeiro. Seria agora um grande lutador. Eu não queria lutar, mas durante estes quatro dias algo dentro de mim floresceu. Não era ódio, nem mágoa, mas ainda era algo estranho, que queimava por dentro. Eu fui morrendo pouco a pouco, para dar lugar ao homem que eu seria em pouco tempo. Um grande guerreiro, quem sabe, ou um grande covarde, mas seria um novo homem. Terminada a refeição, Yoan sai para apreciar a manhã. Respira profundamente, e inicia um Kati belo e harmônico que repete toda manhã. Eu não sei se ele quer que eu o acompanhe nestes movimentos, mas eu só me contento em olhar alguém se mover com tanta graça e habilidade como ele. Terminados os 2
  • 3. movimentos, ele corre por cerca de 10 milhas, sem ao menos aumentar a respiração. Ele se volta para mim. É hora de iniciar mais um dia de treinamento. Inicialmente (e isso era rotina nos demais dias, pelos próximos 15 meses) fazíamos um alongamento completo do corpo. Doía muito no início, e ele me mandava relaxar. Parece absurdo, mas funcionava. 50 minutos exatos de alongamento. Era isso. Depois, uma bela corrida de 20 quilômetros. Yoan percorria em exatas uma hora e meia, eu levava de duas a quatro horas para completar esse percurso. Ele me olhava, paciente, como se já soubesse que eu era frágil e que tinha que ter cuidado comigo, assim como meu pai. Era este o olhar dele. Deus, como eu queria surpreendê-lo! Fazer ele compreender que ele estava errado, que eu podia ser forte! Depois, nadávamos contra a correnteza do pequeno rio que havia ali por perto. Não era muito forte, mas eu quase me afoguei umas 3 ou 4 vezes no início. Yoan, por incrível que pareça, após me salvar, dava gargalhadas, se jogava de volta no rio e nadava de maneira magistral. Ele era de ferro. Após o nado, íamos comer. Sho Win nos esperava, com um grande sorriso e muita comida. Ela era nova, quase tão nova quanto eu. Era muito quieta, e obediente. Yoan havia lhe criado desde seu nascimento, disso eu sei, mas não sabia se ele realmente era pai dela, e isso eu não sei até hoje. Mas, enfim, ela era uma bela moça com seus 18 anos, e cozinhava muito bem. Após comer e descansar por 2 horas, nós retomávamos o treino. Yoan se sentou em uma pedra e apenas me observava. Eu aguardava suas ordens, e então ele me mandou sentar a sua frente. Estávamos no lugar mais belo que eu já havia visto em toda a minha vida. Era recoberto por grama verde e farta, havia a pedra onde o mestre estava sentado, havia uma grande árvore ao seu lado, e ao fundo uma grande cascata de água caía, formando uma expeça nuvem. Tudo isso aliado ao céu azul e ao sol poderoso que pairava naquele dia, juntamente com o aspecto sombrio que as demais montanhas faziam ao fundo, o que me agradava, pois eu ainda gostava mais do escuro do que da claridade. Eu simplesmente me apaixonara pelo lugar. - Você gostou deste lugar, Ling ? - Sim, mestre. - Você deve escolher um lugar que seja seu nesta montanha, Ling. Um lugar seu, para que você possa vir aqui sempre que necessitar de respostas. - O lugar que eu escolher vai me dar respostas? - Não. Todas as respostas que você tanto anseia estão dentro de você mesmo, Ling. Você só precisa de um lugar seu para que elas lhe venham. Um lugar seu. - Mas mestre, este é o seu lugar! Eu já o vi aqui meditando todas as noites. - Agora ele será o seu lugar, Ling. Eu o deixo para você. - Por que mestre? - Por que eu já tenho todas as respostas que preciso. Este lugar é bom, e agora é seu. Ele se cala por completo, e fecha os olhos, realizando uma prece interna e pessoal, como se estivesse se despedindo do lugar que lhe serviu durante décadas. Partimos então para o grande rochedo que havia ao norte. Ali eu tinha que socar a rocha até que minha mão começasse a sangrar. Devido aos últimos dias e os 3
  • 4. ferimentos que eu havia adquirido, logo isso acontecia. Mas o mestre me mandou continuar a socar a rocha. Não com tanta força, para não quebrar ossos, mas com força o suficiente para me rasgar a carne dos dedos. O local que eu socava ficou manchado de sangue. E assim fiquei por uma hora inteira. As lágrimas caiam, mas Yoan não me permitia parar. Ataduras eram colocadas nos ferimentos, mas eu não podia parar de socar a rocha. Por fim, ele me pediu para parar. E eu parei. Ele me olhava com orgulho, eu, ali, com lágrimas nos olhos, sangue quente e semi coagulado pingando de minhas mãos, o suor a tomando conta de todo o meu rosto e meu coração disparado. Eu não havia parado até ele me mandar. Ele não me disse uma só palavra, mas eu vi em seus olhos o orgulho que sentia de mim por não ter parado ou reclamado um só minuto. Eu o havia finalmente surpreendido. Saímos do lugar, e rumamos para um bosque. Eu devia, agora, pular por entre tocos de árvores dispostos a mais de dois metros uns dos outros, no mínimo. Cai muitas vezes, é verdade, mas dei pulos muito bons. Yoan, para me demonstrar como deveria ser feito, deu saltos impressionantes. Mais uma hora. Pulos e pulos. Meus músculos gritavam por piedade, mas eu sabia que nunca poderia pedir piedade, pois quebraria aquele elo de admiração e orgulho que estávamos criando entre nós. Após isso, o penúltimo exercício: golpear com mãos, braços, pernas, pés e principalmente canelas, árvores finas e grossas até a noite iniciar. Isso doía muito. Mas Yoan me demonstrou mais uma vez como é que deveria ser feito, e partiu uma árvore média com um forte golpe de canela. Ele me pediu para não tentar aquilo ainda, pois com certeza eu quebraria algo, mas não a árvore. E eu ficava ali, golpeando, golpeando, sob o atento olhar dele. Parecia que o dia não ia acabar nunca. Por fim ele me manda encerrar o treinamento por hoje. Voltamos até a frente da casa. O mestre entra para se banhar, enquanto que eu deveria tomar banho no pequeno rio e depois fazer mais exercícios de alongamento. O silêncio dominara mais uma vez. Eu me dispo e caio na água gelada, que é até boa, pois meu corpo acabado se sente melhor. Ouço uma risada e olho ao redor para ver de onde vem. Vem de trás de uma pedra, de onde Sho Win me espiava. Ao ver que fora descoberta, ele dispara em corrida para dentro da casa. Eu termino o banho, visto roupas secas e limpas, e realizo o alongamento, assim como Yoan me ensinara. Entro para comer. O jantar é no mais completo silêncio. Depois, vou para meu lugar, aquele que Yoan me cedera. Uma noite clara e limpa exibe uma coberta de estrelas incrível. Eu me sento na pedra, e fico a observar toda aquela beleza escura, sob a luz de uma lua tão cheia quanto pode. Eu medito por um longo tempo. Eu não tenho perguntas para serem respondidas ainda, por isso eu apenas explorei o local com meus sentidos. O Inverno veio, e eu ficava horas e horas de baixo da neve gelada, sem agasalhos. Eu meditava a noite sob tal neve, que de certa forma me purificava a alma sangrada durante o treinamento. Mesmo nos dias em que o mestre dormia fora, para treinar os outros 3 alunos, eu seguia a risca o treinamento. Minhas mãos foram ficando resistentes, e não sangravam mais ao bater na rocha. Meu corpo, pouco a pouco, ia se transformando, ficando forte e belo. Eu podia notar os olhos de Sho Win sobre mim durante o dia todo. Eu não sentia mais as dores que sentia antes. Eu estava forte, como um verdadeiro lutador, ao fim de 15 meses. Mas não havia sido treinado em técnica. 4
  • 5. Um dia, em meditação, eu compreendi a razão de tudo isso: eu estava sendo preparado para absorver o conhecimento. Kung Fu não era fácil, e ainda mais com Yoan. Seu objetivo não era nos tornar meros lutadores, mas sim verdadeiros mestres, versados em todos os estilos conhecidos. Sim, eu ainda era um mero aprendiz. Um dia, quando o mestre me permitiu fazer algumas perguntas, eu lhe falei de minha conclusão. Ele sorriu, e apenas disse: - Você medita buscando respostas para suas perguntas. Elas sempre serão corretas. Ainda deveríamos continuar por mais tempo com este treinamento padrão. Até completar 3 anos, para então nós quatro nos unirmos e juntos iniciarmos o treinamento. O mestre se calou, e assim, nós observamos um pequeno grupo de aves voando para o sul. Cerca de 6 dias depois disto, o mestre declara a mim e a Sho Win que ficaria fora por 3 semanas, uma com cada um dos outros 3 alunos. Sho Win deu um sorriso maroto, e eu soube, na hora, que correria certo perigo durante este tempo. Mas que perigo? Yoan parte, levando consigo pouca coisa. O que será que os outros faziam para comer, dormir...? Yoan some no caminho que segue, e eu inicio meu treinamento. Corro, nado na água parcialmente congelada, pulo, bato, alongo... e lá se vai mais um dia. Sho Win me observa o dia inteiro, só que agora de forma mais explícita, pela ausência de Yoan. A noite, durante o jantar, ela fala algo, como que o dia foi frio, que a sopa esta sem sal... eu não prestei atenção e nem respondi. Estava desabituado a falar durante minha alimentação. Ela não se importou. Durante estes quase dois anos nós nunca conversamos muita coisa além do necessário. Mas sempre nos olhávamos. Ela me observava com grande desejo, eu podia ver claramente, e o pior, eu estava lhe retribuindo os olhares já fazia algum tempo. Ciente da situação, logo após comer eu fui até a pedra, meditar, e de certa forma, fugir. O que eu deveria fazer? A resposta veio, não de minha mente, mas sim dos lábios quentes e úmidos de Sho Win. Um ardente beijo foi trocado. Nós nos amamos ali mesmo, sobre a grama gelada, com a neve caindo sob nossos corpos nus. Nunca em toda minha vida eu havia feito coisa semelhante, e nunca foi tão bom estar vivo como naquele momento de prazer infinito. Ficamos ali por vários minutos. Por fim, voltamos para a casa de Yoan, e continuamos esta troca de prazeres até amanhecer. Pela primeira vez desde minha chegada ao monte Shizu eu não sai para treinar. Os demais dias transcorreram normalmente. Eu treinava o dia inteiro e de noite eu e Sho Win dormíamos juntos. E assim foi seguindo. Eu abdicava de minha meditação para ficar ao lado de Sho Win por mais tempo. Isso me fazia um certo mal. Eu não estava mais pensando tão claramente como antes. 5
  • 6. Sho Win entendeu quando eu lhe expliquei que teríamos que nos ver por menos tempo. Eu voltei e meditar, e perguntas incríveis me vinham à mente. Mas, agora, eu não estava obtendo respostas. Era como se aquele lugar fosse novo para mim desde aquela noite com Sho Win. Resolvi relaxar e buscar com meus sentidos, mais uma vez, toda a expansão do lugar que me pertencia. Reconheci-o de novo. As respostas me voltaram, e eu pude dormir mais uma vez purificado de corpo e alma por aquela neve, que era a encarnação da paz que eu obtinha novamente. Sho Win me abraçava como se o mundo fosse terminar. Nos amamos mais uma vez. Dormimos agarrados um ao outro, como dois amantes que éramos. ****************** Yoan voltara. Para surpresa minha, e de Sho Win, ele trazia consigo 3 rapazes. Os 3 outros alunos de que ele havia falado. Os 4 finalmente ficariam juntos e o treinamento teria início. - Mas mestre, ainda não se passaram 3 anos, como o Sr. havia dito. - Vocês já estão prontos, Ling. Venha, junte-se a nós. Os três observavam Ling com um olhar de admiração, inveja e ódio. Eles seriam grandes amigos. - Apresente-se a Ling - manda Yoan. O maior de todos nós era Lyu. Era belo, forte e rápido. Isso o tornava meu maior competidor em relação a Sho Win. Ainda não tenho certeza se ela realmente me ama ou se só meu usou para suprir seus desejos carnais, e não tendo mais ninguém por perto além de mim... O outro era Lao, baixo, cabeludo e mortal. Já quebrava árvores com suas canelas, mesmo Yoan o repreendendo. Era uma boa pessoa, dedicada e leal. Por último havia Sakazama, o único estrangeiro, um japonês. Era o mais calado dos três, e segundo Lao, o mais perigoso. Eles brincavam muito com Sak, como nós o chamávamos, por ele ser do Japão. Ele não se demonstrava nervoso ou agressivo. Nem um pouco. Isso assustava. Os dias seguiram, eu e Sho Win nos encontrávamos às escondidas de noite, e ela nem sequer olhava para qualquer um dos outros. Ela gostava de mim mesmo, mas o que me preocupava é se um deles tentasse alguma coisa "intima" com ela. Mas eu nada falei a ela. O treinamento seguia normalmente, sem alterações, segundo Yoan, por mais alguns meses. Mesmo sendo evidente que eu era o mais fraco de todos, Yoan ainda me olhava com orgulho, coisa que ele não fazia com os demais. Sak, por sua fez, se esforçava ao máximo, e mesmo assim Yoan não se importava. Os quatro logo ficaram amigos. Sak, porém, só falava com Yoan. Mas um dia, quando estava meditando, ele veio até a mim. Passou pelo meu lado e ficou a admirar a paisagem noturna como eu mesmo fazia. - É um belo lugar, não acha? – perguntei. 6
  • 7. - É - disse ele. Ainda nevava, muito pouco, mas nevava. - Olhe para este floco de neve - disse ele, pegando um com a mão. - É tão frio e bonito... mas derrete com o mais leve contato com a pele. - É, ... Ele se vira e soca o ar com tal precisão e segurança que acerta uma única folha da árvore que estava caindo atrás de si. Ela voa para mais longe. - Como você sabia que ela estava lá? - pergunto eu - Medite sobre isso... e talvez encontre a resposta, um dia - diz ele, indo embora. Eu me encontro mais uma vez com Sho Win, mas não conseguia me concentrar nela. - O que foi, Ling? - Yoan falou que o treinamento começa amanhã. - E daí? - Eu me sinto despreparado. Os outros já sabem tanto... - Você também já sabe. Esqueceu o que o mestre sempre diz? "Nós já sabemos tudo o que temos que saber. Só que ainda não sabemos disso" - Sim, mas... - Não quero mais ouvir uma palavra. Você é o melhor dos quatro - diz ela, dando um grande beijo em mim. Adormecemos ali mesmo, juntos. Por sorte Lao, que sabia de nosso romance sei lá como, veio nos acordar. - Se o mestre pega vocês aqui ele vai te mandar embora Ling! Tomem mais cuidado! Ele vai embora. Eu sabia que pelo menos em um eu podia confiar. ****************** O sol nasce mais uma vez, belo e forte como no primeiro dia em que eu cheguei. Nem parecia que havia nevado a menos de um dia ainda... mas agora o tempo era perfeito. Yoan nos reúne na frente da casa. Sho Win retira água do riacho para seus afazeres, embora eu percebesse que ela nos observava, com os olhos voltados para mim. - Hoje o verdadeiro treinamento terá início. Vocês se tornarão os maiores guerreiros de sua geração. Serão versados, a partir de agora, em todos os estilos possíveis - diz Yoan. - Mas antes vocês tem que compreender que uma luta é o último ato de uma tragédia. Vocês tem que evitar, a todo custo, um confronto. Não por que são fracos, mas sim por que são fortes, mais fortes que os demais. Os homens são todos iguais em sua essência. Não existe motivo para disputas. Vocês tem que entender que tudo o que eu ensinar hoje só lhes servirá, realmente, se vocês compreenderem que uma palavra tem a força de mil golpes. Nunca ataque, somente defesa. Nunca caos, só harmonia. Nunca luta, só paz. Todos nós, pelo menos aparentemente, compreendemos profundamente o que ele queria dizer. A luta é como uma espada, que só deve ser tirada da bainha quando for realmente necessária, pois quando despida, ela sempre terá que ser usada. Tínhamos o resto do dia de folga (a primeira em dois anos e meio de treinamento). No dia seguinte, iríamos para o cume de Shizu, iniciar nosso 7
  • 8. aprendizado real. Neste dia, nos separamos em dois grupos. Eu, Sho Win e Lao fomos caminhar pelo bosque. O restante, incluindo Yoan, ficaram no riacho, nadando. - Eu também já tive uma namorada, sabe? O nome dela era Kiy. Mas agora eu acho que ela deve estar com outro... huum, é, faz muito tempo desde que eu parti para cá e a deixei só. Ela definitivamente já deve ter arrumado outro... - Não fale assim, Lao. Ela pode estar lhe esperando... - diz Sho Win, segurando em minha mão, como namorados. - Não, eu falei pra ela não me esperar. Ela sabia para onde eu estava indo e quanto tempo ia demorar. Um silêncio mórbido domina o ambiente, com o vento calmo balançando a copa das árvores, os pássaros a cantar e nós a caminhar. - Qual é a sua história, Lao? - pergunto eu, abraçado a Sho. - Eu morava nos becos de Goku, um feudo não muito distante daqui. Eu era ladrão, sabe? Minha mãe era doente e vivia pedindo esmolas nas ruas. Eu jurei que nunca ia pedir daquele jeito. Mas acabaram matando ela. Pra me virar nas ruas eu tive que aprender a bater forte pra sobreviver. Foi ai que eu encontrei Kiy. Ela era filha de um ex-aluno de Yoan. Ele nos descobriu um dia e ficou impressionado em como eu agüentava apanhar e como meu soco era forte para o de um garoto. É que ele me bateu pra valer, sabe, mas eu também bati nele. Ele então me falou que para eu ser digno dela eu teria que me tornar um grande lutador a ponto de derrotá-lo. Chamou Yoan, que de início me considerou fraco e incapaz do treinamento. Porém, no último dia em que ele estava no feudo, 4 idiotas um pouco maiores que eu vieram me bater, por que eu já tinha fama de bom de briga entre os pequenos ladrões da cidade. Yoan apenas observou. Eu acabei com cada um daqueles cretinos em apenas 5 minutos. Yoan me trouxe para cá na hora. Mas duvido que Kiy me espere. Eu estou aqui mais por causa de mim mesmo. Não gosto e nem gostava de roubar. Quero ser um grande lutador e oferecer meus serviços ao Imperador como guarda pessoal. Ficamos calados. - Sabe, eu morava neste bosque. Eu te vi muitas vezes aqui, Ling.Você pula desajeitado! - Eu melhorei! - dizemos em tom de brincadeira e provocação. - Então prove - diz ele. Eu pulo em cima do primeiro tronco, onde me equilibro facilmente. Lao pula em outro tronco e vira seu rosto em minha direção. - Vejamos se pode fazer algo melhor que isso: Ele pula de forma sobrenatural, dando piruetas invertidas, se equilibrando em um só pé e saltando como uma rã. Ao final de 1 minuto ele para, ofegante. - Agora você - diz ele. Eu olho para Sho Win, que também me observa, cheia de esperanças. Ela nunca havia me visto fazer acrobacias ou lutar. Acredito que nunca houvesse visto ninguém fazer aquilo antes de Lao. Eu tinha que fazer melhor. 8
  • 9. Me concentro. Fecho os olhos e respiro profundamente. Um movimento rápido e potente de músculos e lá estou eu, no ar. Olhos fechados, eu não tenho medo. Sei onde esta cada tronco, não que tenha memorizado, mas por que eu posso simplesmente senti-los. Saltos enormes, um mortal duplo, e por fim, caio no último tronco me equilibrando sobre meu braço esquerdo. Ambos, Sho Win e Lao, me observam de forma semelhante. Eu havia feito melhor. A reação de Lao, para meu espanto, foi de alegria: - Você conseguiu! – disse ele. Sho Win teve a mesma reação, vindo me beijar ardentemente, deixando Lao levemente encabulado. Voltamos para a casa de Yoan, que neste momento simplesmente dormia. Sak e Lyu apenas estavam com seus corpos dentro da água do riacho, com as cabeças para fora. Lao se juntou a eles, entrando de roupas mesmo, só se preocupando em tirar as botas. Eu e Sho Win ficamos conversando no meu lugar de meditação, que era perfeitamente visível do riacho. Que casal estranho nós éramos. Ela era bem mais alta que eu, linda, delicada e amorosa. Eu era mais baixo, forte, e evidentemente mais novo. Ela contava seus 21 anos e eu os meus 15. Era proibido e por isso mesmo tão bom. Sabíamos que ficaríamos algum tempo sem nos ver. Nos beijamos novamente. Senti os olhos de Lyu a nos observar, com raiva. Ele aparentemente estava com seus 19 ou 20 anos, bem mais compatível com a idade de Sho Win que a minha. Eu sabia que ele a desejava mais do que qualquer coisa ali, mais do que aprender com Yoan. Isso estava tornando as coisas perigosas. Ele era o maior e mais rápido de todos nós. Talvez ele seja no final o melhor lutador. Mas não posso permitir que ele tente algo contra nós. Resolvo fingir que não percebi seu olhar, e continuo a beijar Sho Win, agora de forma mais ardente. Minha mão inicia uma dança pelo corpo dela, de cima até em baixo. Seus seios, grandes para uma chinesa comum, mas perfeitos para ela, eram macios e quentes. Suas costas, lisas; suas coxas, delicadas iscas de amor... ela também, por sua vez, retribuía as carícias, me alisando o peito seminu da camisa aberta, minhas coxas, minhas nádegas e meu sexo por cima de minha calça. Lyu estava visivelmente odiando a mim cada vez mais e mais. Mas eu não me importava. Sho Win e eu rumamos para o bosque mais uma vez, desta vez sós, de onde só retornamos a noite. Próximo a casa, Yoan nos observa, com olhos cerrados. Nós paramos. Havia ele descoberto? Eu não sei, mas ele sorriu para nós e entrou mais uma vez na casa. ************************* - Acorde, vamos, acorde! - diz Lao, me empurrando e, por fim, me despertando. - O que foi? - pergunto eu. - Está na hora, vamos, se arrume, está na hora! - diz ele, eufórico. - Na hora do que, Lao? O sol ainda não nasceu... - Está na hora do teste, Ling, o teste! Yoan me pediu para lhe acordar e lhe chamar! Vamos, vamos! - Que teste é esse, pra onde a gente vai... - pergunto eu inutilmente a Lao, que me empurra para fora, dizendo "Vamos, vamos, os outros estão esperando, vamos!". 9
  • 10. Chegamos ao lado de fora da casa. Fogueiras ardiam em quatro cantos diferentes. Assim como quatro pequenas toras dispostas lado a lado no centro das fogueiras. - A natureza é formada pelos quatro elementos. Só depois de dominarem cada um dos elementos é que vocês estarão prontos realmente - disse Yoan, em tom sinistro. - Mas o senhor falou que hoje iríamos para o cum... POF! - um golpe certeiro em meu rosto que Yoan desferiu em tal velocidade e força que me custou acreditar que fora um soco que havia me derrubado. - Silêncio! Não questione seu mestre, jamais. Vocês nada treinaram até agora. Vocês são tão nada quanto no dia em que chegaram aqui.São crianças, frágeis e inocentes. Mas já tem um corpo de homem. Isso é quase tudo que é necessário para iniciarmos o treinamento. Com meus antigos alunos era tudo o que bastava. FORÇA! Mas agora eu creio que errei ao treinar apenas o corpo das pessoas. É preciso treinar também o espírito, e a coragem, e a ética! Sem isso, nada adianta ter treinado o corpo. Sem isso, apenas estarei treinando assassinos, loucos ou covardes, como o deu pai, Ling. Eu o aceitei por que queria remediar o mal que havia cometido no treinamento de seu pai. E acredite, você é idêntico a ele. Mas agora vocês são minha última turma, e eu não quero fazer de vocês meros lutadores, os maiores guerreiros de sua geração, NÃO, eu quero fazer de vocês os melhores lutadores de todos os tempos! Sim, nunca existiu ou vai existir lutadores como vocês em todo o mundo. E para isso, o treinamento foi totalmente refeito. Esta será a primeira e a ultima fez que eu ensinarei o Caminho do Tigre. E esta será a entrada para este caminho. Vençam o elemento. Vençam o FOGO! Caso contrário voltarão para o lugar de onde vieram imediatamente. Esta é a ultima chance de saírem com vida caso não se achem aptos para o árdua treinamento. Vençam o FOGO, AGORA! - Grita ele. Ele nunca havia falado tanto e tão violenta e seriamente quanto agora. Admito que senti vontade de chorar, mas como sempre, me contive. E revoltado com o recém tratamento rígido que ele adotara eu sou o primeiro a perguntar o que devia ser feito. - Está vendo as quatro fogueira? Escolha uma para enfrentar. Eu aponto para uma, a que eu acho mais ardente. - Você pode morrer se cometer um único deslize, Ling. Eu o olho de forma nova, que, novamente, o surpreende. E ainda digo: - Eu não vou errar. - Pois bem. Entre na fogueira e quebre a pequena tora. Não pense que será fácil. Ela não está queimada ou amolecida, é uma madeira especial, das mais duras que tem no bosque. Quebre-a com um golpe de canela, Ling. E traga um dos pedaços dela para mim. VÁ! Eu paro em frente a fogueira. Ela brilha e arde, muito. Eu adoro a escuridão, e ela é tão brilhante... eu não posso tentar, eu tenho que conseguir! O ódio ainda pulsava dentro de mim, em harmonia com a dor latejante do golpe dado por Yoan. Eu queria mostrar para aquele velho que eu era o melhor, e era isso que eu lhe mostraria: o melhor. 10
  • 11. Tomo impulso, corro de forma dinâmica em direção ao brilho extremamente quente. Eu sabia que ele não queria exatamente que eu entrasse na fogueira, por isso eu simplesmente pulei para dentro dela. A tora era visível. Eu dou o golpe mais forte que posso contra ela. De uma dureza incrível, por um segundo eu chego a pensar que havia falhado. Mas ai percebo que havia partido a madeira perfeitamente. Eu atravesso a fogueira sem tocar o chão, mesmo tendo perdido velocidade com o golpe. Não me preocupo em recolher a parte da madeira, pois ela havia caído muito próximo do lugar onde eu pousaria em breve, fora das chamas. Um belo salto, sem dúvida. Um único salto. Em pleno ar adentrar no fogo, partir a tora e pousar do outro lado, de forma brilhante. Minha canela doía muito, é verdade, mas não estava fraturada. A carne no local havia se rasgado e havia um sangramento, mas eu ainda podia andar perfeitamente. Todos olhavam abismados. Eu havia conseguido, e de forma incrível. Meio mancando, eu trago a madeira até o mestre. Jogo-a aos seus pés, ainda quente. - Você venceu - diz Yoan. - QUEM eu venci? - pergunto eu - A mim ou ao senhor? - e saio mancando para me sentar em um banco de madeira, e observo todos. Yoan sorri levemente, porém, escondendo de todos. "O garoto é atrevido, mas sabe usar o ódio de forma perigosa. Ele me surpreendeu novamente", pensa ele. - Mestre, permita-me ir agora - diz Sak. - Vá. Sak não parece preocupado. Aquilo parecia uma coisa normal para ele. Ele estava calmo e realizou movimentos soberbos. Deu um grande salto, e logo após um violentíssimo golpe contra a tora de sua fogueira. Trouxe-a para Yoan, que mais uma vez, disse: Você venceu. Sak veio sentar-se ao meu lado. - Como está a perna? - pergunta ele de forma simples. - Está boa - digo eu, mentindo. - Vá para dentro e veja com Sho Win o que pode ser feito, ela está péssima! O sangue está brotando a olhos vistos - diz ele apontando para meu ferimento. - Certo... obrigado - digo eu. - Espere - diz ele - Me traga algo também, certo ? - diz ele, segurando sua perna com um ferimento se não igual, pior que o meu. - Certo - digo eu, mancando para a casa. Enquanto isso, Lao se apronta para saltar. Eu paro a caminhada para observar sua vez. Ele pula e atravessa a fogueira rapidamente. Trás a madeira para o mestre, sorrindo. - Você venceu - diz Yoan, como um mal espírito. - Vejam, não cortei a perna! - diz ele alegre e orgulhoso, indo sentar-se com Sak. Lyu era o ultimo. Eu não queria vê-lo saltar para não ter que desejar-lhe má- sorte, e por isso eu estava quase que para adentrar na casa quando eu o vi tirar a camisa. Eu não o havia visto despido antes, e ele tirou toda a roupa. Havia uma enorme figura de um dragão vermelho em suas costas. Até mesmo Yoan ficou preocupado. Aquela era a marca do temido clã de ninjas assassinos JitSu, que havia criado uma técnica de combate inspirada nas próprias sombras. 11
  • 12. Ele desfilou por entre as fogueiras, completamente nu. Sho Win, que havia vindo ver o que ocorria, o contemplou então. Ele a olhou também, e logo depois, entrou na fogueira, caminhando. Todos se preocuparam, mas Yoan estava calmo. Por ali ficou ele alguns segundos. Logo depois, apareceu novamente com o pedaço de madeira e nenhuma escoriação nas pernas ou braços, nem sinais de queimaduras. Deixou a madeira aos pés de Yoan, e disse em tom forte: "Eu venci". Sho Win ainda o observava. Ela não havia me visto. Eu podia ver o desejo em seus olhos, o mesmo desejo que eu vi quando ficamos sós pela primeira vez. Neste instante eu soube perfeitamente que eu a perderia. Eu manco em sua direção, e só então ela me percebe. - Me de algumas ataduras e alguma erva para cicatrização. Ela fica enrubescida, vendo em meus olhos que eu sabia o que passava em sua mente. - Sim, um momento. Ela volta logo depois com o material. Eu dou as costas a ela e me dirijo para Sak, que me aguardava, ansioso em limpar a ferida e fechá-la. Lyu já havia se vestido, mas Sho ainda o observava, assim como ele olhava para ela. Uma troca de olhares tão explicita que eu não podia mais ver. Rumo para o bosque. - Partiremos quando o sol nascer - diz Yoan. Eu nada respondo. Lao e Sak apenas me observam adentrando na negra e densa mata que se formava logo a minha frente. Isolado, dentro do mato, eu faço o que não fazia a muito tempo: eu choro. Choro por que estou vivendo de forma inigualavelmente má. Separado da família, rejeitado pela amada, sentindo a dor percorrer seus ossos brancos... eu choro até o amanhecer. Voltando para o lar de Yoan, vejo Sho e Lyu na parte de trás da casa. Eles não me vêem. Ambos se beijam loucamente. Enquanto os outros arrumam suas coisas para a viajem, eles se amam sob a proteção do céu azul que nascia belo, e agora triste. Eu ainda choro . Lágrimas de prazer escorrer pelo rosto de Sho Win que cerra os dentes e geme fracamente; ambos arfam. Algo rápido e proibido, assim como era conosco. Sem ao menos terem tirado as roupas, ambos se levantam, se beijam mais uma vez, e vão embora. Eu engulo as lágrimas, engulo o ódio. Jogo tudo em uma grande fogueira que arde em meu peito, fogo este que move agora meu corpo. "Seremos os maiores lutadores do mundo em todos os tempos, e eu ainda serei o melhor de nós quatro. Meu sangue não mais será derramado sem vingança mortal contra meu oponente. E que isto não seja uma promessa, mas sim a realidade". Me levanto também, e dou a volta, entrando na casa e arrumando minhas poucas coisas. ********************* - Não vai se despedir de Sho Win, Ling? - fala Lao. 12
  • 13. Eu me arrasto até ela, que me olha de forma semi-diferente, mas aos demais olhos, como sempre havia feito. Apenas uma diferença sublime, que só eu podia perceber. Ela me dá um abraço, e me beija, sem que eu retribua o gesto. - O que foi Ling? - pergunta ela de forma sonsa. - Você está gostando de me tocar, Sho Win? Aproveite, pois se eu voltar a lhe tocar algum dia não será de forma amorosa, mas sim com um forte chute, assim como eu fazia com os cachorros de onde eu morava. - Ling!!! - responde ela tentando parecer inocente. - É isso mesmo, não é? Afinal você não passa de uma maldita cadela! Ela responde me dando um forte tapa no rosto, mas nem sequer chora, pois sabe que eu estou falando a verdade. - Como pode?!! - diz ela, agora tentando iniciar um choro. Eu respondo com apenas duas ásperas e fortes palavras, sussurradas em seu ouvido. - Eu vi. Ela compreende, e para de chorar. Fica imóvel, como se soubesse que eu queria matá-la naquele instante. - Nunca mais sequer olhe para mim - digo eu, saindo da sala. Ela permanece parada. - Vamos todos agora. Onde está Ling? - pergunta Yoan, na frente de Lao e Sak. - Estou aqui, mestre - respondo eu secamente. - O que é isso em seu rosto, Ling ? Parece uma panc... - Não é nada Lao, não é nada. - E agora, onde está Lyu? - pergunta Sak. - Deveríamos deixá-lo aqui. Vocês viram as costas dele... ele é do clã JitSu. O senhor ainda vai treiná-lo, mesmo sabendo que ele vai se tornar um assassino? - pergunta Lao. Yoan nada responde, apenas observa o nascer do sol. Eu, por minha vez, posso ver Lyu e Sho Win, semi escondidos, em um lugar que só eu podia ver, na frente da casa de Yoan. Eles se beija mais uma vez. Só que agora é Lyu que me observa enquanto acaricia todo o corpo de Sho. Eu abaixo a cabeça, e ignoro. A partir daquele dia eu saberia que Sho Win fazia parte de meu passado. Logo após isso, Lyu se reúne a nós. - Vamos agora - exclama Yoan. Marchamos em direção aos picos gelados da montanha, onde Sak havia treinado a tanto tempo. Mesmo estando à frente, eu podia perceber os olhos de Lyu sobre mim. Ele ainda não estava satisfeito em ter tomado a mulher que eu amava, ele queria algo mais. Eu ignoro e continuo a marchar, logo atrás de Yoan. Cerca de 2 horas depois chegamos ao local. Uma cabana de madeira, onde Sak dormia e comia durante sua estada lá, estava semi apodrecida. Mas ainda era 13
  • 14. um bom abrigo contra os fortes e gélidos ventos sopravam violentamente durante todo o tempo. - Deixem suas coisas na cabana, vamos iniciar o treinamento logo. "Ronin", mostre o lugar ao demais. Eu vou descansar um pouco. - Sim, mestre - responde Sakazama. Deixamos nossas coisas na cabana e seguimos Sak. Eu estava meio preocupado, nós nunca havíamos ficado a sós durante este tempo todo, não nós quatro juntos. Isso podia ficar complicado. - Que tipo de apelido é "Ronin"? - pergunta Lao a Sakazama. - Na língua de meu povo, "Ronin" é um Samurai sem senhor. Um cavaleiro errante, em busca da morte por ter permitido que seu senhor morresse. Essa é a maior desgraça possível em toda a vida de um Samurai - diz ele, em tom melancólico. - E por que ele te chama assim? - pergunto eu. - Por que seu pai era um - diz Lyu, em tom sarcástico. Sak apenas olha Lyu com o canto de seus olhos, sem alterar seus movimentos ou virar a cabeça, em tom superior. Ele nada fala. - Ronin. É melhor que Sak. Vai ser Ronin agora - diz Lao, brincando - Paramos. Havia um grande paredão de rocha a nossa frente. Ficamos a olhá-lo. - Este era o meu desafio pessoal. Por dois anos inteiros eu subia ele todos os dias em uma hora. Olhávamos para a parede de rocha e para Ronin sem entender como ele fazia aquilo. Era uma parede completamente vertical. Fora algumas saliências ou buracos, era completamente lisa. A altura era enorme, uma queda e seria morte na certa. Ronin observava a parede como se esta fosse sua única amiga, confirmando minhas suspeitas de que ele havia passado pouco tempo com o mestre ou qualquer outra pessoa durante todo o treinamento. Seus próprios desafios se tornaram seus amigos. - Vamos, por aqui ha uma coisa que eu quero lhes mostrar. Venham - diz ele indo na frente. Nós o seguimos. Andamos até uma surpreendente lagoa natural que o riacho formava. - Coloquem a mão na água - diz o Ronin. Obedecemos. A água estava quente! Sim, e era mais cristalina e clara do que próxima a casa de Yoan. - Como? A água de lá era gelada e aqui está agradavelmente quente! - Uma bolsa termal embaixo da terra faz isso. Este monte era, a muito tempo, um vulcão. Agora adormecido, seu sangue aquece a água deste local, que logo adiante encontra a neve eterna das montanhas, a tornando gelada mais uma vez - diz Ronin. - Incrível! - diz Lao. - Venham, vamos para a cabana. O mestre já deve ter descansado. - É, vamos logo para a cabana, pequenino Ronin. - diz Lyu. Sak o olha novamente, mas agora de frente, com um olhar profundo. Lao interfere, puxando Sakazama. - Vamos logo, vamos logo - dizia ele. Lyu ainda me olhava de forma perigosa. Algo aconteceria, e logo. Chegamos à cabana, onde Yoan nos esperava. - Sentem-se - disse ele. Nós obedecemos. 14
  • 15. - Hoje de manhã vocês iniciaram sua jornada. Vocês agora trilham o Caminho do Tigre. Não existe mais volta - o silêncio domina a todos. - A partir de hoje um novo treinamento será iniciado, mas os antigos também serão incorporados. Agora vocês se tornarão Tigres. Muita coisa foi ensinada naquele dia mesmo. Absorvíamos os ensinamentos mais rápido que absorvíamos os golpes dados por nosso mestre. Lyu parecia se divertir muito com tudo aquilo, estava sempre com um sorriso, muito cínico. Desviava dos golpes de Yoan de tal modo que se mostrava em equiparação com ele. Não havia o que se ensinarem e nem o que aprenderem. Aqueles que treinavam na nossa frente não eram aluno e mestre, mas sim oponentes. Naquele dia eu vi pela primeira vez Yoan sangrar. Lyu não sofreu um golpe sequer. Só parou quando o Mestre sangrou com um golpe certeiro em sua boca. - Desculpe mestre - dizia ele descaradamente. - Não ha do que se desculpar, Lyu. Você fez muito bem - disse Yoan, visivelmente cansado. Os combates acabaram por aquela semana. Treinamos golpes e movimentos incríveis. Os exercícios de alongamento, corrida e nado continuaram, assim como todos os outros que estávamos habituados. Eu os ensinava a bater na rocha com as mãos nuas, Ronin nos ensinava a escalar o paredão e Lao nos mostrava como arrebentar coisas com seus potentes golpes com a canela. Lyu, por sua vez, ria de nós, e se indispunha a realizar exercícios tão primários. Ele apenas observava, e nada ensinava. Isso nos provocava ira. Ainda não fazíamos idéia do por que é que ele estava conosco. Era visível que era mais velho, e um excelente lutador. Sua ligação com o JitSu me provocava suspeitas terríveis , mas me recusava a aceitá-las. Como Yoan, um verdadeiro mestre, poderia... não, não poderia. Eu tentava esquecer tudo, mas a imagem de Sho Win com ele me despertava o fogo interior que mais uma vez me movia. Passada uma semana de treinamento árduo, voltamos para a casa principal. Sho Win observava a mim e a Lyu, como se estivesse surpresa por não termos nos atracado e lutado. Eu não lhe dirijo a palavra, passando por ela, assim como todos os demais, exceto Lyu, que a lambeu na orelha, lhe provocando risos. Eu vi, e eles não mais se importaram. Logo depois ambos foram para trás da casa. Eu e os demais fomos para o quarto e dormimos pesadamente. Meu corpo não sentia dor igual desde a primeira semana de treinamento. Os demais também se sentiam assim. Estávamos apenas começando. No dia seguinte retomamos o treinamento. Novos golpes eram ensinados a cada semana, e tínhamos que lutar entre nós para os por em prática. Duas duplas então foram separadas. Lao com Lyu e eu com Ronin. Lutávamos pesadamente, mas com respeito e afinco. Eu e Ronin nos dávamos bem, e eu sentia que nele nascia um grande amigo. Lao se dava bem com todos, mas Lyu não se preocupava em não machucá-lo nos treinos. Um dia, porém, ele bateu muito forte em Lao, que desacordou. Ronin foi socorrê-lo, enquanto que Lyu se aproximou de mim e disse: "Aprenda logo, pequeno Ling. Quando lutarmos, não serei tão piedoso como com ele". Eu respondo: "Eu também não". Ele vai embora, enquanto que Yoan chega para ajudar Lao. A noite, no jantar, Yoan falou, pela primeira vez desde que eu o conhecia. 15
  • 16. - Lao, você não está em condições de continuar com Lyu como parceiro. É triste, mas evidente que ele possui um conhecimento muito superior ao de vocês. Por isso eu espero que você, Ling, seja o novo parceiro de Lyu. Um grande e forte calor percorre todo o meu corpo. Eu sabia que era isso que Lyu queria fazia tempos, mas deixar Sakazama para ele não seria justo, mesmo sendo o Ronin melhor lutador que eu. Ele queria a mim, e também deixaria Sakazama como Lao. - Eu aceito - digo eu. Os olhos de Sho Win saltam. Os demais fazem ar de desaprovação e Lyu sorri. Yoan diz: "A partir de agora assim o é" e continuamos a comer. Um novo dia nasce. O treinamento é iniciado com um alongamento total, os demais exercícios que fazíamos no início, só que em escala menor, e depois o treinamento marcial, ou O Caminho do Tigre, o qual nós percorríamos, segundo Yoan, de forma lenta e progressiva. No fim da tarde, porém, o combate de treino seria iniciado. Sak e Lao já lutavam em um pequeno tablado armado ao lado da casa de Yoan. No outro lado da casa, isolado, Lyu me esperava para a luta. Ninguém nos observava, a não ser Sho Win, que chorava escondida, mas assim mesmo pude vê- la. - O pequeno Ling veio! Quanta coragem!!! Pensei que havia fugido! - diz ele. - Não tenho motivo para fugir Lyu. É só um maldito treino - digo eu. - Não, você sabe que não é só um treino - disse ele. - Então o que é? - pergunto eu, tomando posição de combate. - Um teste. Vamos, me ataque - dizia ele completamente relaxado. Eu não tenho que pensar muito. Vôo para sua direção. Ele se move de forma rápida, feroz como um verdadeiro dragão. Me acerta um forte chute invertido, levantando sua perna na altura em que eu estava. Eu caio espatifado no chão. - Você realmente não passa de um garoto, Ling. Eu TENHO que matá-lo. Compreenda, você não devia ter me provocado daquela maneira antes. O ódio crescia dentro de mim. Eu levanto. - O que? Ainda de pé? Você não deveria ter levantado, Ling, seria muito mais rápido - diz ele me atacando rapidamente. Em um lance de puro reflexo, eu desvio. Lyu não acredita. O ódio estava queimando forte em mim. Meus olhos estava a ponto de explodir. A dor que havia em meu abdômen havia desaparecido. Eu estava possuído pelo ódio e pela raiva. Eu me tornara perigoso, mesmo estando apenas no início do treinamento. Lyu investe mais uma vez. Agora, além de me desviar, eu lhe acerto um fortíssimo golpe de joelho em seu rosto, ao estilo do Muai Tai que Sak havia aprendido e estava me mostrando no dia anterior. Lyu cai com o rosto sangrando, desacordado. Sho Win corre em nossa direção. - Seu monstro, você matou ele!!! - gritava ela, chorando. - O monstro aqui não sou eu, cadela. E o monstro ainda esta vivo - disse eu apontando para Lyu. Eu ainda pude ver Yoan, que estava observando a luta o tempo todo. Ele sorri para mim, e some mais uma vez por entre a mata cercava o local. Lao e Ronin correm para ver o que estava acontecendo. Eles olham para Lyu caído ao chão e eu posso ver suas dificuldades em segurarem risadas. 16
  • 17. - Vamos levá-lo para dentro - diz Sakazama, carregando-o por um dos braços enquanto que Lao o carrega pelo outro. Yoan entra com eles para prestar ajuda médica, conhecimento que ele praticava muito bem. Sho Win e eu ficamos a sós. - Você bateu nele. Como pode ? - pergunta ela. - Eu apenas fiz o que devia ser feito. Estou trilhando o Caminho do Tigre. É parte do aprendizado. - E eu, também fui parte do aprendizado? - pergunta ela. - Eu achava que não, mas agora, vendo bem, eu acho que você não passou disso mesmo, de uma lição. Ela se despe de seu vestido vermelho, ficando nua na minha frente. Ela se toca, se alisa, se acaricia. - Você me quer, Ling, eu sinto. Você sente saudades. Venha então, me possua. Ela é linda, uma estátua perfeita feita para o amor. Seu tom de pele, claríssimo, contrastava com a negritude de seus longos cabelos. Ela era perfeita, tentadora, surrealista. Eu sinto a chama do ódio se apagar dentro de meu coração. E a do amor reascender das cinzas. Eu a toco. - Sim, sim meu amor... - diz ela, fechando os olhos. Mas rapidamente eu retiro a mão de seu seio e lhe desfiro um forte tapa no rosto, tão forte que ela desaba no chão, chorando. - Por que, Ling? Por que? - diz ela, chorando e gemendo baixinho de dor. - Eu só estou lhe tratando como você deve ser tratada, maldita cadela. Eu saio do local e vou para dentro da casa, e a vejo ali, no tablado, caída ao chão, nua, semi enrolada em seus panos vermelhos, chorando. Deus, o que eu havia feito? Que cena mais bela e triste. No que eu estava me tornando? Eu nem sequer queria bater nela. Deus, eu a amo mais do que tudo, mas não posso voltar para ela. E por que eu havia batido nela, por que? A noite, com tantas perguntas explodindo em minha cabeça, eu vou para meu lugar. Lao pergunta se pode vir junto e eu digo que sim. Meditamos. A mesma noite, bela e limpa, que eu conhecia.Só a noite, a escuridão. As respostas vem aos poucos, a confusão se acaba como uma névoa indesejada. A paz retorna, mansa, ao meu espírito dolorido. Eu estava me tornando um homem, essa era a resposta. Não um simples homem, mas um Homem. Passos pesados atrás de nós denunciam alguém se aproximando. Uma voz cortante diz: - Lao, saia daqui - era Lyu quem estava ali. Lao se levanta e encara Lyu. - Não - diz ele. - Pode sair, Lao. Por favor. - digo eu. Ele olha mais uma vez para Lyu, de cima em baixo, e sai, devagar. - Qualquer coisa é só gritar, Ling - diz ele. Com o rosto inchado, Lyu se posiciona logo a minha frente. 17
  • 18. - Foi um bom golpe, Ling. Bom mesmo. Ninguém havia me acertado desde meu próprio mestre, meu pai. Você merece meu respeito - diz ele, seriamente. - Eu quero lhe pedir desculpas se fui arrogante. Não que você seja melhor que eu, não,eu lhe dei apenas uma única brecha, e você a enxergou e se utilizou dela, com perfeição. Isso é muito para um aluno em início de treinamento. Eu escuto tudo em silêncio, com os olhos fechados e a cabeça baixa. Lyu desfere um forte e rápido soco em direção ao meu rosto. Sem abrir os olhos ou mover a cabeça, eu seguro sua mão e bloqueio o golpe de forma surpreendente. Ele se espanta. - Como você sabia que minha mão estava ai? - Medite sobre isso... e talvez encontre a resposta, um dia - digo eu, indo embora. Nos dias seguintes nossos combates ficaram mais amenos, mas como havia dito, ele era muito melhor que eu. Nenhum golpe o acertava, enquanto que ele me acertava quase todos. Porém, ele interrompia o combate várias vezes para me explicar como certo golpe sairia melhor se desferido de certa fora, como pular e se defender e, principalmente, ele estava me ensinando golpes que Yoan não ensinava, golpes de Nin JitSu e outras artes desconhecidas de nós. Ele estava me ensinando! E dia a dia eu chegava mais e mais perto dele. Sho Win não permanecia mais com nenhum de nós. Sozinha, ela se entretinha a arrumar a casa e a fazer a comida. Nos jantares meus olhos cruzavam com os dela. Ela me olhava da mesma forma inicial, com desejo. Ela ficava, depois do jantar, nos fundos, talvez para meditar, ou o que eu acho o mais provável, a minha espera. Eu nunca mais a havia visto com Lyu. E nestas oportunidades ela sempre estava com ele. Mas eu ainda não podia esquecer o que ela havia feito. Eu a amava, e a amo, mas o que ela fez era imperdoável. Eu não ia lhe encontrar, e sim meditar, no meu lugar. Certo dia perguntei a Lyu se eles ainda estavam juntos. - Não, Ling, você ainda não percebeu? - disse ele. - Eu a usei. Usei para você me odiar, para lutar comigo da melhor forma possível para que eu pudesse testá-lo. Você passou no teste, e agora tem dois mestres, trilha dois caminhos distintos. Ela me odeia tanto quanto você me odiava, Ling - diz ele bebendo um grande gole de água do cantil. - Usou? Como pode? - pergunto eu. - Eu não tenho escrúpulos, Ling. Fui banido do JitSu por ser considerado piedoso demais para com meus inimigos. Precisava fazer algo que surpreendesse a eles para poder voltar, e ensinar ao melhor aluno de Yoan seria algo muito bom, mas eu não sabia quem era o melhor. Me candidatei ao cargo de aluno e passei . Estou dentro para encontrar o melhor de todos, e encontrei. Agora, estou lhe ensinando ao mesmo tempo que Yoan. Eu podia ver a mentira em seus olhos. - Não é por isso que você está aqui, Lyu. Eu sou um acidente. O que você quer realmente aqui? - Eu não devo lhe responder mais nada, pequeno Ling. Sho Win e eu não temos mais nada em comum, a não ser grande simpatia por você. - Então vocês nunca mais se encontraram? - Não, desde aquele dia em que eu o testei, nunca mais. 18
  • 19. Um grande trovão corta o silêncio que estava sobre nós. O céu se fecha. Uma chuva inicia sua queda. - Vamos, não é uma chuva idiota que vai me impedir de te comer terra - diz Lyu, brincando. - Vamos ver quem vai comer terra aqui, Lyu - digo eu, me ponde em posição. Iniciamos uma luta, que se estende até a noite. **************************** Assim se passaram os próximos dois anos. Yoan ia ficando cada vez mais debilitado fisicamente. Já não fazia os exercícios conosco, mas sim com Sho Win, no final da tarde, e de forma muito mais amena. Nós, ao contrário, íamos intensificando os exercícios. Nós havíamos nos tornado verdadeiros homens, grandes lutadores. Eu despontava, pois estava tenho duplo ensinamento. Mas Ronin e Lao me davam boas surras em nossas lutas mistas. Estávamos no mesmo patamar, só que eu um pouco mais adiantado. Lyu não era comparável a nós, e agora ele era amigo de todos. Sho Win ainda estava só, e mais bela e tentadora ainda. Ela continuava a me olhar e a me esperar atrás da casa todas as noites, sem que eu comparecesse. Um dia, porém, Yoan nos deu um dia de folga. Algo aconteceria no dia seguinte. Ele havia falado em vencermos os elementos, e até agora só havíamos enfrentado o Fogo. De qualquer forma, eu e Sho Win tivemos que ir de montaria até a vila em que ela e Yoan pegavam alimentos todos os meses. Yoan, por estar se sentindo indisposto, ficara deitado em sua cama. Eu e Sho Win não trocamos uma palavra nos 25 quilômetros que separavam o pé da montanha da vila. O dia, ensolarado, estava especialmente quente. Eu tive que tirar a camisa. Sho admirou meus novos músculos e minha estatura, agora maior. Eu já estava na mesma altura dela, se não maior. Ela me olhava com desejo. Eu não correspondia. Chegamos a vila, e um grande choque eu levei, afinal, faziam quase cinco anos que eu não via outras pessoas a não ser Yoan e o pessoal. Havia tanta gente e tanta coisa nas ruas... Sho me cutuca e indica o lugar aonde deveríamos ir buscar os mantimentos. Eu estava hipnotizado por aquela multidão ensandecida, que gritava, ria, chorava, cantava, corria e comprava. Era lindo. Mas fomos então ao tal lugar. Um senhor de aparentemente 60 anos entrega a mim e a Sho Win sacolas com a comida. Prendemos elas nos cavalos, e nos preparamos para partir. Porém Sho Win vai por outro lado. - Venha, eu tenho que visitar uma amiga. - Sho Win... - digo eu agarrando o braço dela. Ela me olha, com uma mistura de ternura e ódio. - Me solte. Eu tenho que visitar esta amiga. Vamos, não vai demorar muito, é aqui perto, venha! - diz ela, galopando em frente com o cavalo. Eu a sigo. Entramos por uma viela deserta. Depois, chegamos a uma pequena praça. Uma casa que ficava logo em frente é para onde rumamos. Sho Win bate palmas. - Mai Ni ! Main Ni ! - grita ela. Ninguém responde. - Vamos, não ha ninguém - digo eu, puxando ela. - Não, espere! - grita ela, pulando do cavalo e entrando na casa. - Sho Win! - grito eu, correndo atrás dela. Ao entrar na casa, um odor forte de podridão invade meus pulmões. Tenho que me esforçar para não vomitar. 19
  • 20. - Sho Win? - falo eu, procurando-a pelos cômodos da velha casa. A encontro em um quarto, agarrada a uma velha camisa, chorando. - Sho Win... o que houve? - Ela se foi, Ling. Ela morreu. - Ela estava doente? - Sim, já estava velha e não podia mais se cuidar. Eu não podia ficar aqui, tinha que ficar com o mestre. Mas sempre que vinha para a cidade eu a visitava, limpava a casa, lavava as roupas, fazia comida... mas agora... ela se foi - Deus, como eu queria abraçá-la! - Quem era ela, Sho? - Ela era minha mãe, Ling. Era minha mãe... - Por que você não abandonou o mestre para ficar com ela? - Eu... não podia! Ele sempre foi tão bom para mim! Quando meu pai morreu (é, Yoan não era seu pai) minha mãe não tinha como me sustentar. Yoan era amigo de meu pai, e se dispôs a me criar. Ele NUNCA, NUNCA levantou a mão para mim. Sempre foi um verdadeiro pai. Mas eu continuava a ver minha mãe. E agora ela morreu, ela morreu... - Venha Sho Win. Vamos embora - digo eu, a pegando delicadamente pelo braço. Chegamos até o lado de fora. Nossos cavalos estavam cercados por 6 jovens da cidade. Jovens que cometeriam seu maior erro. Eles nos vêem sair. - Se estão procurando a velha podem esquecer, Ela morreu fazem 2 semanas - diz um. - Sho Win sai da casa. Eles a vêem. - Uuuuuuuuh, o que temos aqui! O camponês tem uma namorada, e que namorada! - Vem pra cá, mulher! - diz um deles, a agarrando e a puxando para o meio deles, onde eles lhe deslizam as mãos ruins pelo vestido bege. Eu dou um passo a frente. - Hei! Hei! Hei! Temos um herói aqui. Não é mesmo, camponês? - diz ele me dando um tapa no peito. Eu me contenho. Eles começaram a despir Sho Win. - Parem agora e deixe-nos passar. Não queremos problemas. - Você quer que paremos? Pois bem, faças-nos parar! - grita o que estava me encarando. - Não posso bater em vocês sem antes TENTAREM me bater - digo eu pacificamente. - Então tome isso, montanhês! - diz ele desferindo um golpe rápido para os da sua laia, mas horrivelmente lento para uma pessoa que já percorreu boa parte do Caminho do Tigre. Eu o bloqueio de forma simples, e logo após eu quebro o seu braço na altura do cotovelo, invertendo a junta. Ele cai no chão, gemendo e gritando de dor. Os outros vem tentar me combater e deixam Sho Win livre dos abusos. Ela se veste, cobrindo seu belo corpo. Os demais já estão em cima de mim. Devo admitir que foi não só fácil como também divertido derrubar cada um deles com um único e diferente golpe. Quebrar um osso diferente em cada um deles e ouvir seus estalos me deixou de certa forma contente. Eles se recuperariam, mas nunca mais iriam importunar desconhecidos. Tudo não levou mais do que 2 minutos. Eu pego Sho Win, que estava caída no chão, ainda chorando, e a ponho em seu cavalo. Eu monto no meu e então saímos da cidade. Os demais habitantes da vila me olham com respeito. Iniciamos o longo caminho da volta. Um caminho tão deserto quanto bonito. Era primavera, e uma infinidade de flores do campo forrava, juntamente com a grama verde recém nascida, todo o solo do local. No meio do caminho, Sho Win pede para parar. Quer descansar. Paramos então. Ela desce do cavalo e caminha pelas flores. Eu observo. Também desço de minha montaria para andar um pouco. 20
  • 21. - Você está bem? - pergunto eu. Ela responde com um movimento de cabeça, fazendo sinal de positivo. O maldito calor, mais uma vez. Uma onda quente e abafada que me força a ficar com o mínimo de roupa. Tiro a camisa mais uma vez. Ela se ascende. Tira o vestido que a cobria,e fica, mais uma vez , completamente nua. Eu a observo. Ela me olha, sedenta. Se deita sob seu vestido, e me convida. - Me possua, Ling. Me possua agora e eu juro pela alma de minha mãe que eu nunca mais serei de ninguém enquanto eu viver. Me possua - diz ela. Eu o faço. Ela estava mais ardente do que nunca. Seria mais uma mentira, ou enfim ela estaria falando a verdade? Eu deixo estas perguntas para a noite. Me concentro nela. Nós, entre as flores e a grama, com um sol extremamente forte, fazemos amor por uma hora. Uma hora inteira. Eu a amo, e descobria agora que ela também me amava. Abraçados, nus, deitados na grama, ficamos a observar o céu. - Eu não me deitei com nenhum homem mais desde... - Eu sei. Esqueça, Sho, pois eu já esqueci. - Eu te amo, Ling. Me perdoe! - Eu também te amo, cadela - nós rimos. Nos amamos mais uma vez. Nos vestimos e rumamos para o monte Shizu. ***************************** A noite, como era de costume, silêncio total. Lyu nos olhava, ameno. Deu-nos um sorriso, que Sho Win devolve com uma cara fechada. Depois, atrás da casa, lugar que ela me esperava toda noite durante dois anos, nós nos encontramos. Ficamos ali por algum tempo, quando percebi que era hora de entrar e dormir. A madrugada, mais uma vez, era a hora do teste. Desta vez foi o Ronin que veio me despertar. Saímos e nos reunimos, mais uma vez, na frente de Yoan. - Vocês já iniciaram o Caminho do Tigre a algum tempo, e o vem trilhando com grande perfeição. Para poderem ter o direito de percorrer tal caminho, vocês tiveram que desafiar e vencer um dos quatro elementos, cujo total domínio é a chave para uma melhor compreensão do Caminho. Vocês já desafiaram o fogo, está na hora de desafiarem e ganharem da terra! - Diga o que tem que ser feito, mestre. - Pois bem, sigam-me - diz ele, se encaminhando para o local onde eu outrora socava rochas. Lá havia uma grande fogueira, para iluminar o ambiente, e grandes pedras de mármore, uma das mais duras rochas que existiam por lá. - Pois bem, escolham uma e quebrem-na. - O que?! Mestre, isso é impossível! Com martelos e estacas demoram horas, com as mãos nuas seria loucura, não importa o quão forte seja o golpe! - Tenho certeza que Yoan não batera em Lao por que este estava longe. Yoan apenas falou: - Garotos insolentes, eu pensava que vocês haviam aprendido tanto! Mas vejo que nada aprenderam ainda. Vocês não são mais homens comuns, são guerreiros! Suas mãos podem destruir tudo o que tocam, se souberem como, e principalmente, se quiserem!!! Olhem para mim! Vocês acham que é impossível quebrar uma pedra destas com as mãos? Pois vejam! - diz ele, tirando a camisa. Sho Win lhe diz: - Não mestre, o senhor não esta bem... 21
  • 22. - Eu estou ótimo, Sho Win. Só estou cansado, mas ainda posso ensinar algo a estes garotos sobre o que se pode fazer com a força de vontade. Afastem-se! - grita ele, se aproximando da maior pedra que havia. - Ele pode se machucar se... - Shhhhhh! - cochicham Lao e Lyu. Yoan fecha os olhos, e se concentra, não por muito tempo. Desfere um golpe seco contra a pedra, que permanece parada, tremendo. - HAAAAAAAAAAAIIIII!!!! - grita ele ao desferir o golpe. - Veja a pedra não quebrou! - fala baixinho Lao. Mas, logo depois, a pedra se parte em duas. Um metade para cada lado. A mão de Yoan perfeitamente saudável é observada por todos nós. - Podem olhar. Não está ferida. Lembrem-se da Garra de Gato que eu lhes ensinei a tempos trás. Não posso mais ajudá-los. Quebrem a pedra ou deixem o Caminho do Tigre agora! Sim, a Garra de Gato. Um golpe impressionante. Um golpe forte com a parte interna da mão seguido de uma contenção do mesmo logo que em contato com a superfície que é tocada. Difícil, mas relativamente simples, tanto que fora um dos primeiros golpes que aprendemos. - Mestre, quebrar madeira e pedra é uma coisa, mas quebrar Mármore é muito diferente! - Não há diferença, Lao. Apenas quebrem-na. Todos nós ficamos pasmos. Não sabíamos quebrar pedras como ele nos mandava fazer agora. Mas Lyu não estava preocupado. Ele toma a frente e fala ao mestre: - Eu quebrarei a rocha - fala com tal convicção que todos acreditam que ele realmente vá conseguir. Se põe a frente da rocha escolhida, uma bem grande. Realiza pequenos movimentos em um kati para se aquecer ou se concentrar, diferentes dos que Yoan fez quando estava se concentrando, e desferiu um golpe completamente diferente, sem expelir um só grito. A rocha se partiu não em duas, mas em várias partes, como se não fosse realmente de mármore, mas sim de calcário. Ele caminha para Yoan e lhe fala: - Ainda estou caminhando, Yoan - Ele , por sua vez , nada fala . Lao é o próximo. Escolhe uma pedra média. Para em frente a ela. Se concentra. A Garra de Gato era um golpe soberbo. Podia matar um homem facilmente, porém, quebrar uma rocha tão dura era algo que nunca havia passado sob sua mente. Ele desfere o golpe. - ZAAAAAAAAIIIIIIIY!!! - Nada ocorre com a rocha. Continua intacta. - Eu... , eu, falhei! - diz ele, pasmo. - Não, fracasso só em sua mente. Assim como a vitória. Levante, e desfira um verdadeiro golpe nesta rocha - diz Yoan. Lao nem sequer fala. Se levanta, fecha os olhos e dá o mais forte golpe de canela que podia dar. A pedra de esfacela, assim como sua perna. Seu osso fica visível, e o sangue brota de forma nauseante. Ele desmaia. 22
  • 23. - Sho Win, me ajude, rápido! Temos que levá-lo para dentro! - grita Yoan, carregando Lao para a casa. Só restam eu, Ronin e Lyu, ao redor da fogueira, esperando o mestre voltar. - Como você fez aquilo? - pergunto eu a Lyu. - Técnica secreta JitSu. - Você admite que faz parte do clã JitSu? O que faz aqui então, Lyu? - pergunta Ronin. - Não me permito falar com o filho de um desonrado. - Meu pai tem mais honra em um punho do que você tem em toda sua vida! - Do que vocês estão falando? - pergunto eu sem compreender nada. - Não é nada, Ling - diz Lyu, se acalmando - Você quer saber como eu fiz aquilo? Você já sabe como fazer isso, Ling! - Como? - Pergunte a você. - Não tenho tempo para isso. Como eu faço? - Use sua raiva, Ling. TODA sua raiva! Foi assim que venceu o fogo, e foi assim que me derrotou. E será assim que derrotará a terra. RAIVA! - Não posso. Tenho que purificar minha alma de todos os sentimentos para alcançar a perfeição! - Este é um dos caminhos. Mas é o mais difícil. Limpar-se por completo de emoções é algo impossível, pelo menos para alguém que ainda trilha o Caminho. EU mesmo ainda não sou capaz disso, portanto me utilizo da raiva e do ódio para alcançar tal perfeição. - Yoan consegue se despir de suas emoções por completo - diz Sakazama. - Sim, mas Yoan já esta com 100 anos de idade. Sabe o quanto este homem treinou em sua vida? - responde Lyu. - Mas, se eu continuar a me utilizar da raiva e do ódio para ser bom, eu nunca mais poderei me limpar. Entenda, eu não serei mais capaz de me desprender das emoções e ser puro. Não terei a perfeição completa, nunca, e estarei preso ao ódio e a raiva para sempre. - Você não tem escolha, Ling. Ainda não está preparado para se purificar de tal maneira, é impossível para você ainda. Use o ódio para compensar - Eu não sei o que dizer. Yoan volta da casa com uma expressão séria. - Lao derrotou a terra. Mas a terra o feriu gravemente. Ele não poderá estar entre nos pelos próximos meses - Ninguém esperava isso. Lao, parado por meses? Isso seria fatal. - Ele não poderá fazer nenhum esf... - Não, houve uma fratura muito séria no osso da perna. Deverá ficar imobilizada completamente. Nada de exercícios por três meses. - Mas mestre, se ele ficar parado por três meses ele perderá toda a forma física! - Sim, mas não ha outro meio. Mesmo assim, tentaremos fazer algo para amenizar a perda. - Mestre, eu estou pronto para enfrentar a terra - disse o Ronin se encaminhando para uma das pedras. Ele se concentra. Era uma rocha verdadeiramente temperada. Como Ferro. Ele desfere a Garra de Gato de forma perfeita, sem emanar qualquer ruído, a não ser o da rocha se quebrando. Ele vencera a terra também. - Ling, vença a terra também, não acredite nas palavras de Lyu, purifique seu coração, use o que Yoan nos ensina. Não se torne um assassino como ele - disse Sakazama ao ir embora. 23
  • 24. - Vamos, Ling. Quebre a pedra - disse Yoan. Todos me olhavam com atenção. Sho Win sai da casa para me ver também, preocupada. Mas todos haviam se esquecido de uma coisa muito importante: meu desafio pessoal era socar rochas todos os dias. Minhas mãos calejadas e fortes estavam preparadas para tal missão. Só que quebrar mármore era muito difícil. Eu me afundo em minha alma, e retiro de lá toda a raiva e ódio que dispunha. Desfiro não uma Garra de Gato e nem uma canelada, mas sim um direto e forte soco, com todos os sentimentos que haviam em meu coração ampliados. Amor, ódio, paz, tristeza, felicidade. A pedra se esfacela, assim como a de Lyu. - Você venceu a terra. O caminho pode ser seguido adiante agora - diz Yoan. Lyu me observa com um sorriso. Ronin também. Havia descoberto algo para mover meus impulsos que não era de todo má e nem de todo bom, mas sim algo ideal para me tornar um grande guerreiro. Havia encontrado meu Espírito de Luta. Entramos para tomar comer, mesmo por que o sol já estava nascendo. ********************** Ouve uma pequena comemoração entre nós. Afinal, já havíamos enfrentado, com perfeição, 2 dos quatro elementos. Tínhamos aproximadamente mais dois anos para nos prepararmos para o próximo. O que nos preocupava era o fato de que Lao estava com a perna muito machucada. Mas ele mesmo estava otimista. - Não se preocupem, eu ainda tenho a canelada mais forte daqui - brincou ele. Haviam se passado 5 anos. Estávamos no meio do caminho. E não havia mais volta. Não éramos mais homens comuns, tão pouco os seres mortais que Yoan nos prometeu transformar. Éramos excelentes lutadores apenas. Lyu era mais que isso, claro. Possuía o conhecimento de um verdadeiro mestre, mas era visivelmente diferente. Aparentava ser de procedência ruim. Se era, nos enganava muito bem. Iniciamos o treinamento, com a forte ausência de Lao. Ele era o mais descontraído, brincava conosco e tornava as coisas mais leves. Agora o treinamento era menos prazeroso para nós. Lyu realizava todos os exercícios de forma incrível. Ele já sabia de tudo o que estávamos aprendendo, por que continuava conosco? Por que continuava aqui? Lao observava sentado em um pequeno banco. A perna toda enfaixada, com talas lhe impedindo o movimento, e um apoio de madeira para poder caminhar pelas manhãs, ao lado de Sho Win. Não, eu não tinha ciúmes. Agora eu sabia que ela me amava verdadeiramente. Lao a tratava como uma irmã mais velha, implicando e brincando com ela de forma divertida e impertinente, como só ele sabia fazer. Que saudades de casa! Meus irmãos implicavam comigo do mesmo modo, e como eu sinto falta! Minha mãe a me chamar para comer, meu pai sentado olhando para o chão com um ar tão... triste! E a algazarra de nós sete, um bolo de gente se amontoando para comer a rala comida que havia. Eu era o menor, por isso, o último a comer. Quase não me restava nada, mas minha mãe era capaz de tirar da comida dela para me matar a fome. Minha mãe... espero que ela esteja bem, que todos estejam. Mal vejo a hora de voltar, mas, e Sho Win? O que eu farei com ela? Ela viria comigo? - neste momento sou atingido por um forte golpe no rosto, que me faz cair. 24
  • 25. - Ling, divagando novamente no meio de um combate? Volte já para o tablado e lute verdadeiramente! Até Sho Win teria visto este golpe! - grita Yoan. Lyu, que estava lutando comigo, dava gargalhadas. - Garoto, nunca mais se desconcentre em uma luta como agora. Pode ser a razão de sua morte - diz ele, seriamente. Eu compreendo. Voltamos a lutar. Sakazama, o Ronin, treinava os movimentos que acabávamos de aprender em um boneco de madeira. Sua velocidade era absurdamente rápida. Interrompemos a luta para observar. Yoan voltou seus olhos para ele também. O céu estava nublado. O suor escorria de minha testa. Ainda estávamos no meio do dia. Partimos para o pequeno rio, onde realizávamos outros exercícios físicos. Lao observava, impaciente. Dia a dia sua musculatura ia perdendo a rigidez. Nós também estávamos aprendendo mais do que ele, que estava parado. Ele voltaria, mas era provável que nunca nos alcançasse. Isto era preocupante. Dois meses se passaram. Estava sentado em minha pedra, em uma noite de inverno, quando Sho Win veio até mim. A neve caia macia e continuamente. Era uma bela noite. - O que é, Sho Win? - Estou me sentindo estranha, Ling. - Como estranha? - Eu não sei, estranha. Eu não sangro a 3 meses. Isso nunca aconteceu. E veja isso... - diz ela levantando a saia até a altura dos seios. Eu a toco. - Não, não, Ling... agora não, eu me sinto estranha... não... olhe, olhe para minha barriga - diz ela, afastando minha mão de seu corpo. Eu olho. - Esta maior. - Sabe o que é? - Sim. Você tem que parar de comer tanto! - digo eu lhe tocando novamente. - Não, Ling... não... sim... venha Ling, sim! Nos amamos, mais uma vez, sob a neve. Logo depois, conversando com ela, constatei que poderia ser alguma coisa mais séria. - Não tenho comido e nem nunca comi muito, você sabe. Estou com medo, não é obesidade. - O que pode ser então? - Eu não sei, mas acho que Yoan pode saber. - Acha melhor lhe procurar? - Sim Ling. Estou com medo. - Então vamos juntos. Algo me diz que tenho que ir com você. Entramos na casa. Batemos na porta do quarto de Yoan, que nos recebe. Não fica espantado ao nos ver juntos. - Estava esperando o dia em que vocês viessem até a mim - diz ele. - Sim, mestre - digo eu - Sho Win esta preocupada. Acha que algo de errado está acontecendo com ela. - Eu não sei... deixe-me ver. O que sente, minha pequena criança? - Minha barriga, mestre. Esta maior, e ainda aumenta. Sinto algo latejando dentro dela, mesmo depois que como - ela levanta o vestido, assim como havia feito 25
  • 26. comigo. Yoan não demonstra qualquer espanto ou excitação. Aparentava ser normal ver uma mulher nua. Ele apalpa a barriga, ouve, olha. - Era o que eu temia - diz Yoan. - O que foi mestre? É grave? - pergunto aflito. - Não, apenas infeliz. Vocês vão ter um filho. Ficamos paralisados. Um filho? Um filho com Sho Win? Antes de completar o Caminho do Tigre? Isso era realmente infeliz. - Durante o Caminho do Tigre você tomou o que julgava ser uma bifurcação, que daria para um caminho mais belo e que chegaria ao mesmo destino que o antigo. Mas este caminho, apesar de belo, é cheio de obstáculos e perigos que o outro, feio e duro, não possuía. É o preço a se pagar pelo prazer. Espero que tenham aprendido - diz Yoan. - Sim mestre - dizemos juntamente. - Mas não vejam esta criança como algo a odiarem. Ele é fruto de seu amor, e este amor é o que vocês vão ter que expressar para ele. Ele pode ser uma dádiva disfarçada de desgraça. Aprendam a amá-lo, caso contrário estarão cometendo um erro maior que o que cometeram. - Sim mestre. Obrigado - dizemos e saímos. - Esperem, ainda falta algo - diz Yoan. - O que, mestre? - Agora vocês devem oficializar sua união. Amanha eu farei a cerimônia. Se preparem. - Certo, mestre - dizemos. Um casamento? Um filho? Sim, agora estava completo. Diante de uma situação tão extrema nenhuma dúvida veio à minha mente. Eu estava decidido, e Sho Win também. Fomos dormir, pela primeira vez, juntos enquanto todos estavam próximos. ********************* A cerimônia não teve nada em especial, a não ser o brilho nos olhos de Sho Win. Agora tínhamos um quarto só nosso, privacidade e paz. Sai do alojamento que havia se transformado meu antigo quarto, agora acomodando três jovens, e entrava em um novo e acolhedor ambiente. Estava casado, e seria pai. Mas eu não podia para de andar. O Caminho estava incompleto. Havia muito o que aprender ainda. Mas nesta semana, nada de lutas. Nada de treinamentos rigorosos. Nada para lembrar que sou um aprendiz. Que estou me tornando algo diferente do que a maioria é. Esta semana eu só teria contato com as coisas mais belas que eu podia imaginar. Tínhamos o direito de passar esta semana inteira a sós, na cabana dos picos do grande Shizu. Não é necessário dizer o que nos ocupava a maior parte do tempo. Mas também desfrutamos de outras coisas, coisas que antes não nos dávamos ao luxo. Nadar nas águas quentes do lago próximo, ficarmos abraçados em frente ao fogo, quente e brilhante, enquanto a neve caia, lentamente e macia. Dormir até a hora do almoço... eram coisas relativamente simples, mas que agora adquiriam um aspecto magnífico, tal qual era o prazer de vivê-las. Estávamos vivendo. Me passou pela cabeça sumir dali com ela, mas algo, aquele algo novo que descobri em mim, me impediu de avançar no pensamento. Meu espírito de luta me dizia para nunca fugir de uma briga. E era isso que eu estava fazendo. Ficando e lutando. 26
  • 27. Contei a Sho Win, que sorriu, para logo depois me beijar. Ficamos ali, parados, observando a dança sinistra que as chamas da fogueira realizavam. Percebi que não possuía mais predileção pela claridade ou pela escuridão. Eu não estava mais só. Ao contrário, agora queria ser visível, pois estava feliz. A semana passava rápida. Os dias eram comidos pela noite, que logo depois sucumbiam à força de um novo sol. Passados 6 dias, voltamos para a casa central. Yoan nos recebera como um pai que recebe seus filhos depois de longa data. Os demais nos cumprimentam, felizes. Parecia que tudo estava realmente bem. Lao já estava podendo caminhar e iniciava seus exercícios físicos. A perna havia cicatrizado, mas ele dizia que ainda doía um pouco, mas não o suficiente para impedi-lo de nos dar algumas pancadas. Rimos. Ele voltava aos poucos, progressivamente, assim como a barriga de Sho Win crescia. Passaram-se 5 meses. Lao estava praticamente recuperado, em termos físicos. Era surpreendente ver como ele fazia mais exercícios que o pedido. Ficava até a noite no bosque. Corria, saltava, batia. Tudo igual ao treinamento inicial, mas só que com, no mínimo, o dobro de intensidade. Voltava para casa e dormia profundamente. O dia nascia, e ele iniciava tudo novamente. Nós o aguardávamos, treinando e avançando em técnica. Podíamos lhe passar o que havíamos aprendido em, talvez, 2 meses. Isso o deixaria equiparado a nós em pouco tempo. Era fantástico. Outra pessoa provavelmente se acabaria com aquela perna, mas ele estava recuperado por completo. Voltou aos combates em pouco tempo. Ele apanhava mais, é claro, afinal havíamos aprendido golpes que ele não conhecia, mas logo que os levava, ele os assimilava. - Ainda tenho a outra canela pra te bater! - gritava ele, e nos vencia com seu forte golpe. Ele havia voltado. Sho Win parara com os afazeres domésticos a mando de Yoan, no que ele chamava de período crítico, ou 9º mês. A barriga dela parecia que ia explodir! Estávamos proibidos de fazer sexo a mais de dois meses. Obedecíamos Yoan severamente. Ela vivia a se queixar de enjôos e dores nas costas. Mas continuava alegre. Passeávamos durante o crepúsculo, sob o novo sol de primavera. Já haviam se passado quase que seis anos. Ela estava mais bonita do que no dia em que a vi pela primeira vez. Ela contava agora 24 anos, eu estava com meus 18. Um certo dia paramos próximos a um bambuzal. Os bambus ainda estavam verdes e grandes. Eram numerosos, e belos. Sho Win os observava enquanto falava. - Eu tenho medo, Ling. - Medo de que? - Não me sinto bem... - Claro que não, olhe para sua barriga! - Nós rimos. - Não é só isso. Estou sendo um estorvo em sua vida. - Como ousa falar isso? Como ousa?! - Você não está trilhando o Caminho da forma que Yoan esperava. - Claro que não, com você eu o estou trilhando melhor. - Obrigada, Ling. Eu sei disso - fala ela. Eu não compreendo, mas não a questiono. - O que você sente? - pergunto eu. 27
  • 28. - Eu não sei, é estranho. Sinto medo e ao mesmo tempo alívio. É como...como lutar, eu acho. A luta é iniciada, e você tem medo de perder, mas quando termina a luta e você ganha, você se sente aliviado. - Sim, eu compreendo - digo a ela, sem realmente entender o que ela queria dizer com todas aquelas palavras. Voltamos para a casa. A neve residual que o inverno havia deixado ao início da primavera se iniciava. Entramos. Os dias seguintes foram recheados de neve. Parecia que o Inverno havia voltado com toda sua fúria de encontro ao local. Treinávamos sob a nevasca sem constrangimento. Ela nos testava, nos forçava. Era só mais um inimigo dentre tantos. Mas foi ai então que o grito de Sho Win nos fez parar. Corremos para dentro. Yoan a acudia. - Tragam-me baldes de água e uma faca, rápido. Panos limpos fervidos em água também! - Sim! - dizemos a ele. Mas Yoan me repreende. - Espere Ling. Você deve ficar comigo - Sho Win gritava de dor. - Não será fácil, Ling, eu preciso de sua ajuda. - Mas o que eu posso fazer!!! - grito eu sem compreender por que Sho Win sentia tanta dor, e ao mesmo tempo indignado pelo fato de que nada podíamos fazer para ajudá-la. - Fique com ela, Ling - ela agarra minha mão com mais força que qualquer outro homem jamais seria capaz de ter. Ela grita mais uma vez. - Calma Sho Win, eu estou aqui... - sussurro em seu ouvido. Ela soa em bicas. Entre seus dentes havia algo para não lhe permitir esmigalhar os dentes sob a pressão de sua mandíbula, que se comprimia a cada novo espasmo de dor. Os demais chegam com os materiais requisitados pelo mestre. - Agora saiam. - Mas mestre... - SAIAM AGORA! - grita ele. Eles saem, menos Lyu. Ele observa. - Saia, Lyu - diz Yoan. - Eu ficarei pois tenho conhecimento médico, assim como você, Yoan - Eles se calam. Sho grita mais uma vez. Lyu se aproxima - Gostaria de ajudar, se você permitir - diz ele a mim. Eu lhe permito. - Apenas ajude ela. Pare com a dor e traga meu filho - digo eu. Ele coloca a mão sobre a barriga de Sho Win e a aperta. Ela grita de dor. Eu agarro a mão dele com força. Ele se desprende, e me olha sério. - Não interfira, Ling! Isso tem que ser feito! - eu me afasto, chorando. Fazia muito tempo que eu não chorava, e mais ainda chorar na frente de outros. A questão era que eu amava aquela mulher, e agora ela estava sofrendo. O que eu podia fazer? Nada. Absolutamente nada. Apenas observar. - Aqui, veja - diz Lyu para Yoan, que aperta a mesma área da barriga de Sho Win que ele havia indicado. Ela gritava de dor. - Sim, eu compreendo - diz Yoan. - O que foi?! - pergunto eu, aflito. - A criança está sentada dentro da barriga de sua esposa. Ele não vai sair desta maneira. Temo que seja o fim. - Como assim o fim? Ajudem Sho Win agora!!! Ajudem!!! - grito eu não querendo compreender o que eles estavam querendo dizer. Eles continuam calados. 28
  • 29. - Há uma maneira, não usual, que aprendi a pouco tempo atrás... - diz Lyu. - O que é? - pergunto eu. - Consiste em espetá-la com várias farpas de bambu em pontos energéticos do corpo. Podemos harmonizar desde respiração e batimentos cardíacos até amenizar a dor. - Isso resolveria? Salvaria a vida dela? - Não, mas poderia nos permitir... - O que? - Abrir ela. Seria a única maneira de fazer com que a criança nasça. - Abrir? - Sim - diz Yoan - Se bloquearmos os plexos nervosos da região, poderíamos abri-la, bloqueando para um nível mínimo o sangramento na região. Mas é arriscado. Tem que ser feita de maneira precisa. - Vocês podem fazer? - Sho Win grita mais uma vez, ao fundo. - Não temos outra maneira. Deste jeito, ela e a criança morrerão. Se abrirmos, ela poderá ter uma chance, e a criança nascerá, com certeza. - Façam! Agora! - grita Sho Win. - Sho Win... - digo eu, me aproximando. - Ling, eu lhe amo! Eles tem que fazer isso , por favor ... façam!!! Não deixem o meu bebê morrer!!! - fala ela, chorando. Eu permito. Eles se preparam. Lyu vai até o bambuzal e retira um grande pedaço de bambu seco. Yoan retira uma garrafa de sakê de seu armário. Uma faca afiada reflete a luz das velas em meus olhos. Várias farpas são colocadas por Lyu. Sho Win aparentemente sofre o efeito, parando com os gritos e se acalmando. Lágrimas rolam por nossos rostos. Mais farpas são colocadas na região abdominal dela. - Isto é o máximo que posso fazer, Yoan - O velho dá de beber a Sho Win. - Agora teremos que cortá-la. Já passou do tempo do nascimento. Temos que ser rápidos. - Ling, pegue neve lá fora, encha um balde. Traga-o para nós - diz Lyu. Eu obedeço. Quando estou na metade do balde, ouso um grande choro de criança. Entro rapidamente na casa. Sho Win estava completamente desacordada, com um grande corte em sua barriga. O cheiro de sangue era forte, e Yoan segurava meu filho, uma menina. Lyu, por sua vez, segurava a barriga de Sho Win, tentando impedir a abertura do rasgo. - Não consigo conter o sangramento!!! - gritava ele. Eu derrubo o balde, em completo estado de choque. Olhava para a criança e depois para Sho Win. Com uma grande agulha de costura e uma linha, ambos fervidos em água, Lyu literalmente costura a barriga de Sho Win após conter o sangramento. Ela permanecia desacordada. - Não nutra esperanças, Ling. Infelizmente, será muito difícil que ela sobreviva - diz Yoan, segurando a menina que agora parava de gritar. Eu a olhava com ódio. - Não! - diz Yoan me batendo no rosto - Não ouse odiar esta criança. Se quer odiar a alguém odeia a si mesmo! A culpa disto tudo é sua, e dela! - diz ele apontando para Sho Win, desacordada - Vocês o fizeram com tal intenção?! Não! Mas mesmo assim sente a necessidade de culpar alguém por isso! Pois culpe a mim, a Lyu, a você e a Sho Win, menos a esta criança. Entendeu? Suas palavras ardem, pois são a verdade. Eu aceito, e tomo a criança em meus braços. Era linda, como a mãe. Me apaixono por ela instantaneamente. Mas Sho Win ainda necessitava de mim. Deixo minha filha aos cuidados de Yoan, e vou 29
  • 30. ficar ao lado de minha esposa. Seguro sua mão, fria. Uma lágrima escorre de seus olhos. Ali eu passo a noite. *********************** No dia seguinte a neve continua forte. A criança também. Mas Sho Win não acordara. Os treinamentos estavam suspensos, não tanto por nós, mas sim por causa da grande nevasca que caía. Eu chorava o mais que podia, mas de nada adiantava. Eu lhe pedia para acordar, se levantar, mas ela nada respondia. Ficava ali parada, imóvel. Algumas horas depois, ela parava de respirar. - SHO WIN !!!!! - gritava eu, enquanto que Lyu soprava ar para dentro dela e massageava seu peito de forma estranha. Yoan me continha. Ali ficou por cerca de 3 minutos. Por fim, ele sai de cima dela, e pela primeira vez em minha vida eu vejo meus dois mestres chorarem. Yoan, meu guia no Caminho do Tigre, e Lyu, meu mestre no que ele havia intitulado, a pouco tempo, de Caminho do Dragão, uma brincadeira com o verdadeiro caminho seguido. Sho Win, de olhos abertos, estava estática. Ambos me olham seriamente, e deixam a sala. Ela havia morrido. Eu sabia disso , mas relutava em compreender. Lhe tomei a mão inerte, agora mais fria do que antes. Sua boca entre aberta, os olhos estáticos e sem brilho. - SHO WIIIIIIIIIIIN!!! SHO WIIIIIIIIIN!!! - gritava eu, chorando, e por fim abraçando o corpo morto de minha esposa. Ela me deixara enfim. Me arrasto para fora, e mesmo no meio de toda aquela neve eu vou até o lugar em que nos amamos pela primeira vez, meu local de meditação. Choro e grito mais. Fico ali até perder a noção de tempo. Caio, exausto, no chão. Ronin me encontra semi enterrado na neve, e me leva de volta para a casa de Yoan. Eu não fui capaz de exprimir uma só palavra durante os próximos 7 dias. Não saia de meu quarto, não ria, não comia junto aos outros. Só ficava em meu quarto, eu e minha filha. Eu a chamo de Mai Win. Aparenta ser um nome otimista. Eu cuido dela em completo silêncio. Vez ou outra Yoan aparecia e me ensinava algo para ajudar, como limpá-la, dar comida, estas coisas. Ao fim dos 7 dias a neve, enfim, cedera. Podíamos realizar o enterro. Sepultamos Sho Win próximo à árvore em meu local de meditação. Eu poderia vê-la todos os dias. Yoan diz algumas palavras e então entoa algumas preces budistas para ela. Eu choro, com Mai em meus braços. Ela, ao contrário de mim, sorria. Confesso que nunca a vi chorar sem ter sido em seu dia de nascimento. Todos vão embora, somente eu e Mai permanecemos. As nuvens esburacadas permitiam vez ou outra a passagem de raios de sol por entre suas fendas. Um grande raio de sol iluminava exatamente o local de sepultamento em que estávamos. - Sho Win, meu amor... não me deixe só... não agora - digo eu, baixinho - Não me contenho e derramo mais lágrimas. Momentaneamente eu fico sério. - Eu juro, sobre seu túmulo, que eu não deixarei de acreditar nas coisas em que acreditava antes, em coisas que descobri junto com você. Eu ainda serei o maior lutador que poderá existir em todos os tempos. Eu juro - Paro as lágrimas, olho para Mai e me viro. 30
  • 31. - Adeus meu amor, me aguarde, um dia nos reencontraremos. Saio do lugar e vou para a casa de Yoan. ***************************** Adquiro um ar amargurado, mas no entanto maduro e seguro, como um bom lutador tinha que ser.Yoan arrumara uma nova ajudante para a casa. Li Wong Pu era nova, com seus 14 anos. Bonita, tímida e carinhosa, cuidava de minha filha perfeitamente, desde o primeiro dia. Fazia comida, lavava roupas e tudo o mais. Era tão boa quanto Sho Win, só que não era ela. O treinamento voltou normalmente logo após o dia do enterro. Não fui poupado, o que achei muito certo e justo. Yoan me admirava. Estava satisfeito comigo, pois não havia fraquejado como ele provavelmente havia pensado que eu faria. Ao contrário, fui um forte. Me empenhava agora totalmente no treinamento, de forma exagerada. Estava treinando até durante a noite. Logo os resultados estavam aparecendo. Estava muito acima em termos técnicos de Lao e de Ronin. Já estava me equiparando a Lyu. Começava a ganhar lutas dele. Estava ficando melhor a cada dia. Mai iniciava a falar. Era a mascote da turma. Todos a adoravam. Ela falava enrolado, de forma engraçada, e eu adorava. Brincava muito, e Li Wong era como uma verdadeira mãe para ela. Passaram-se ai 18 meses desde a morte de Sho Win. Já não me doía muito o fato. Ronin e Li se encontravam escondidos, assim como eu e minha esposa fazíamos. Eu fico feliz, mesmo sabendo que o final poderia ser tão ou mais trágico que o da minha própria história. Estou maduro, visivelmente experiente. Minha fala e maneira é a mesma de um homem com o triplo de minha idade. Eu era um guerreiro. Um dia, depois do treinamento, Ronin se aproximou de mim. Estava meditando, assim como fazia no início, todos os dias. - O que ha, Sakazama? - Eu queria conversar, mas não sei sobre o que... - Fale, apenas fale. - Eu e Li Wong... - Sim, eu já sei. - Como? - Esqueceu-se que comigo ocorreu o mesmo? Meus olhos vêem coisas que os demais não são capazes de enxergar. - Entendo. Ela não quer que eu seja um guerreiro após o treinamento. - E você? Quer ser? - Eu tenho o dever! Você não compreende... - Faça-me compreender - digo eu, calmamente. Ele se senta na minha frente, aflito. - O único que sabe desta história toda além de mim é Lyu. Agora eu vou contar para você. - Conte-a. - Foi a 10 anos atrás. Eu estava apenas com 9 anos, mas me lembro de tudo muito bem. Morávamos em Nagoia. Meu pai era um grande guerreiro, um verdadeiro Samurai. Tínhamos um senhor, o qual meu pai jurou fidelidade e proteção. Proteção extrema. Sabe o que isso significa para um Samurai? Ter que, se necessário, dar a própria vida para a proteção de seu senhor. Se algo sair errado e o senhor morrer e 31
  • 32. o Samurai sobreviver, este se tornará um Ronin. Samurai desonrado e sem mestre. Pois bem. O dever de meu pai, sendo um Ronin, seria o de se suicidar. Só assim ele recobraria a honra perdida. Mas eu não tinha mais ninguém, e no final, ainda havia minha irmã, Suury, com dois anos. Ele abandonou Nagoia, veio para a China e nos criou. Agora eu treino com Yoan para poder vingar a morte de meu pai. - E como Lyu soube de tudo isso? - Por que foi ele que matou o senhor de meu pai, e posteriormente ele em si. Ele é um assassino, Ling, não sabia disso? - Um assassino?! Não pode ser, Sak. Ele devia ser tão novo quanto nós naquela época! - Sabe quantos anos ele tem? 25! Ele tinha 15 anos na época, e os ninjas assassinos do JitSu se tornam mortais aos 12 anos. Ele já tinha 3 anos de experiência assassina! - E o que ele está fazendo aqui? - Ele debandou do clã. Foi expulso. - Por que? - Achava que não estava ganhando o suficiente de seus mestres. Deixou o clan para fundar uma ordem mercenária. Está aqui por duas coisas: ou quer nos reunir para junto com ele sermos assassinos de aluguel ou está apenas trabalhando. - O que? Ia levar 10 anos para matar uma pessoa? - Não sei, Ling. Tudo o que sei é que ele é perigoso e está com segundas intenções. - Por que você nunca fez nada? - Oh, eu fiz sim. Antes de virmos para cá ele me revelou o mandante da morte, tanto de meu pai quanto de nosso senhor. Eu o matei. - Mas e Lyu? - Ling, ele é apenas uma arma. É o trabalho do maldito. Eu não posso culpá-lo. O verdadeiro culpado está morto a 6 anos. Podia ter sido qualquer um dos ninjas JitSu. - Compreendo. Acha que está aqui para matá-lo? - Não, se esta aqui para matar alguém só pode ser Yoan. Tem muitos inimigos e é o único que levaria tanto tempo assim para ser morto. Acho que, no fundo, ele está estudando também. - Mas ele e Yoan se tratam de forma tão normal... - Não questione os métodos de um ninja assassino, Ling... ele é uma cobra criada. - diz ele se levantando. - O que acha que devo fazer? - O que você quer fazer, Sakazama? - Reerguer o nome de minha família, ser um bom Samurai, limpar o nome de meu pai... - Você não tem que ser um Samurai para fazer isso, Sakazama. Para falar a verdade, acho que você já o fez. Olhe-se! Seu pai teria orgulho do que você se tornou - Ele se olha por um momento. - Talvez... você tenha razão. Mas eu ainda não sei... o Caminho é tão difícil, do que me valerá percorrê-lo se não lançarei mão do conhecimento posteriormente? - Você pode tirar proveito dele mesmo sem ser um guerreiro. O equilíbrio e a paz que você conquistar agora lhe servirão muito. Além do mais, se surgir um imprevisto, você não irá necessitar de um Samurai contratado, pois será seu próprio Samurai. - Eu... não sei Ling. Eu tenho que pensar - Ele sai andando. - Obrigado, Ronin. - Pelo que? - pergunta ele parando, sem voltar seu rosto para o meu, assim como eu. - Por confiar em mim. 32
  • 33. Ele apenas continua andando. ******************** No dia seguinte nosso treinamento com armas é iniciado. Facas, sabres, bastões, e uma infinidade de outras coisas mortais estavam a nossa disposição. Nosso treinamento se triplicara. Pegamos o jeito das armas bem rápido. Novos golpes eram ensinados e ainda fazíamos exercícios físicos em uma intensidade inacreditável. Os músculos chegavam a atrapalhar alguns movimentos. Mas logo nos acostumávamos. Chegou então a hora de cada um escolher uma arma específica para aprendizado total, ou seja, seriam nossas armas eternas, nossas armas de combate. Seriamos verdadeiros mestres com elas. Lyu escolhe primeiro. Pega uma espada média, estilo japonês, de lâmina forte e corte devastador. Segura, elegante, fatal. A arma de um verdadeiro ninja. Lao escolhe em seguida. Escolhe a Sai, mini espadas com espetos nas extremidades dos cabos. Multiuso. Armas de corpo a corpo, de lançamento, de corte. Fatais, super afiadas, discretas. Eu escolho uma arma estranha e aparentemente inútil: dois pequenos cilindros de madeira unidos por uma forte corrente de ferro. Um Nun-Chako. Uma arma japonesa rápida, pequena, forte e não letal. - Por que escolheu esta arma? - pergunta Yoan. - Por que a arma mais mortal que eu poderia ter eu já tenho: meu próprio corpo, mestre. Esta era a resposta que ele queria ouvir e a que eu respondi sem pensar. Mas eu estava mentindo, em parte. Se usada de forma correta, minha arma seria capaz de neutralizar todas as demais. Não podia confiar muito em armas. Tinha que confiar em mim. Minha filha observava, no colo de Li Wong. Eu ascendo, ela sorri, e esconde o rosto. Ronin escolhe o bastão. Uma arma elegante, mas grande. Os maiores mestres sempre o utilizavam. E ele é honrado o suficiente para empunha-la. Os dias passam lentamente. As noites são novamente agradáveis, a escuridão me consola. Sou novamente um solitário, só que agora de coração marcado. Sangrado pelo amor que teima em me recordar de tal dor e sofrimento. Eu costumo chorar antes de dormir, e minha filha me observa. Eu nada falo, e ela então compreende, apenas olhando para meus olhos úmidos. Enquanto todos dormem eu medito, em busca da paz que perdi com a morte de Sho Win. Meu ódio estava novamente dominando meu equilibrado espírito de luta. Estava mais poderoso, mais perigoso, porém mais cruel e triste. Deveria eu me sacrificar de tal maneira? Acabar-me de tal forma para me tornar aquilo que eu nem queria ser? A resposta veio com uma morte. Não poderia ter uma vida feliz. Não poderia ser aquilo que gostaria de ser. Meu destino está traçado, e amaldiçoado. Devo me tornar o maior de todos para por fim ao meu sofrimento. Só 33