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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – JORNALISMO
BRUNA MAFACIOLI VALENTINI
IMAGINÁRIOS DA CONTRACULTURA:
Burning Man, sete dias de transgressão no deserto e na internet
PORTO ALEGRE
2013
1
BRUNA MAFACIOLI VALENTINI
IMAGINÁRIOS DA CONTRACULTURA:
Burning Man, sete dias de transgressão no deserto e na internet
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado como requisito para obtenção
do grau de bacharel em Comunicação
Social, habilitação em Jornalismo, da
Faculdade de Comunicação Social da
Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul.
Orientador: Prof. Me. Juremir Machado da Silva
PORTO ALEGRE
2013
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BRUNA MAFACIOLI VALENTINI
IMAGINÁRIOS DA CONTRACULTURA:
Burning Man, sete dias de transgressão no deserto e na internet
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado como requisito para obtenção
do grau de bacharel em Comunicação
Social, habilitação em Jornalismo, da
Faculdade de Comunicação Social da
Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul.
Aprovada em: ____de________________de________.
BANCA EXAMINADORA:
_____________________________________________________
Orientador: Prof. Me. Juremir Machado da Silva - PUCRS
_____________________________________________________
_____________________________________________________
Porto Alegre
2013
3
Dedico este trabalho aos meus pais e irmã,
que sempre apoiaram e puderam dar
suporte às minhas decisões e sonhos. Entre
eles, uma grande e inacreditável viagem ao
exterior, porta para experiências e aventuras
que vou carregar para sempre em meu
coração e memória. Foi nessa viagem,
inclusive, que tive contato pela primeira vez
com o objeto de estudo da presente
pesquisa. A todo esse processo, minha
eterna gratidão.
4
AGRADECIMENTOS
À minha grande família, e toda a doçura e escândalo que comporta, por
sempre abrir os braços para segurar qualquer empreitada. E, principalmente, por ser
um misto dos infinitos significados da palavra amor.
Ao núcleo de casa: pai, mãe e irmã, que, na base do carinho e da
compreensão, permitiram que eu desenvolvesse minhas próprias crenças e me
motivam a ser uma pessoa radiante e mais justa a cada dia. Mesmo que na
distância física.
Aos outros amores da minha vida: os gatos, o namorado, as melhores amigas
e amigos, seus olhares e abraços, e a certeza de que por mais longa e árdua seja a
caminhada, ela pode ser simultaneamente linda e graciosa.
Ao Professor Juremir, por me deixar tão livre para pensar e buscar meu
próprio caminho na viagem e imersão pessoal que foi realizar esse trabalho.
Às meninas da biblioteca, sorridentes e prestativas para resolver qualquer
impasse de formatação.
Às constantes e felizes “coincidências” que acontecem na minha vida, que
tanto aprecio e faço proveito. Que continuem nessa nova etapa e que sejam para
ajudar a engrandecer outros mundos. Seja lá o que eu acredite por “coincidência”.
5
Enquanto observa o Burning Man, Larry
enxerga diversas ervas daninhas ensaiando
coisas sem um aparente motivo prático. ‘São
ervas daninhas, mas são suas ervas
daninhas. Quem sabe a que isso vai levar?
Talvez a nada. Mas ao menos as pessoas
estão dando a oportunidade de não
descobrir nada. Se os seus julgamentos são
sempre governados pelos padrões do
mundo, talvez nunca encontrem aquela
coisa na qual são brilhantes, que eles foram
feitos para, e essa é a maior tragédia de
todas – o silêncio desesperado...
Doherty, 2004, p.272.
6
RESUMO
O Black Rock Desert, nos Estados Unidos, abriga a cada ano uma cidade
temporária durante uma semana. O evento, chamado Burning Man, começou em
1986 com cerca de 20 pessoas. Desde então, desenvolveu-se tanto em termos de
estrutura, quanto em número de adeptos: na edição de 2011, reuniu
aproximadamente 50 mil pessoas, considerado, se não um dos maiores festivais de
contracultura, uma das maiores comunidades intencionais contemporâneas do
mundo. Desde 2001, essa tribo passou a ter um espaço virtual para se expressar,
com alcance global, através de um blog oficial, o The Burning Blog, alojado no site
do Burning Man. A presente pesquisa busca, portanto, discutir sobre o imaginário da
contracultura ao longo da história e suas intersecções com a tecnologia e com a
consequente quebra de barreiras demográficas através de uma comunicação
facilitada pela internet, o que significa tentar compreender a criação de um espaço
virtual com “alma”. Recriar e compreender o Burning Man também como uma cidade
online, pós-moderna, com cidadãos conectados, que podem construir e alimentar
um imaginário coletivo, assim como se sentir parte de um todo, sem nunca ter
colocado os pés naquele deserto. Nesse sentido, será interpretada a produção e
publicação de conteúdo durante a edição do Burning Man 2012, entre 27 de agosto
e 3 de setembro, através da análise e documentação sistemática do mesmo, bem
como a metodologia de pesquisa bibliográfica para aproximação com os temas que
o contextualizam no intuito de compreendê-lo como produtor de conteúdo, sem
tampouco tê-lo experimentado em sua forma física. Se ao redor do mundo o tema
não passa despercebido pela Academia, no Brasil a pesquisa a respeito do evento
não é representativa. A importância dessa análise, que entrelaça o deserto e a
internet como cenários contraculturais e complementares pós-modernos, para os
estudos em comunicação, é um convite para novas discussões sobre como nos
comunicamos e consumimos informações, e, consequentemente, como agimos e
nos projetamos perante o mundo, ou a uma determinada tribo, nesse contexto
cibernético.
Palavras-chave: Contracultura. Imaginário. Pós-modernidade. Cibercultura.
Inteligência coletiva. Burning Man.
7
ABSTRACT
The Black Rock Desert, in northern Nevada, in the United States, hosts a temporary
city for a week, every year. The event called Burning Man began in 1986 with about
20 people. Since then, it has developed both in terms of structure and the number of
supporters, and in the 2011 edition brought together approximately 50 thousand
people, and it is considered one of the biggest counterculture festivals and one of the
largest intentional communities in the contemporary world. Since 2001, this tribe now
has a virtual space to express themselves, with global reach, through an official blog,
The Burning Blog, which is part of the Burning Man website. This research aims to
discuss the imagery of the counterculture throughout history and their intersections
with the technology and the consequent demographic break through barriers of
communication facilitated by the Internet, which means trying to understand the
creation of a virtual space with "soul." The research will also focus on recreating and
understanding Burning Man as a postmodern online city, networked with people who
can build and nurture a collective imagination, feeling as they are part of the whole
thing, even without ever having set foot in that desert. During the 2012 edition of
Burning Man, production and publishing of material were interpreted, between
August 27 and September 3, through analysis and systematic documentation of the
same, as well as the methodology to approach literature with themes in order to
understand it as a content producer, even without having experienced it in its
physical form. This theme does not go unnoticed by researchers around the world,
but in Brazil the investigation of the event is not representative. The importance of
this analysis, which interweaves the desert and the Internet as complementary and
postmodern counterculture scenarios, and this is an invitation to further discussion on
how we communicate and consume information, and therefore how we act and
design before the world, or to a particular tribe, that cyber context.
Keywords: Counterculture. Imaginary. Postmodernity. Cyberculture. Collective
intelligence. Burning Man.
8
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .........................................................................................................9
2 OS IMAGINÁRIOS DA CONTRACULTURA .........................................................12
2.1 A CONTRACULTURA COMO TERMO E CONCEITO NO IMAGINÁRIO..............12
2.2 ENTRE MITOS E OS ANOS 60 ..................................................................................17
2.3 A GERAÇÃO WOODSTOCK ......................................................................................23
3 A CONTRACULTURA PÓS-MODERNA...............................................................31
3.1 DE MAIO DE 68 AO PÓS-MODERNISMO CULTURAL...........................................31
3.2 CONTRACULTURA DE SOFÁ, A EVOLUÇÃO.........................................................37
3.3 INTELIGÊNCIA COLETIVA E TRIBALISMO VIRTUAL ............................................44
4 INCÊNDIO DE CULTURAS, CONSTRUÇÃO DE IMAGINÁRIOS ........................50
4.1 O HOMEM QUE QUEIMA ...........................................................................................50
4.2 FERTILIDADE 2.0.........................................................................................................60
4.3 CAMINHOS VIRTUAIS DO IMAGINÁRIO..................................................................68
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................89
REFERÊNCIAS.........................................................................................................93
9
1 INTRODUÇÃO
Qual o imaginário da contracultura contemporânea? O que é imaginário?
Aliás, existe contracultura nos anos 00? Do rótulo dos tempos de hoje, muito já
sabemos, e sentimos, quando falamos em uma geração que se adapta, outra que
convive e ainda outra que já nasce com a tecnologia nas mãos. Tablets, celulares,
notebooks conectados fulltime em rede. Temos transmissões de tudo que se possa
imaginar via internet. Jogos esportivos, discursos presidenciais que atravessam
oceanos e também festivais. Sejam eles de música, de artes, de variedades. Seja o
que for, difícil é não encontrar on-line.
Ainda que o virtual não substitua o mundo tátil, ambos se complementam. E
hoje é possível fazer parte de uma comunidade, de um festival, de um jogo, de uma
palestra sem ter que estar presente fisicamente. Seria isso uma transgressão? Seria
essa uma nova contracultura? Seria a cibercultura a nova linguagem de subversão?
O Woodstok pós-moderno? Lemos (2004) nos dá uma pista quando afirma que a
origem do underground high tech foi diretamente influenciada pela contracultura
americana e pela consolidação da sociedade dos meios de comunicação.
Mas a curiosidade pelo tema foi despertada pelo encontro e identificação
virtual com um festival de artes que acontece em um deserto dos Estados Unidos,
com regras específicas de sobrevivência e convivência como, por exemplo, não usar
dinheiro durante uma semana e que, entretanto, acontece e ressona
simultaneamente em um site, em um blog e em diversas redes sociais. Um festival
chamado Burning Man, muitas vezes, ilustrado pela mídia justamente como um
evento de contracultura contemporâneo, talvez pelo incentivo ao nudismo, ao
sentido de vida em comunidade e a livre expressão que a organização promove.
Para um leitor conservador, poderia soar como libertinagem ou, porque não, como
um comportamento típico daquele festival que marcou o final dos anos 60. Por isso,
faz-se necessário ir além.
Se nas prateleiras pouco se encontram estudos sobre o Burning Man
enquanto um objeto virtual para análise, por outro lado sobram teses e livros que
analisam o caráter antropológico e social desse festival, especialmente por autores
estrangeiros. No Brasil, os registros em geral se resumem basicamente a coberturas
jornalísticas e relatos pessoais, quando algum correspondente resolve se aventurar
pelo hemisfério norte.
10
A internet, porém, não nos deixar encolher perante as barreiras demográficas
para mergulhar na pesquisa, ainda que não se mergulhe no deserto de Nevada. O
que sabemos é que o próprio festival, que na realidade se diz uma cidade
temporária, publica diariamente na rede “pré, durante e pós-festival” conteúdos
pertinentes a esse universo: entre eles cuidados, regras, depoimentos, notícias,
achados e perdidos, vídeos, fotos e até mesmo um link para observar o evento via
streaming.
Este trabalho, portanto, busca no Burning Man, em primeiro lugar, a
construção ou desconstrução de uma tese: seria esse um exemplo de contracultura
contemporânea, justamente por ser um modelo de comunidade utópico e imediato e
associar alguns princípios transgressores típicos dos anos 60 com a cibercultura
para existir e sobreviver? Afinal, é através da internet que se fazem as inscrições
dos participantes, que se articulam os grupos de voluntários para a construção de
uma cidade temporária, a Black Rock City.
Entendido esse processo, a pergunta que fica é: O quão poderoso pode ser
um blog como ferramenta para a construção de imaginários a respeito do Burning
Man? Que lugar virtual é esse que transcende o estado geográfico de quem o
acompanha? Qual seu papel na propulsão da inteligência coletiva, das tribos?
Esse é justamente o tema do quarto e último capítulo desta pesquisa. A
costura ou quebra de teorias. Analisar os conteúdos publicados no blog oficial do
Burning Man durante a edição de 2012, entre 27 de agosto e 3 de setembro. Temos,
enfim, nosso Woodstock do século XXI?
Mas antes disso, um longo caminho a percorrer. No segundo capítulo será
observado o trânsito dos conceitos gerais entre os tempos de contracultura até os de
cibercultura vigentes: origens, mitos, imaginários e caricaturas. Na sequência, o
terceiro capítulo abordará o estudo da cibercultura e de suas possíveis tribos
virtuais, as inteligências coletivas, como agentes pós-modernos da contracultura dos
anos 00. Essas, que compartilham, disseminam, identificam e, por fim, abrigam-se.
Seja no deserto, seja na internet. Maffesoli (2009)1
já questionou: “Não seria a
Internet a comunhão dos santos pós-modernos?”.
Para responder a esse emaranhado de perguntas, a contracultura será
abordada a partir das obras de Goffman e Joy (2007), Roszak (1972), Pereira
1
Ver MAFFESOLI, 2009.
11
(1983), Pimenta e Silva (2009), Cardoso (2005), Fornatale (2009), Valer (2007) e
Groppo (2001). Já autores como Silva (2006) e Maffesoli (2001) fundamentarão as
discussões sobre imaginário. Para debater a pós-modernidade, Maffesoli (2006,
2012), Almeida (2007), Connor (2004), Lampert (2005), Santaella (2004), Hall (1997)
formarão o time de teóricos. Lévy (1999, 2001), Santaella (2004), Heine (2005),
Xiberras (2010), Lemos (2004), Primo (2006) entrelaçarão os conceitos de
cibercultura e inteligência coletiva. Além do mais, McCaffrey (2012) e Doherty (2004)
emprestarão seus estudos, pesquisas de campo e observações relativas ao festival
Burning Man.
Quanto à metodologia aplicada ao trabalho, temos, como ponto de partida, o
levantamento bibliográfico, que, segundo Gil (1999), é desenvolvido a partir de
material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos.
A pesquisa documental também dá corpo à tese, e é muito semelhante à
bibliográfica para esse autor, pois defende que a diferença entre ambas está na
natureza das fontes. Nesse caso, ela se vale de materiais que não receberam ainda
um tratamento analítico ou que ainda podem ser reelaborados de acordo com os
objetivos da pesquisa.
Por fim, a análise de conteúdo, técnica do método comparativo, encaminha a
pesquisa a seu ápice, quando três passos fundamentais são necessários. Para
Bardin (1997), são eles: pré-análise, exploração do material e tratamento de dados,
interferências e interpretação. Esse último, para Gil (1999), tem o objetivo tornar os
dados válidos e significativos.
Através desses autores e interpretações, a intenção é costurar as relações
entre a construção dos imaginários da contracultura em tempos de cibercultura e os
conteúdos publicados no blog do Burning Man. E, portanto, observar o trânsito de
comunidades físicas ao meio virtual e seu espaço ocupado na internet, o que talvez
venha a definir alguns traços de uma contracultura contemporânea.
12
2 OS IMAGINÁRIOS DA CONTRACULTURA
Contracultura é termo, é conceito, é período, é memória, é tudo isso e mais
um pouco de imaginário. É contradição, ir e voltar, remoldar, repensar. É coisa de
grego, de moderno e daquele que se esconde (e muito se mostra) atrás de uma
interface nos anos 2000. O que todos têm em comum é a capacidade de se agarrar
na tangente da sociedade e sair pela culatra: instáveis, porém orgulhosos do eco
que produzem. Iniciaremos os trabalhos com uma imersão na história da
contracultura.
2.1 A CONTRACULTURA COMO TERMO E CONCEITO NO IMAGINÁRIO
O que é contracultura? Quem faz contracultura? O que faz a contracultura?
Um estereotipado período dos anos 60 nos Estados Unidos, que se espalhou pelo
mundo, ainda que com diferentes tons? Ou, um impulso natural humano de
transgredir para sobreviver que não se limita a cronologia e caricaturas?
Para Dan Joy (20072
, p.13), um dos autores do livro ‘Contracultura através
dos tempos: do mito de Prometeu à cultura digital’, assim como escreveu no prefácio
do mesmo:
A contracultura é “ruptura” por definição, mas também é uma espécie de
tradição. É a tradição de romper com a tradição, ou de atravessar as
tradições do presente de modo a abrir uma janela para aquela dimensão
mais profunda da possibilidade humana que é a fonte perene do
verdadeiramente novo – e verdadeiramente grandioso – na expressão e no
esforço humano. Dessa forma, a contracultura pode ser uma tradição que
ataca e dá início a quase todas as outras tradições.
O autor ainda salienta que a contracultura floresce da incorporação da
mudança. Ou seja, sempre e onde quer que alguns membros de uma sociedade
escolham estilos de vida, expressões artísticas e formas de pensamento e
comportamento se fundamentam na mudança como única constante verdadeira. E
assim, Joy (2007, p.13) arremata:
2
Este livro foi escrito por Goffman e Joy (2007), porém o prefácio é de autoria exclusiva de Dan Joy
(2007).
13
A marca da contracultura não é uma forma ou estrutura em particular, mas a
fluidez de formas e estruturas, a perturbadora velocidade e flexibilidade com
que surge, sofre mutação, se transforma em outra e desaparece.
Sendo assim, esse autor também reforça a ideia de constante transformação
da contracultura e, portanto, se afasta da ideia de periodizar ou encaixá-la dentro de
um espaço de tempo limitado ao inferir que não se trata de construção ou produção,
e sim, algo que precisa ser vivido, experienciado:
Se a contracultura valoriza ampliar as fronteiras da arte, ela valoriza muito
mais levar a vida como uma experiência artística em progresso. Se a
contracultura valoriza o pensamento inovador, ela se empenha ainda mais
em exprimir essa ideia na ação do momento. Se a contracultura abraça o
espírito, ela não defende o contato periódico com a divindade por intermédio
de qualquer gestual arbitrário; em vez disso, busca viver cada dia como a
expressão dinâmica e constante do próprio espírito (JOY, 2007, p.17).
Isso significa que, embora as novidades revolucionárias nasçam mais
frequentemente de um ambiente contracultural, podemos incluir aqui a ideia de
contracultura atrelada aos anos 60, “a grande inovação – não importa quão contrária
ao status quo possa ser – não constitui em si um contracultura. A verdadeira
contracultura é movida por um impulso muito mais profundo do que apenas o desejo
de inovar ou derrubar convenções” (JOY, 2007, p. 17).
Enquanto debatemos conceitos de contracultura, imagens, desenhos e
emaranhados de pensamentos se formam na mente do leitor. Para alguns, o termo
pode remeter a alguma transgressão que já tenha proposto a si mesmo, outros
buscam trazer esses insights para os dias de hoje, também há aqueles que pensam
em paz e amor, em Jimi Hendrix, Janis Joplin, por que não? Ideias essas
remanescentes do registro histórico, repassadas de geração em geração, de uma
época bem estereotipada, que teve seu ápice nos anos 60. A tal de contracultura
dos Estados Unidos da América. Woodstock? Sim, como a ponta do iceberg. Essa
costura, correia de pensamentos, de imagens mentais e coletivas, rima muito bem
com os argumentos sobre o imaginário de Silva (2006, p.11), que serão aplicados ao
presente trabalho: “Todo imaginário é um desafio, uma narrativa inacabada, um
processo, uma teia, um hipertexto, uma construção coletiva, anônima e sem
intenção.” Talvez, a percepção de imaginário de Silva (2006) esteja muito próxima
de como Joy (2007) vislumbre a contracultura: fluída, sempre em movimento e
transformação.
14
Mas, se por um lado, a contracultura de Joy (2007) precisa ser mais vivida
que construída, por outro, o imaginário de Silva (2006, p.13), significa construção, e,
portanto:
[...] se dá, essencialmente, por identificação (reconhecimento de si no
outro), apropriação (desejo de ter o outro em si) e distorção (reelaboração
do outro para si). O imaginário social estrutura-se principalmente por
contágio: aceitação do modelo do outro (lógica tribal), disseminação
(igualdade na diferença) e imitação (distinção do todo por difusão de uma
parte).
Esse sentimento de pertencer a algo, que estimula o imaginário, é o que faz o
ser se construir na cultura. Para Silva (2006, p.14), isso explica o porquê de o
imaginário não ser cultura, crença ou ideologia, mas um meio por onde é possível
partilhar “[...] uma filosofia de vida, uma linguagem, uma atmosfera, uma idéia de
mundo, uma visão das coisas, na encruzilhada do racional e do não-racional.”.
Mas qual seria a diferença seminal entre cultura e imaginário, então? Para
Maffesoli (2001), a cultura é mais ampla que o imaginário, embora aquela, em seu
sentido antropológico, carregue uma parte dessa. E o mesmo ocorre, em termos
filosóficos, com o imaginário, que não se reduz a cultura mesmo que leve consigo
partes da mesma:
A cultura é um conjunto de elementos e de fenômenos passíveis de
descrição. O imaginário tem, além disso, algo de imponderável. É o estado
de espírito que caracteriza um povo. Não se trata de algo simplesmente
racional, sociológico ou psicológico, pois carrega também algo de
imponderável, um certo mistério da criação ou da transfiguração.
(MAFFESOLI, 2001, p.75).
E, assim como estamos observando a contracultura, sob dois pontos de vista,
amplo como conceito e delimitado como período, vale a pena fazer um parênteses
para reforçar que a cultura também apresenta essas duas facetas. Para Maffesoli
(2001), pode-se buscar um sentido específico, preciso do termo: teatro, literatura,
música. Ou então, ampliar a observação e mergulhar no sentido antropológico e ver
a cultura como os fatos da vida cotidiana, as formas de organização de uma
sociedade, os costumes, as maneiras de se vestirem, entre outros.
Para ilustrar sua tese, Maffesoli (2001, p.75) recorre a uma analogia entre a
materialidade da obra de arte como sendo a cultura e sua aura, o que a ultrapassa,
representando o imaginário:
15
Esta é a ideia fundamental de Durand
3
: nada se pode compreender da
cultura caso não se aceite que existe uma espécie de “algo mais”, uma
ultrapassagem, uma superação da cultura. Esse algo mais é o que se tenta
captar por meio da noção de imaginário.
Sendo assim, poderíamos arriscar e inferir que o imaginário se aproxima,
conceitualmente, muito mais da contracultura que da cultura, seja essa observada
em seu sentido restrito ou amplo, uma vez que “[...] o imaginário é uma força social
de ordem espiritual, uma construção mental, que se mantém ambígua, perceptível,
mas não quantificável” (MAFFESOLI, 2001, p.75).
Por outro lado, o autor assume que limitar o imaginário a uma posição, o faz
perder justamente sua autonomia:
O imaginário, certamente, atua nos processos revolucionários, mas não se
pode dizer que essa seja a sua prioridade, pois o imaginário opera em
qualquer situação, contra ou a favor das revoluções. Há imaginário também
na contra-revolução. Fazer do imaginário uma instância necessariamente
revolucionária significa dar-lhe um estatuto que, por mais nobre, o limita.
Há, mais uma vez, rigidez nessa apropriação (MAFFESOLI, 2001, p.80).
Mesmo que seja complexo definir o imaginário, bem como classificá-lo, por
correr o risco de torná-lo restrito ou engessado, o que precisamos manter em mente
para seguirmos essa viagem é que ele passeia tranquilamente entre o racional e
tudo aquilo que fica “do outro lado” como “o onírico, o lúdico, a fantasia, o
imaginativo, o afetivo, o não-racional, o irracional, os sonhos, enfim, as construções
mentais potencializadoras das chamadas práticas”. (MAFFESOLI, 2001, p. 76).
Nesse caso, se pensarmos em uma “prática da contracultura” em forma de
ideologia, estaremos falando do imaginário como um elemento essencial, natural,
inevitável, isso porque, segundo Maffesoli (2001, p.78):
O imaginário é também a aura de uma ideologia, pois, além do racional que
a compõe, envolve uma sensibilidade, o sentimento, o afetivo. Em geral,
quem adere a uma ideologia imagina fazê-lo por razões necessárias e
suficientes, não percebendo o quanto entra na sua adesão outro
componente, que chamarei de não-racional: o desejo de estar junto, o
lúdico, o afetivo, o laço social, etc. O imaginário é, ao mesmo tempo,
impalpável e real.
E é através das ideias, tanto de Maffesoli (2001) quanto de Silva (2006), que
mais adiante perceberemos a encruzilhada na história, ou no imaginário, da
3
Ver mais em: DURAND, 2001.
16
contracultura entre ser um movimento contestatório e um paradoxo de um período,
os anos 60. Até porque, desde então, a palavra e seu conceito circulam na “memória
coletiva” com uma força e repetição quase padrão para a biografia do mundo. De
livros didáticos a pesquisas científicas: tecnocracia, pós-guerra, american way of life,
hippie, beatnik, sexo, drogas e rock’n’roll seriam boas palavras-chave para ilustrar o
que estamos convidando o leitor a imaginar, relembrar do contexto, ao menos por
agora.
Percebemos como é fácil fazer associações? Especialmente para os que não
faltaram a esse capítulo da aula de História nos tempos de escola. Muito
provavelmente, essas palavras estejam tão fortemente incrustadas, não
necessariamente por crença, mas por repetição, uma vez que, ainda de acordo com
Silva (2006, p.49), os imaginários são diferentes das crenças: “não respondem a
faltas ou carências. São cumulativos, espontâneos, gratuitos”.
Chegamos, por fim, ao que nos atrevemos a definir como o imaginário
contracultural de Pereira (1983, p.20), no qual resume o embate conceitual que sofre
a contracultura discutida neste trabalho, entre o concreto difundido na memória
coletiva e o aspecto geral do termo, que pode se reinventar com o tempo:
De um lado, o termo contracultura pode se referir ao conjunto de rebelião da
juventude [...] que marcaram os anos 60: o movimento hippie, a música
rock, uma certa movimentação nas universidades, viagens de mochila,
drogas, orientalismo e assim por diante. [...] Trata-se, então, de um
fenômeno datado e situado historicamente. [...] De outro lado, o mesmo
termo pode também se referir a alguma coisa mais geral, mais abstrata, um
certo espírito, um certo modo de contestação, de enfrentamento diante da
ordem vigente, de caráter profundamente radical e bastante estranho às
formas mais tradicionais de oposição a esta mesmo ordem dominante. [...]
Uma contracultura, entendida assim, reaparece de tempos em tempos.
Significa dizer que, se olharmos para o passado (presente ou futuro),
poderemos encontrar eventos que superam os limites imaginários contraculturais
que alimentam, por sua vez, o imaginário dos anos 60. Como já assinalado, a
contracultura é movimento, constante transformação.
Em termos de passado, a doutora em sociologia Irene Cardoso (2005, p. 93)
ressalta que se construiu, sobretudo, um mito a respeito do termo:
As mudanças decorrentes do movimento histórico de uma geração – de
amplitude internacional, mas com características particulares nos seus
diversos contextos –, ao se congelar em uma unidade imaginária, “geração
anos 60” ou “geração 68”, preservam o que seria seu menor denominador
17
comum, ao mesmo tempo em que perdem sua historicidade. Esse processo
constrói a identidade heroica de uma geração, cujo peso para as gerações
posteriores tem sido considerável, senão desmedido.
E é justamente nessa identidade heroica que vamos nos aprofundar nas
próximas páginas, observando a construção do mito da contracultura, tanto como
termo amplo, quanto como período e movimento específico, que deixou uma
herança, seja ela cultural ou, pelo menos, imaginária, como também antecipa
Cardoso (2005, p.103):
A construção do mito obscurece os traços das experiências de revolta e
transforma em identidade o que foi pluralidade e movimento de
desidentificação. Desse modo, é construída a figuração identitária da
geração dos anos de 1960 (“a geração 68”), a caricatura, cujos traçados
expressam a simplificação do que veio sendo assimilado e normalizado. A
identificação com o mito tem se manifestado episodicamente, em alguns
momentos com maior visibilidade, permitindo a percepção de um
aprisionamento das gerações mais jovens pela imagem da geração anterior.
Tanto é que mesmo os eventos contemporâneos, por mais que possuam
características próprias e únicas, tenham sido originados de “matérias-primas”
diferentes, ainda podem carregar tons e interpretações do passado se carregarem
traços contraculturais. Podem ser taxados de “novo Woodstock”, assim como o
objeto de estudo específico deste trabalho, o Burning Man. Um
evento/festival/cidade temporária de artes e livre expressão que ocorre anualmente
no deserto de Nevada, baseado em 10 mandamentos de sobrevivência e
convivência, que, justamente por isso, muitas vezes é citado como contracultural
(aos 60’s) pelos meios de comunicação.
Vemos no termo “mito”, portanto, um possível ponto de partida para a futura
análise. Antes disso, vamos buscar as impressões da contracultura na história ao
longo dos anos para compreender essa fixação de mitos.
2.2 ENTRE MITOS E OS ANOS 60
Se, para Nietzsche, o mito cria sentimentos de comunhão espiritual e a
história amortece tais sentimentos, para Goffman e Joy (2007, p.23) não é diferente,
“o mito é tão importante para os contraculturistas quanto o fato histórico, e talvez
mais pungente. Vanguarda por natureza, as contraculturas em sua maioria
incorporam o imaginário e o ideal, bem como o real”.
18
O não uso do dinheiro, a vida em comunidade, a sustentabilidade, o
surrealismo e muito mais, e tudo isso, transformado em mito, alimentando
imaginários. Aliás, seria esse imaginário que torna o Burning Man um grande
exemplo contracultural contemporâneo? Eis o que buscamos compreender, revelar
ou negar ao final deste trabalho.
Goffman e Joy (2007, p.23) explicam que, salvo poucas exceções, “as
contraculturas foram episódios históricos inspirados, otimistas, talvez mesmo
míticos”. Sendo assim, os autores ainda afirmam que:
Sempre que pessoas corajosa e apaixonadamente adotam comportamentos
desafiadores que buscam libertar os humanos de limitações opressivas (ou
limitações percebidas como sendo opressivas), certamente pode-se esperar
excitação, conflito, escândalo – e, portanto, histórias cativantes.
E isso nos soa muito a motivação, razão de ser do Burning Man. Sendo
assim, já é possível perceber que analisar o fator mítico da contracultura e não só
observá-la como um episódio característico dos anos 60 se faz indispensável. Vale
ressaltar a diferença conceitual entre a contracultura ser transformada em mito e os
personagens míticos considerados contraculturais, os quais observaremos daqui
para frente.
Para tanto, voltemos aos, quem sabe, mitos precursores da contracultura.
Para Goffman e Joy (2007, p.24), Prometeu e Abraão são dois dos mitos mais
claramente contraculturais. O primeiro, que aqui será comentado, é pura ficção, já
que é parte do panteão dos deuses gregos. Segundo o resumo dos autores,
autointitulado “reducionista”, esta é a história do deus grego Prometeu, comandado
por Zeus, que fazia sacrifício com animais:
Certo dia, durante um sacrifício, ele fala de forma temerária com Zeus. Ele
corta um touro e o divide em duas partes: uma contendo a cerne e os
intestinos, embrulhado na pele; e a outra consistindo apenas de ossos e
gordura. Prometeu pede a Zeus que escolha sua parte; o restante deverá
ser dado ao homem. Zeus pega os ossos e a gordura, o que o faz sentir
raiva de Prometeu e da humanidade. Zeus pune os mortais tomando deles
o dom do fogo. Prometeu o rouba de volta. Então, Prometeu – que tem o
dom de ver o futuro – é ainda mais temerário com o grande deus Zeus,
prevendo que um dos filhos de Zeus irá um dia derrubá-lo do trono, mas
recusando-se a dizer qual deles. Zeus, furioso, pune Prometeu amarrando-o
com correntes de aço a uma rocha no monte Cáucaso. Lá, todos os dias,
por toda a eternidade, uma águia bica e come o fígado de Prometeu. E toda
noite o fígado imortal do deus Prometeu se regenera, de modo que ele
possa ser torturado novamente no dia seguinte.
19
Goffman e Joy (2007) ainda buscam nas obras do escritor épico Ésquilo a
construção desse mito. Por exemplo, entre os quatro épicos sobre Prometeu, o
único a sobreviver foi ‘Prometeu acorrentado’, onde fica claro que esse deus deu à
humanidade a arquitetura, o calendário, a matemática, a escrita, o transporte e a
medicina. Ou seja, para os autores, o Prometeu de Ésquilo se trata de um orgulhoso
gênio tecnológico e científico, e, portanto, não é de se admirar que Prometeu seja
adotado pelos hackers contemporâneos como ícone “não se enganam quando vêem
o roubo do fogo dos deuses por Prometeu como uma metáfora para a tecnologia.”
(GOFFMAN e JOY, 2007, p.25).
Se Prometeu não era um tipo bem visto para os antigos gregos, os autores
explicam que esse deus serviu e serve de inspiração não só para hackers do século
XXI, mas para contraculturistas e artistas desde que os românticos o trataram como
celebridade no século XIX:
[...] para os gregos, essa história era uma alerta. Húbris, ou soberba, era o
seu maior pecado, e Prometeu era o seu maior pecador. Como aconteceu
mais tarde com muitos seguidores do cristianismo, a húbris científica era
vista como um atravessar de fronteiras que perturbava a ordem divina. De
fato, os gregos não desenvolveram plenamente suas ciências técnicas por
causa do medo que tinham da húbris (GOFFMAN e JOY, 2007, p.26).
Esse “amor” por Prometeu, que começou no início do século XIX, pode ser
explicado pelos mesmos autores através da obra de Percy Shelley (1980) em
‘Prometheus Unbound’, em que “Shelley completou as partes que faltavam da
história de Ésquilo, libertando o deus grego de seu sofrimento eterno e dando a ele o
posto de herói da época pós-iluminismo.” (GOFFMAN e JOY, 2007, p.26). Quem
também salienta esse trabalho, ainda que sob uma ótica antagônica, é Theodore
Roszak, que define ‘Prometheus Unbound’ como “uma canção das alturas, uma
vertiginosa rapsódia que propõe a superação e a transcendência de todos os limites”
(ROSZAK, 1969, apud GOFFMAN e JOY, 2007, p.26). Isso é, Roszak, sendo um
contraculturista, deixa claro que faz parte da facção antiprometeica.
Ainda de acordo com Goffman e Joy (2007), Roger Shattuck (1994), em sua
obra ‘Forbidden Knwoledge: From Prometheus to Pornography’:
[...] considera certa literatura [Prometheus Unbound] responsável pela
leviandade arrogante do homem, incluindo Prometeu de Shelley, Fausto de
Goethe, Ulisses de Dantes, o Don Juan de Byron, o Dom Quixote de
20
Cervantes e até mesmo o glamorizado Satã do bom cristão Milton em
‘Paraíso Perdido’ (apud GOFFMAN e JOY, 2007, p.29, Grifo nosso).
Shattuck busca um tipo diferente de herói, baseando-se na humildade e na
serenidade, na ideia de conhecer e aceitar o destino. Sócrates, Buda, Jesus, São
Francisco, Thoreau, Tolstoi, Gandhi e Martin Luther King seriam os seus ícones
contraculturistas, como explicam Goffman e Joy (2007, p.29):
[...] Shattuck apresenta uma impressionante lista de pensadores alternativos
– poder-se-ia mesmo chamá-la de uma lista de contraculturista – em
oposição do impulso prometeico. Não podemos evitar uma conclusão
impressionante: há contraculturas antiprometeicas e pró-prometeicas. De
fato, a divisão acerca do impulso prometeica pode ser utilizada para
caracterizar a principal oposição entre as maiores tendências contraculturais
de hoje.
Goffman e Joy (2007, p.29) também apontam que entre os contraculturistas
antiprometeicos estão os “hippies que sonham com comunidades rurais, adeptos
introspectivos de religiões new age orientais ou de influencia oriental, certos tipos de
feministas, certos tipos de anarquistas e certos tipos de ambientalistas”. Ou seja,
aquela ideia que permeia o imaginário quando se fala na contracultura dos anos 60,
a qual tem como um dos principais representantes, ainda que mais moderado, o já
citado teórico Theodore Roszak, membro de uma confraria de críticos contraculturais
da tecnocultura.
E foi em 1969, em seu livro ‘The Making of a Counter Culture’4
que Roszak
abordou o tema da contracultura, no momento em que ela acontecia. O autor trouxe
à luz as origens do movimento, seus paradoxos e pontos fracos, e ainda assim
deixou claro a importância e legitimidade do mesmo como tentativa de
reestruturação do modelo vigente da sociedade, mergulhada na tecnocracia e nos
padrões, sobretudo, técnicos e de vida do “american way of life”.
Essa comparação, entre prometeicos e antiprometeicos, aqui se faz, porque,
assim como o evento Burning Man, que se utiliza do transcendental e mítico para
seduzir, agregar e gerar um cultura (não necessariamente ou propositalmente
contracultural ou intencional) como veremos no último capítulo, também se trata de
um evento de raiz norte-americana, assim como a contracultura a qual Roszak
(1972) se refere, dentro de um tempo e um espaço.
4
Em 1972, a edição traduzida chegou ao Brasil, e é dessa que nos utilizaremos para embasar a presente
tese. ROSZAK, 1972.
21
Foi Roszak (1972, p.54), inclusive, quem popularizou o termo contracultura na
época:
Na verdade, quase não parece exagero chamar de ‘contracultura’ aquele
fenômeno que estamos vendo surgir entre os jovens. Ou seja, uma cultura
tão radicalmente dissociada dos pressupostos básicos de nossa sociedade
que muitas pessoas nem sequer a consideram uma cultura, e sim uma
invasão bárbara de aspecto alarmante.
Mas quem explica, com olhar contemporâneo, os “invadidos e os invasores”
que marcam o movimento irrompido com força nos Estados Unidos, embora esse
tenha se espalhado, ainda que não homogeneamente, pelo mundo é a autora
Cardoso (2005, p. 98):
Os movimentos contraculturais [...] direcionaram suas formas de expressão
para a política, as artes (na poesia, na música, no cinema, nas artes
plásticas), a educação, as relações intersubjetivas (na família, no amor, no
sexo, na comunidade) e para o cotidiano como contestação aos efeitos
produzidos pela sociedade industrial avançada, pela “tecnocracia”. Na sua
forma “organizacional” mais desenvolvida, caracterizada pelos processos de
racionalização em grande escala, pela eficiência, pela modernização, pelo
planejamento, a sociedade norte-americana (a que melhor realizou esse
modelo), instaurando a era da “engenharia social”, ampliava a
administração para além do núcleo econômico-industrial. O modo de vida, o
lazer, a educação, a política, a cultura como um todo tornavam-se
administráveis e administrados.
Um sistema tecnocrático que invade, com a influência normativa, segundo
Roszak, até mesmo os aspectos supostamente pessoais da vida, como
comportamento sexual, educação de filhos, saúde mental, recreação, etc. Nesse
caso, “o cidadão, confrontado por uma formidável complexidade, vê-se na
necessidade de transferir todas as questões a peritos. Na realidade, agir de outra
forma seria uma violação da razão” (CARDOSO, 2005, p. 20).
Agir de outra forma é, portanto, contracultural. Roszak (1972, p.10) expõe o
principal questionamento seu e de todos aqueles que não eram a favor da sociedade
fundamentalmente tecnocrática:
Se em sua grandiosa marcha pela História a tecnocracia está realmente
buscando a consecução de valores universalmente ratificados – A Procura
da Verdade, A Conquista da Natureza, A Sociedade da Abundância, O
Lazer Criativo, A Vida Ajustada – nesse caso por que não nos acomodar e
desfrutar a viagem?
22
A resposta talvez seja explicada segundo Pereira (1983, p.26), uma vez que,
ao menos no que se refere aos Estados Unidos, a grande novidade do período pós-
guerra era um país que:
começava a se constituir então no primeiro grande exemplo de uma
sociedade afluente, tecnocrática, o que se materializava, por exemplo, na
afirmação do ‘american way of life’, um estilo de vida exportado com
razoável sucesso para o mundo inteiro. (Grifo nosso).
Como se isso fosse uma vitória da sociedade. Não para seus opositores,
evidentemente.
Ao invés do “se acomodar e aproveitar a viagem”, proposto por Roszak
(1972), o diagnóstico revelava um país rumo à padronização dos costumes, à
transformação dos indivíduos em simples consumidores ou simplesmente um retrato
da sociedade de consumo a ser reproduzido, vivido e exportado.
Importante ressaltar também que, Roszak (1972), evidentemente na defesa
da rebelião, via a mistura, a aliança da mídia com a contracultura com maus olhos.
De certa forma vai ao encontro da ideia de mito, caricatura, já sublinhada por
Cardoso (2005), quando afirma que a mídia ajuda na perversão das contraculturas:
Os chamados beatniks e hippies, sejam o que forem, nada têm a ver com
aquilo que os transformaram o Time, Esquire, Cheeta, a televisão, as
comédias da Brodway e Hollywood. A imprensa decidiu que a rebelião
‘vende’ bem. Mas o máximo que consegue fazer é isolar as aberrações
mais insólitas e, consequentemente, atrair para o movimento muitos
poseurs extrovertidos... O problema é novo e difícil: uma espécie de cínica
asfixia da rebeldia através da publicidade contínua, e começa a parecer que
para o Sistema esta arma é muito mais eficaz do que a supressão pura e
simples (ROSZAK, 1972, p.47).
E, se, por um lado temos a tecnocracia como um “sistema socioeconômico
tão bem organizado que se acha inescapavelmente endividado com a
especialização” (ROSZAK, 1972, p.31), produto de um industrialismo maduro e em
aceleração, de outro temos a contracultura como um movimento não disciplinado,
assim descrito por Roszak (1972, p.60):
Ela tem algo da natureza de uma cruzada medieval: uma procissão
variegada constantemente em fluxo, adquirindo e perdendo membros
durante todo o percurso da marcha. Com bastante frequência, encontra sua
própria identidade num símbolo nebuloso ou numa canção, que pouco mais
parecem proclamar além de que ‘somos especiais... somos diferentes...
estamos fugindo das velhas corrupções do mundo.
23
Sobre a falta de coesão e consistência da contracultura como movimento,
Roszak (1972, p.66) cita também a existência de subgrupos, que ainda que
lutassem pelo mesmo inimigo comum – a tecnocracia – geravam tensões entre si:
Por um lado, há a boemia descuidada dos beats e dos hippies, por outros, o
ativismo político exacerbado da Nova Esquerda estudantil. Não serão, na
realidade, dois fenômenos separados e antiéticos, o primeiro (remontando a
Gisnberg, Kerouac & Cia.) procurando escapar da sociedade americana, o
outros (remontando a C. Wright Mills e a remanescentes da velha esquerda
socialista) procurando infiltrar-se em nossa vida política e revolucioná-la? A
tensão que se percebe entre esses dois movimentos é bastante real. [...]
Evidentemente, há o inimigo comum contra o qual juntam forças; mas
existe, além disso, uma semelhança positiva de sensibilidade.
Nas próximas páginas, seguiremos nos aprofundando na construção do mito
contracultura e seus paradoxos. Dessa vez, através dos também mitificados e
heterogêneos grupos, como a “geração Woodstock”. Quem são eles, afinal?
2.3 A GERAÇÃO WOODSTOCK
Quem são exatamente os “contras”, aqueles que são “a cara de 68”? São eles
os jovens rebeldes da classe média, que, para Roszak (1972, p.45), estão perdidos
entre uma infância permissiva e uma idade adulta odiosamente conformista,
experimentando desesperadamente novas formas de ingressarem com dignidade
num mundo que desprezam, pedindo socorro.
Essa geração de estudantes, de acordo com autor, formada pelos
beneficiários dos hábitos educativos bastante complacentes caracterizaram a
sociedade depois da II Guerra Mundial:
Uma sociedade de lazer, com alto nível de consumo, simplesmente não
precisa de jovens trabalhadores ‘responsáveis’, rigidamente treinados. [...]
Assim os jovens são ‘estragados’, no sentido de que são levados a acreditar
que ser humano implica de alguma forma com prazer e liberdade. [...] Ao
contrário de seus pais, obrigados a se curvar diante das organizações de
que ganham seu pão, os jovens podem ser malcriados em casa sem temer
serem postos no olho da rua (ROSZAK, 1972, p.41).
E assim como afirma Cardoso (2005), foram justamente eles, os jovens
“estragados” de Roszak (1972), que questionaram os valores que sustentavam o
funcionamento do “sistema”, uma vez que estavam envolvidos pelas grandes
24
temáticas do século XX, afinal, conviviam com o abalo político, cultural e ético,
herança da geração que viveu a guerra. Ainda, conforme Cardoso (2005, p.96),
[...] esses temas foram retomados e reinterpretados a partir de experiências
políticas do pós-guerra e dos anos de 1950: a revolução socialista chinesa,
a guerra da Coréia, a guerra da Argélia, as lutas de libertação contra os
colonialismos em vários lugares, a “descoberta” do totalitarismo sob o
socialismo, a partir dos fatos que vieram à luz sobre o stalinismo, e, no final
dos anos de 1950, início da década seguinte, as lutas de libertação na
América Latina, em especial a experiência de Cuba e da guerrilha.
O que realmente conectava o grande grupo nada homogêneo de quem “fez”
essa contracultura foi o fator “transformação social”. Seja sob a ótica dos anos 50,
seja pela releitura feita desse momento e adaptada aos novos temas nos anos 60,
foi a “experiência da revolta” o que os alinhou conceitualmente. E é assim que
Cardoso (2005, p.96) define o momento histórico da década de 60, um movimento
de negação e de abertura, que interpreta o passado e questiona a situação
presente:
Atravessar os limites estabelecidos era negar o poder que faz a guerra, que
extermina populações, que tortura, que produz o racismo e o sustenta, que
se transfigura em terror de Estado sob o capitalismo, mas também sob o
socialismo real. Negar o poder que é violência, que petrifica as instituições.
Como movimento, era também projeção de um dado futuro (um novo
horizonte, novos limites), que não se fixava em uma recusa, mas projetava
ideais de liberdade.
Ou seja, entre as lutas que coexistiam no período, levantadas pela autora5
fossem elas de libertação, nacionalistas, socialistas, revolucionárias ou
antiautoritárias, bem como suas diferentes formas de expressão e ataque, o
denominador comum é, de fato, a transformação social já citada. Para Cardoso
(2005, p.97), “as experiências de revolta também tiveram como ideal ‘mudar a vida’,
tema característico dessa década, presente, sobretudo, mas não exclusivamente,
nos movimentos contraculturais”.
Se voltarmos a pensar na contracultura como consequência de uma herança
para observar o presente, que nesse caso é passado, então podemos pegar como
exemplo os beatniks e os hippies. Ambos muito vivos no imaginário contemporâneo,
entre os tantos outros grupos diferentes, porém não antagônicos, contra um inimigo
5
Para diferenças entre lutas revolucionárias, de libertação, nacionalistas, socialistas, antiautoritárias ver
Cardoso (2005, p.97).
25
comum. Segundo Pereira (1983, p.34):
Foram os beatniks um dos grupos de destaque a encarnar, de modo
especialmente vigoroso, a rebeldia marginalizada nos anos 50 nos Estados
Unidos. Já fascinados pelas doutrinas orientais, ponto fundamental entre
eles e os alegres hippies dos anos 60, rejeitavam o caminho do
intelectualismo, devotando-se a uma vida marcadamente sensorial e
deixando-se arrastar por sua ludicidade e desprezo pelas satisfações de
uma carreira e de um rendimento regula.
De certa forma, assim como Cardoso (2005) compreende a releitura dos anos
50 feita pela geração dos anos 60, já não é novidade que os hippies tenham
absorvido algo de fundamental nos beatniks. Pereira (1983) usa como metáfora o
“cair fora dessa camisa de força ocidental” dos hippies, que significa:
[...] ganhar um outro lugar, fugindo então simultaneamente ao cerco do
espaço físico, institucional e lógico deste mundo ocidental. É por aí que se
pode entender melhor os três grandes eixos de movimentação que
marcavam sua rebelião – da cidade, a retirada do campo; da família para a
vida em comunidade; e do racionalismo cientificista para os mistérios e
escobertas do misticismo e do psicodelismo das drogas (PEREIRA, 1983,
p.82).
E por falar em psicodelia e drogas: qual a primeira coisa que vem à cabeça?
Woodstock, talvez? Como falar de contracultura sem citar Woodstock? No livro de
Pete Fornatale (2009), ‘Woodstock: Quarenta anos depois, o festival dia a dia, show
a show, contado por quem esteve lá’, se reúnem inúmeros relatos sobre quem,
teoricamente, foi e vivenciou o Woodstock. Algumas entre as mais de cerca de 500
mil pessoas, que entre os dias de 15 e 17 de agosto de 1969, ocuparam a fazenda
de 240 hectares de Max Yasgur, em Bethel, Nova York. Nas primeiras páginas da
obra, inclusive, o autor explica o risco de se “comprar” as “verdades” do livro:
Esperamos que ao oferecer a mais ampla variedade de depoimentos em
primeira pessoa sobre aquele fim de semana histórico, além dos que foram
peneirados através da névoa do tempo durante essas quatro rápidas
décadas, você possa ter um testemunho bastante confiável para formar
suas próprias conclusões a respeito do Woodstock. Mas também fazemos o
seguinte alerta. Pegue as quatrocentas mil versões de verdade do número
estimado de pessoas que estiveram lá, e então some aos relatos dos que
juram que estiveram lá, mas não estiveram. Finalmente, inclua na equação
as centenas de milhões que viveram o festival indiretamente através de
filmes, gravações, documentários, livros, artigos e narrativas orais que
rodaram pelo mundo nestes quarenta anos. Junte os fatos quantitativos
sobre o evento aos mitos e às lendas e você tem uma boa ideia de quão
camaleônica é qualquer coisa que se refira a Woodstock (FORNATALE,
2009, p.10).
26
Não se trata de uma “confusão causada” por aquele sentimento de
pertencimento, de identificação: o imaginário, que carrega parte da cultura e vice-
versa, como apresentamos anteriormente através das lentes de Maffesoli (2001)?
Sejam os relatos, os livros, documentários e tudo que Fornatale (2009) citou em sua
obra, isso não faz parte do elemento “cumulativo” que constrói o imaginário? Sim.
Entre os muitos lados, e, porque não, imaginários e imaginados, abordados
pela obra de Fornatale (2009, p.10), temos o depoimento de Graham Nash, membro
fundador do grupo Crosby, Stills, Nash, bem como artista solo: “A lenda e o mito do
Woodstok se tornaram maior que a sua realidade”. O que vai ao encontro do que
acredita Fornatale (2009), já que para ele a construção do mito começou logo após
uma semana do festival. Para ilustrar sua tese, Fornatale (2009, p.10-11) cita um
trecho de uma matéria da Revista Time do dia 29 de agosto de 1969:
A confusa história da humanidade está cheia de transformações óbvias e
eventos significativos: batalhas vencidas, tratados assinados, governantes
eleitos ou depostos, e agora, aparentemente, planetas conquistados.
Igualmente importantes são os de grandes e repentinos movimentos
populares que afetam mentes e valores de uma geração ou mais, nem
todos amarrados de uma maneira ordenada a um tempo ou espaço.
Olhando para os Estados Unidos dos anos 60, historiadores futuros podem
muito bem procurar o significado de tal movimento. [...]
E aquilo que nasceu como um empreendimento com intenção comercial -
como explica Stan Goldstein citado em Fornatale (2009, p.47), coordenador de
várias áreas do Woodstock, pois nunca foi cogitado ser um festival gratuito, pelo
contrário, tratava-se de um evento para se explorar todas as maneiras possíveis de
lucro - virou o Woodstock de 1969 e o de quarenta anos depois: um sem fim de
imaginários.
Entre eles, uma passagem da obra de Fornatale (2009, p.41), que enfatiza o
Woodstock como um “evento de proporções bíblicas”:
Na tumultuada época do final dos anos 60, milhões de jovens estavam
criando um novo meio de vida e estes três dias de paz e música forneceram
o microcosmo perfeito para colocar em ação seus ideais culturais, políticos
e sociais. A busca espiritual de meio milhão de jovens os trouxe a
Woodstock.
Essa busca espiritual muito tinha a ver com o crescente abismo do país
potencializado pela Guerra no Vietnã, como assinala Fornatale (2009, p.64):
27
Ao mesmo tempo em que esta geração estava abraçando sexo, drogas e
rock’n’roll, aprendia a suportar o choque e o trauma dos assassinatos, os
distúrbios raciais e a brutalidade policial. Eram essas as nuvens que
pairavam sobre o Woodstock, e nada tinham a ver com o tempo.
Vale ressaltar que o desgosto contra a Guerra no Vietnã significava o rechaço
pelas consequências do envio dos soldados norte-americanos munidos de
armamentos de última geração ao Vietnã Sul para lutar contra o Norte desse país.
Retomando brevemente a história, de acordo com Valer (2007, p.170), a
Indochina (Laos, Camboja e Vietnã), ex-colônias francesas, foi invadida pelo Japão
durante a Segunda Guerra Mundial, mas em 1945 declarou independência, que não
foi reconhecida pela França, que, por sua vez, voltou a dominar a região.
Em 1954, através da Conferência de Genebra a França reconheceu a
soberania dos países e retirou-se da região. Entretanto, se Camboja e Laos
puderam manter a integridade do território, o Vietnã teve de ser dividido entre Norte
(socialista) e Sul (capitalista). Sendo assim, o país deveria reunificar-se em 1956,
quando ocorreriam novas eleições e a população escolheria a forma de governo e o
sistema econômico a ser adotado.
O que ocorreu, porém, foi uma guerra civil de 15 anos, assim como explica
Valer (2007, p.170):
Devido à Guerra Fria, os EUA apoiaram o Vietnã do Sul, através de uma
ditadura cruel que fez milhares de vítimas, pois o medo norte-americano era
de que este país se tornasse socialista, o que poderia gerar o chamado
“efeito dominó”, ou seja, provocar outras revoluções socialistas em toda a
região asiática. Foi Kennedy
6
quem iniciou o envio de tropas para o Vietnã;
eram cerca de 10 mil soldados chamados por ele de ‘assessores militares’.
Em 1965, cerca de dois anos após a morte do presidente Kennedy, quem
estava na presidência dos EUA era o impopular Lyndon Johnson, que “continuou e
intensificou a interferência na Guerra do Vietnã”. (VALER, 2007, p.186) Talvez aí
esteja o grande motivo pelo qual não se reelegeu. Somente em 1973, quando
assinado o Acordo de Paris é que os EUA retiraram as tropas: “[...] seguindo a
política de ‘vietnamização’ da guerra, segundo a qual os EUA retirariam suas tropas
da guerra, mas continuariam a mandar armamentos e apoio tecnológico para o
Vietnã Sul”. (VALER, 2007, p.171). Em 1975, o Norte conquista a região Sul,
unificando a nação sob a égide do socialismo.
6
John Fitzgerald Kennedy, presidente dos EUA entre 1961 e 1963.
28
Ao final, a revolta, indigestão, ou a “nuvem que pairava sobre o Woodstock”
provavelmente se dava, segundo dados da Folha Online, por causa dos 8.722.000
americanos participantes da guerra, dentre eles, 58.193 mortos, e pela baixa de
mais de 1 milhão de vietnamitas:
Em 15 anos de guerra, foram jogadas sobre o Vietnã mais toneladas de
bombas do que todas as lançadas durante a 2ª Guerra Mundial, além de
experiências com armas químicas e bacteriológicas. Os Estados Unidos
gastaram mais de 150 bilhões de dólares, destruíram cerca de 70% de
todos os povoados do norte e inutilizaram mais de 10 milhões de hectares
de terra (COMPARE, 2001).
Como já afirmamos anteriormente, para Cardoso (2005), não se trata de um
grupo homogêneo, nem inteiramente originário dos anos 60, embora a experiência
da revolta tenha marcado essa geração, que tem como traço a transgressão dos
valores estabelecidos:
A noção de traço, entendida na acepção de uma marca distintiva, permite, a
partir da identificação de sua presença ou ausência, explicitar momentos em
que a geração dos anos de 1960 poderia ser caracterizada como uma
experiência de revolta, assim como outros em que essa experiência estaria
ausente. A possibilidade dessa percepção é importante na medida em que
permite questionar o mito que foi sendo construído sobre essa geração,
quando sua imagem se congela na forma de uma unidade imaginária.
(CARDOSO, 2005, p.99).
Basta retornarmos aos depoimentos sobre o Woodstock para temos um
significativo exemplo da “unidade imaginária” a que Cardoso (2005) se refere. Para
Dale Bell, produtor associado ao filme ‘Woodstock’, citado por Fornatale (2009,
p.155):
O festival em si foi uma viagem de ‘volta ao jardim’. Estava inerente nas
letras. Falava-se em voltar ao verde, retornar ao meio ambiente, voltar ao
jardim. Escapar da cidade, da guerra, se reunir. Viver juntos como uma
família. Um tipo de casamento aberto que prevalecia no final dos anos 60 e
começo dos 70.
E nesse casamento também estava presente a tríade do
mito/imaginários/período: sexo, drogas e rock’n’roll. Não necessariamente nessa
ordem. Tomemos como exemplo a maconha. Para Fornatale (2009, p.89), essa
droga “[...] foi facilmente injetada na corrente sanguínea da Nação Woodstock.”. Se
muito antes daquele final de semana já era a preferência dos músicos de jazz e
29
blues do começo do século XX, ganhou ainda mais importância após o festival.
Por fim, Fornatale (2009, p.167), através de uma personalidade do rock, resume
em cinco palavras sua percepção do período: “Janis [Joplin] estava no epicentro de um
pentagrama onde cinco forças muito poderosas do final dos anos 60 convergiam:
bebidas, droga, música, sexo e talento”. Sem deixar de arrematar com a declaração de
Joshua White, um dos artistas mais importantes do black folk e blues norte-americano,
bem como ativista social: “Por causa do Woodstock, e por muitos anos, depois, não se
podia apresentar algo que não tivesse um forte tema pacifista, de universalidade e de
amor. As pessoas só estão compreendendo isso agora” (FORNATALE, 2009, p.45).
Vale lembrar também que não foi somente o Woodstock quem deixou marcas
profundas na época. Três meses após os “3 dias de paz e amor”, acontecia o festival
de Alamont, num autódromo nos arredores de Oakland. Groppo (2001) explica que
incidentes de violência por parte dos seguranças e também do público tornaram o
evento desastroso, demonstrando que mesmo dentro dos sonhos hippies, violência
e agressividade faziam uma secreta morada:
Responsável pela segurança do festival, a gang dos Hells Angels apenas
ajudou a fazer confusão, atacando em pleno palco o cantor do grupo de
rock Jefferson Airplane. Quando os Rolling Stones, a atração esperada por
todos, começou a tocar, os Hells Angels ajudaram a patrocinar um empurra-
empurra, distribuindo golpes nos que estavam mais à frente. Talvez para se
defender, um jovem hippie e negro de 18 anos sacou uma arma e os
motoqueiros reagiram matando-o a facadas, golpes com barras e pontapés.
O palco foi invadido e o show dos Rolling Stones foi interrompido.
(GROPPO, 2001, p.3).
A contradição gerada pelos fatos, para Groppo (2001, p.5), na verdade revela
o que o próprio capitalismo exigia das classes médias:
consumo em vez de sacrifícios puritanos, satisfação imediata das
necessidades em vez de gratificações póstumas, aquisição de bens de
consumo instantâneos em vez de bens duráveis, estilos de vida mais livres
em vez de seriedade e sobriedade.
É por isso também que Cardoso (2005) chama atenção em sua tese ao risco
de tornar o movimento caricatural no momento em que se expõem seus grandes
traços. Nesse caso, a geração “passa a ser tratada pelos seus “herdeiros” como
uma categoria vazia, sem historicidade”. Por outro lado, a autora também afirma que
o que se tem escrito sobre a geração dos anos 60 aponta a mutação cultural
30
produzida pelos diversos grupos naquele momento, e, ao mesmo tempo, acentua os
efeitos das mudanças sobre as gerações que seguem:
Essas gerações seriam herdeiras das mudanças advindas com os
movimentos sociais daqueles anos, que prosseguem, em parte, nos anos
de 1970: as transformações da imagem da mulher, com o feminismo; a
liberação sexual; as modificações na estrutura da família; a entronização do
modo jovem de ser como estilo de vida; a flexibilização das hierarquias e da
autoridade; a construção de novas relações entre o adulto e o jovem e o
adulto e a criança; a criação de um novo imaginário da fraternidade; a
introdução do “novo” na política; a emergência das questões ecológicas
como se fossem também políticas, para ficar com algumas das referências
mais destacadas (CARDOSO, 2005, p.97).
Depois de passear pelos conceitos, agentes e imaginários da contracultura
nos anos 60, podemos seguir adiante em busca da definição ou de elementos da
contracultura contemporânea. Como observado pelo pesquisador Groppo (2001,
p.1), se por um lado autores consideram a contracultura como um movimento juvenil
e momentâneo gerado pelas contradições advindas da adaptação da nova
sociedade capitalista formada no pós-guerra, para outros “[...] a crise dos anos 1960
e a Contracultura foram lidos como um “momento capital da passagem do
modernismo ao pós-modernismo [...]”. É justamente sobre essa travessia que
trataremos a partir de agora.
31
3 A CONTRACULTURA PÓS-MODERNA
Para tentar classificar o Burning Man, objeto de estudo deste trabalho, como
um evento, por definição, contracultural contemporâneo precisamos entender,
primeiramente, qual o caminho percorrido pela contracultura, seja ela observada
como essência/ideologia ou como período histórico, até os dias de hoje. Para tanto,
caminharemos por este capítulo buscando responder de maneira geral às seguintes
perguntas - não necessariamente nessa ordem: que rumo deu a contracultura? O
que significa transgredir nos anos 00? Qual a cara das dessas tribos pós-modernas?
3.1 DE MAIO DE 68 AO PÓS-MODERNISMO CULTURAL
Se no capítulo anterior os holofotes estavam focados na contracultura como
período de contestação dos valores modernos, reconhecendo nos Estados Unidos o
epicentro do movimento, a partir de agora vamos nos aprofundar naquilo que, até
então, foi apenas pincelado como aperitivo: a contracultura para além das fronteiras
norte-americanas, que, por sua vez, muito pode explicar a transição da Idade
Moderna para a, conceitualmente e praticamente complexa, pós-modernidade.
Primórdios de 1968. Os “cabeludos” norte-americanos eram alvos recorrentes
dos agentes da lei, a contracultura seguia frequentemente aclamada por intelectuais,
virava produto e era afirmada pela cultura do entretenimento, tinha-se nos hippies a
ideia de futuro, ou ao menos assim eles ainda se enxergavam. Por lá, a palavra
“revolução” ganhava força, era a nova ordem. Entretanto, foi do outro lado do
Oceano que a primeira manifestação dessa nova postura eclodiu. E foi uma
surpresa.
Na França, os jovens não tinham adotado o estilo contracultural psicodélico
no mesmo grau que nos Estados Unidos e na Inglaterra, mas uma
importante subcultura de estudantes franceses estava se encaminhando
para um conjunto muito particular de memes
7
anarquistas de esquerda que
não eram diferentes da visão digger de relações espontâneas. [...] Começou
com uma tentativa da polícia de Paris de encerrar um encontro de
estudantes que planejavam protestos contra a Guerra do Vietnã
8
, sob o
7
O termo foi proposto por Richard Dawkins, em seu livro de 1976, ‘O Gene Egoísta’. Significa: unidade de
informação com capacidade de se multiplicar, através das ideias e informações que se propagam de
indivíduo para indivíduo.
8
Ver capítulo 2.3 deste trabalho.
32
pretexto de que extremistas de direita poderiam atacar a reunião
(GOFFMAN e JOY, 2007, p.312-313).
Em resumo, a atitude da polícia serviu como ímã para uma multidão de
estudantes, que lutaram, segundo Goffman e Joy (2007), tão firme e fortemente
quanto os tiras. Para os autores, era isso que os diferenciava dos jovens dos
Estados Unidos: a disposição para lutar pelos seus direitos apoiada pelo público
geral, entre eles professores, funcionários de universidades e militantes operários.
Dessa forma, as manifestações contra a repressão se tornavam constante nas ruas,
“até que, finalmente, a polícia de Paris decidiu limpar as ruas. A batalha que se
seguiu deixou centenas de feridos e a França explodiu” (GOFFMAN e JOY, 2007,
p.313).
Explodiu e consequentemente parou, pois cerca de 10 milhões de
trabalhadores entraram em greve, enquanto outros assumiram posse de suas
fábricas, derrubando a administração e pondo em prática os sonhos de comunistas
revolucionários, assim como os alunos da Universidade Sorbonne, em Paris,
também fizeram. Para Goffman e Joy (2007, p.313), todos buscavam os direitos
democráticos básicos:
Memes radicais anarquistas se espalharam quase tão rapidamente quanto a
greve. Estudantes e trabalhadores agora não queriam apenas os seus
direitos, ou um novo conjunto de benefícios e privilégios. Eles começaram a
falar de um novo tipo de sociedade. Eles queriam que o governo nacional
de Charles de Gaulle renunciasse.
Ainda que a “Revolução Francesa” de 68 tenha se dissolvido em função da
contrarrevolução dos direitistas radicais e neonazistas, assim como das concessões
como salários mais altos e outros benefícios, Goffman e Joy (2007, p.312)
relembram que “o estbilishment Francês nunca mais tentou impedir que estudantes
organizassem encontros ou manifestações legítimas”.
Por fim, trata-se de uma expressão de um momento de ruptura do sujeito
moderno defendida por alguns autores, entre eles Almeida (2007, p.9), que,
justamente por esse “descentramento”, encontra pontos de convergência entre as
amplas e complexas palavras “pós-modernidade” e “contracultura”:
Mais que um momento histórico de amplas repercussões econômicas e
sociais, o que em geral as têm singularizado é a desconstrução de
paradigmas. Chama a atenção o destaque que a dimensão cultural tem em
33
ambas. Especialmente suas consequências sobre as atitudes e os
comportamentos do homem contemporâneo. Sobre suas mentalidades.
Além disso, podemos considerar que outro laço comum entre os dois termos
são os embates conceituais entre os autores que sobre elas lançam seus discursos.
Steven Connor discute em seu livro ‘Cultura Pós-Moderna’, de 2004, os diagnósticos
disciplinares da academia a respeito do termo. Se já havia sido usado por alguns
escritores dos anos 50 e 60, foi nos anos 70 que se cristalizou como conceito,
quando apareceu nas áreas culturais, filosóficas, arquitetônicas, literárias, assim
como nos estudos sobre o cinema. A controvérsia, contudo, mostra-se na hora de
definir se “pós-modernismo” realmente engloba e unifica o contexto contemporâneo,
já que unidade, definitivamente, não combina com o pós-modernismo.
E é justamente o que Lampert (2005, p.14) resume de sua busca pelas
etapas e compreensão do termo ao longo da história:
Em face da complexidade, abrangência, ambivalência, contradições,
indefinições, pouco consenso, muitos questionamentos são suscitados em
relação a pós-modernidade: qual o significado real do termo? – a pós-
modernidade é uma mudança pragmática? – uma revolução? – uma
renovação? – uma ruptura? – uma ideologia? – uma crise da modernidade?
– uma saída da modernidade? – um período de transição? - a pós-
modernidade acabou com os dogmas do processo e do desenvolvimento? –
o pós-moderno é mais moderno que o moderno? – é antimoderno ou pré-
moderno? – é conservador? – a pós-modernidade existe? – ela tem
legitimidade? – onde e como a pós-modernidade se situa na história? Afinal,
por que tanto se fala, discursa e se escreve sobre esse fenômeno? [...]
Connor (2004, p.183), por outro lado, simplifica em duas perspectivas a
problemática pós-moderna:
[...] de um lado, de uma transformação da história por um simples ato de
vontade imaginativa, e, de outro, de uma absoluta imponderabilidade em
que tudo é imaginativamente possível, porque nada importa de fato.
Para Lampert (2005), assim como para outros autores, incluindo Connor
(2004), é evidente que não se trata de algo fácil de definir. Como saber se é uma
mudança paradigmática, um movimento cultural ou uma crítica aos tempos
modernos, visto como ataca as dicotomias criadas por esse período, como
“realidade objetiva/subjetiva, fato/imaginação, secular/sagrado, público/privado,
científico/vulgar”? (LAMPERT, 2005, p.13).
34
Ainda assim, há muitos que arriscam pincelar traços e transformar o
fenômeno em período, como se esse fosse realmente um esgotamento do mundo
moderno. Desse modo abordaremos o tema neste capítulo, uma vez que já
comparamos a contracultura (também como período histórico) com a pós-
modernidade e diagnosticamos pontos em comum em suas expressões. Portanto,
nos aproximaremos da ideia de Lampert (2005, p.18) no que toca a história do
pensamento ocidental e seus 3 metaparadigmas: o pré-moderno, o moderno e o
pós-moderno:
A pós-modernidade, a terceira e grande mudança paradigmática, que a
partir da segunda metade do século XX está vigorando, segundo Santos
Filho (1998) apresenta as seguintes características: a presença ou
necessidade de sistemas abertos; o princípio de indeterminação na ciência;
a descrença nas metanarrativas; o foco no universo; a denuncia da mídia na
representação do mundo; a explosão da informação e o concomitante
crescimento das tecnologias de informação; o capitalismo global; a
humanização do mundo em todas as dimensões; a integração entre Estado
e economia ou mercado e tendências à hegemonia do mercado; o indivíduo
humano como irônico, cínico, fragmentado, esquizofrênico; a queda do
sujeito e a nova concepção do tempo de da história; a complementaridade
entre alta e baixa cultura.
Convém, nesse momento, fechar o foco e nos concentramos na
contextualização da cultura na pós-modernidade, na relação entre as pessoas e
apontarmos para o futuro da contracultura sobre esses “novos” ou “transformados”
pilares.
Santaella (2004) retoma o agigantamento crescente dos meios de
comunicação de massa no século XX, o que também aumentou a dificuldade de
distinguir o popular, o erudito e o massivo. Nos anos 80, o consumo cultural se dá
por novas formas, essas:
[...] propiciadas pelas tecnologias do disponível e do descartável: as
fotocopiadoras, videocassetes, videoclips, videojogos, o controle remoto,
seguido pela indústria dos CDS e a TV a cabo, ou seja, tecnologias para
demandas simbólicas heterogêneas, fugazes, mas personalizadas. Junto a
isso, foi aumentando de modo muito evidente a tendência para os trânsitos
e hibridismos dos meios de comunicação entre si, criando redes de
complementaridades a que, em 1992, chamei de Cultura das Mídias [...]
quer dizer, o surgimento de processos culturais distintos da lógica que era
própria da cultura de massas (SANTAELLA, 2004, p.52).
Se por um lado a cultura de massas é essencialmente produzida para poucos
e consumida por uma massa, que por sua vez não tem poder para interferir nos
35
produtos simbólicos que consome, para Santaella (2004, p.53), a cultura das mídias
inaugurava uma dinâmica que, tecendo-se e se alastrando nas relações da mídia
entre si, começava a possibilitar aos seus consumidores a escolha entre produtos
simbólicos e alternativos.
O que também e principalmente incorpora uma nova proposta é a visão da
própria vida. Aliás, essa demanda de uma nova “mecânica” da cultura das mídias é
o reflexo disso. Maffesoli retorna neste segundo capítulo, dentro do contexto já
discutido sobre as controvérsias acadêmicas a respeito do tema, para afirmar que é
sempre bom ressaltar os traços essenciais de uma época, ainda que seja preciso
“forçar a barra um pouco, exagerando nas especificidades” (MAFFESOLI, 2012,
p.16).
Para isso, o autor especifica então um traço pós-moderno através do aspecto
experimental: “A experiência é outra forma de designar tradição. Para além do
racionalismo esclerosante, que foi marca dos tempos modernos, a ênfase é posta na
vida, fonte contínua de renovações, de dinamismo existencial” (MAFFESOLI, 2012,
p.25).
Trata-se da valorização da simplicidade do original, a da vida de todos os
dias. Esse ressurgimento da vida quotidiana, por sinal, é, segundo autor, a primeira
característica da pós-modernidade.
Maffesoli caracteriza o quotidiano então como uma forma de volta ao
paganismo, “ao paganus, camponês ligado a essa terra aqui, que aproveita, tão bem
quanto mal, os frutos desse mundo, que repatria o gozo no aqui e agora”
(MAFFESOLI, 2012, p.25). Esse paganismo se observa nos grupos musicais, nas
afinidades sexuais, nas tribos e, inclusive, no forte hedonismo quotidiano descrito
pelo autor:
Fim de um ciclo, com efeito, em que a solidariedade mecânica, um pouco
racional e abstrata (solidariedade do contrato social e do Estado-
providência), dá lugar a uma solidariedade orgânica, vinda de baixo e
reinvestindo formas “arcaicas” (primeiras, fundamentais), tribais, e
repousando sobre o sentimento de pertencimento e as emoções vividas em
comum (MAFFESOLI, 2012, p.26).
E como falar em sentimento de pertencimento sem falar em tribo? De acordo
com Maffesoli (2012), as tribos pós-modernas são uma forma de compartilhar um
gosto específico. O mundo tribal, por sua vez transforma esse compartilhamento em
36
legitimação, racionalização perfeita ao prazer, ao desejo ou simplesmente à
necessidade de estar junto, de viver junto. “O lugar e o gosto nos conduzem a essa
outra característica própria às tribos pós-modernas, que é o fato de enfatizar o que
se convencionou a chamar de criança eterna” (MAFFESOLI, 2012, p.50). Paixão e
desejo, o instinto, como elementos essenciais para experimentar uma nova maneira
de ser, de “brincar” nos “lugares urbanos importantes”, como explica Maffesoli (2012,
p.50).
Ao evocar as teorias desse mesmo autor a respeito dos traços, identidade,
atmosfera do quotidiano pós-moderno, todas as palavras parecem rimar com a
essência do Burning Man, que muito em breve será analisado através dessas
mesmas lentes. Fala-se em porosidade de identidades, seja ela sexual, ideológica,
profissional. Em pessoa plural.
É, por sinal, provavelmente, esse o “perfil” de quem deixa a vida “normal” na
cidade para se aventurar por sete dias no deserto com mais de cerca de 50 mil
pessoas. Essa pessoa provavelmente se enxerga plural e se locomove até a cidade
provisória construída pelo festival porque, de alguma forma, se identifica com o
fenômeno.
Para Hall (1997, p.12) “a identidade é formada na ‘interação’ entre o eu e a
sociedade. [...] A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica,
‘sutura’) o sujeito à estrutura”. Entretanto, o que se apresenta no mundo pós-
moderno é justamente uma mudança nessa dinâmica. Se antes o sujeito possuía
uma identidade unificada e estável, agora se torna fragmentado. Não falamos mais
de uma, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas
“O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas
identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático” (HALL,
1997, p.13).
Ainda de acordo com Hall (1997), cabe ressaltar que a identidade é formada
através de processos inconscientes, não se trata de algo inato. Assim como o
imaginário já abordado nas primeiras páginas, a identidade está sempre em
processo, sendo formada. E, assim como essa identidade, fica evidente que quem
também está sempre em transformação é a forma como essas fragmentadas
identidades se comunicam e se reinventam no cenário pós-moderno.
A “linearidade” das culturas de massa da modernidade vai cedendo espaço a
outro tipo de interação, seja como Santaella (2004) indicou anteriormente sobre a
37
oferta de produtos alternativos ao consumidor, seja a demanda por ele apresentada.
A seguir, entenderemos a passagem da cultura de mídias para a cibercultura rumo à
globalização e à formação das tribos que se complementam entre espaços físicos e
virtuais, observando assim a transgressão, ou não, que isso representa no mundo
contemporâneo.
3.2 CONTRACULTURA DE SOFÁ, A EVOLUÇÃO
Ao teorizar as transformações da cultura no século XX, Santaella (2004)
conclui que a dinâmica da cultura midiática trata-se de um representativo exemplo
da cultura pós-moderna. Para justificar sua teoria, a autora recorre a Walter
Benjamin (1985), cujo ponto de vista traz também a atividade cultural como um
sistema produtivo, ou seja, “a cultura vista como um tipo muito especial de produção
humana” (apud SANTAELLA, 2004, p.54). E, assim como a própria teorização do
que é, por fim, o pós-modernismo, também encontra nãorespostas ou infinitas delas:
o que é produzido?
Para Santaella (2004), até o século XIX era mais simples determinar as
formas, os códigos e os gêneros da cultura. Belas artes, artes do espetáculo, belas
letras, desde o Renascimento colecionando códigos e, por consequência, bem
distinguidos do cenário folclórico ou das formas populares de cultura. Mas aí, eis que
vem a Revolução Industrial:
O aparecimento de meios técnicos de produção cultural (fotografia e
cinema) e a crise dos sistemas de codificação artísticos efetuados pela arte
moderna, na pintura, música, teatro, dança, foram dissolvendo os limites
bem demarcados entre arte e não arte. [...] Essas dificuldades, entretanto,
pareciam brincadeiras de criança quando comparadas às complicações que
os meios de comunicação e difusão eletrônicos de massa (rádio e TV) iriam
trazer. Depois deles, tudo na cultura foi virando mistura (SANTAELLA, 2004,
p.56).
As “complicações” acima citadas pela autora não sugerem uma análise
pejorativa do termo, explicam que o rádio e a TV provocaram recomposições nos
papéis, cenários sociais, inclusive no modo de produção das formas de cultura. As
fronteiras foram borradas, mas nada deixou de existir por isso. Isso porque a autora
defende que a “cultura humana existe num continuum, ela é cumulativa, não no
sentido linear, mas no sentido de interação incessante de tradição e mudança,
38
persistência e transformação” (SANTAELLA, 2004, p.57).
E assim, os meios de comunicação foram se tornando aliados das formas de
cultura, uma vez que, na produção cultural, os meios de comunicação são também
meios de difusão. Para arrematar, Santaella (2004, p.57) subdivide a produção da
cultura em outros três níveis: “o da conservação, o da circulação e difusão e o da
recepção ou consumo de seus produtos”. A autora ilustra o fenômeno tomando
como exemplo a estruturação da exposição de Monet no Museu Nacional de Belas
Artes e no Museu de Arte de São Paulo alguns anos atrás:
Introduzida por um audiovisual, a exposição de quadros, caricaturas,
objetos pessoas e fotografias do pintor, junto com telas de seus
contemporâneos e amigos, foi acompanhada por um site na internet,
visitado por dois milhões de internautas, por salas multimídias e pela
produção de um CD-Rom. A dinâmica da cultura midiativa se revela assim
como uma dinâmica de aceleração do trafego, das trocas e das misturas
entre as múltiplas formas, estratos, tempos e espaços da cultura.
Sem fazer muito esforço para reconhecer ou uma análise profunda, temos, no
pequeno parágrafo acima, uma descrição do Burning Man como evento e sua
mecânica: a mistura do palpável com o virtual, no deserto ou no sofá de casa a
navegar pelo site do festival, a um oceano todo de distância, que seja. Falamos aqui
em cruzamento de identidades também, tanto culturais quanto pessoais,
obviamente. Temos aqui a transnacionalização da cultura, que pega carona na nova
ordem econômica e social das sociedades industriais pós-industriais globalizadas.
Ainda segundo Santaella (2004, p.59), temos na dinâmica cultural midiática “a peça
chave para se compreender os deslocamentos e contradições, os desenhos móveis
da heterogeneidade pluritemporal e espacial que caracteriza as culturas pós-
modernas”. A autora afirma que sem as tecnologias das comunicações atuais, a
globalização não teria, de fato, sido possível.
Lampert (2005), menos otimista, recorre à Dupont e Ossadon (1998) para
expressar a perda do referencial de valores pelo homem frente à superficialidade e
utilidade dos artigos industriais muitas vezes dispensáveis à sobrevivência da
espécie. Inclui nisso, portanto, a subversão do ambiente pelo homem graças à
tecnologia, que, por sua vez, modificou no ser humano a maneira de pensar, agir e
interagir com o mundo:
39
A ciência e a tecnologia aumentaram nossa capacidade de ação de uma
forma sem precedentes. Fizeram expandir a dimensão espaço-tempo dos
nossos atos. Hoje, a intervenção tecnológica pode prolongar as
consequências no tempo e no espaço, muito além da dimensão do próprio
ato, através de nexos de causalidade cada vez mais complexos e opacos.
(OSSADON, 1998 apud LAMPERT, 2005, p.27)
Para toda essa instabilidade do cenário cultural pós-moderno, Santaella
(2004) adiciona a revolução da informação com que o mesmo passa a conviver. A
tal da revolução digital iniciada em meados dos anos 90: texto, som, imagem e vídeo
em uma mesma linguagem universal, onde todas as mídias “podem ser traduzidas,
manipuladas, armazenadas, reproduzidas e distribuídas digitalmente produzindo o
fenômeno quem vem sendo chamado de convergência de mídias”. (SANTAELLA,
2004, p.60). Soma-se a isso o fenômeno que surge da ligação da informática com as
telecomunicações. Distribuição, difusão da informação praticamente desimpedida
que significa: conexão de todo o globo na formação de novas formas de socializar e
de se constituir a/na cultura. A isso se dá o nome de cultura digital ou cibercultura.
Se Lipovetsky (2004, apud LAMPERT, 2005, p. 27), imprime a sociedade pós-
modernista num contexto de uma cultura hedonista e psicológica que:
Incita à satisfação imediata de necessidades, estimula a urgência dos
prazeres, enaltece o florescimento pessoal, coloca no pedestal o paraíso do
bem-estar, do conforto e do lazer. Consumir sem esperar; viajar; divertir-se;
não renunciar a nada: as políticas do futuro radiante foram sucedidas pelo
consumo como promessa de um futuro eufórico.
Lévy (1999, p.11) “culpa” de forma positiva esses mesmos jovens pelo
crescimento do ciberespaço, um novo espaço de troca que “resulta de um
movimento internacional de jovens ávidos para experimentar, coletivamente, formas
de comunicação diferentes daquelas que as mídias clássicas propõem”.
Entusiasta que é, Lévy (1999, p.25), não considera que a sociedade
esteja/seja determinada pela técnica:
A emergência do ciberespaço acompanha, traduz e favorece uma evolução
geral da civilização. Uma técnica é produzida dentro de uma cultura, e uma
sociedade encontra-se condicionada por suas técnicas. E digo
condicionada, não determinada. [...] Dizer que a técnica condiciona significa
dizer que abre algumas possibilidades, que algumas opções culturais ou
sociais não poderiam ser pensadas a sério sem a sua presença.
40
Talvez entusiasta não seja uma palavra suficientemente esclarecedora para o
conceito que Santaella (2004, p.73) apresenta de Lévy. Para a autora, trata-se de
um utopista que cultiva tanto a magia da tecnologia quanto “a crença mitológica de
que o capitalismo é um sistema justo, racional e democrático, que o capitalismo é
benigno e natural”.
Do outro lado da corda, portanto, Santaella (2004, p.75) não enxerga com
inocência a ebulição do ciberespaço, já que esse é fruto do capitalismo
contemporâneo e está impregnado das formas culturais e dos paradigmas do
capitalismo global:
O ciberespaço, por isso mesmo, está longe de inaugurar uma nova era
emancipadora. Embora a internet esteja revolucionando o modo como
levamos nossas vidas, trata-se de uma revolução que em nada modifica a
identidade e natureza do montante cada vez mais exclusivo e minoritário
daqueles que detêm as riquezas e continuam no poder.
Para visualizarmos essa “desigualdade cibercultural”, basta olharmos os
números divulgados neste ano pela União Internacional de Telecomunicações (UIT).
Estima-se que, até o final de 2013, cerca de 2,7 bilhões de pessoas, que
representam 39% da população mundial (que já se aproxima dos 7 bilhões de
habitantes), estarão usando a internet9
. Entretanto, o acesso à internet deve seguir
limitado nos países em desenvolvimento: 31% contra os 77% previstos para os
países desenvolvidos.
Ainda assim, se formos otimistas e pensarmos que se trata de uma
desigualdade “passageira”, em movimento retardado, podemos adicionar ao
discurso as razões pela qual Santaella (2004, p.75) segue aclamando a cibercultura
“mesmo que a internet se torne prioritariamente um meio para o comércio e
entretenimento eletrônicos, ela ainda será uma espécie de céu aberto para uma
multiplicidade de atividades interativas que não existiram no passado”.
A autora acrescenta também às redes um caráter revolucionário. Isso porque
essa “constituição comunicativamente revolucionária” permite que muitas vozes
sejam ouvidas ao redor do mundo por um baixo custo. Desse modo, “um número
incontável de organizações culturais, artísticas, políticas e sociais está tirando
vantagem e sem a qual essas organizações estariam marginalizadas ou
9
Ver release completo em: ITU. ITU releases latest global technology development figures.
Disponível em: <http://www.itu.int/net/pressoffice/press_releases/2013/05.aspx#.UYz-n7Uz2So>. Acesso
em: 5 mai. 2013.
41
silenciadas”.
Por falar em revolução, existem outros traços na história da internet que a
posicionam como tal. Lampert (2005, p.29) relembra que a mesma tem origem nos
Estados Unidos, nascida para suprir os interesses militares do império norte-
americano e resultado da própria evolução tecnológica, o que vai ao encontro de
Castells (2003, apud LAMPERT, 2005, p.29), que compara essa história a uma
“aventura humana extraordinária”:
Ela põe em relevo a capacidade que têm as pessoas de transcender metas
institucionais, superar barreiras burocráticas e subverter valores
estabelecidos no processo de inaugurar um mundo novo. Reforça também a
ideia de que a cooperação e a liberdade de informação podem ser mais
propicias a inovação do que a competição e os direitos de propriedade.
Hora de parar. De voltar ao segundo capítulo, quando Goffman e Joy (2007)
citam o mítico Prometeu como o ícone de uma das vertentes contraculturistas e dos
hackers do mundo contemporâneo. Hora de retomar o conceito de contracultura.
Transgressão. Inconformidade com o sistema vigente. Se analisarmos esse
panorama pelas lentes de Castells (2003) não temos nesse “processo de inaugurar
um mundo novo” uma contracultura cibernética?
Goffman e Joy (2007, p.371) aparecem agora para explicar o que e se uma
coisa tem a ver com a outra:
Essa cultura hacker (com a palavra hacker significando programadores de
computador e pessoas que tinha aquilo como um passatempo, e não
apenas foras-da-lei) produziu muitas posturas ou éticas que eram
influenciadas tanto pelo espírito antiautoritário da contracultura quanto pelo
que eles consideravam implícito na natureza da computação e da
comunicação. (Grifo nosso).
Os hackers, também conhecidos como primeiros e verdadeiros cyberpunks10
,
marcam o início da cibercultura, e, segundo Lemos (2004), são criadores da
contracultura digital através de uma atitude contestadora do sistema tecnológico
vigente.
Marcelo Pimenta e Silva (2009), que analisa em seu artigo a formação das
tribos da cibercultura a partir da contracultura, destaca a herança deixada pelos já
estudados hippes e yippies, esses, surgidos no mesmo período como uma espécie
10
Ver mais em: LEMOS, 2010.
42
de dissidência mais politizada dos primeiros hippies americanos. Como afirma
Pimenta e Silva (2009), os yippies se utilizavam dos veículos de comunicação para
levar à sociedade americana uma contracultura mais radical que o simples pacifismo
empregado pelos primeiros “o legado dos yippies deu-se com a utilização da mídia
para subverter o sistema. Sua influência para os novos grupos contraculturais do
ciberespaço é explicita nos hackers” (PIMENTA e SILVA, 2009, p.6).
Lemos (2004) também afirma essa posição ao traçar um paralelo entre os
hippies e yippies com os phreakers11
e os hackers para demonstrar a influência da
contracultura nas tribos urbanas e virtuais do século XXI:
A formação do underground high tech é diretamente influenciado pela
contracultura americana e pela consolidação da sociedade dos meios de
comunicação. O desenvolvimento das tecnologias de comunicação, assim
com as atitudes sociocultural dos anos 60-70, contribuem para a
emergência de dois fenômenos muito importantes para a consolidação da
cultura cyberpunk: os phreakers e os hackers, os primeiros cyberpunks da
rua. Como vimos, os cyberpunks tornaram-se os precursores da
cibercultura, criando a cultura digital através de uma atitude contestadora de
sistemas tecnológico vigente (LEMOS, 2002, p.215, Grifo nosso).
Estamos falando dos anos 70, do surgimento do computador doméstico,
entretanto, a ideia de acesso total e livre já havia brotado antes disso. E segue até
hoje em batalha na cultura do computador. Aqui poderíamos falar de Steve Jobs, Bill
Gates e seus respectivos pontos de vista, mas isso daria e já é caldo para uma nova
entre as tantas existentes pesquisas a respeito do tema (GOFFMAN e JOY, 2007).
Importante é agora reforçar que, assim como presumia, a cultura hacker, que
segundo Pimenta e Silva (2009), desde os anos 80 ganhou espaço na mídia pelo
comportamento rebelde e pela forma como partilhava informações, bem como
gostos e interesses, ajudou de certa forma a descentralizar o poder do mundo.
(GOFFMAN e JOY, 2007). Se levarmos em conta os três principais princípios
levantados por Goffman e Joy (2007) ao citar o livro ‘Hackers: Heroes of the
Computer Revolution’, de Steven Levy, que são o acesso livre e completo aos
computadores, ser toda a informação disponível e desconfiar da autoridade e
promover a descentralização, poderemos entender melhor o que essa última
significa e enxergar de maneira prática como isso se apresenta na nossa sociedade:
11
Hackers de telefonia.
43
Uma dupla de geeks em uma garagem pode conduzir um negocio que
costumava exigir uma equipe de vinte pessoas. Músicos podem rejeitar a
grande e má empresa fonográfica e distribuir sua própria música. Um
trabalhador de confiança, motivado, pode fugir do escritório centralizado e
fazer seu trabalho em casa, mesmo que sua casa esteja a trezentos
quilômetros de distância, transmitindo o resultado final de seu esforço no
final do dia de trabalho. Modernos podem deixar a cidade e ainda assim
participar virtualmente de subculturas sofisticadas (mas você ainda precisa
tomar cuidado com aqueles reacionários do mundo real!). O movimento
pacifista que se opunha à invasão americana do Iraque conseguiu organizar
o maior protesto global da história sem grandes organizações e
manifestações de massa. E o que é mais interessante, a disponibilidade de
trilhões de bits de informação e desinformação conflitantes, válidos e
inválidos descentraliza a atenção coletiva (GOFFMAN e JOY, 2007, p.377,
Grifo nosso).
Seja através da “postura hacker”, seja pelo consumo, pelo viver, ser parte da
cibercultura, o que se observa através dos inúmeros estudos sobre o tema é,
segundo Santaella (2004, p.105), a atenção voltada às “construções culturais e
reconstruções nas quais as tecnologias atuais se baseiam e que, conversivamente,
contribuem para desenvolver”.
Pimenta e Silva (2009, p.2) vê nesse contexto a chance de revitalizar os
preceitos da agitação sociais dos anos 60 e parte dos 70 e, ao invés de encerrar o
período em seus limites históricos, permitir que a cibercultura, além de promover um
espaço para ação de ativistas, ofereça uma espécie de “contrainformação”:
[...] a possibilidade de discutir sua amplitude para a esfera pública
tradicional, faz com que a tecnologia não constitua apenas um “palco” para
meras trocas simbólicas entre grupos e atores sociais que busquem a
identificação com outras tribos high tech – tendo apenas o sentido de
pertencimento efêmero como característica principal das comunidades e
redes sociais –, mas que vá além: constitua a consolidação de novas
propostas, seja em socialização como na própria forma de referendar novas
formas de comunicação alternativa aos grandes conglomerados de
informação que estabelecem o modelo atual de sistema econômico e
político, sem aberturas para discussão e construção de uma nova
sociedade. (Grifo nosso).
Temos aqui a deixa para Maffesoli (2012, p.102) explicar sua melhor definição
para pós-modernidade: “sinergia do arcaico e do desenvolvimento tecnológico”. Se
na idade média a catedral oferecia o leito para a comunidade comungar seus
“mistérios”, hoje não é tão diferente assim:
É nas igrejas eletrônicas, através de videogames, de sites, de blogs, de
fóruns e enciclopédias que se desenrolam os ‘mistérios’ pós-modernos.
Mistérios que unem entre si todos os iniciados (sexuais, musicais,
44
esportivos, religiosos, teóricos) que formam a socialidade do vir-a-ser
(MAFFESOLI, 2012, p.103).
Para o autor, a tecnologia que tinha desencantado o mundo já o está
reencantando. Vivemos um “espetáculo coletivo de nuances diversas”. Maffesoli
(2012) recorre a Max Weber para explicar o pulular cultural sem triagem que envolve
as tribos que se reagrupam ao redor dos seus totens, a fragmentação dos saberes,
os múltiplos avatares, manifestações, etc. E resume ao classificar o caldeirão, nas
palavras de Weber como “politeísmo de valores”.
Santaella (2004), por fim, aponta as duas consequências mais flagrantes da
cibercultura: as inteligências coletivas e as comunidades virtuais, temas das páginas
a seguir.
3.3 INTELIGÊNCIA COLETIVA E TRIBALISMO VIRTUAL
Não estamos sozinhos. Voltamos de uma viagem na qual cruzamos o Oceano
e ainda assim sentimos fazer parte do que deixamos do outro lado. Tampouco nos
sentimos desvinculados quando abandonamos nossos lares permanente ou
temporariamente. Isso, claro, se nos incluirmos no grupo das pessoas que têm
acesso à internet. Estamos todos conectados. Os novos amigos que colecionamos
pelo caminho, todos reunidos em um lugar virtual. Podemos ouvir as mesmas rádios,
que antes tinham o alcance determinado pela sua frequência, da viagem das ondas,
pois elas agora também podem ser ouvidas on-line. Um link basta para tudo fazer
sentido, para pular para outro link, e outro, e outro.
Curioso é perceber que, ao pensar no termo “inteligência coletiva”, a primeira
coisa que, sem antes recorrer a autores, nos veio à mente foi trazer o exemplo da
viagem, seja pelos bits ou fisicamente, fazendo check-in e embarcando em um avião.
Bastaram-nos algumas páginas de ‘A conexão Planetária’, cujo título já nos sugere um
norte, para afirmar com Lévy (2001, p.48) que estávamos no caminho certo.
Quanto mais viajamos, no planeta ou nos livros, na Internet ou na sociedade
em torno de nós, mais se abre o nosso espírito. A comunicação entre os
homens desdobra-se, reflete-se, multiplica-se na interconexão entre as
informações lentamente dispostas nas bibliotecas que explodem hoje no
ciberespaço.
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  • 1. 0 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – JORNALISMO BRUNA MAFACIOLI VALENTINI IMAGINÁRIOS DA CONTRACULTURA: Burning Man, sete dias de transgressão no deserto e na internet PORTO ALEGRE 2013
  • 2. 1 BRUNA MAFACIOLI VALENTINI IMAGINÁRIOS DA CONTRACULTURA: Burning Man, sete dias de transgressão no deserto e na internet Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito para obtenção do grau de bacharel em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, da Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Orientador: Prof. Me. Juremir Machado da Silva PORTO ALEGRE 2013
  • 3. 2 BRUNA MAFACIOLI VALENTINI IMAGINÁRIOS DA CONTRACULTURA: Burning Man, sete dias de transgressão no deserto e na internet Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito para obtenção do grau de bacharel em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, da Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Aprovada em: ____de________________de________. BANCA EXAMINADORA: _____________________________________________________ Orientador: Prof. Me. Juremir Machado da Silva - PUCRS _____________________________________________________ _____________________________________________________ Porto Alegre 2013
  • 4. 3 Dedico este trabalho aos meus pais e irmã, que sempre apoiaram e puderam dar suporte às minhas decisões e sonhos. Entre eles, uma grande e inacreditável viagem ao exterior, porta para experiências e aventuras que vou carregar para sempre em meu coração e memória. Foi nessa viagem, inclusive, que tive contato pela primeira vez com o objeto de estudo da presente pesquisa. A todo esse processo, minha eterna gratidão.
  • 5. 4 AGRADECIMENTOS À minha grande família, e toda a doçura e escândalo que comporta, por sempre abrir os braços para segurar qualquer empreitada. E, principalmente, por ser um misto dos infinitos significados da palavra amor. Ao núcleo de casa: pai, mãe e irmã, que, na base do carinho e da compreensão, permitiram que eu desenvolvesse minhas próprias crenças e me motivam a ser uma pessoa radiante e mais justa a cada dia. Mesmo que na distância física. Aos outros amores da minha vida: os gatos, o namorado, as melhores amigas e amigos, seus olhares e abraços, e a certeza de que por mais longa e árdua seja a caminhada, ela pode ser simultaneamente linda e graciosa. Ao Professor Juremir, por me deixar tão livre para pensar e buscar meu próprio caminho na viagem e imersão pessoal que foi realizar esse trabalho. Às meninas da biblioteca, sorridentes e prestativas para resolver qualquer impasse de formatação. Às constantes e felizes “coincidências” que acontecem na minha vida, que tanto aprecio e faço proveito. Que continuem nessa nova etapa e que sejam para ajudar a engrandecer outros mundos. Seja lá o que eu acredite por “coincidência”.
  • 6. 5 Enquanto observa o Burning Man, Larry enxerga diversas ervas daninhas ensaiando coisas sem um aparente motivo prático. ‘São ervas daninhas, mas são suas ervas daninhas. Quem sabe a que isso vai levar? Talvez a nada. Mas ao menos as pessoas estão dando a oportunidade de não descobrir nada. Se os seus julgamentos são sempre governados pelos padrões do mundo, talvez nunca encontrem aquela coisa na qual são brilhantes, que eles foram feitos para, e essa é a maior tragédia de todas – o silêncio desesperado... Doherty, 2004, p.272.
  • 7. 6 RESUMO O Black Rock Desert, nos Estados Unidos, abriga a cada ano uma cidade temporária durante uma semana. O evento, chamado Burning Man, começou em 1986 com cerca de 20 pessoas. Desde então, desenvolveu-se tanto em termos de estrutura, quanto em número de adeptos: na edição de 2011, reuniu aproximadamente 50 mil pessoas, considerado, se não um dos maiores festivais de contracultura, uma das maiores comunidades intencionais contemporâneas do mundo. Desde 2001, essa tribo passou a ter um espaço virtual para se expressar, com alcance global, através de um blog oficial, o The Burning Blog, alojado no site do Burning Man. A presente pesquisa busca, portanto, discutir sobre o imaginário da contracultura ao longo da história e suas intersecções com a tecnologia e com a consequente quebra de barreiras demográficas através de uma comunicação facilitada pela internet, o que significa tentar compreender a criação de um espaço virtual com “alma”. Recriar e compreender o Burning Man também como uma cidade online, pós-moderna, com cidadãos conectados, que podem construir e alimentar um imaginário coletivo, assim como se sentir parte de um todo, sem nunca ter colocado os pés naquele deserto. Nesse sentido, será interpretada a produção e publicação de conteúdo durante a edição do Burning Man 2012, entre 27 de agosto e 3 de setembro, através da análise e documentação sistemática do mesmo, bem como a metodologia de pesquisa bibliográfica para aproximação com os temas que o contextualizam no intuito de compreendê-lo como produtor de conteúdo, sem tampouco tê-lo experimentado em sua forma física. Se ao redor do mundo o tema não passa despercebido pela Academia, no Brasil a pesquisa a respeito do evento não é representativa. A importância dessa análise, que entrelaça o deserto e a internet como cenários contraculturais e complementares pós-modernos, para os estudos em comunicação, é um convite para novas discussões sobre como nos comunicamos e consumimos informações, e, consequentemente, como agimos e nos projetamos perante o mundo, ou a uma determinada tribo, nesse contexto cibernético. Palavras-chave: Contracultura. Imaginário. Pós-modernidade. Cibercultura. Inteligência coletiva. Burning Man.
  • 8. 7 ABSTRACT The Black Rock Desert, in northern Nevada, in the United States, hosts a temporary city for a week, every year. The event called Burning Man began in 1986 with about 20 people. Since then, it has developed both in terms of structure and the number of supporters, and in the 2011 edition brought together approximately 50 thousand people, and it is considered one of the biggest counterculture festivals and one of the largest intentional communities in the contemporary world. Since 2001, this tribe now has a virtual space to express themselves, with global reach, through an official blog, The Burning Blog, which is part of the Burning Man website. This research aims to discuss the imagery of the counterculture throughout history and their intersections with the technology and the consequent demographic break through barriers of communication facilitated by the Internet, which means trying to understand the creation of a virtual space with "soul." The research will also focus on recreating and understanding Burning Man as a postmodern online city, networked with people who can build and nurture a collective imagination, feeling as they are part of the whole thing, even without ever having set foot in that desert. During the 2012 edition of Burning Man, production and publishing of material were interpreted, between August 27 and September 3, through analysis and systematic documentation of the same, as well as the methodology to approach literature with themes in order to understand it as a content producer, even without having experienced it in its physical form. This theme does not go unnoticed by researchers around the world, but in Brazil the investigation of the event is not representative. The importance of this analysis, which interweaves the desert and the Internet as complementary and postmodern counterculture scenarios, and this is an invitation to further discussion on how we communicate and consume information, and therefore how we act and design before the world, or to a particular tribe, that cyber context. Keywords: Counterculture. Imaginary. Postmodernity. Cyberculture. Collective intelligence. Burning Man.
  • 9. 8 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .........................................................................................................9 2 OS IMAGINÁRIOS DA CONTRACULTURA .........................................................12 2.1 A CONTRACULTURA COMO TERMO E CONCEITO NO IMAGINÁRIO..............12 2.2 ENTRE MITOS E OS ANOS 60 ..................................................................................17 2.3 A GERAÇÃO WOODSTOCK ......................................................................................23 3 A CONTRACULTURA PÓS-MODERNA...............................................................31 3.1 DE MAIO DE 68 AO PÓS-MODERNISMO CULTURAL...........................................31 3.2 CONTRACULTURA DE SOFÁ, A EVOLUÇÃO.........................................................37 3.3 INTELIGÊNCIA COLETIVA E TRIBALISMO VIRTUAL ............................................44 4 INCÊNDIO DE CULTURAS, CONSTRUÇÃO DE IMAGINÁRIOS ........................50 4.1 O HOMEM QUE QUEIMA ...........................................................................................50 4.2 FERTILIDADE 2.0.........................................................................................................60 4.3 CAMINHOS VIRTUAIS DO IMAGINÁRIO..................................................................68 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................89 REFERÊNCIAS.........................................................................................................93
  • 10. 9 1 INTRODUÇÃO Qual o imaginário da contracultura contemporânea? O que é imaginário? Aliás, existe contracultura nos anos 00? Do rótulo dos tempos de hoje, muito já sabemos, e sentimos, quando falamos em uma geração que se adapta, outra que convive e ainda outra que já nasce com a tecnologia nas mãos. Tablets, celulares, notebooks conectados fulltime em rede. Temos transmissões de tudo que se possa imaginar via internet. Jogos esportivos, discursos presidenciais que atravessam oceanos e também festivais. Sejam eles de música, de artes, de variedades. Seja o que for, difícil é não encontrar on-line. Ainda que o virtual não substitua o mundo tátil, ambos se complementam. E hoje é possível fazer parte de uma comunidade, de um festival, de um jogo, de uma palestra sem ter que estar presente fisicamente. Seria isso uma transgressão? Seria essa uma nova contracultura? Seria a cibercultura a nova linguagem de subversão? O Woodstok pós-moderno? Lemos (2004) nos dá uma pista quando afirma que a origem do underground high tech foi diretamente influenciada pela contracultura americana e pela consolidação da sociedade dos meios de comunicação. Mas a curiosidade pelo tema foi despertada pelo encontro e identificação virtual com um festival de artes que acontece em um deserto dos Estados Unidos, com regras específicas de sobrevivência e convivência como, por exemplo, não usar dinheiro durante uma semana e que, entretanto, acontece e ressona simultaneamente em um site, em um blog e em diversas redes sociais. Um festival chamado Burning Man, muitas vezes, ilustrado pela mídia justamente como um evento de contracultura contemporâneo, talvez pelo incentivo ao nudismo, ao sentido de vida em comunidade e a livre expressão que a organização promove. Para um leitor conservador, poderia soar como libertinagem ou, porque não, como um comportamento típico daquele festival que marcou o final dos anos 60. Por isso, faz-se necessário ir além. Se nas prateleiras pouco se encontram estudos sobre o Burning Man enquanto um objeto virtual para análise, por outro lado sobram teses e livros que analisam o caráter antropológico e social desse festival, especialmente por autores estrangeiros. No Brasil, os registros em geral se resumem basicamente a coberturas jornalísticas e relatos pessoais, quando algum correspondente resolve se aventurar pelo hemisfério norte.
  • 11. 10 A internet, porém, não nos deixar encolher perante as barreiras demográficas para mergulhar na pesquisa, ainda que não se mergulhe no deserto de Nevada. O que sabemos é que o próprio festival, que na realidade se diz uma cidade temporária, publica diariamente na rede “pré, durante e pós-festival” conteúdos pertinentes a esse universo: entre eles cuidados, regras, depoimentos, notícias, achados e perdidos, vídeos, fotos e até mesmo um link para observar o evento via streaming. Este trabalho, portanto, busca no Burning Man, em primeiro lugar, a construção ou desconstrução de uma tese: seria esse um exemplo de contracultura contemporânea, justamente por ser um modelo de comunidade utópico e imediato e associar alguns princípios transgressores típicos dos anos 60 com a cibercultura para existir e sobreviver? Afinal, é através da internet que se fazem as inscrições dos participantes, que se articulam os grupos de voluntários para a construção de uma cidade temporária, a Black Rock City. Entendido esse processo, a pergunta que fica é: O quão poderoso pode ser um blog como ferramenta para a construção de imaginários a respeito do Burning Man? Que lugar virtual é esse que transcende o estado geográfico de quem o acompanha? Qual seu papel na propulsão da inteligência coletiva, das tribos? Esse é justamente o tema do quarto e último capítulo desta pesquisa. A costura ou quebra de teorias. Analisar os conteúdos publicados no blog oficial do Burning Man durante a edição de 2012, entre 27 de agosto e 3 de setembro. Temos, enfim, nosso Woodstock do século XXI? Mas antes disso, um longo caminho a percorrer. No segundo capítulo será observado o trânsito dos conceitos gerais entre os tempos de contracultura até os de cibercultura vigentes: origens, mitos, imaginários e caricaturas. Na sequência, o terceiro capítulo abordará o estudo da cibercultura e de suas possíveis tribos virtuais, as inteligências coletivas, como agentes pós-modernos da contracultura dos anos 00. Essas, que compartilham, disseminam, identificam e, por fim, abrigam-se. Seja no deserto, seja na internet. Maffesoli (2009)1 já questionou: “Não seria a Internet a comunhão dos santos pós-modernos?”. Para responder a esse emaranhado de perguntas, a contracultura será abordada a partir das obras de Goffman e Joy (2007), Roszak (1972), Pereira 1 Ver MAFFESOLI, 2009.
  • 12. 11 (1983), Pimenta e Silva (2009), Cardoso (2005), Fornatale (2009), Valer (2007) e Groppo (2001). Já autores como Silva (2006) e Maffesoli (2001) fundamentarão as discussões sobre imaginário. Para debater a pós-modernidade, Maffesoli (2006, 2012), Almeida (2007), Connor (2004), Lampert (2005), Santaella (2004), Hall (1997) formarão o time de teóricos. Lévy (1999, 2001), Santaella (2004), Heine (2005), Xiberras (2010), Lemos (2004), Primo (2006) entrelaçarão os conceitos de cibercultura e inteligência coletiva. Além do mais, McCaffrey (2012) e Doherty (2004) emprestarão seus estudos, pesquisas de campo e observações relativas ao festival Burning Man. Quanto à metodologia aplicada ao trabalho, temos, como ponto de partida, o levantamento bibliográfico, que, segundo Gil (1999), é desenvolvido a partir de material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos. A pesquisa documental também dá corpo à tese, e é muito semelhante à bibliográfica para esse autor, pois defende que a diferença entre ambas está na natureza das fontes. Nesse caso, ela se vale de materiais que não receberam ainda um tratamento analítico ou que ainda podem ser reelaborados de acordo com os objetivos da pesquisa. Por fim, a análise de conteúdo, técnica do método comparativo, encaminha a pesquisa a seu ápice, quando três passos fundamentais são necessários. Para Bardin (1997), são eles: pré-análise, exploração do material e tratamento de dados, interferências e interpretação. Esse último, para Gil (1999), tem o objetivo tornar os dados válidos e significativos. Através desses autores e interpretações, a intenção é costurar as relações entre a construção dos imaginários da contracultura em tempos de cibercultura e os conteúdos publicados no blog do Burning Man. E, portanto, observar o trânsito de comunidades físicas ao meio virtual e seu espaço ocupado na internet, o que talvez venha a definir alguns traços de uma contracultura contemporânea.
  • 13. 12 2 OS IMAGINÁRIOS DA CONTRACULTURA Contracultura é termo, é conceito, é período, é memória, é tudo isso e mais um pouco de imaginário. É contradição, ir e voltar, remoldar, repensar. É coisa de grego, de moderno e daquele que se esconde (e muito se mostra) atrás de uma interface nos anos 2000. O que todos têm em comum é a capacidade de se agarrar na tangente da sociedade e sair pela culatra: instáveis, porém orgulhosos do eco que produzem. Iniciaremos os trabalhos com uma imersão na história da contracultura. 2.1 A CONTRACULTURA COMO TERMO E CONCEITO NO IMAGINÁRIO O que é contracultura? Quem faz contracultura? O que faz a contracultura? Um estereotipado período dos anos 60 nos Estados Unidos, que se espalhou pelo mundo, ainda que com diferentes tons? Ou, um impulso natural humano de transgredir para sobreviver que não se limita a cronologia e caricaturas? Para Dan Joy (20072 , p.13), um dos autores do livro ‘Contracultura através dos tempos: do mito de Prometeu à cultura digital’, assim como escreveu no prefácio do mesmo: A contracultura é “ruptura” por definição, mas também é uma espécie de tradição. É a tradição de romper com a tradição, ou de atravessar as tradições do presente de modo a abrir uma janela para aquela dimensão mais profunda da possibilidade humana que é a fonte perene do verdadeiramente novo – e verdadeiramente grandioso – na expressão e no esforço humano. Dessa forma, a contracultura pode ser uma tradição que ataca e dá início a quase todas as outras tradições. O autor ainda salienta que a contracultura floresce da incorporação da mudança. Ou seja, sempre e onde quer que alguns membros de uma sociedade escolham estilos de vida, expressões artísticas e formas de pensamento e comportamento se fundamentam na mudança como única constante verdadeira. E assim, Joy (2007, p.13) arremata: 2 Este livro foi escrito por Goffman e Joy (2007), porém o prefácio é de autoria exclusiva de Dan Joy (2007).
  • 14. 13 A marca da contracultura não é uma forma ou estrutura em particular, mas a fluidez de formas e estruturas, a perturbadora velocidade e flexibilidade com que surge, sofre mutação, se transforma em outra e desaparece. Sendo assim, esse autor também reforça a ideia de constante transformação da contracultura e, portanto, se afasta da ideia de periodizar ou encaixá-la dentro de um espaço de tempo limitado ao inferir que não se trata de construção ou produção, e sim, algo que precisa ser vivido, experienciado: Se a contracultura valoriza ampliar as fronteiras da arte, ela valoriza muito mais levar a vida como uma experiência artística em progresso. Se a contracultura valoriza o pensamento inovador, ela se empenha ainda mais em exprimir essa ideia na ação do momento. Se a contracultura abraça o espírito, ela não defende o contato periódico com a divindade por intermédio de qualquer gestual arbitrário; em vez disso, busca viver cada dia como a expressão dinâmica e constante do próprio espírito (JOY, 2007, p.17). Isso significa que, embora as novidades revolucionárias nasçam mais frequentemente de um ambiente contracultural, podemos incluir aqui a ideia de contracultura atrelada aos anos 60, “a grande inovação – não importa quão contrária ao status quo possa ser – não constitui em si um contracultura. A verdadeira contracultura é movida por um impulso muito mais profundo do que apenas o desejo de inovar ou derrubar convenções” (JOY, 2007, p. 17). Enquanto debatemos conceitos de contracultura, imagens, desenhos e emaranhados de pensamentos se formam na mente do leitor. Para alguns, o termo pode remeter a alguma transgressão que já tenha proposto a si mesmo, outros buscam trazer esses insights para os dias de hoje, também há aqueles que pensam em paz e amor, em Jimi Hendrix, Janis Joplin, por que não? Ideias essas remanescentes do registro histórico, repassadas de geração em geração, de uma época bem estereotipada, que teve seu ápice nos anos 60. A tal de contracultura dos Estados Unidos da América. Woodstock? Sim, como a ponta do iceberg. Essa costura, correia de pensamentos, de imagens mentais e coletivas, rima muito bem com os argumentos sobre o imaginário de Silva (2006, p.11), que serão aplicados ao presente trabalho: “Todo imaginário é um desafio, uma narrativa inacabada, um processo, uma teia, um hipertexto, uma construção coletiva, anônima e sem intenção.” Talvez, a percepção de imaginário de Silva (2006) esteja muito próxima de como Joy (2007) vislumbre a contracultura: fluída, sempre em movimento e transformação.
  • 15. 14 Mas, se por um lado, a contracultura de Joy (2007) precisa ser mais vivida que construída, por outro, o imaginário de Silva (2006, p.13), significa construção, e, portanto: [...] se dá, essencialmente, por identificação (reconhecimento de si no outro), apropriação (desejo de ter o outro em si) e distorção (reelaboração do outro para si). O imaginário social estrutura-se principalmente por contágio: aceitação do modelo do outro (lógica tribal), disseminação (igualdade na diferença) e imitação (distinção do todo por difusão de uma parte). Esse sentimento de pertencer a algo, que estimula o imaginário, é o que faz o ser se construir na cultura. Para Silva (2006, p.14), isso explica o porquê de o imaginário não ser cultura, crença ou ideologia, mas um meio por onde é possível partilhar “[...] uma filosofia de vida, uma linguagem, uma atmosfera, uma idéia de mundo, uma visão das coisas, na encruzilhada do racional e do não-racional.”. Mas qual seria a diferença seminal entre cultura e imaginário, então? Para Maffesoli (2001), a cultura é mais ampla que o imaginário, embora aquela, em seu sentido antropológico, carregue uma parte dessa. E o mesmo ocorre, em termos filosóficos, com o imaginário, que não se reduz a cultura mesmo que leve consigo partes da mesma: A cultura é um conjunto de elementos e de fenômenos passíveis de descrição. O imaginário tem, além disso, algo de imponderável. É o estado de espírito que caracteriza um povo. Não se trata de algo simplesmente racional, sociológico ou psicológico, pois carrega também algo de imponderável, um certo mistério da criação ou da transfiguração. (MAFFESOLI, 2001, p.75). E, assim como estamos observando a contracultura, sob dois pontos de vista, amplo como conceito e delimitado como período, vale a pena fazer um parênteses para reforçar que a cultura também apresenta essas duas facetas. Para Maffesoli (2001), pode-se buscar um sentido específico, preciso do termo: teatro, literatura, música. Ou então, ampliar a observação e mergulhar no sentido antropológico e ver a cultura como os fatos da vida cotidiana, as formas de organização de uma sociedade, os costumes, as maneiras de se vestirem, entre outros. Para ilustrar sua tese, Maffesoli (2001, p.75) recorre a uma analogia entre a materialidade da obra de arte como sendo a cultura e sua aura, o que a ultrapassa, representando o imaginário:
  • 16. 15 Esta é a ideia fundamental de Durand 3 : nada se pode compreender da cultura caso não se aceite que existe uma espécie de “algo mais”, uma ultrapassagem, uma superação da cultura. Esse algo mais é o que se tenta captar por meio da noção de imaginário. Sendo assim, poderíamos arriscar e inferir que o imaginário se aproxima, conceitualmente, muito mais da contracultura que da cultura, seja essa observada em seu sentido restrito ou amplo, uma vez que “[...] o imaginário é uma força social de ordem espiritual, uma construção mental, que se mantém ambígua, perceptível, mas não quantificável” (MAFFESOLI, 2001, p.75). Por outro lado, o autor assume que limitar o imaginário a uma posição, o faz perder justamente sua autonomia: O imaginário, certamente, atua nos processos revolucionários, mas não se pode dizer que essa seja a sua prioridade, pois o imaginário opera em qualquer situação, contra ou a favor das revoluções. Há imaginário também na contra-revolução. Fazer do imaginário uma instância necessariamente revolucionária significa dar-lhe um estatuto que, por mais nobre, o limita. Há, mais uma vez, rigidez nessa apropriação (MAFFESOLI, 2001, p.80). Mesmo que seja complexo definir o imaginário, bem como classificá-lo, por correr o risco de torná-lo restrito ou engessado, o que precisamos manter em mente para seguirmos essa viagem é que ele passeia tranquilamente entre o racional e tudo aquilo que fica “do outro lado” como “o onírico, o lúdico, a fantasia, o imaginativo, o afetivo, o não-racional, o irracional, os sonhos, enfim, as construções mentais potencializadoras das chamadas práticas”. (MAFFESOLI, 2001, p. 76). Nesse caso, se pensarmos em uma “prática da contracultura” em forma de ideologia, estaremos falando do imaginário como um elemento essencial, natural, inevitável, isso porque, segundo Maffesoli (2001, p.78): O imaginário é também a aura de uma ideologia, pois, além do racional que a compõe, envolve uma sensibilidade, o sentimento, o afetivo. Em geral, quem adere a uma ideologia imagina fazê-lo por razões necessárias e suficientes, não percebendo o quanto entra na sua adesão outro componente, que chamarei de não-racional: o desejo de estar junto, o lúdico, o afetivo, o laço social, etc. O imaginário é, ao mesmo tempo, impalpável e real. E é através das ideias, tanto de Maffesoli (2001) quanto de Silva (2006), que mais adiante perceberemos a encruzilhada na história, ou no imaginário, da 3 Ver mais em: DURAND, 2001.
  • 17. 16 contracultura entre ser um movimento contestatório e um paradoxo de um período, os anos 60. Até porque, desde então, a palavra e seu conceito circulam na “memória coletiva” com uma força e repetição quase padrão para a biografia do mundo. De livros didáticos a pesquisas científicas: tecnocracia, pós-guerra, american way of life, hippie, beatnik, sexo, drogas e rock’n’roll seriam boas palavras-chave para ilustrar o que estamos convidando o leitor a imaginar, relembrar do contexto, ao menos por agora. Percebemos como é fácil fazer associações? Especialmente para os que não faltaram a esse capítulo da aula de História nos tempos de escola. Muito provavelmente, essas palavras estejam tão fortemente incrustadas, não necessariamente por crença, mas por repetição, uma vez que, ainda de acordo com Silva (2006, p.49), os imaginários são diferentes das crenças: “não respondem a faltas ou carências. São cumulativos, espontâneos, gratuitos”. Chegamos, por fim, ao que nos atrevemos a definir como o imaginário contracultural de Pereira (1983, p.20), no qual resume o embate conceitual que sofre a contracultura discutida neste trabalho, entre o concreto difundido na memória coletiva e o aspecto geral do termo, que pode se reinventar com o tempo: De um lado, o termo contracultura pode se referir ao conjunto de rebelião da juventude [...] que marcaram os anos 60: o movimento hippie, a música rock, uma certa movimentação nas universidades, viagens de mochila, drogas, orientalismo e assim por diante. [...] Trata-se, então, de um fenômeno datado e situado historicamente. [...] De outro lado, o mesmo termo pode também se referir a alguma coisa mais geral, mais abstrata, um certo espírito, um certo modo de contestação, de enfrentamento diante da ordem vigente, de caráter profundamente radical e bastante estranho às formas mais tradicionais de oposição a esta mesmo ordem dominante. [...] Uma contracultura, entendida assim, reaparece de tempos em tempos. Significa dizer que, se olharmos para o passado (presente ou futuro), poderemos encontrar eventos que superam os limites imaginários contraculturais que alimentam, por sua vez, o imaginário dos anos 60. Como já assinalado, a contracultura é movimento, constante transformação. Em termos de passado, a doutora em sociologia Irene Cardoso (2005, p. 93) ressalta que se construiu, sobretudo, um mito a respeito do termo: As mudanças decorrentes do movimento histórico de uma geração – de amplitude internacional, mas com características particulares nos seus diversos contextos –, ao se congelar em uma unidade imaginária, “geração anos 60” ou “geração 68”, preservam o que seria seu menor denominador
  • 18. 17 comum, ao mesmo tempo em que perdem sua historicidade. Esse processo constrói a identidade heroica de uma geração, cujo peso para as gerações posteriores tem sido considerável, senão desmedido. E é justamente nessa identidade heroica que vamos nos aprofundar nas próximas páginas, observando a construção do mito da contracultura, tanto como termo amplo, quanto como período e movimento específico, que deixou uma herança, seja ela cultural ou, pelo menos, imaginária, como também antecipa Cardoso (2005, p.103): A construção do mito obscurece os traços das experiências de revolta e transforma em identidade o que foi pluralidade e movimento de desidentificação. Desse modo, é construída a figuração identitária da geração dos anos de 1960 (“a geração 68”), a caricatura, cujos traçados expressam a simplificação do que veio sendo assimilado e normalizado. A identificação com o mito tem se manifestado episodicamente, em alguns momentos com maior visibilidade, permitindo a percepção de um aprisionamento das gerações mais jovens pela imagem da geração anterior. Tanto é que mesmo os eventos contemporâneos, por mais que possuam características próprias e únicas, tenham sido originados de “matérias-primas” diferentes, ainda podem carregar tons e interpretações do passado se carregarem traços contraculturais. Podem ser taxados de “novo Woodstock”, assim como o objeto de estudo específico deste trabalho, o Burning Man. Um evento/festival/cidade temporária de artes e livre expressão que ocorre anualmente no deserto de Nevada, baseado em 10 mandamentos de sobrevivência e convivência, que, justamente por isso, muitas vezes é citado como contracultural (aos 60’s) pelos meios de comunicação. Vemos no termo “mito”, portanto, um possível ponto de partida para a futura análise. Antes disso, vamos buscar as impressões da contracultura na história ao longo dos anos para compreender essa fixação de mitos. 2.2 ENTRE MITOS E OS ANOS 60 Se, para Nietzsche, o mito cria sentimentos de comunhão espiritual e a história amortece tais sentimentos, para Goffman e Joy (2007, p.23) não é diferente, “o mito é tão importante para os contraculturistas quanto o fato histórico, e talvez mais pungente. Vanguarda por natureza, as contraculturas em sua maioria incorporam o imaginário e o ideal, bem como o real”.
  • 19. 18 O não uso do dinheiro, a vida em comunidade, a sustentabilidade, o surrealismo e muito mais, e tudo isso, transformado em mito, alimentando imaginários. Aliás, seria esse imaginário que torna o Burning Man um grande exemplo contracultural contemporâneo? Eis o que buscamos compreender, revelar ou negar ao final deste trabalho. Goffman e Joy (2007, p.23) explicam que, salvo poucas exceções, “as contraculturas foram episódios históricos inspirados, otimistas, talvez mesmo míticos”. Sendo assim, os autores ainda afirmam que: Sempre que pessoas corajosa e apaixonadamente adotam comportamentos desafiadores que buscam libertar os humanos de limitações opressivas (ou limitações percebidas como sendo opressivas), certamente pode-se esperar excitação, conflito, escândalo – e, portanto, histórias cativantes. E isso nos soa muito a motivação, razão de ser do Burning Man. Sendo assim, já é possível perceber que analisar o fator mítico da contracultura e não só observá-la como um episódio característico dos anos 60 se faz indispensável. Vale ressaltar a diferença conceitual entre a contracultura ser transformada em mito e os personagens míticos considerados contraculturais, os quais observaremos daqui para frente. Para tanto, voltemos aos, quem sabe, mitos precursores da contracultura. Para Goffman e Joy (2007, p.24), Prometeu e Abraão são dois dos mitos mais claramente contraculturais. O primeiro, que aqui será comentado, é pura ficção, já que é parte do panteão dos deuses gregos. Segundo o resumo dos autores, autointitulado “reducionista”, esta é a história do deus grego Prometeu, comandado por Zeus, que fazia sacrifício com animais: Certo dia, durante um sacrifício, ele fala de forma temerária com Zeus. Ele corta um touro e o divide em duas partes: uma contendo a cerne e os intestinos, embrulhado na pele; e a outra consistindo apenas de ossos e gordura. Prometeu pede a Zeus que escolha sua parte; o restante deverá ser dado ao homem. Zeus pega os ossos e a gordura, o que o faz sentir raiva de Prometeu e da humanidade. Zeus pune os mortais tomando deles o dom do fogo. Prometeu o rouba de volta. Então, Prometeu – que tem o dom de ver o futuro – é ainda mais temerário com o grande deus Zeus, prevendo que um dos filhos de Zeus irá um dia derrubá-lo do trono, mas recusando-se a dizer qual deles. Zeus, furioso, pune Prometeu amarrando-o com correntes de aço a uma rocha no monte Cáucaso. Lá, todos os dias, por toda a eternidade, uma águia bica e come o fígado de Prometeu. E toda noite o fígado imortal do deus Prometeu se regenera, de modo que ele possa ser torturado novamente no dia seguinte.
  • 20. 19 Goffman e Joy (2007) ainda buscam nas obras do escritor épico Ésquilo a construção desse mito. Por exemplo, entre os quatro épicos sobre Prometeu, o único a sobreviver foi ‘Prometeu acorrentado’, onde fica claro que esse deus deu à humanidade a arquitetura, o calendário, a matemática, a escrita, o transporte e a medicina. Ou seja, para os autores, o Prometeu de Ésquilo se trata de um orgulhoso gênio tecnológico e científico, e, portanto, não é de se admirar que Prometeu seja adotado pelos hackers contemporâneos como ícone “não se enganam quando vêem o roubo do fogo dos deuses por Prometeu como uma metáfora para a tecnologia.” (GOFFMAN e JOY, 2007, p.25). Se Prometeu não era um tipo bem visto para os antigos gregos, os autores explicam que esse deus serviu e serve de inspiração não só para hackers do século XXI, mas para contraculturistas e artistas desde que os românticos o trataram como celebridade no século XIX: [...] para os gregos, essa história era uma alerta. Húbris, ou soberba, era o seu maior pecado, e Prometeu era o seu maior pecador. Como aconteceu mais tarde com muitos seguidores do cristianismo, a húbris científica era vista como um atravessar de fronteiras que perturbava a ordem divina. De fato, os gregos não desenvolveram plenamente suas ciências técnicas por causa do medo que tinham da húbris (GOFFMAN e JOY, 2007, p.26). Esse “amor” por Prometeu, que começou no início do século XIX, pode ser explicado pelos mesmos autores através da obra de Percy Shelley (1980) em ‘Prometheus Unbound’, em que “Shelley completou as partes que faltavam da história de Ésquilo, libertando o deus grego de seu sofrimento eterno e dando a ele o posto de herói da época pós-iluminismo.” (GOFFMAN e JOY, 2007, p.26). Quem também salienta esse trabalho, ainda que sob uma ótica antagônica, é Theodore Roszak, que define ‘Prometheus Unbound’ como “uma canção das alturas, uma vertiginosa rapsódia que propõe a superação e a transcendência de todos os limites” (ROSZAK, 1969, apud GOFFMAN e JOY, 2007, p.26). Isso é, Roszak, sendo um contraculturista, deixa claro que faz parte da facção antiprometeica. Ainda de acordo com Goffman e Joy (2007), Roger Shattuck (1994), em sua obra ‘Forbidden Knwoledge: From Prometheus to Pornography’: [...] considera certa literatura [Prometheus Unbound] responsável pela leviandade arrogante do homem, incluindo Prometeu de Shelley, Fausto de Goethe, Ulisses de Dantes, o Don Juan de Byron, o Dom Quixote de
  • 21. 20 Cervantes e até mesmo o glamorizado Satã do bom cristão Milton em ‘Paraíso Perdido’ (apud GOFFMAN e JOY, 2007, p.29, Grifo nosso). Shattuck busca um tipo diferente de herói, baseando-se na humildade e na serenidade, na ideia de conhecer e aceitar o destino. Sócrates, Buda, Jesus, São Francisco, Thoreau, Tolstoi, Gandhi e Martin Luther King seriam os seus ícones contraculturistas, como explicam Goffman e Joy (2007, p.29): [...] Shattuck apresenta uma impressionante lista de pensadores alternativos – poder-se-ia mesmo chamá-la de uma lista de contraculturista – em oposição do impulso prometeico. Não podemos evitar uma conclusão impressionante: há contraculturas antiprometeicas e pró-prometeicas. De fato, a divisão acerca do impulso prometeica pode ser utilizada para caracterizar a principal oposição entre as maiores tendências contraculturais de hoje. Goffman e Joy (2007, p.29) também apontam que entre os contraculturistas antiprometeicos estão os “hippies que sonham com comunidades rurais, adeptos introspectivos de religiões new age orientais ou de influencia oriental, certos tipos de feministas, certos tipos de anarquistas e certos tipos de ambientalistas”. Ou seja, aquela ideia que permeia o imaginário quando se fala na contracultura dos anos 60, a qual tem como um dos principais representantes, ainda que mais moderado, o já citado teórico Theodore Roszak, membro de uma confraria de críticos contraculturais da tecnocultura. E foi em 1969, em seu livro ‘The Making of a Counter Culture’4 que Roszak abordou o tema da contracultura, no momento em que ela acontecia. O autor trouxe à luz as origens do movimento, seus paradoxos e pontos fracos, e ainda assim deixou claro a importância e legitimidade do mesmo como tentativa de reestruturação do modelo vigente da sociedade, mergulhada na tecnocracia e nos padrões, sobretudo, técnicos e de vida do “american way of life”. Essa comparação, entre prometeicos e antiprometeicos, aqui se faz, porque, assim como o evento Burning Man, que se utiliza do transcendental e mítico para seduzir, agregar e gerar um cultura (não necessariamente ou propositalmente contracultural ou intencional) como veremos no último capítulo, também se trata de um evento de raiz norte-americana, assim como a contracultura a qual Roszak (1972) se refere, dentro de um tempo e um espaço. 4 Em 1972, a edição traduzida chegou ao Brasil, e é dessa que nos utilizaremos para embasar a presente tese. ROSZAK, 1972.
  • 22. 21 Foi Roszak (1972, p.54), inclusive, quem popularizou o termo contracultura na época: Na verdade, quase não parece exagero chamar de ‘contracultura’ aquele fenômeno que estamos vendo surgir entre os jovens. Ou seja, uma cultura tão radicalmente dissociada dos pressupostos básicos de nossa sociedade que muitas pessoas nem sequer a consideram uma cultura, e sim uma invasão bárbara de aspecto alarmante. Mas quem explica, com olhar contemporâneo, os “invadidos e os invasores” que marcam o movimento irrompido com força nos Estados Unidos, embora esse tenha se espalhado, ainda que não homogeneamente, pelo mundo é a autora Cardoso (2005, p. 98): Os movimentos contraculturais [...] direcionaram suas formas de expressão para a política, as artes (na poesia, na música, no cinema, nas artes plásticas), a educação, as relações intersubjetivas (na família, no amor, no sexo, na comunidade) e para o cotidiano como contestação aos efeitos produzidos pela sociedade industrial avançada, pela “tecnocracia”. Na sua forma “organizacional” mais desenvolvida, caracterizada pelos processos de racionalização em grande escala, pela eficiência, pela modernização, pelo planejamento, a sociedade norte-americana (a que melhor realizou esse modelo), instaurando a era da “engenharia social”, ampliava a administração para além do núcleo econômico-industrial. O modo de vida, o lazer, a educação, a política, a cultura como um todo tornavam-se administráveis e administrados. Um sistema tecnocrático que invade, com a influência normativa, segundo Roszak, até mesmo os aspectos supostamente pessoais da vida, como comportamento sexual, educação de filhos, saúde mental, recreação, etc. Nesse caso, “o cidadão, confrontado por uma formidável complexidade, vê-se na necessidade de transferir todas as questões a peritos. Na realidade, agir de outra forma seria uma violação da razão” (CARDOSO, 2005, p. 20). Agir de outra forma é, portanto, contracultural. Roszak (1972, p.10) expõe o principal questionamento seu e de todos aqueles que não eram a favor da sociedade fundamentalmente tecnocrática: Se em sua grandiosa marcha pela História a tecnocracia está realmente buscando a consecução de valores universalmente ratificados – A Procura da Verdade, A Conquista da Natureza, A Sociedade da Abundância, O Lazer Criativo, A Vida Ajustada – nesse caso por que não nos acomodar e desfrutar a viagem?
  • 23. 22 A resposta talvez seja explicada segundo Pereira (1983, p.26), uma vez que, ao menos no que se refere aos Estados Unidos, a grande novidade do período pós- guerra era um país que: começava a se constituir então no primeiro grande exemplo de uma sociedade afluente, tecnocrática, o que se materializava, por exemplo, na afirmação do ‘american way of life’, um estilo de vida exportado com razoável sucesso para o mundo inteiro. (Grifo nosso). Como se isso fosse uma vitória da sociedade. Não para seus opositores, evidentemente. Ao invés do “se acomodar e aproveitar a viagem”, proposto por Roszak (1972), o diagnóstico revelava um país rumo à padronização dos costumes, à transformação dos indivíduos em simples consumidores ou simplesmente um retrato da sociedade de consumo a ser reproduzido, vivido e exportado. Importante ressaltar também que, Roszak (1972), evidentemente na defesa da rebelião, via a mistura, a aliança da mídia com a contracultura com maus olhos. De certa forma vai ao encontro da ideia de mito, caricatura, já sublinhada por Cardoso (2005), quando afirma que a mídia ajuda na perversão das contraculturas: Os chamados beatniks e hippies, sejam o que forem, nada têm a ver com aquilo que os transformaram o Time, Esquire, Cheeta, a televisão, as comédias da Brodway e Hollywood. A imprensa decidiu que a rebelião ‘vende’ bem. Mas o máximo que consegue fazer é isolar as aberrações mais insólitas e, consequentemente, atrair para o movimento muitos poseurs extrovertidos... O problema é novo e difícil: uma espécie de cínica asfixia da rebeldia através da publicidade contínua, e começa a parecer que para o Sistema esta arma é muito mais eficaz do que a supressão pura e simples (ROSZAK, 1972, p.47). E, se, por um lado temos a tecnocracia como um “sistema socioeconômico tão bem organizado que se acha inescapavelmente endividado com a especialização” (ROSZAK, 1972, p.31), produto de um industrialismo maduro e em aceleração, de outro temos a contracultura como um movimento não disciplinado, assim descrito por Roszak (1972, p.60): Ela tem algo da natureza de uma cruzada medieval: uma procissão variegada constantemente em fluxo, adquirindo e perdendo membros durante todo o percurso da marcha. Com bastante frequência, encontra sua própria identidade num símbolo nebuloso ou numa canção, que pouco mais parecem proclamar além de que ‘somos especiais... somos diferentes... estamos fugindo das velhas corrupções do mundo.
  • 24. 23 Sobre a falta de coesão e consistência da contracultura como movimento, Roszak (1972, p.66) cita também a existência de subgrupos, que ainda que lutassem pelo mesmo inimigo comum – a tecnocracia – geravam tensões entre si: Por um lado, há a boemia descuidada dos beats e dos hippies, por outros, o ativismo político exacerbado da Nova Esquerda estudantil. Não serão, na realidade, dois fenômenos separados e antiéticos, o primeiro (remontando a Gisnberg, Kerouac & Cia.) procurando escapar da sociedade americana, o outros (remontando a C. Wright Mills e a remanescentes da velha esquerda socialista) procurando infiltrar-se em nossa vida política e revolucioná-la? A tensão que se percebe entre esses dois movimentos é bastante real. [...] Evidentemente, há o inimigo comum contra o qual juntam forças; mas existe, além disso, uma semelhança positiva de sensibilidade. Nas próximas páginas, seguiremos nos aprofundando na construção do mito contracultura e seus paradoxos. Dessa vez, através dos também mitificados e heterogêneos grupos, como a “geração Woodstock”. Quem são eles, afinal? 2.3 A GERAÇÃO WOODSTOCK Quem são exatamente os “contras”, aqueles que são “a cara de 68”? São eles os jovens rebeldes da classe média, que, para Roszak (1972, p.45), estão perdidos entre uma infância permissiva e uma idade adulta odiosamente conformista, experimentando desesperadamente novas formas de ingressarem com dignidade num mundo que desprezam, pedindo socorro. Essa geração de estudantes, de acordo com autor, formada pelos beneficiários dos hábitos educativos bastante complacentes caracterizaram a sociedade depois da II Guerra Mundial: Uma sociedade de lazer, com alto nível de consumo, simplesmente não precisa de jovens trabalhadores ‘responsáveis’, rigidamente treinados. [...] Assim os jovens são ‘estragados’, no sentido de que são levados a acreditar que ser humano implica de alguma forma com prazer e liberdade. [...] Ao contrário de seus pais, obrigados a se curvar diante das organizações de que ganham seu pão, os jovens podem ser malcriados em casa sem temer serem postos no olho da rua (ROSZAK, 1972, p.41). E assim como afirma Cardoso (2005), foram justamente eles, os jovens “estragados” de Roszak (1972), que questionaram os valores que sustentavam o funcionamento do “sistema”, uma vez que estavam envolvidos pelas grandes
  • 25. 24 temáticas do século XX, afinal, conviviam com o abalo político, cultural e ético, herança da geração que viveu a guerra. Ainda, conforme Cardoso (2005, p.96), [...] esses temas foram retomados e reinterpretados a partir de experiências políticas do pós-guerra e dos anos de 1950: a revolução socialista chinesa, a guerra da Coréia, a guerra da Argélia, as lutas de libertação contra os colonialismos em vários lugares, a “descoberta” do totalitarismo sob o socialismo, a partir dos fatos que vieram à luz sobre o stalinismo, e, no final dos anos de 1950, início da década seguinte, as lutas de libertação na América Latina, em especial a experiência de Cuba e da guerrilha. O que realmente conectava o grande grupo nada homogêneo de quem “fez” essa contracultura foi o fator “transformação social”. Seja sob a ótica dos anos 50, seja pela releitura feita desse momento e adaptada aos novos temas nos anos 60, foi a “experiência da revolta” o que os alinhou conceitualmente. E é assim que Cardoso (2005, p.96) define o momento histórico da década de 60, um movimento de negação e de abertura, que interpreta o passado e questiona a situação presente: Atravessar os limites estabelecidos era negar o poder que faz a guerra, que extermina populações, que tortura, que produz o racismo e o sustenta, que se transfigura em terror de Estado sob o capitalismo, mas também sob o socialismo real. Negar o poder que é violência, que petrifica as instituições. Como movimento, era também projeção de um dado futuro (um novo horizonte, novos limites), que não se fixava em uma recusa, mas projetava ideais de liberdade. Ou seja, entre as lutas que coexistiam no período, levantadas pela autora5 fossem elas de libertação, nacionalistas, socialistas, revolucionárias ou antiautoritárias, bem como suas diferentes formas de expressão e ataque, o denominador comum é, de fato, a transformação social já citada. Para Cardoso (2005, p.97), “as experiências de revolta também tiveram como ideal ‘mudar a vida’, tema característico dessa década, presente, sobretudo, mas não exclusivamente, nos movimentos contraculturais”. Se voltarmos a pensar na contracultura como consequência de uma herança para observar o presente, que nesse caso é passado, então podemos pegar como exemplo os beatniks e os hippies. Ambos muito vivos no imaginário contemporâneo, entre os tantos outros grupos diferentes, porém não antagônicos, contra um inimigo 5 Para diferenças entre lutas revolucionárias, de libertação, nacionalistas, socialistas, antiautoritárias ver Cardoso (2005, p.97).
  • 26. 25 comum. Segundo Pereira (1983, p.34): Foram os beatniks um dos grupos de destaque a encarnar, de modo especialmente vigoroso, a rebeldia marginalizada nos anos 50 nos Estados Unidos. Já fascinados pelas doutrinas orientais, ponto fundamental entre eles e os alegres hippies dos anos 60, rejeitavam o caminho do intelectualismo, devotando-se a uma vida marcadamente sensorial e deixando-se arrastar por sua ludicidade e desprezo pelas satisfações de uma carreira e de um rendimento regula. De certa forma, assim como Cardoso (2005) compreende a releitura dos anos 50 feita pela geração dos anos 60, já não é novidade que os hippies tenham absorvido algo de fundamental nos beatniks. Pereira (1983) usa como metáfora o “cair fora dessa camisa de força ocidental” dos hippies, que significa: [...] ganhar um outro lugar, fugindo então simultaneamente ao cerco do espaço físico, institucional e lógico deste mundo ocidental. É por aí que se pode entender melhor os três grandes eixos de movimentação que marcavam sua rebelião – da cidade, a retirada do campo; da família para a vida em comunidade; e do racionalismo cientificista para os mistérios e escobertas do misticismo e do psicodelismo das drogas (PEREIRA, 1983, p.82). E por falar em psicodelia e drogas: qual a primeira coisa que vem à cabeça? Woodstock, talvez? Como falar de contracultura sem citar Woodstock? No livro de Pete Fornatale (2009), ‘Woodstock: Quarenta anos depois, o festival dia a dia, show a show, contado por quem esteve lá’, se reúnem inúmeros relatos sobre quem, teoricamente, foi e vivenciou o Woodstock. Algumas entre as mais de cerca de 500 mil pessoas, que entre os dias de 15 e 17 de agosto de 1969, ocuparam a fazenda de 240 hectares de Max Yasgur, em Bethel, Nova York. Nas primeiras páginas da obra, inclusive, o autor explica o risco de se “comprar” as “verdades” do livro: Esperamos que ao oferecer a mais ampla variedade de depoimentos em primeira pessoa sobre aquele fim de semana histórico, além dos que foram peneirados através da névoa do tempo durante essas quatro rápidas décadas, você possa ter um testemunho bastante confiável para formar suas próprias conclusões a respeito do Woodstock. Mas também fazemos o seguinte alerta. Pegue as quatrocentas mil versões de verdade do número estimado de pessoas que estiveram lá, e então some aos relatos dos que juram que estiveram lá, mas não estiveram. Finalmente, inclua na equação as centenas de milhões que viveram o festival indiretamente através de filmes, gravações, documentários, livros, artigos e narrativas orais que rodaram pelo mundo nestes quarenta anos. Junte os fatos quantitativos sobre o evento aos mitos e às lendas e você tem uma boa ideia de quão camaleônica é qualquer coisa que se refira a Woodstock (FORNATALE, 2009, p.10).
  • 27. 26 Não se trata de uma “confusão causada” por aquele sentimento de pertencimento, de identificação: o imaginário, que carrega parte da cultura e vice- versa, como apresentamos anteriormente através das lentes de Maffesoli (2001)? Sejam os relatos, os livros, documentários e tudo que Fornatale (2009) citou em sua obra, isso não faz parte do elemento “cumulativo” que constrói o imaginário? Sim. Entre os muitos lados, e, porque não, imaginários e imaginados, abordados pela obra de Fornatale (2009, p.10), temos o depoimento de Graham Nash, membro fundador do grupo Crosby, Stills, Nash, bem como artista solo: “A lenda e o mito do Woodstok se tornaram maior que a sua realidade”. O que vai ao encontro do que acredita Fornatale (2009), já que para ele a construção do mito começou logo após uma semana do festival. Para ilustrar sua tese, Fornatale (2009, p.10-11) cita um trecho de uma matéria da Revista Time do dia 29 de agosto de 1969: A confusa história da humanidade está cheia de transformações óbvias e eventos significativos: batalhas vencidas, tratados assinados, governantes eleitos ou depostos, e agora, aparentemente, planetas conquistados. Igualmente importantes são os de grandes e repentinos movimentos populares que afetam mentes e valores de uma geração ou mais, nem todos amarrados de uma maneira ordenada a um tempo ou espaço. Olhando para os Estados Unidos dos anos 60, historiadores futuros podem muito bem procurar o significado de tal movimento. [...] E aquilo que nasceu como um empreendimento com intenção comercial - como explica Stan Goldstein citado em Fornatale (2009, p.47), coordenador de várias áreas do Woodstock, pois nunca foi cogitado ser um festival gratuito, pelo contrário, tratava-se de um evento para se explorar todas as maneiras possíveis de lucro - virou o Woodstock de 1969 e o de quarenta anos depois: um sem fim de imaginários. Entre eles, uma passagem da obra de Fornatale (2009, p.41), que enfatiza o Woodstock como um “evento de proporções bíblicas”: Na tumultuada época do final dos anos 60, milhões de jovens estavam criando um novo meio de vida e estes três dias de paz e música forneceram o microcosmo perfeito para colocar em ação seus ideais culturais, políticos e sociais. A busca espiritual de meio milhão de jovens os trouxe a Woodstock. Essa busca espiritual muito tinha a ver com o crescente abismo do país potencializado pela Guerra no Vietnã, como assinala Fornatale (2009, p.64):
  • 28. 27 Ao mesmo tempo em que esta geração estava abraçando sexo, drogas e rock’n’roll, aprendia a suportar o choque e o trauma dos assassinatos, os distúrbios raciais e a brutalidade policial. Eram essas as nuvens que pairavam sobre o Woodstock, e nada tinham a ver com o tempo. Vale ressaltar que o desgosto contra a Guerra no Vietnã significava o rechaço pelas consequências do envio dos soldados norte-americanos munidos de armamentos de última geração ao Vietnã Sul para lutar contra o Norte desse país. Retomando brevemente a história, de acordo com Valer (2007, p.170), a Indochina (Laos, Camboja e Vietnã), ex-colônias francesas, foi invadida pelo Japão durante a Segunda Guerra Mundial, mas em 1945 declarou independência, que não foi reconhecida pela França, que, por sua vez, voltou a dominar a região. Em 1954, através da Conferência de Genebra a França reconheceu a soberania dos países e retirou-se da região. Entretanto, se Camboja e Laos puderam manter a integridade do território, o Vietnã teve de ser dividido entre Norte (socialista) e Sul (capitalista). Sendo assim, o país deveria reunificar-se em 1956, quando ocorreriam novas eleições e a população escolheria a forma de governo e o sistema econômico a ser adotado. O que ocorreu, porém, foi uma guerra civil de 15 anos, assim como explica Valer (2007, p.170): Devido à Guerra Fria, os EUA apoiaram o Vietnã do Sul, através de uma ditadura cruel que fez milhares de vítimas, pois o medo norte-americano era de que este país se tornasse socialista, o que poderia gerar o chamado “efeito dominó”, ou seja, provocar outras revoluções socialistas em toda a região asiática. Foi Kennedy 6 quem iniciou o envio de tropas para o Vietnã; eram cerca de 10 mil soldados chamados por ele de ‘assessores militares’. Em 1965, cerca de dois anos após a morte do presidente Kennedy, quem estava na presidência dos EUA era o impopular Lyndon Johnson, que “continuou e intensificou a interferência na Guerra do Vietnã”. (VALER, 2007, p.186) Talvez aí esteja o grande motivo pelo qual não se reelegeu. Somente em 1973, quando assinado o Acordo de Paris é que os EUA retiraram as tropas: “[...] seguindo a política de ‘vietnamização’ da guerra, segundo a qual os EUA retirariam suas tropas da guerra, mas continuariam a mandar armamentos e apoio tecnológico para o Vietnã Sul”. (VALER, 2007, p.171). Em 1975, o Norte conquista a região Sul, unificando a nação sob a égide do socialismo. 6 John Fitzgerald Kennedy, presidente dos EUA entre 1961 e 1963.
  • 29. 28 Ao final, a revolta, indigestão, ou a “nuvem que pairava sobre o Woodstock” provavelmente se dava, segundo dados da Folha Online, por causa dos 8.722.000 americanos participantes da guerra, dentre eles, 58.193 mortos, e pela baixa de mais de 1 milhão de vietnamitas: Em 15 anos de guerra, foram jogadas sobre o Vietnã mais toneladas de bombas do que todas as lançadas durante a 2ª Guerra Mundial, além de experiências com armas químicas e bacteriológicas. Os Estados Unidos gastaram mais de 150 bilhões de dólares, destruíram cerca de 70% de todos os povoados do norte e inutilizaram mais de 10 milhões de hectares de terra (COMPARE, 2001). Como já afirmamos anteriormente, para Cardoso (2005), não se trata de um grupo homogêneo, nem inteiramente originário dos anos 60, embora a experiência da revolta tenha marcado essa geração, que tem como traço a transgressão dos valores estabelecidos: A noção de traço, entendida na acepção de uma marca distintiva, permite, a partir da identificação de sua presença ou ausência, explicitar momentos em que a geração dos anos de 1960 poderia ser caracterizada como uma experiência de revolta, assim como outros em que essa experiência estaria ausente. A possibilidade dessa percepção é importante na medida em que permite questionar o mito que foi sendo construído sobre essa geração, quando sua imagem se congela na forma de uma unidade imaginária. (CARDOSO, 2005, p.99). Basta retornarmos aos depoimentos sobre o Woodstock para temos um significativo exemplo da “unidade imaginária” a que Cardoso (2005) se refere. Para Dale Bell, produtor associado ao filme ‘Woodstock’, citado por Fornatale (2009, p.155): O festival em si foi uma viagem de ‘volta ao jardim’. Estava inerente nas letras. Falava-se em voltar ao verde, retornar ao meio ambiente, voltar ao jardim. Escapar da cidade, da guerra, se reunir. Viver juntos como uma família. Um tipo de casamento aberto que prevalecia no final dos anos 60 e começo dos 70. E nesse casamento também estava presente a tríade do mito/imaginários/período: sexo, drogas e rock’n’roll. Não necessariamente nessa ordem. Tomemos como exemplo a maconha. Para Fornatale (2009, p.89), essa droga “[...] foi facilmente injetada na corrente sanguínea da Nação Woodstock.”. Se muito antes daquele final de semana já era a preferência dos músicos de jazz e
  • 30. 29 blues do começo do século XX, ganhou ainda mais importância após o festival. Por fim, Fornatale (2009, p.167), através de uma personalidade do rock, resume em cinco palavras sua percepção do período: “Janis [Joplin] estava no epicentro de um pentagrama onde cinco forças muito poderosas do final dos anos 60 convergiam: bebidas, droga, música, sexo e talento”. Sem deixar de arrematar com a declaração de Joshua White, um dos artistas mais importantes do black folk e blues norte-americano, bem como ativista social: “Por causa do Woodstock, e por muitos anos, depois, não se podia apresentar algo que não tivesse um forte tema pacifista, de universalidade e de amor. As pessoas só estão compreendendo isso agora” (FORNATALE, 2009, p.45). Vale lembrar também que não foi somente o Woodstock quem deixou marcas profundas na época. Três meses após os “3 dias de paz e amor”, acontecia o festival de Alamont, num autódromo nos arredores de Oakland. Groppo (2001) explica que incidentes de violência por parte dos seguranças e também do público tornaram o evento desastroso, demonstrando que mesmo dentro dos sonhos hippies, violência e agressividade faziam uma secreta morada: Responsável pela segurança do festival, a gang dos Hells Angels apenas ajudou a fazer confusão, atacando em pleno palco o cantor do grupo de rock Jefferson Airplane. Quando os Rolling Stones, a atração esperada por todos, começou a tocar, os Hells Angels ajudaram a patrocinar um empurra- empurra, distribuindo golpes nos que estavam mais à frente. Talvez para se defender, um jovem hippie e negro de 18 anos sacou uma arma e os motoqueiros reagiram matando-o a facadas, golpes com barras e pontapés. O palco foi invadido e o show dos Rolling Stones foi interrompido. (GROPPO, 2001, p.3). A contradição gerada pelos fatos, para Groppo (2001, p.5), na verdade revela o que o próprio capitalismo exigia das classes médias: consumo em vez de sacrifícios puritanos, satisfação imediata das necessidades em vez de gratificações póstumas, aquisição de bens de consumo instantâneos em vez de bens duráveis, estilos de vida mais livres em vez de seriedade e sobriedade. É por isso também que Cardoso (2005) chama atenção em sua tese ao risco de tornar o movimento caricatural no momento em que se expõem seus grandes traços. Nesse caso, a geração “passa a ser tratada pelos seus “herdeiros” como uma categoria vazia, sem historicidade”. Por outro lado, a autora também afirma que o que se tem escrito sobre a geração dos anos 60 aponta a mutação cultural
  • 31. 30 produzida pelos diversos grupos naquele momento, e, ao mesmo tempo, acentua os efeitos das mudanças sobre as gerações que seguem: Essas gerações seriam herdeiras das mudanças advindas com os movimentos sociais daqueles anos, que prosseguem, em parte, nos anos de 1970: as transformações da imagem da mulher, com o feminismo; a liberação sexual; as modificações na estrutura da família; a entronização do modo jovem de ser como estilo de vida; a flexibilização das hierarquias e da autoridade; a construção de novas relações entre o adulto e o jovem e o adulto e a criança; a criação de um novo imaginário da fraternidade; a introdução do “novo” na política; a emergência das questões ecológicas como se fossem também políticas, para ficar com algumas das referências mais destacadas (CARDOSO, 2005, p.97). Depois de passear pelos conceitos, agentes e imaginários da contracultura nos anos 60, podemos seguir adiante em busca da definição ou de elementos da contracultura contemporânea. Como observado pelo pesquisador Groppo (2001, p.1), se por um lado autores consideram a contracultura como um movimento juvenil e momentâneo gerado pelas contradições advindas da adaptação da nova sociedade capitalista formada no pós-guerra, para outros “[...] a crise dos anos 1960 e a Contracultura foram lidos como um “momento capital da passagem do modernismo ao pós-modernismo [...]”. É justamente sobre essa travessia que trataremos a partir de agora.
  • 32. 31 3 A CONTRACULTURA PÓS-MODERNA Para tentar classificar o Burning Man, objeto de estudo deste trabalho, como um evento, por definição, contracultural contemporâneo precisamos entender, primeiramente, qual o caminho percorrido pela contracultura, seja ela observada como essência/ideologia ou como período histórico, até os dias de hoje. Para tanto, caminharemos por este capítulo buscando responder de maneira geral às seguintes perguntas - não necessariamente nessa ordem: que rumo deu a contracultura? O que significa transgredir nos anos 00? Qual a cara das dessas tribos pós-modernas? 3.1 DE MAIO DE 68 AO PÓS-MODERNISMO CULTURAL Se no capítulo anterior os holofotes estavam focados na contracultura como período de contestação dos valores modernos, reconhecendo nos Estados Unidos o epicentro do movimento, a partir de agora vamos nos aprofundar naquilo que, até então, foi apenas pincelado como aperitivo: a contracultura para além das fronteiras norte-americanas, que, por sua vez, muito pode explicar a transição da Idade Moderna para a, conceitualmente e praticamente complexa, pós-modernidade. Primórdios de 1968. Os “cabeludos” norte-americanos eram alvos recorrentes dos agentes da lei, a contracultura seguia frequentemente aclamada por intelectuais, virava produto e era afirmada pela cultura do entretenimento, tinha-se nos hippies a ideia de futuro, ou ao menos assim eles ainda se enxergavam. Por lá, a palavra “revolução” ganhava força, era a nova ordem. Entretanto, foi do outro lado do Oceano que a primeira manifestação dessa nova postura eclodiu. E foi uma surpresa. Na França, os jovens não tinham adotado o estilo contracultural psicodélico no mesmo grau que nos Estados Unidos e na Inglaterra, mas uma importante subcultura de estudantes franceses estava se encaminhando para um conjunto muito particular de memes 7 anarquistas de esquerda que não eram diferentes da visão digger de relações espontâneas. [...] Começou com uma tentativa da polícia de Paris de encerrar um encontro de estudantes que planejavam protestos contra a Guerra do Vietnã 8 , sob o 7 O termo foi proposto por Richard Dawkins, em seu livro de 1976, ‘O Gene Egoísta’. Significa: unidade de informação com capacidade de se multiplicar, através das ideias e informações que se propagam de indivíduo para indivíduo. 8 Ver capítulo 2.3 deste trabalho.
  • 33. 32 pretexto de que extremistas de direita poderiam atacar a reunião (GOFFMAN e JOY, 2007, p.312-313). Em resumo, a atitude da polícia serviu como ímã para uma multidão de estudantes, que lutaram, segundo Goffman e Joy (2007), tão firme e fortemente quanto os tiras. Para os autores, era isso que os diferenciava dos jovens dos Estados Unidos: a disposição para lutar pelos seus direitos apoiada pelo público geral, entre eles professores, funcionários de universidades e militantes operários. Dessa forma, as manifestações contra a repressão se tornavam constante nas ruas, “até que, finalmente, a polícia de Paris decidiu limpar as ruas. A batalha que se seguiu deixou centenas de feridos e a França explodiu” (GOFFMAN e JOY, 2007, p.313). Explodiu e consequentemente parou, pois cerca de 10 milhões de trabalhadores entraram em greve, enquanto outros assumiram posse de suas fábricas, derrubando a administração e pondo em prática os sonhos de comunistas revolucionários, assim como os alunos da Universidade Sorbonne, em Paris, também fizeram. Para Goffman e Joy (2007, p.313), todos buscavam os direitos democráticos básicos: Memes radicais anarquistas se espalharam quase tão rapidamente quanto a greve. Estudantes e trabalhadores agora não queriam apenas os seus direitos, ou um novo conjunto de benefícios e privilégios. Eles começaram a falar de um novo tipo de sociedade. Eles queriam que o governo nacional de Charles de Gaulle renunciasse. Ainda que a “Revolução Francesa” de 68 tenha se dissolvido em função da contrarrevolução dos direitistas radicais e neonazistas, assim como das concessões como salários mais altos e outros benefícios, Goffman e Joy (2007, p.312) relembram que “o estbilishment Francês nunca mais tentou impedir que estudantes organizassem encontros ou manifestações legítimas”. Por fim, trata-se de uma expressão de um momento de ruptura do sujeito moderno defendida por alguns autores, entre eles Almeida (2007, p.9), que, justamente por esse “descentramento”, encontra pontos de convergência entre as amplas e complexas palavras “pós-modernidade” e “contracultura”: Mais que um momento histórico de amplas repercussões econômicas e sociais, o que em geral as têm singularizado é a desconstrução de paradigmas. Chama a atenção o destaque que a dimensão cultural tem em
  • 34. 33 ambas. Especialmente suas consequências sobre as atitudes e os comportamentos do homem contemporâneo. Sobre suas mentalidades. Além disso, podemos considerar que outro laço comum entre os dois termos são os embates conceituais entre os autores que sobre elas lançam seus discursos. Steven Connor discute em seu livro ‘Cultura Pós-Moderna’, de 2004, os diagnósticos disciplinares da academia a respeito do termo. Se já havia sido usado por alguns escritores dos anos 50 e 60, foi nos anos 70 que se cristalizou como conceito, quando apareceu nas áreas culturais, filosóficas, arquitetônicas, literárias, assim como nos estudos sobre o cinema. A controvérsia, contudo, mostra-se na hora de definir se “pós-modernismo” realmente engloba e unifica o contexto contemporâneo, já que unidade, definitivamente, não combina com o pós-modernismo. E é justamente o que Lampert (2005, p.14) resume de sua busca pelas etapas e compreensão do termo ao longo da história: Em face da complexidade, abrangência, ambivalência, contradições, indefinições, pouco consenso, muitos questionamentos são suscitados em relação a pós-modernidade: qual o significado real do termo? – a pós- modernidade é uma mudança pragmática? – uma revolução? – uma renovação? – uma ruptura? – uma ideologia? – uma crise da modernidade? – uma saída da modernidade? – um período de transição? - a pós- modernidade acabou com os dogmas do processo e do desenvolvimento? – o pós-moderno é mais moderno que o moderno? – é antimoderno ou pré- moderno? – é conservador? – a pós-modernidade existe? – ela tem legitimidade? – onde e como a pós-modernidade se situa na história? Afinal, por que tanto se fala, discursa e se escreve sobre esse fenômeno? [...] Connor (2004, p.183), por outro lado, simplifica em duas perspectivas a problemática pós-moderna: [...] de um lado, de uma transformação da história por um simples ato de vontade imaginativa, e, de outro, de uma absoluta imponderabilidade em que tudo é imaginativamente possível, porque nada importa de fato. Para Lampert (2005), assim como para outros autores, incluindo Connor (2004), é evidente que não se trata de algo fácil de definir. Como saber se é uma mudança paradigmática, um movimento cultural ou uma crítica aos tempos modernos, visto como ataca as dicotomias criadas por esse período, como “realidade objetiva/subjetiva, fato/imaginação, secular/sagrado, público/privado, científico/vulgar”? (LAMPERT, 2005, p.13).
  • 35. 34 Ainda assim, há muitos que arriscam pincelar traços e transformar o fenômeno em período, como se esse fosse realmente um esgotamento do mundo moderno. Desse modo abordaremos o tema neste capítulo, uma vez que já comparamos a contracultura (também como período histórico) com a pós- modernidade e diagnosticamos pontos em comum em suas expressões. Portanto, nos aproximaremos da ideia de Lampert (2005, p.18) no que toca a história do pensamento ocidental e seus 3 metaparadigmas: o pré-moderno, o moderno e o pós-moderno: A pós-modernidade, a terceira e grande mudança paradigmática, que a partir da segunda metade do século XX está vigorando, segundo Santos Filho (1998) apresenta as seguintes características: a presença ou necessidade de sistemas abertos; o princípio de indeterminação na ciência; a descrença nas metanarrativas; o foco no universo; a denuncia da mídia na representação do mundo; a explosão da informação e o concomitante crescimento das tecnologias de informação; o capitalismo global; a humanização do mundo em todas as dimensões; a integração entre Estado e economia ou mercado e tendências à hegemonia do mercado; o indivíduo humano como irônico, cínico, fragmentado, esquizofrênico; a queda do sujeito e a nova concepção do tempo de da história; a complementaridade entre alta e baixa cultura. Convém, nesse momento, fechar o foco e nos concentramos na contextualização da cultura na pós-modernidade, na relação entre as pessoas e apontarmos para o futuro da contracultura sobre esses “novos” ou “transformados” pilares. Santaella (2004) retoma o agigantamento crescente dos meios de comunicação de massa no século XX, o que também aumentou a dificuldade de distinguir o popular, o erudito e o massivo. Nos anos 80, o consumo cultural se dá por novas formas, essas: [...] propiciadas pelas tecnologias do disponível e do descartável: as fotocopiadoras, videocassetes, videoclips, videojogos, o controle remoto, seguido pela indústria dos CDS e a TV a cabo, ou seja, tecnologias para demandas simbólicas heterogêneas, fugazes, mas personalizadas. Junto a isso, foi aumentando de modo muito evidente a tendência para os trânsitos e hibridismos dos meios de comunicação entre si, criando redes de complementaridades a que, em 1992, chamei de Cultura das Mídias [...] quer dizer, o surgimento de processos culturais distintos da lógica que era própria da cultura de massas (SANTAELLA, 2004, p.52). Se por um lado a cultura de massas é essencialmente produzida para poucos e consumida por uma massa, que por sua vez não tem poder para interferir nos
  • 36. 35 produtos simbólicos que consome, para Santaella (2004, p.53), a cultura das mídias inaugurava uma dinâmica que, tecendo-se e se alastrando nas relações da mídia entre si, começava a possibilitar aos seus consumidores a escolha entre produtos simbólicos e alternativos. O que também e principalmente incorpora uma nova proposta é a visão da própria vida. Aliás, essa demanda de uma nova “mecânica” da cultura das mídias é o reflexo disso. Maffesoli retorna neste segundo capítulo, dentro do contexto já discutido sobre as controvérsias acadêmicas a respeito do tema, para afirmar que é sempre bom ressaltar os traços essenciais de uma época, ainda que seja preciso “forçar a barra um pouco, exagerando nas especificidades” (MAFFESOLI, 2012, p.16). Para isso, o autor especifica então um traço pós-moderno através do aspecto experimental: “A experiência é outra forma de designar tradição. Para além do racionalismo esclerosante, que foi marca dos tempos modernos, a ênfase é posta na vida, fonte contínua de renovações, de dinamismo existencial” (MAFFESOLI, 2012, p.25). Trata-se da valorização da simplicidade do original, a da vida de todos os dias. Esse ressurgimento da vida quotidiana, por sinal, é, segundo autor, a primeira característica da pós-modernidade. Maffesoli caracteriza o quotidiano então como uma forma de volta ao paganismo, “ao paganus, camponês ligado a essa terra aqui, que aproveita, tão bem quanto mal, os frutos desse mundo, que repatria o gozo no aqui e agora” (MAFFESOLI, 2012, p.25). Esse paganismo se observa nos grupos musicais, nas afinidades sexuais, nas tribos e, inclusive, no forte hedonismo quotidiano descrito pelo autor: Fim de um ciclo, com efeito, em que a solidariedade mecânica, um pouco racional e abstrata (solidariedade do contrato social e do Estado- providência), dá lugar a uma solidariedade orgânica, vinda de baixo e reinvestindo formas “arcaicas” (primeiras, fundamentais), tribais, e repousando sobre o sentimento de pertencimento e as emoções vividas em comum (MAFFESOLI, 2012, p.26). E como falar em sentimento de pertencimento sem falar em tribo? De acordo com Maffesoli (2012), as tribos pós-modernas são uma forma de compartilhar um gosto específico. O mundo tribal, por sua vez transforma esse compartilhamento em
  • 37. 36 legitimação, racionalização perfeita ao prazer, ao desejo ou simplesmente à necessidade de estar junto, de viver junto. “O lugar e o gosto nos conduzem a essa outra característica própria às tribos pós-modernas, que é o fato de enfatizar o que se convencionou a chamar de criança eterna” (MAFFESOLI, 2012, p.50). Paixão e desejo, o instinto, como elementos essenciais para experimentar uma nova maneira de ser, de “brincar” nos “lugares urbanos importantes”, como explica Maffesoli (2012, p.50). Ao evocar as teorias desse mesmo autor a respeito dos traços, identidade, atmosfera do quotidiano pós-moderno, todas as palavras parecem rimar com a essência do Burning Man, que muito em breve será analisado através dessas mesmas lentes. Fala-se em porosidade de identidades, seja ela sexual, ideológica, profissional. Em pessoa plural. É, por sinal, provavelmente, esse o “perfil” de quem deixa a vida “normal” na cidade para se aventurar por sete dias no deserto com mais de cerca de 50 mil pessoas. Essa pessoa provavelmente se enxerga plural e se locomove até a cidade provisória construída pelo festival porque, de alguma forma, se identifica com o fenômeno. Para Hall (1997, p.12) “a identidade é formada na ‘interação’ entre o eu e a sociedade. [...] A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, ‘sutura’) o sujeito à estrutura”. Entretanto, o que se apresenta no mundo pós- moderno é justamente uma mudança nessa dinâmica. Se antes o sujeito possuía uma identidade unificada e estável, agora se torna fragmentado. Não falamos mais de uma, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas “O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático” (HALL, 1997, p.13). Ainda de acordo com Hall (1997), cabe ressaltar que a identidade é formada através de processos inconscientes, não se trata de algo inato. Assim como o imaginário já abordado nas primeiras páginas, a identidade está sempre em processo, sendo formada. E, assim como essa identidade, fica evidente que quem também está sempre em transformação é a forma como essas fragmentadas identidades se comunicam e se reinventam no cenário pós-moderno. A “linearidade” das culturas de massa da modernidade vai cedendo espaço a outro tipo de interação, seja como Santaella (2004) indicou anteriormente sobre a
  • 38. 37 oferta de produtos alternativos ao consumidor, seja a demanda por ele apresentada. A seguir, entenderemos a passagem da cultura de mídias para a cibercultura rumo à globalização e à formação das tribos que se complementam entre espaços físicos e virtuais, observando assim a transgressão, ou não, que isso representa no mundo contemporâneo. 3.2 CONTRACULTURA DE SOFÁ, A EVOLUÇÃO Ao teorizar as transformações da cultura no século XX, Santaella (2004) conclui que a dinâmica da cultura midiática trata-se de um representativo exemplo da cultura pós-moderna. Para justificar sua teoria, a autora recorre a Walter Benjamin (1985), cujo ponto de vista traz também a atividade cultural como um sistema produtivo, ou seja, “a cultura vista como um tipo muito especial de produção humana” (apud SANTAELLA, 2004, p.54). E, assim como a própria teorização do que é, por fim, o pós-modernismo, também encontra nãorespostas ou infinitas delas: o que é produzido? Para Santaella (2004), até o século XIX era mais simples determinar as formas, os códigos e os gêneros da cultura. Belas artes, artes do espetáculo, belas letras, desde o Renascimento colecionando códigos e, por consequência, bem distinguidos do cenário folclórico ou das formas populares de cultura. Mas aí, eis que vem a Revolução Industrial: O aparecimento de meios técnicos de produção cultural (fotografia e cinema) e a crise dos sistemas de codificação artísticos efetuados pela arte moderna, na pintura, música, teatro, dança, foram dissolvendo os limites bem demarcados entre arte e não arte. [...] Essas dificuldades, entretanto, pareciam brincadeiras de criança quando comparadas às complicações que os meios de comunicação e difusão eletrônicos de massa (rádio e TV) iriam trazer. Depois deles, tudo na cultura foi virando mistura (SANTAELLA, 2004, p.56). As “complicações” acima citadas pela autora não sugerem uma análise pejorativa do termo, explicam que o rádio e a TV provocaram recomposições nos papéis, cenários sociais, inclusive no modo de produção das formas de cultura. As fronteiras foram borradas, mas nada deixou de existir por isso. Isso porque a autora defende que a “cultura humana existe num continuum, ela é cumulativa, não no sentido linear, mas no sentido de interação incessante de tradição e mudança,
  • 39. 38 persistência e transformação” (SANTAELLA, 2004, p.57). E assim, os meios de comunicação foram se tornando aliados das formas de cultura, uma vez que, na produção cultural, os meios de comunicação são também meios de difusão. Para arrematar, Santaella (2004, p.57) subdivide a produção da cultura em outros três níveis: “o da conservação, o da circulação e difusão e o da recepção ou consumo de seus produtos”. A autora ilustra o fenômeno tomando como exemplo a estruturação da exposição de Monet no Museu Nacional de Belas Artes e no Museu de Arte de São Paulo alguns anos atrás: Introduzida por um audiovisual, a exposição de quadros, caricaturas, objetos pessoas e fotografias do pintor, junto com telas de seus contemporâneos e amigos, foi acompanhada por um site na internet, visitado por dois milhões de internautas, por salas multimídias e pela produção de um CD-Rom. A dinâmica da cultura midiativa se revela assim como uma dinâmica de aceleração do trafego, das trocas e das misturas entre as múltiplas formas, estratos, tempos e espaços da cultura. Sem fazer muito esforço para reconhecer ou uma análise profunda, temos, no pequeno parágrafo acima, uma descrição do Burning Man como evento e sua mecânica: a mistura do palpável com o virtual, no deserto ou no sofá de casa a navegar pelo site do festival, a um oceano todo de distância, que seja. Falamos aqui em cruzamento de identidades também, tanto culturais quanto pessoais, obviamente. Temos aqui a transnacionalização da cultura, que pega carona na nova ordem econômica e social das sociedades industriais pós-industriais globalizadas. Ainda segundo Santaella (2004, p.59), temos na dinâmica cultural midiática “a peça chave para se compreender os deslocamentos e contradições, os desenhos móveis da heterogeneidade pluritemporal e espacial que caracteriza as culturas pós- modernas”. A autora afirma que sem as tecnologias das comunicações atuais, a globalização não teria, de fato, sido possível. Lampert (2005), menos otimista, recorre à Dupont e Ossadon (1998) para expressar a perda do referencial de valores pelo homem frente à superficialidade e utilidade dos artigos industriais muitas vezes dispensáveis à sobrevivência da espécie. Inclui nisso, portanto, a subversão do ambiente pelo homem graças à tecnologia, que, por sua vez, modificou no ser humano a maneira de pensar, agir e interagir com o mundo:
  • 40. 39 A ciência e a tecnologia aumentaram nossa capacidade de ação de uma forma sem precedentes. Fizeram expandir a dimensão espaço-tempo dos nossos atos. Hoje, a intervenção tecnológica pode prolongar as consequências no tempo e no espaço, muito além da dimensão do próprio ato, através de nexos de causalidade cada vez mais complexos e opacos. (OSSADON, 1998 apud LAMPERT, 2005, p.27) Para toda essa instabilidade do cenário cultural pós-moderno, Santaella (2004) adiciona a revolução da informação com que o mesmo passa a conviver. A tal da revolução digital iniciada em meados dos anos 90: texto, som, imagem e vídeo em uma mesma linguagem universal, onde todas as mídias “podem ser traduzidas, manipuladas, armazenadas, reproduzidas e distribuídas digitalmente produzindo o fenômeno quem vem sendo chamado de convergência de mídias”. (SANTAELLA, 2004, p.60). Soma-se a isso o fenômeno que surge da ligação da informática com as telecomunicações. Distribuição, difusão da informação praticamente desimpedida que significa: conexão de todo o globo na formação de novas formas de socializar e de se constituir a/na cultura. A isso se dá o nome de cultura digital ou cibercultura. Se Lipovetsky (2004, apud LAMPERT, 2005, p. 27), imprime a sociedade pós- modernista num contexto de uma cultura hedonista e psicológica que: Incita à satisfação imediata de necessidades, estimula a urgência dos prazeres, enaltece o florescimento pessoal, coloca no pedestal o paraíso do bem-estar, do conforto e do lazer. Consumir sem esperar; viajar; divertir-se; não renunciar a nada: as políticas do futuro radiante foram sucedidas pelo consumo como promessa de um futuro eufórico. Lévy (1999, p.11) “culpa” de forma positiva esses mesmos jovens pelo crescimento do ciberespaço, um novo espaço de troca que “resulta de um movimento internacional de jovens ávidos para experimentar, coletivamente, formas de comunicação diferentes daquelas que as mídias clássicas propõem”. Entusiasta que é, Lévy (1999, p.25), não considera que a sociedade esteja/seja determinada pela técnica: A emergência do ciberespaço acompanha, traduz e favorece uma evolução geral da civilização. Uma técnica é produzida dentro de uma cultura, e uma sociedade encontra-se condicionada por suas técnicas. E digo condicionada, não determinada. [...] Dizer que a técnica condiciona significa dizer que abre algumas possibilidades, que algumas opções culturais ou sociais não poderiam ser pensadas a sério sem a sua presença.
  • 41. 40 Talvez entusiasta não seja uma palavra suficientemente esclarecedora para o conceito que Santaella (2004, p.73) apresenta de Lévy. Para a autora, trata-se de um utopista que cultiva tanto a magia da tecnologia quanto “a crença mitológica de que o capitalismo é um sistema justo, racional e democrático, que o capitalismo é benigno e natural”. Do outro lado da corda, portanto, Santaella (2004, p.75) não enxerga com inocência a ebulição do ciberespaço, já que esse é fruto do capitalismo contemporâneo e está impregnado das formas culturais e dos paradigmas do capitalismo global: O ciberespaço, por isso mesmo, está longe de inaugurar uma nova era emancipadora. Embora a internet esteja revolucionando o modo como levamos nossas vidas, trata-se de uma revolução que em nada modifica a identidade e natureza do montante cada vez mais exclusivo e minoritário daqueles que detêm as riquezas e continuam no poder. Para visualizarmos essa “desigualdade cibercultural”, basta olharmos os números divulgados neste ano pela União Internacional de Telecomunicações (UIT). Estima-se que, até o final de 2013, cerca de 2,7 bilhões de pessoas, que representam 39% da população mundial (que já se aproxima dos 7 bilhões de habitantes), estarão usando a internet9 . Entretanto, o acesso à internet deve seguir limitado nos países em desenvolvimento: 31% contra os 77% previstos para os países desenvolvidos. Ainda assim, se formos otimistas e pensarmos que se trata de uma desigualdade “passageira”, em movimento retardado, podemos adicionar ao discurso as razões pela qual Santaella (2004, p.75) segue aclamando a cibercultura “mesmo que a internet se torne prioritariamente um meio para o comércio e entretenimento eletrônicos, ela ainda será uma espécie de céu aberto para uma multiplicidade de atividades interativas que não existiram no passado”. A autora acrescenta também às redes um caráter revolucionário. Isso porque essa “constituição comunicativamente revolucionária” permite que muitas vozes sejam ouvidas ao redor do mundo por um baixo custo. Desse modo, “um número incontável de organizações culturais, artísticas, políticas e sociais está tirando vantagem e sem a qual essas organizações estariam marginalizadas ou 9 Ver release completo em: ITU. ITU releases latest global technology development figures. Disponível em: <http://www.itu.int/net/pressoffice/press_releases/2013/05.aspx#.UYz-n7Uz2So>. Acesso em: 5 mai. 2013.
  • 42. 41 silenciadas”. Por falar em revolução, existem outros traços na história da internet que a posicionam como tal. Lampert (2005, p.29) relembra que a mesma tem origem nos Estados Unidos, nascida para suprir os interesses militares do império norte- americano e resultado da própria evolução tecnológica, o que vai ao encontro de Castells (2003, apud LAMPERT, 2005, p.29), que compara essa história a uma “aventura humana extraordinária”: Ela põe em relevo a capacidade que têm as pessoas de transcender metas institucionais, superar barreiras burocráticas e subverter valores estabelecidos no processo de inaugurar um mundo novo. Reforça também a ideia de que a cooperação e a liberdade de informação podem ser mais propicias a inovação do que a competição e os direitos de propriedade. Hora de parar. De voltar ao segundo capítulo, quando Goffman e Joy (2007) citam o mítico Prometeu como o ícone de uma das vertentes contraculturistas e dos hackers do mundo contemporâneo. Hora de retomar o conceito de contracultura. Transgressão. Inconformidade com o sistema vigente. Se analisarmos esse panorama pelas lentes de Castells (2003) não temos nesse “processo de inaugurar um mundo novo” uma contracultura cibernética? Goffman e Joy (2007, p.371) aparecem agora para explicar o que e se uma coisa tem a ver com a outra: Essa cultura hacker (com a palavra hacker significando programadores de computador e pessoas que tinha aquilo como um passatempo, e não apenas foras-da-lei) produziu muitas posturas ou éticas que eram influenciadas tanto pelo espírito antiautoritário da contracultura quanto pelo que eles consideravam implícito na natureza da computação e da comunicação. (Grifo nosso). Os hackers, também conhecidos como primeiros e verdadeiros cyberpunks10 , marcam o início da cibercultura, e, segundo Lemos (2004), são criadores da contracultura digital através de uma atitude contestadora do sistema tecnológico vigente. Marcelo Pimenta e Silva (2009), que analisa em seu artigo a formação das tribos da cibercultura a partir da contracultura, destaca a herança deixada pelos já estudados hippes e yippies, esses, surgidos no mesmo período como uma espécie 10 Ver mais em: LEMOS, 2010.
  • 43. 42 de dissidência mais politizada dos primeiros hippies americanos. Como afirma Pimenta e Silva (2009), os yippies se utilizavam dos veículos de comunicação para levar à sociedade americana uma contracultura mais radical que o simples pacifismo empregado pelos primeiros “o legado dos yippies deu-se com a utilização da mídia para subverter o sistema. Sua influência para os novos grupos contraculturais do ciberespaço é explicita nos hackers” (PIMENTA e SILVA, 2009, p.6). Lemos (2004) também afirma essa posição ao traçar um paralelo entre os hippies e yippies com os phreakers11 e os hackers para demonstrar a influência da contracultura nas tribos urbanas e virtuais do século XXI: A formação do underground high tech é diretamente influenciado pela contracultura americana e pela consolidação da sociedade dos meios de comunicação. O desenvolvimento das tecnologias de comunicação, assim com as atitudes sociocultural dos anos 60-70, contribuem para a emergência de dois fenômenos muito importantes para a consolidação da cultura cyberpunk: os phreakers e os hackers, os primeiros cyberpunks da rua. Como vimos, os cyberpunks tornaram-se os precursores da cibercultura, criando a cultura digital através de uma atitude contestadora de sistemas tecnológico vigente (LEMOS, 2002, p.215, Grifo nosso). Estamos falando dos anos 70, do surgimento do computador doméstico, entretanto, a ideia de acesso total e livre já havia brotado antes disso. E segue até hoje em batalha na cultura do computador. Aqui poderíamos falar de Steve Jobs, Bill Gates e seus respectivos pontos de vista, mas isso daria e já é caldo para uma nova entre as tantas existentes pesquisas a respeito do tema (GOFFMAN e JOY, 2007). Importante é agora reforçar que, assim como presumia, a cultura hacker, que segundo Pimenta e Silva (2009), desde os anos 80 ganhou espaço na mídia pelo comportamento rebelde e pela forma como partilhava informações, bem como gostos e interesses, ajudou de certa forma a descentralizar o poder do mundo. (GOFFMAN e JOY, 2007). Se levarmos em conta os três principais princípios levantados por Goffman e Joy (2007) ao citar o livro ‘Hackers: Heroes of the Computer Revolution’, de Steven Levy, que são o acesso livre e completo aos computadores, ser toda a informação disponível e desconfiar da autoridade e promover a descentralização, poderemos entender melhor o que essa última significa e enxergar de maneira prática como isso se apresenta na nossa sociedade: 11 Hackers de telefonia.
  • 44. 43 Uma dupla de geeks em uma garagem pode conduzir um negocio que costumava exigir uma equipe de vinte pessoas. Músicos podem rejeitar a grande e má empresa fonográfica e distribuir sua própria música. Um trabalhador de confiança, motivado, pode fugir do escritório centralizado e fazer seu trabalho em casa, mesmo que sua casa esteja a trezentos quilômetros de distância, transmitindo o resultado final de seu esforço no final do dia de trabalho. Modernos podem deixar a cidade e ainda assim participar virtualmente de subculturas sofisticadas (mas você ainda precisa tomar cuidado com aqueles reacionários do mundo real!). O movimento pacifista que se opunha à invasão americana do Iraque conseguiu organizar o maior protesto global da história sem grandes organizações e manifestações de massa. E o que é mais interessante, a disponibilidade de trilhões de bits de informação e desinformação conflitantes, válidos e inválidos descentraliza a atenção coletiva (GOFFMAN e JOY, 2007, p.377, Grifo nosso). Seja através da “postura hacker”, seja pelo consumo, pelo viver, ser parte da cibercultura, o que se observa através dos inúmeros estudos sobre o tema é, segundo Santaella (2004, p.105), a atenção voltada às “construções culturais e reconstruções nas quais as tecnologias atuais se baseiam e que, conversivamente, contribuem para desenvolver”. Pimenta e Silva (2009, p.2) vê nesse contexto a chance de revitalizar os preceitos da agitação sociais dos anos 60 e parte dos 70 e, ao invés de encerrar o período em seus limites históricos, permitir que a cibercultura, além de promover um espaço para ação de ativistas, ofereça uma espécie de “contrainformação”: [...] a possibilidade de discutir sua amplitude para a esfera pública tradicional, faz com que a tecnologia não constitua apenas um “palco” para meras trocas simbólicas entre grupos e atores sociais que busquem a identificação com outras tribos high tech – tendo apenas o sentido de pertencimento efêmero como característica principal das comunidades e redes sociais –, mas que vá além: constitua a consolidação de novas propostas, seja em socialização como na própria forma de referendar novas formas de comunicação alternativa aos grandes conglomerados de informação que estabelecem o modelo atual de sistema econômico e político, sem aberturas para discussão e construção de uma nova sociedade. (Grifo nosso). Temos aqui a deixa para Maffesoli (2012, p.102) explicar sua melhor definição para pós-modernidade: “sinergia do arcaico e do desenvolvimento tecnológico”. Se na idade média a catedral oferecia o leito para a comunidade comungar seus “mistérios”, hoje não é tão diferente assim: É nas igrejas eletrônicas, através de videogames, de sites, de blogs, de fóruns e enciclopédias que se desenrolam os ‘mistérios’ pós-modernos. Mistérios que unem entre si todos os iniciados (sexuais, musicais,
  • 45. 44 esportivos, religiosos, teóricos) que formam a socialidade do vir-a-ser (MAFFESOLI, 2012, p.103). Para o autor, a tecnologia que tinha desencantado o mundo já o está reencantando. Vivemos um “espetáculo coletivo de nuances diversas”. Maffesoli (2012) recorre a Max Weber para explicar o pulular cultural sem triagem que envolve as tribos que se reagrupam ao redor dos seus totens, a fragmentação dos saberes, os múltiplos avatares, manifestações, etc. E resume ao classificar o caldeirão, nas palavras de Weber como “politeísmo de valores”. Santaella (2004), por fim, aponta as duas consequências mais flagrantes da cibercultura: as inteligências coletivas e as comunidades virtuais, temas das páginas a seguir. 3.3 INTELIGÊNCIA COLETIVA E TRIBALISMO VIRTUAL Não estamos sozinhos. Voltamos de uma viagem na qual cruzamos o Oceano e ainda assim sentimos fazer parte do que deixamos do outro lado. Tampouco nos sentimos desvinculados quando abandonamos nossos lares permanente ou temporariamente. Isso, claro, se nos incluirmos no grupo das pessoas que têm acesso à internet. Estamos todos conectados. Os novos amigos que colecionamos pelo caminho, todos reunidos em um lugar virtual. Podemos ouvir as mesmas rádios, que antes tinham o alcance determinado pela sua frequência, da viagem das ondas, pois elas agora também podem ser ouvidas on-line. Um link basta para tudo fazer sentido, para pular para outro link, e outro, e outro. Curioso é perceber que, ao pensar no termo “inteligência coletiva”, a primeira coisa que, sem antes recorrer a autores, nos veio à mente foi trazer o exemplo da viagem, seja pelos bits ou fisicamente, fazendo check-in e embarcando em um avião. Bastaram-nos algumas páginas de ‘A conexão Planetária’, cujo título já nos sugere um norte, para afirmar com Lévy (2001, p.48) que estávamos no caminho certo. Quanto mais viajamos, no planeta ou nos livros, na Internet ou na sociedade em torno de nós, mais se abre o nosso espírito. A comunicação entre os homens desdobra-se, reflete-se, multiplica-se na interconexão entre as informações lentamente dispostas nas bibliotecas que explodem hoje no ciberespaço.