Rapto estratégia de conjugalidade e honra feminina na vila de conceição do coité do séc. xix
1. RAPTO: ESTRATÉGIA DE CONJUGALIDADE E HONRA
FEMININA NA VILA DE CONCEIÇÃO DO COITÉ NO SÉC. XIX
Eugênia Barreto Umbelino1
E-mail: melg2_coite@hotmail.com
Resumo
O propósito do texto é discutir como a sociedade coiteense relacionava a honestidade
sexual das mulheres aos valores de preservação da família e moralidade social, através
da análise de discursos jurídicos e depoimentos das pessoas envolvidas num processo-
crime de rapto ocorrido em 1893. Com o objetivo de revelar padrões de comportamento
feminino com relação ao casamento bem como arranjos matrimoniais que não se
amoldava aos padrões, tradicionalmente apontados como válidos pela historiografia.
Levando em consideração que na segunda metade do século XIX no Brasil houve uma
tendência cada vez maior em se romper com arranjos matrimoniais e desafiar a
autoridade paterna, em defesa do ideal romântico do casamento por amor.
Palavras-Chaves: Rapto. Casamento. Família. Honra feminina. Processo-crime.
O Brasil do século XIX com estruturas paternalistas de poder das
instituições criadas com base na família e na proteção da honra feminina pelo poder
público fez da virgindade e da fidelidade feminina os selos de garantia da honestidade
familiar. Com a progressiva separação do mundo público para o mundo privado o
centro da vida social se desloca das relações comunitárias para a escolha pessoal dos
indivíduos. Isso se dá com a emergência de um padrão de conjugalidade romântica no
Brasil que passou a alterar a formação de arranjos familiares em amplos segmentos
sociais. Como salienta Heráclito, “No plano de vivência conjugal, o padrão romântico
seria a expressão mais legítima da preponderância individual sobre os interesses”.
(FERREIRA FILHO, 2003, p.117).
Valores e comportamentos disseminados pela Igreja e por instituições do Estado,
práticas e atitudes comuns que transgrediam o código moral eclesiástico também
podiam influenciar as decisões e experiências de um grande número de indivíduos.
Visto que a Igreja assim como a autoridade paterna era um sério obstáculo a ser
enfrentado na constituição de relações conjugais. Face a esse problema era comum
encontrarmos aqueles que optavam por estratégias conjugais e as fizeram muitas vezes
1 Graduanda do 9º Semestre do Curso de Licenciatura em História pela UNEB.
2. 2
revelando a sua insatisfação perante essa sociedade em que a riqueza era muito
concentrada e o regime matrimonial importante mesmo entre os que nada possuíam,
pois criava solidariedade profunda entre os parceiros.
Este trabalho trata um pouco do cotidiano e das relações sociais estabelecidas na
Vila de Conceição do Coité do final do século XIX, numa tentativa de descortinar como
a Justiça e as pessoas comuns defendiam a honra feminina, bem como identificar a
presença de arranjos de amor que também estavam permeados nas relações afetivas das
jovens coiteenses da época e quais fatores influenciaram atitudes e comportamentos que
resultavam em raptos e uniões consensuais.
Vale salientar que os estudos relacionados com as constituições familiares e a
figura feminina na Bahia tratam, em geral, dos casos da elite da capital baiana e do
Recôncavo açucareiro. Sendo necessário observar as necessidades de análises que
identifiquem outros agentes presentes nos conflitos sociais que atentavam contra a
honra feminina e na prática do casar do século XIX. E que reconheçam famílias
originárias das relações múltiplas concebidas na sociedade baiana.
Portanto, a necessidade de registrar uma parte da história coiteense ainda não
estudada justifica a realização deste trabalho, uma vez que no interior da Bahia há
poucos estudos referentes às questões que envolvam as relações sociais, sobretudo, no
sertão baiano dos Tocós2. Assim faz-se necessário analisar as relações sociais existentes
na Bahia do século XIX que ocorreram distanciadas de Salvador e do Recôncavo
Baiano e que atinge a todos em cada nível da sociedade na época.
Para que possamos entender o que era considerado infrações a moral feminina,
da família e da nação, ou seja, o que era passível de ser tomado como ofensa e o que era
aceitável na sociedade coiteense do século XIX uma série de questões precisam ser
levantadas como: Até que ponto a honra sexual estava relacionada a honra familiar e da
nação desse período? Qual era a leitura da Igreja acerca dessas transgressões morais?
Qual a importância da virgindade e casamento para as classes populares de Coité no
final do séc. XIX?
2Se refere as terras anteriormente habitadas pelos índios denominados Tocós na qual Conceição do Coité
está compreendida.
3. 3
Através da análise dos processos-crimes podemos ter acesso a aspectos do
cotidiano e falas de pessoas, com o seu ponto de vista sobre o mundo que dificilmente
encontramos em outras fontes. Assim ao nos permitir analisar as normas, os hábitos e
comportamentos de um determinado grupo social e contexto histórico esses processos
constituem uma fonte interessante pra investigação da vida cotidiana. Supõem-se que
uma análise do comportamento social dos envolvidos no conflito amoroso ocorrido na
Vila de Conceição do Coité possa nos permitir adentrar-se um pouco no campo das
moralidades, uma vez que valores são recitados na tentativa de compor os tipos
jurídicos de culpado e inocente que podem ser evidenciados nas entrelinhas do
processo-crime.
Em defesa da moral e dos bons costumes
É notório que na virada do século XIX para o XX, o problema dos crimes
sexuais de raptos e defloramentos, por exemplo, transformou-se numa das maiores
preocupações das autoridades públicas brasileiras, pois eram vistos como uma das faces
negativas do estágio de evolução da civilização ocidental. Devido as mudanças
estruturais que o país vinha passando, os crimes sexuais foram apontados como
atentatórios à ordem social por simbolizarem o primado dos instintos sobre a razão e
por colocarem a família em risco de desagregação. Assim, era validada a intervenção da
Justiça tida como a garantia da moralidade pública.
Nesse raciocínio os conceitos de “honra” e “honestidade” das famílias
confundiam-se com as noções de “honra” e “honestidade” feminina, a indicar que o alvo
específico da legislação eram as mulheres, a quem caberia incorporar para que fossem
estendidas à família. Desse subjetivo, emergiam os valores que o aparelho judiciário
pretendia difundir a toda a sociedade, e se estabeleciam os parâmetros jurídicos da
ordem sexual e moral em relação à honra e honestidade das mulheres e das famílias.
Suean Caulfield no seu livro “Em Defesa da Honra” discute a partir da cidade do
Rio de Janeiro, os vários sentidos da honra sexual para diferentes sujeitos históricos,
evidenciando o quanto todos os personagens que se envolviam com o cotidiano da
Justiça tornavam diretamente responsáveis pelas transformações dos significados de
honra e dos valores sexuais, assim como a própria jurisprudência relativa esses crimes,
entre o Código Penal de 1890 e o de 1940, sem deixar de incluir a codificação civil de
4. 4
1926. E ainda, em seu estudo ela deixa entender que o que as elites não percebiam ou
não admitiam que “a honra sexual representava um conjunto de normas que,
estabelecidas aparentemente com base na natureza, sustentavam a lógica da manutenção
de relações desiguais de poder nas esferas privada e pública”. (CAULFIELD, 2000,
p.26).
Para a autora, “a defesa da honra sexual também era um recurso pelo qual os
juristas realçavam seu papel coletivo de poder público, papel contestado pela Igreja
Católica e por outros que disputavam o lugar de autoridade moral”. (CAULFIELD,
2000, p. 34). A honra feminina assume um papel de destaque nesse contexto, pela
perspectiva da moralidade, tendo a família e as relações de gênero como base para
construção da moral e da nação moderna. As ofensas a honra sexual das mulheres
podiam atingir tanto a autoridade moral da Igreja e do Estado como a inviolabilidade e a
reputação pública da família. E defendia-se a honra familiar processando os crimes
sexuais.
Construção e reconstrução: A imagem de Conceição do Coité
O que foi escrito sobre Conceição do Coité no século XX e início do século
XXI3 remete ao mito da fundação da cidade, a história de grandes homens e eventos
políticos seguindo o caminho da historiografia tradicional e positivista. Dessa forma, se
construiu e foi reproduzida pela literatura regional a imagem de Coité como sendo um
lugar harmônico e acolhedor ressaltando a existência de uma predisposição geográfica
da região, que possibilitava o bom atendimento aos que por lá passassem. Como mostra
Vanilson Oliveira,
os vaqueiros e suas boiadas sempre acamparam na fazenda Coité sob
a sombra de uma árvore cuitezeira, árvore que deu o nome a Fazenda
Coité e que se tornou marco central para o desenvolvimento da
cidade, com a construção, nas suas proximidades da primitiva capela.
Ao lado da cuitezeira e ao redor da igrejinha de Nossa senhora da
Conceição do Coité, o arraial foi crescendo vagarosamente, com
simples e desajeitadas casas. (OLIVEIRA, 1987, p. 28)
Sabemos que desde os tempos coloniais, os colonos abriam caminhos para
conduzirem suas boiadas acampando em fazendas durante o seu trajeto o que favoreceu
3Ver sobre esse assunto: MATOS, Orlando Matos. Martinha, Escrava e Rainha, 2004, Conceição do
Coité, da emancipação a colonização, 2007 e OLIVEIRA, Vanilson Lopes de. Suor, Poder e Sisal nos
sertões dos Tocós, 2003.
5. 5
a criação de muitas freguesias, vilas e cidades no interior do sertão baiano. Como
afirma Mônica Dantas,
a ocupação do sertão da Bahia foi inicialmente causada pela expansão
do plantio de cana-de-açúcar devido ao aumento da comercialização
do produto dela derivado, isto no fim do século XVII. Este
crescimento levou a criação de gado a expandir-se pelo sertão adentro
e nesse movimento favorecendo o surgimento de cidades importantes
e entre elas pequenas povoações que serviram de paragem para quem
vinha de Salvador com o gado para a região de Jacobina”.
(DANTAS, 2000, p.25)
Estudos locais e documentos oficiais comprovam que a Vila de Conceição do
Coité foi originada no território de uma destas sesmarias que anteriormente pertencia
aos Garcia D‟Ávila. No decorrer dos séculos XVIII e XIX a ocupação sertão baiano foi
desenvolvida através dos fazendeiros moradores, donos de vastas glebas de terra,
herdeiros dos donatários e dependentes da agricultura de subsistência e da criação de
gado. Sendo as antigas estradas da Bahia vistas como causa fundamental para a criação
das vilas que deram origens a muitas cidades, através dos seus itinerários. Vanilson
Lopes caracteriza essas vilas como
Cidades de pequeno porte, com governos próprios através das
Câmaras Municipais cujos presidentes exerciam o Executivo, os
membros ou conselhos faziam as vezes do legislativo e atribuições do
Judiciário nos cartorais e juizados de paz. (OLIVEIRA, 1987, p. 32)
Francisco Vianna, em 1893, caracteriza a vila de Nossa Senhora da Conceição
do Coité como sendo formada por “seis ruas e uma praça, a pecuária desempenhava
uma parcela importante tanto no comércio local, quanto na comercialização com alguns
centros econômicos importantes do período”. (VIANA, 1893, p.12)
Algumas vilas nesse período se tornaram importantes por servirem para a
realização de feiras nas quais se negociavam animais e cereais. Durante segunda metade
do séc. XIX na Vila coiteense, segundo Iara Nancy “houve um crescimento no número
de transações comerciais de terras e escravos na região”. (RIOS, 2003, p.83).
Informação trazida também por Orlando Barreto em “Conceição do Coité da
colonização a emancipação” que justifica a formação espontânea de uma feira livre
realizada as sextas-feiras, com a finalidade principal de vender escravos, animais e
cereais como conseqüência do crescimento do arraial, a partir de 1865, quando Coité
ainda era uma Freguesia.
6. 6
No final do século XIX Coité começou a se desenvolver com a implantação da
linha ferroviária. Inicialmente, o trajeto dos trilhos passaria na sede, nas terras da
família Amâncio4 porém, este não foi aceito pelos grandes latifundiários coiteenses que
viram na passagem do trem por suas terras a dizimação dos seus rebanhos e um risco a
reputação da família, como afirma Orlando Barreto:
familiares dos fazendeiros envolvidas nesse episódio afirmam que o
pavor que eles tinham ao trem, nada tinha a ver com a matança dos
animais. Guardiões que eram da pureza e da honra da família, aqueles
senhores temiam que suas filhas e netas viessem a se apaixonar e
fugir com os viajantes ferroviários. (BARRETO, 2007, p. 106).
Nota-se uma preocupação das famílias coiteenses em proteger suas filhas das
possíveis ameaças que as pessoas de origem estrangeira pudessem lhe trazer. Com isso,
a conclusão da linha ferroviária que fazia parte de um processo que visava a integração
das povoações interioranas entre si e com a Província, teve seu percurso desviado para
Salgadália a 19 km da sede, hoje distrito da cidade. Em 1887, o fluxo de pessoas na
Estação e nas estradas de chão batido foi intensificado, o que permitiu um maior
povoamento da região e desenvolvimento do arraial de Conceição do Coité,
possibilitando-lhe a emancipação de Coité em 1890, a categoria de Vila.
De arranjos matrimoniais a raptos: relações amorosas proibidas
Na Vila de Conceição do Coité, o apadrinhamento e o casamento eram
elementos primordiais na conformação de grupos sociais. Além de serem considerados
sagrados e consolidadores dos laços sociais estes serviam para fortalecer laços de poder
e autoridade. O casamento devido suas implicações de ordem moral reforçava a áurea
de respeitabilidade daqueles que o contraíam importando profundamente para as
pessoas das camadas populares em geral. E como diz Kátia em relação a Bahia do
século XIX, ele “representava uma espécie de ascensão social”. (MATTOSO, 1992, p.
120).
Segundo o trabalho desenvolvido por Iara Nancy,
os registros eclesiásticos de batismo e casamento da Freguesia [de
Conceição do Coité] evidenciava que estes laços familiares
restringiam os espaços de contestação dos poderes territoriais,
4 A família mais poderosa de Conceição do Coité na época, proprietária de muitas terras e escravos.
7. 7
tornando a família um importante elemento de legitimação da
dominação local. (RIOS, 2003, p. 94)
Estudando as famílias da elite baiana no século XIX, Kátia Mattoso observou o
caráter eminentemente endogâmico dos contratos nupciais nas classes altas. Isso
evidencia que o casamento tinha por objetivo garantir a solidariedade intragrupal dos
elementos abastados da sociedade para a manutenção da sua riqueza e prestígio social.
Conceição do Coité não estava imune a isso. Nancy mostra que as relações
matrimoniais ocorridas na Freguesia possibilitam identificar como a constituição de
algumas famílias era elemento de status e poder consolidando a dominação mantida
entre membros de um mesmo grupo e trazendo informações que refletem algumas
condições nas quais os matrimônios se realizavam. A autora revela que,
dos 104 casamentos realizados, destacando as uniões realizadas para
as famílias Amâncio, Cunha e a Mota que além de participar das
transações comerciais de terras e escravos eram unidas por laços
matrimoniais. Desses casamentos 60 careceram de algum tipo de
intervenção e a que mais se destaca é a licença de consaguinidade,
alguns que envolviam casos em que a consaguinidade abrangia mais
de um grau de parentesco. (RIOS, 2003, p. 95-98)
Isso evidencia uma íntima relação entre casamento, cor e grupo social na vila de
Coité, pois os matrimônios eram a opção de certa parcela da população que estiveram
circunscritas aos grupos de origem, representando a união de interesses, especialmente
entre os coiteenses mais ricos. Interessados na manutenção da riqueza, prestígio e
estabilidade social, assim era comum as uniões de parentes com o objetivo de preservar
a fortuna, mantendo a linhagem e a pureza de sangue.
De acordo com Martha Esteves, para as mulheres das camadas populares, honra,
virgindade, namoro e casamento possuíam um valor distinto daqueles professados pela
elite. As classes populares poderiam distancia-se, nas suas vivências cotidianas, do
modelo conjugal das elites. Pois, não tinham como elemento básico a manutenção da
riqueza e do prestígio, eram elementos ligados a sobrevivência ou a vida prática dos
parceiros que determinavam o surgimento das uniões maritais oficiosas. O que não
significava que para as mulheres pobres o casamento não tivesse nenhuma importância
em suas vidas. Pois, esse ato social polarizava vários interesses e aumentavam a áurea
de respeitabilidade daqueles que o contraíam.
8. 8
Na sua obra “Quem pariu e bateu, que balance”, Alberto Heráclito defende que
apesar de não dispor de riquezas para dividir as mulheres baianas pobres
compartilhavam as idéias de que mulher de família é mulher casada, e por isso lutavam
para defender a honra das mulheres nos casos de defloramento. Como ele afirma,
as classes populares distanciavam-se nas sua vivências cotidianas do
modelo conjugal das elites, pois tinham que assumir atividades de
ganho nas ruas o que possibilitava uma gerencia maior das sua vidas
pessoais, distanciando-as do comportamento feminino que no
imaginário social encarnava o tipo ideal de esposa. (FERREIRA
FILHO, 2003, p.118).
A vivência de condição de classe alterava o roteiro tipicamente burguês da
conjugalidade romântica, porém isso não foi capaz de dissolver nas culturas das classes
trabalhadoras, a importância de valores e instituições como virgindade e matrimônio,
mesmo que a experiência cotidiana costumeiramente os negasse.
De modo geral percebemos que os pré-requisitos matrimoniais eram mais
flexíveis para certas camadas da população, a celebração legal implicava em despesas,
direitos e obrigações recíprocas de fidelidade e assistência. E carinho, amor seriam os
aspectos relevantes aos casamentos dos pobres bem como daqueles que
independentemente da sua classe, origem e cor buscaram viver relações conjugais
guiadas pelo erotismo. O que revela que muitas mulheres não se mostravam tão vítimas
e passivas como pintava a legislação penal da época quando estava em jogo a efetivação
das suas escolhas pessoais assinalando também uma crise dos casamentos arranjados
pelos pais. Como afirma Eni de Mesquita, “desde o período colonial, o que se nota é
uma certa tendência por parte da população, preferindo viver em concubinato”.
(SAMARA, 2004, p.41).
Gilberto Freyre, em “Sobrados e mocambos”, mostra que desde o começo do
século XIX, era comum as sinhás das casas de engenho e mulheres dos sobrados
deixarem-se raptar pelos donjuans plebeus ou de cor, perturbando consideravelmente o
critério patriarcal e endogâmico de casamento. Moças que não tinham o consentimento
dos pais, por questão de sangue ou por situação social, o casamento com homens de sua
predileção sentimental. Elas, porém, já não estavam se sujeitando, com a doçura de
outrora, a escolha do marido pela família e fugiam romanticamente com os namorados.
Para o autor,
9. 9
esses raptos marcam de maneira dramática, o declínio da família
patriarcal no Brasil e o começo da instável e romântica. A ascensão
do mulato e do bacharel acentuou-se através desses raptos, mas
também a ascensão da mulher. Seu direito de amar, independente de
considerações de classe e de raça, de família e de sangue. Sua
coragem de desobedecer ao pai e a família para atender aos desejos
do sexo ou do coração ou do bem-querer. (FREYRE, 1996, p.129)
Os jornais brasileiros do meado do século XIX traziam notícias de raptos de
moças por homens que o critério patriarcal desaprovava para a condição de genros, e em
numerosos casos a questão de cor parece ter sido o motivo da desaprovação paterna a
uniões que afinal se realizavam romanticamente; ou romanticamente se resolvia com o
recolhimento da moça no convento e o suicídio, às vezes do rapaz apaixonado. Como
discute Leila Algranti em sua obra “Devotas e honradas mulheres da Colônia”, diversas
instituições existiram em Salvador desde o período colonial desempenhando papéis de
prevenir e educar as moças expostas as tentações. Muitas mulheres provenientes da
classe média foram colocadas nessa casas de recolhimento5.
Geralmente após ter cometido os raptos duas possibilidades eram postas para o
casal: um casamento forçado com a vítima ou casamento rápido antes do escândalo vir a
tona, sendo que era para as mulheres que recaía a falta, pois as mesmas podiam ser
repudiadas pela própria família. Desse modo, procurar a justiça para queixar-se de
crimes sexuais era atitude muito comum no século XIX.
Quando o casamento não ocorria de imediato logo após a queixa prestada na
delegacia, um longo percurso era trilhado pelos requerentes e acusados, no sentido de
fazer valer suas versões. Instruídos pelos agentes de Polícia ou da Justiça os envolvidos
recitavam fórmulas que os ajudariam a obter uma solução favorável aos seus propósitos.
Arrolando em média seis testemunhas por processo os crimes se transformavam em
fatos públicos. Essa intervenção da polícia dos costumes era saudada como garantia da
moralidade pública. Em sua grande maioria, trata-se de um recurso jurídico de que
lançava mão os segmentos populares o que permitiu que padrões de moralidades
próprios a estes segmentos fossem revelados, o que não significa que não ocorriam
crimes sexuais entre os demais segmentos sociais. Em muitos casos, acordos eram feitos
5Para maiores informações sobre as casas de recolhimento e toda estrutura cotidiana que a envolvia, ver:
ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres na colônia, condição feminina nos conventos e
recolhimento do sudeste do Brasil. 1750- 1822. Rio de Janeiro. José Olympio, 1993.
10. 10
entre as pessoas envolvidas num crime sexual a fim de evitar um escândalo e preservar
a moral da família perante a sociedade.
Vale salientar que quando os pais consentiam um casamento antecedido de
raptos e, estes não aconteciam nas delegacias onde ficava o ofensor, para sacramentar a
união a dispensa da Igreja era necessária. Ao pesquisar os pedidos de dispensa em
Salvador durante todo o período coberto pelos dados (1815-1854 e 1871-1890), Kátia
Mattoso conclui que “as dispensas por rapto ou estupro foram inexistentes, ou raras, a
partir de 1854 começaram a se multiplicar”. (MATTOSO, 1992, p. 183).
Para a autora o aumento nos casos de raptos estupros nesse período, talvez tenha
decorrido de um maior rigor por parte da Igreja, menos inclinada a perdoar atos
contrários a sua moral ela passou a impor longos processos cuja conclusão era
imprevisível tanto pra os cônjuges quanto para família. Adotando essa atitude, a Igreja
criou ao mesmo tempo a possibilidade de regularizar situações que talvez tivessem
redundado em uniões livres. Porém, não se pode dizer que estes raptos tenham se
configurado como um novo padrão de comportamento feminino, embora tenha sido
largamente utilizado como estratégia de casamento entre os casais apaixonados na
Bahia do século XIX.
Rapto como estratégia de conjugalidade numa vila do Sertão Baiano
No dia 5 de março de 1893, José Ferreira de Oliveira procurou a Justiça para
queixar-se do rapto de sua filha Joanna Amância de Jesus, 22 anos, acusando
Innocencio Alves de Oliveira como autor do crime, um soldado brasileiro de idade na
declarada, e Antônio Caxarengue de ter o auxiliado na perpetuação do fato sendo
instaurado um processo contra os acusados.
Salientando que, ao alegar que era de origem pobre e não podia por conta
própria financiar os custos foi justificada a intervenção do Ministério Público no caso.
O que é respaldado pelo Código Penal de 1890, no artigo 274, o qual demonstra a
preocupação do legislador em amparar o direito das ofendidas consideradas de origem
“miserável”, mesmo os crimes sexuais sendo de interesse da vítima por tratarem de
questões de foro íntimo e de possível exposição social, preocupando-se com aquelas que
por não terem recursos financeiros poderiam ficar sem o amparo da Justiça.
11. 11
É muito difícil generalizar o nível de miserabilidade da família, pois, o processo
só faz referência a profissão dos pais de Joanna, mas, levando em consideração que na
Vila de Coité prevaleciam os pequenos plantéis voltados para o abastecimento local e da
região é provável que os pais de Joanna fossem pequenos agricultores pertencentes a
classe pobre como foi atestado na ação penal.
Dados como profissão e local de moradia, faixa etária e estado civil anotados no
processo nos permitem traçar um pouco o perfil social dos envolvidos no processo-
crime. Das seis testemunhas inquiridas: quatro eram lavradores, um sapateiro e um
comerciante com idade variando entre 21 a 60 anos de idade, sendo a maioria casados.
Essas pessoas exerciam uma atividade profissional regular estando inseridos entre as
camadas pobres e intermediárias da sociedade. Sendo todas as testemunhas do sexo
masculino, a única mulher a depor na ação penal foi a mãe da jovem que fugiu da casa
dos pais para viver maritalmente com Innocêncio.
Nos depoimentos dos pais da jovem são feitos questionamentos em relação a
freqüência com que Inocêncio visitava a suposta vítima e a presenteava, isso fica
perceptível quando é questionado a José Ferreira de Oliveira,
se sua filha fora forçada a seguir com o seu raptor ou se ela seguiu
por seu gosto? Respondeu que foi pelo gosto dela. Perguntado se
Inocêncio sempre freqüentava sua casa e se elle interrogado não vira
algumas vezes elle presentear sua filha e se nunca observava algumas
conversações dos mesmos? Respondeu afirmativamente todas as
partes (PROCESSO-CRIME, AFMDSP,1893, p. 6)
Somente no interrogatório de Simoa Maria de Jesus, mãe de Joanna, a
virgindade da moça é questionada, como consta na folha de nº 7, “Perguntado se sua
filha Joanna, conservava-se até aquela data virgem? Respondeu que para si era”. Já
para a testemunha Romão Ângelo é indagado “se sabe ou ouviu dizer que a referida
Joanna era tida e havida como solteira? Respondeu que não sabe”. A persistência das
batalhas nos tribunais sugere que muitas pessoas da classe trabalhadora, assim como as
autoridades jurídicas valorizavam a virgindade feminina e acreditavam que em
determinadas circunstancias os sedutores deveriam ser punidos.
12. 12
Analisando o conteúdo de verdade das versões produzidas pelos envolvidos e
testemunhas é difícil apreender valores e representações que, na justiça, servem de lente
a leitura do comportamento feminino nas camadas populares. Foi encontrada pouca
evidência de que as pessoas que depuseram nos tribunais rejeitassem os valores morais
e as normas de relações de gênero estabelecidas na lei. As testemunhas foram
questionadas apenas sobre o rapto em si o qual estava registrado nos autos do processo-
crime na folha nº 2 e que para os mesmos foi lida, no início do interrogatório. A
primeira testemunha, Romão Ângelo da Silva, 38 anos, solteiro, respondeu assim como
os demais interrogados sobre o fato que,
ouviu falar ter sido Joanna raptada pelo denunciado Innocêncio Alves
de Oliveira, ouvindo que a mesma havia sido raptada por um soldado.
Perguntado se pode recordar-se dos nomes das pessoas que isto lhe
disseram. Respondeu que ouvindo de diversas pessoas o que acaba de
depor, não pode neste momento pesquisar ou recordar-se dos nomes
destas pessoas. (Idem p.13)
Todos afirmam que souberam do fato por várias pessoas o que demonstra que o
rapto tenha sido alvo de muitas fofocas na vila e, possivelmente, na região como afirma
a terceira testemunha Euclides Amâncio d‟Alves Cunha, 21 anos de idade, comerciante,
solteiro ao ser questionado como ficou sabendo a respeito do crime: “respondeu que no
passando uns tropeiros por esta Vila vindo de Santa Luzia, estes lhe disseram que havia
encontrado Antônio Caxerengue conduzindo a menor Joanna para Santa Luzia se
achava em companhia de Innocencio”. (Idem p. 17). Manoel de Souza Lima com 40
anos de idade, lavrador, casado, respondeu que,
passando por esta Vila muitas pessoas cujos nomes não se pode
por não conhecê-los ouviu-lhes dizerem que haviam encontrado
no caminho de Santa Luzia, Antônio Caxerengue conduzindo a
menor Joana, a qual foi encontrado com a mesma no Bebedor a
muito do dia dois para três do corrente. (Idem p.19)
Enfim, como salienta a quinta testemunha Antônio Graciliano de Lima, 22 anos,
lavrador, solteiro “era voz geral nesta Vila que Joanna havia sido raptado da casa de
seus pais”. (Idem p. 20). Esses depoimentos nada revelam sobre o comportamento de
Joanna, possivelmente as interpretações individuais dessas normas impostas pelo Estado
e pela Igreja e valores variavam e podem ter sido silenciados durante o ato de registro
do processo-crime.
13. 13
O envolvimento do réu com a Justiça dá-se apenas por meio do seu advogado o
que pode demonstrar que o mesmo tinha uma posição social estável. Innocêncio entra
com uma petição pedindo que o processo contra ele seja anulado tendo como
argumentos de que não realizou o crime e apresentando os documentos em que constam
a declaração de Joanna que o inocenta e a certidão de nascimento dela em que consta
que ela tinha 22 anos não sendo menor de idade como afirmou seu pai no momento em
que prestou queixa do rapto na delegacia. Na petição feita pelo advogado é salientado
que,
não raptou, que o seu requerimento deveria ser atendido se houvesse
raptado e que desde o início processo instaurado não se acha
compreendido em nenhum dos casos especificados no art. 274 e que
ela não é menor sendo a única responsável pela queixa e que a ação
se extingue pelo perdão da ofendida. (Idem p. 34).
Concordando com o argumento do advogado do réu o Juiz julgou improcedente
a Ação Penal, liberando Innocêncio. Ao declarar: “Julgo nullo o presente processo que
não podia ter sido instaurado em virtude de denuncia do Ministério Público
incompetente para intervir na hyppothese”. (Idem p. 41). Tendo como argumentos a
falta do atestado de miserabilidade anexado ao processo, a declaração da jovem que
inocentava o réu e sua maioridade comprovada na certidão de nascimento.
Quanto ao homem que segundo os pais dela e as testemunhas afirmam ter
auxiliado Innocencio na perpetuação do rapto levando até a vila vizinha nada foi
instaurado. Isso é evidenciado várias vezes pelas testemunhas, a primeira pessoa a
depor, por exemplo, “Perguntado se sabe ou ouviu dizer para onde levaram a referida
Joanna e se sabe ou não ouviu dizer quem fora o condutor da mesma. Respondeu que a
referida fora levada par à Santa Luzia por Antônio Caxerengue”. (Idem p. 13) Manoel
de Souza Lima, ainda ressalta que,
passando por esta Vila muitas pessoas cujos nomes não se pode por
não conhecê-los ouviu-lhes dizerem que haviam encontrado no
caminho de Santa Luzia, Antônio Caxerengue conduzindo a menor
Joana, a qual foi encontrado com a mesma no Bebedor a muito do dia
dois para três do corrente. (Idem, p.19).
Euclides da Cunha outra testemunha diz ao ser interrogado sobre onde se
encontrava Joanna que, “ouviu dizer estar Joana em poder de Inocêncio em casa do
Leitão morador de Santa Luzia”. (Idem p. 15). Este Leitão era um coronel muito
14. 14
destemido em Santa Luzia, suas relações com o autor do rapto pode ter sido importante
na sentença final do Juiz a favor do réu. Sem descartar a hipótese deste ter sido o Carlos
Arthur Leitão, advogado que fez a defesa de Innocêncio durante a ação penal.
Apesar do Código Criminal de 1890 estabelecer um conjunto coerente de regras
pelas quais a honra das famílias seria julgada e seus ofensores punidos, as pessoas
envolvidas no julgamento do processo-crime analisado não chegaram a uma conclusão
de como interpretar essas regras. O que se nota é que houve divergências entre as
interpretações do Adjunto de Promotoria Pública da vila e o Juiz de Direito da Comarca
de Feira de Sant‟Anna. Isso é evidenciado durante as conclusões dos mesmos durante o
andamento do processo-crime que teve uma duração de seis meses. No dia 18 de março
de 1893, o Adjunto da Promotoria Pública Antonio Calixto da Cunha apresentou a
denúncia de Inocêncio como autor do rapto de Joanna pedindo a punição dos mesmos
no parágrafo 1º do art. 270 do Código Penal. Que julga culpado aquele que
tirar do lar domestico, para fim libidinoso, qualquer mulher honesta,
de maior ou menor idade,solteira, casada ou viúva, atrahindo-a por
seducção ou emboscada, ou obrigando-a por violência, não se
verificando a satisfação dos gozos genésicos. (CÓDIGO PENAL DE
1890, Cap. II , art. 270)
No auto de conclusão do Adjunto enviada para o juiz de Direito da comarca em
22 de maio de 1893, o mesmo declara em sua promoção que estava comprovado ter
Innocêncio raptado a menor sendo auxiliado na perpetração do fato delituoso pelo
segundo denunciado Antônio Caxarengue que a vista da terminante do art. 18 do
Código Penal devia ser considerado como autor e, portanto criminoso pelo que requeria
a pronúncia dos mesmos no art. 270 do Código Criminal a bem da moralidade da
sociedade já sendo inquiridas as testemunhas. E em anexo seguem os telegramas
recebidos do subcomissário do Distrito de Santa Luzia. Onde ela foi vista no trem com
o segundo denunciado. No parecer final do Adjunto de 22de junho de 1893
a ação penal poderia ter lugar o procedimento oficial de justiça pois
os pais da ofendida são miseráveis cuja miserabilidade acha-se
atestada (...) e quanto a certidão e idade não pode se aproveitada à
vista do artigo § 270 do Cód. Penal e nem tão pouco poderá produzir
efeito jurídico, a declaração de fls 38 não pode ser usada pelo raptor
por ser Joanna miserável e acresce que o referido documento foi
praticado extrajudicialmente e portanto por sua natureza é nulo.(
Idem p.40)
15. 15
Já na conclusão do juiz de Direito do dia 28 de agosto:
só é admissível o procedimento oficial de justiça nos casos expressos
do art. 274 e considerando a miserabilidade da ofendida para em seu
lugar intervir o Ministério Público deve pelo interessado ser alegada e
não se pode dispensar prova. (Idem p. 42)
Assim ele declara que,
a simples alegação contida na petição de folha 5 e não seguida da
indispensável prova, não era suficiente para produzir efeito de dar
lugar a ação da justiça pela razão do Adjunto de Promotoria. Na fls
38 Joanna declara não ter sido raptada e que perseguiria seu ofensor
se fosse vítima deste ou de outros crimes, pois rege sua pessoa como
maior de idade que é provado com a certidão de fls 36, pelas razões
expostas, mais dos autos custos e disposições de direito relativas ao
assunto. (Idem p.42).
Um fato muito importante e que não foi em momento nenhum citado pelos
envolvidos no processo é revelado em um dos dois telegramas enviados para o
Comissário de Justiça da Vila no dia 06 de março e que foi anexado ao processo-crime.
O telegrama nº 4 enviado as 6h 45min diz o seguinte na mensagem: “Moça violada,
arrombamento na porta por Innocencio e Henrique, estou tractando corpo e delicto”6.
Essa mensagem sugere que Joanna após o rapto tenha sido deflorada, o que
pode-se supor que a mesma conservava-se virgem antes de fugir com Innocencio.
Levando em consideração os casos judiciais de defloramento envolvendo mulheres
pobres, observa-se que a vítima era a primeira a ser „julgada', sendo necessária a
comprovação de sua honestidade sexual antes daquele ato sexual que a levou a buscar
reparação. Nesse caso, a violência sexual não foi comprovada e nem tampouco
processada, mas sim silenciada pelos envolvidos no processo inclusive pela jovem que
no seu depoimento não comentou nada a esse respeito.
Caulfield ao analisar as lutas em torno da definição e dos limites de liberdade de
ação das mulheres, que se tornavam “modernas” no período em foco, a autora evidencia
casos em que mulheres chegavam a articular claramente o desejo de abrir mão da
virgindade para alcançar ou consolidar a liberdade pessoal. Concluindo que,
as filhas adolescentes, algumas vezes, usavam em desafios a
autoridade, a própria ideologia que demandava sua submissão a
6 Telegrama enviado pelo responsável da Estação de Salgada, 06-03-1893, p.25.
16. 16
vigilância da família (...) muitas passaram a usar ruptura do hímen
como condição libertadora”. (CAULFIELD, 2000, p. 237).
Muitas mulheres utilizavam a virgindade estrategicamente em diversas lutas de
poder, aumentar sua autonomia pessoal sendo que a falta de casamento civil não se
constituía empecilho para os arranjos conjugais das mesmas. Joanna afirma no seu
depoimento,
Declaro que por minha livre e espontânea vontade deixei o tecto de
meos pais, com a resolução de adaptar o meio de vida que melhor me
convem tendo a consciencia plena deste meo ato não foi devido a
seducção ou ameaças de quem quer que seja. Declaro mais que se
raptada houvesse eu sido, teria apresentado queixa contra meo
supposto raptor visto como não sou pessoa miserável.( Idem p. 38).
Ao declarar que saiu de casa por sua livre e espontânea vontade ela se julga
responsável pela escolha de sobrevivência que optou viver ao lado de Innocencio.
Concordando com a união consensual, ela abre abriu mão da virgindade que representa
uma quebra de laços de dependência que ela mantinha com os pais.
Segundo Thales de Azevedo, “as mulheres desvirginadas aceitavam com mais
naturalidade as relações de concubinato”. (AZEVEDO, 1986, p.71). O que não
significa que o casamento não fosse valorizado, pelo contrário, apesar das imposições
legais e financeiras sua consecução entre pobres era muito importante.
A partir das informações anotadas na ação penal só foi possível identificar a
idéia de construção da nação ou elevação da moral brasileira nas sentenças do Adjunto
de Promotoria Pública sua preocupação em punir Innocêncio ao considerá-lo como o
autor do delito de rapto e pedir a sua punição para o bem da moralidade da sociedade
insistindo que o mesmo seja julgado de acordo com o artigo 270 do Código Penal de
1890. Pois, o fato cometido representava a exibição pública da “desonra feminina”, da
família e consequentemente, e agressão a moral e aos bons costumes. Visto que as
medidas republicanas procuravam disciplinar as mulheres do povo numa ética que
afirmasse valores como a virgindade, a fidelidade e a família. Isso passava “não só pela
reclusão das mulheres, que ao longo da história, demonstrou ser pouco eficiente, mas
também pele construção de uma pedagogia feminina que as adestrasse para o mundo do
casamento.” (FERREIRA FILHO, 2003, p. 152)
17. 17
Fica claro que ao levar sua vida pessoal para a delegacia os pais de Joanna
mostraram que embora as uniões consensuais estivessem inseridas na dinâmica das
constituições familiares na vila como em todo o país o casamento formal possuía um
valor significativo nas suas vidas. Isso é evidenciado pelo longo processo instaurado em
busca da reparação pelo casamento, da honra perdida, e que com certeza causou muita
polêmica em Conceição de Coité na época.
Visto que a Vila apresentava um ciclo de convivência social mais estável, o que
contribuía para o controle do comportamento das moças pela possibilidade de vigilância
pessoal. Com a sociabilidade condicionada pelas relações pessoais, a cidade promovia
amplas redes de “solidariedade coletivas”, como a fofoca. Isso fica evidente nos autos
de perguntas das testemunhas quando são questionadas a respeito do rapto percebe-se
que o mesmo era muito comentado pelos moradores da vila e aqueles que por lá
passavam. O que significava a exibição pública da desonra não só feminina quanto da
família.
Fundada apenas com o consentimento mútuo dos parceiros, a família consensual
não era reconhecida nem pela Igreja nem pela sociedade baiana desde a colonização.
Porém, a família natural proveniente da vontade dos parceiros era tão comum na Bahia
quanto a sacramentada pela Igreja Católica, o que significava que tanto a família legal
como a consensual eram essenciais para a coesão da sociedade local no séc. XIX.
(MATTOSO, 1992, p. 208).
Como nos fala Eni,
na sociedade brasileira, especialmente no séc. XIX, os matrimônios
se realizavam num círculo limitado e estavam sujeitos a certos
padrões e normas que agrupavam os indivíduos socialmente em
função da origem e da posição sócio-econômica ocupada.
(SAMARA, 2004, p.53)
Tal fato, entretanto, não chegou a eliminar a fusão dos grupos sociais e raciais,
que ocorreram paralelamente através das uniões passageiras e de concubinagem. O alto
custo das despesas matrimoniais era outro entrave a legitimação das famílias, o que
favoreceu a concubinagem entre as camadas baixas da população.
No campo das moralidades é complicado definir como o ideal de castidade
estava presente na religiosidade do local, porém, ao levar em consideração o fato que
18. 18
envolveu o padre Marcolino Madureira que se apaixonou por uma fiel e passou a viver
com ela em regime de concubinato procriando oito filhos, o mesmo não obedeceu o
ideal de castidade imposto pela Igreja Católica. Mas, se levarmos em consideração a
sua preocupação em realizar uma Santa Missa do Apostolado com os inúmeros fiéis da
Vila que precisavam de sacramentos divinos, tendo entre seus objetivos sacramentar os
casamentos das pessoas que viviam uniões consensuais ele demonstra que a Igreja não
se mostrava tão flexível com a proliferação de concubinatos no local embora também o
mesmo enquanto representante legal do catolicismo tivesse optado por esse tipo de
relação marital. 7.
A ausência de matrimônios na Vila pode ser justificada devido aos casamentos
se realizarem num círculo muito limitado que estavam sujeitos a certos padrões e
normas que agrupavam os indivíduos socialmente em função de origem e da posição
sócio-econômica ocupada e, que de certa forma, interferiam na dinâmica dos
casamentos no Brasil do século XIX. Todavia, a honestidade sexual das mulheres era o
ponto alto das preocupações das autoridades, em todas as esferas institucionais. Sendo a
perda da virgindade antes do casamento vista como um crime, passível das punições
legais conforme o Código Penal de 1890.
Considerações finais
A vida cotidiana dos cidadãos estava sob a mira das autoridades legais, e isto
pode ser percebido nos discursos dos juristas, dos intelectuais e da elite. O Estado,
através dos seus instrumentos jurídicos e policiais, se arvorava da defesa da sociedade
por meio do zelo da boa moral das famílias. Assim, por meio de discursos moralizantes
o mesmo procurava implementar os valores morais que deveriam se moldar a sociedade.
E a preocupação com a virgindade das mulheres se dava por causa da honra das famílias
e, conseqüentemente da sociedade. Para as autoridades (religiosas, jurídicas, civis) a
relação era simples:
a honra sexual era a base da família, e esta a base da nação. Sem a
força moralizadora da honestidade sexual das mulheres, a
modernização - termo que assumia diferentes significados para
7 Cf. OLIVEIRA, 2003, p.33.
19. 19
diferentes pessoas - causaria a dissolução da família, um aumento
brutal da criminalidade e o caos social. (CAULFIELD, 2000, p. 26).
Muitas mulheres assim como Joanna demonstraram através de suas atitudes que
o seu comportamento não se enquadrava nas noções de “honra e honestidade” feminina
exigidas pelo poderes públicos, que visava discipliná-las segundo os valores e as
normas professadas pela elite do século XIX. Elas eram influenciadas por códigos
culturais específicos de seu meio social, o que fazia com que as mesmas estabelecessem
esquemas de namoro, concepções sobre as experiências sexuais e o casamento bastante
diferentes dos padrões seguidos pela maioria das jovens do período, e que idealizava a
construção de ideal de feminilidade anunciado pela ordem burguesa.
Onde “moça” e a “senhora de família” seriam os novos modelos de mulher que
ajudariam a compor o cenário urbano republicano com fortes bases ideológicas e
morais. Protegidas pelo status social a “moça” encarnava a castidade e a pureza
necessárias a honestidade das famílias, que, por sua vez, era mantida pela fidelidade
conjugal das “senhoras”. Seguindo essa lógica, a incumbência básica da mulher resida
na assistência moral da família, fortalecendo seus laços.
Porém, isso não significa que as mulheres pobres não sonhavam em unir-se aos
seus amados pelos sagrados laços de do matrimônio. As camadas populares absorveram
os valores professados pelas elites, como a virgindade e o casamento, cultivando o
romantismo, as grandes paixões e amor correspondido. Suas relações se desenvolviam,
portanto dentro de outro padrão de moralidade que, relacionado principalmente a
dificuldades econômicas e de raça se contrapunha ao ideal de castidade, mas não
chegava a transformar a maneira pela qual a cultura dominante encarava a questão da
virgindade e nem a posição privilegiada do sexo oposto.
Visto que a prática da sexualidade na sociedade patriarcal foi sendo concebida
como natural ao sexo masculino, sendo permitida até mesmo fora do casamento, devido
ao instinto sexual do homem. Já para as mulheres, o sexo devia limitar-se somente à
procriação, sendo permitido, portanto, dentro do casamento, uma vez que para estas o
instinto considerado natural era o materno. Assim, a honra feminina estava vinculada a
honestidade, mas a definição de honestidade diferenciava-se entre homens e mulheres.
Para as moças solteiras, a honestidade era uma condição social e um atributo moral,
20. 20
sendo a perda da virgindade algo desastroso, pois ela perdia o seu dote natural,
irreparável.
Casos de raptos como este que envolveu Joanna e Innocencio demonstram que
as tentativas de preservar a ordem social patriarcal com o aumento do controle dos pais
sobre os filhos foram inúteis, os valores individuais de amor e livre arbítrio nas escolhas
matrimoniais prevaleceram na segunda metade do século XIX com o novo padrão de
conjugalidade baseado nas escolhas pessoais. Todavia, a decisão dessa jovem de fugir
da casa dos seus pais utilizando o rapto como estratégia de conjugalidade não pode ser
considerado como um padrão de comportamento feminino predominante entre a
população coiteense. Isso se dá pelo fato de não ter sido encontrados outros processos-
crime de rapto no local e pela fonte utilizada nesta pesquisa conter poucas informações
relacionados ao comportamento da jovem raptada e que pode ter influenciado na
sentença final do Juiz que analisou o caso.
Dessa forma, faz-se necessário a realização de outros estudos relacionados com
a figura feminina em Conceição do Coité no século XIX, que possam ampliar nossa
visão de como as mulheres e os demais indivíduos que compunham a sociedade
coiteense da época se comportavam em relação ao casamento e a virgindade.
21. 21
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Público Municipal do Fórum Durval da Silva Pinto de Conceição do Coité de
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