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O ideograma do girassol:
Dziga Vertov inventa o
cinema-verdade

José Umberto Dias
Cineasta baiano.

Eu propunha um tipo superior de plano. Um plano de ação para a organização
e a criação, que asseguraria uma interação contínua do plano e da realidade e,
em lugar de ser um dogma, nada mais teria sido do que um guia para a ação.
Um plano de organização e criação que teria garantido a unidade de análise e
de síntese das cine-observações realizadas. (Dziga Vertov, 1934)



A arte nomeia sua progênie na caverna do abracadabra e na catacumba da
prece. Ela é o totem da ancestralida de que se instrumentaliza através de uma
antena anímica a energizar o destino da raça humana. Uma atividade que se
virtualiza no prolongamento da vida e funciona como desregramento das
partes no invólucro do tempo ao tempo que ordenadora do caos. O absurdo
equilibrando-se na forma que dá sustentáculo à monumentalidade da beleza
que é o crustáceo da verdade.

O único compromisso do artesão anônimo é com o mistério. Sua obra está
envolvida na unicidade do culto e da magia, movida pela fé na tradição do
inatingível, aquela atitude de beatificação contemplativa, plasmada na
idolatria da compaixão cujo alvo é o espírito. Uma estética teológica que visa
exclusivamente confessar-se com a invisibilidade dos deuses. Este longínquo
véu de pureza, sustentado pelo segredo do sagrado, começa a abalar-se com o
monoteísmo, entra em crise profunda no Renascimento quando se opera o
deslocamento para a liturgia do Belo e fica perplexa no Romantismo forjado
pela burguesia industrial que exaspera a veneração ao ego. O artista assina sua
obra e com dandismo assina o passado.

As técnicas revolucionárias de reprodução gráfica vêm destruir o conceito de
aura, conforme constatação do pensador moderno Walter Benjamin, num
ensaio exemplar. Com o surgimento da litografia, saltando posteriormente para
a tipografia e culminando com a invenção da fotografia, abre-se então o tempo
novo da multiplicação das cópias — o reservado passa pelo processo de
profanação do espaço. O cinematógrafo vem coroar o crescimento da
participação coletiva. A imagem se expõe em profusão, ganha o valor de
mercadoria, a realidade passa à categoria da venda e a arte supera aquela
noção antiga. Um conceito hegemônico de linguagem com autoridade se
impõe: o conhecimento é poder. A atividade artística se engaja nas relações de
produção, transforma-se num instrumento de domínio, ícone de mudanças
históricas, aparelho de poder influente que celebra a catarse do triunfo da
paixão política.

Pião Vermelho

O cinema rasga o século como viajante do mundo. Sua clave penetra na pauta
de todos os povos que assistem, em escalas, o augúrio da civilização da
estampa. Não obstante os acontecimentos significativos, em diversas nações,
detemo-nos com particularidade numa Rússia czarista decaída na fome,
oprimida na escassez elétrica, carente de película cinematográfica, embora
circulassem filmes comerciais de dramas mundanos e policiais possuídos pelo
pessimismo. Com o desenrolar da guerra civil, parte dos artista emigra
sobretudo para Paris. O nervo da sociedade, contudo, começava a tencionar-se
com a contestação incontrolável dos modelos acadêmicos vigentes. Neste
burburinho, as idéias belicistas do futurismo de F. T. Marinetti ganhavam
efervescência entre inúmeros grupos de jovens vanguardistas humanistas que
proliferavam como o desejo de renovação, pregando que "não há beleza senão
na luta", reivindicando a antitradição, acreditando com alegria criadora na
conquista da técnica e no domínio absoluto sobre os desígnios da natureza
bruta.

Ganha impulso a palavra vermelho que, no idioma russo arcaico, significa
bonito. O governo revolucionário estimula a fermentação intelectual com
experiências inovadoras em todas as áreas do conhecimento. Destaca-se, no
entanto, a politização teatral de Meyerhold com a sua oficina popular
Proletkult, comprometida com as mudanças sócio-econômicas, e da sua
agitação, mesclada com prazer e revolta, sairiam a fúria verbal de Wladimir
Maiakovsky e o gérmen da montagem de atrações do futuro cineasta Sergei
Mikhailovich Eisenstein (1898-1948) que exercitava o conceito cruel de uma
violentação dialética dirigida ao espectador. O zênite de entusiasmo da
preparação da primavera para a linha de fogo ocorre no dia 27 de agosto de
1919 quando Lenin nacionaliza o empreendimento cinematográfico e declara
convicto: "De todas as artes, o cinema, para nos, é a mais importante".

Este impacto insurreto, entretanto, não ocorreria sem a ativa presença
generosa de uma personagem precursora: Denis Arkadievitch Kaufman,
nascido em Bialysto, na Polônia, província anexada à Rússia czarista , no dia
02 de janeiro de 1896. Cedo ele transfere seu nome para Dziga Vertov, com
etimologia bem apropriada à sua ousada biografia, roda que gira sem parar em
torno do seu próprio eixo, movimento perpétuo ou cigano, que se resume em
pião. Um visionário semeador de girassóis que se propõe a desmembrar o
movimento, alongar o tempo, absorver o espaço através da "decodificação
comunista da realidade" e estabelecer o método da montagem pela intervenção
humana como o princípio básico do cinema. Primogênito, precocemente
escreve poesia, pratica o ensaio, elabora romance, estuda medicina em São
Petersburgo, com preferência pela psiconeurologia, ao passo que empreende o
seu Laboratório do Ouvido, uma experiência com o fonógrafo, ao editar
música e ruídos ambientes a fim de jogralizar seus versos, manifestos e
programas futuristas, com o seu arauto Maiakovsky.

Tesoura poética

Em 1918, Vertov já está no Kino-Nedelia, redigindo e montando cine-
atualidades. Centenas de cinegrafistas correspondentes são enviados para
diversos pontos do país com a finalidade de colocarem a retina de vidro em
permanente vigília nas frentes de combate. Não eram operadores neutros, mas
aventureiros abertos à percepção crítica, para a alma da máquina que capta o
negativo do tempo, prontos para surpreender a intimidade das gentes em ação,
recolher suas impressões deliberadas como num diário do tempo, captando o
ignorado do factual com o rigor da militância, às vezes abandonando a câmera
para pegar no fuzil. A palavra de ordem esta num conselho de Tolstoi — "o
cinema deve registrar a vida tal como ela é". Sem behaviorismo nem dogma, e
sem máscara, contudo, atento por sua vez ao inconsciente visual, ao olhar
rápido da verdade nua, à visão iluminada de classe social, com a liberdade de
transpor o mágico e atingir o epistemológico pela objetiva dedicada ao bem
comum. Dziga Vertov vai recebendo esses retalhos da existência de improviso,
sem qualquer ordenação e, com sua companheira Elisabeta Svilova, sem
desperdiçar qualquer imagem colhida, começa a arquivá-los numa
minuciosidade criativa de organização, escolhendo os pormenores, isolando-os
e unido-os por intervalos de passagens de um movimento para outro com
senso exato de precisão e velocidade de ação ate o desenlace cinético para, em
1919, concluir o Aniversario da Revolução (Goduchtchina Revolutsii), com
duração de três horas e considerada a primeira tentativa de montagem como
ato criador na URSS.
A base da explosão soviética é a montagem como princípio nuclear
cinematográfico. A câmera colhe os planos e forma uma cadeia de fragmentos
que é justaposta num método orgânico de transições, através de cortes e outros
recursos de pontuações, estabelecendo assim variações rítmicas, baseadas em
intensidades crescentes que determinam a progressão equilibrada da ilusão do
movimento. Eisenstein sistematizou suas idéias de montagem a partir do
ideograma da tradição de sinais gráficos feudais do Oriente. O hieróglifo se
sustenta na combinação de imagens que cria conceitos abstratos. Ele observou
que essa união não equivale à soma das unidades porém ao seu produto
composto. "O plano é a célula da montagem", afirma para, entretanto,
acrescentar que esta partícula junta-se a outras não com o intuito de promover
um encadeamento linear. Sua proposta é no sentido de opor-se ao processo
convencional do naturalismo psicológico e realizar uma brusca criação elíptica
de contextos intelectuais cujo fortalecimento está circunscrito no conflito, o
âmago da arte.

A arte revolucionária tem como vértice a rigidez da colisão. Sob o impulso e a
dinâmica das partes em tensão é que se obtém a síntese do todo. Ocorre,
todavia, que esse contraponto audiovisual não transcorre exclusivamente na
colagem mecânica de uma ponta à outra da tomada. O choque essencialmente
fenomenológico tramita no interior do próprio plano. A dialética, cuja tração é
para diante, sempre, está implícita na composição do próprio fotograma com
suas linhas evolutivas e estáticas, na luta plástica com suas balanceadas
tonalidades de luz, os jogos intensificados de profundidade de campo, as
alternâncias de enquadramentos que arquitetam as distâncias dos volumes
enfocados na relação com sua dimensões, a projeção dos acontecimentos no
espaço articulada à duração no tempo, além dos ângulos, inclinamentos,
tonalidades sonoras ... enfim, são recursos ilimitados ao alcance do artista
inventivo que pretenda praticar sua análise sintática por intermédio da
desintegração e desproporcionalidade do real a fim de alcançar o universo da
linguagem estética que é capaz de traduzir os signos do invisível e o sentido
do desconhecido.

Cine-olho

Vertov exacerba-se radicalmente na sua tese do Kino-Glaz onde defende que a
câmera possui o olho mais objetivo que o globo ocular humano. Sustenta a
imparcialidade da mecânica, governada por suas leis científicas, capaz de
proporcionar o olhar novo de infinitas probabilidades, vibrante, profético,
agressivo, polêmico, que engendra no ventre cinematográfico o óvulo da
objetividade sem rótulo nem estigma de autoritarismo. "Eu, cine-olho, crio um
homem muito mais perfeito do que aquele criado por Adão", provoca num dos
seus inúmeros manifestos produzidos para o Kinoki, nome de guerra do seu
grupo. Inimigo ferrenho do espetáculo e do conservadorismo, ele apela para a
depuração do cinema que não deve estar atrelado à música, ao teatro ou à
literatura. Prega, portanto, sua independência lingüística diante das ameaças.
Recusa abruptamente a encenação, reconstituição, ator, figurino, maquilagem,
estúdio, cenografia, iluminação, num protesto apaixonado contra a sétima arte
que estava sendo submetida e desviada da sua natureza original. Todos esses
artifícios ou tocaias eram legados de uma tradição superada, enquanto a
linguagem cinematográfica sinalizava para outra direção, livre do peso das
convenções cristalizadas, num desafio crucial aos cineastas comprometidos
com o marco zero da nova sintaxe, uma tábula rasa da civilização que merecia
esforços para conduzi-la sem medo às veredas do inesperado.

Participou ativamente do agit-prop — ação político-cultural de cunho marxista
— agitando o Comboio de Propaganda com exibições públicas em diversos
rincões, promovendo sessões para os soldados nas estações de linha de ferro,
difundindo projeções em automóveis ambulantes, percorrendo as estepes
geladas em êxtase e exibindo seus filmes contundentes no barco Estrela
Vermelha a singrar a águas do Volga ao som das balalaicas. Introduzindo o
conceito de câmera-na-mão, ele realizou, com agilidade e sensibilidade
crônicas, filmes de viagem, diário, apontamentos, relatos, fitas de combate,
animação de objetos, experimental, folhetins e reportagens para o cine-jornal
Kino-Pravda, uma extensão fílmica do periódico criado por Lenin em 1912.
Seu ecletismo de gêneros sintonizava com a inquietação de uma personalidade
marcada pela força moral, a paixão pelo cinema e sua fidelidade transparente
ao ideal do socialismo. Deixando uma filmografia extensa, merece porém o
registro de duas obras-primas: O Homem da Câmera de Filmar (Chelovek s
Kinoappartan, 1929), seu testemunho das possibilidades de cinema, e Três
Canções para Lenin (Tri Pesni o Pesni o Leninye, 1924/34), sua crença no
futuro.

Da sua geração marcante é forçoso mencionar ainda Lev Kulechov, sobretudo
um teórico que revelou a técnica do Modelo Vivo, Vsevolod Pudovkin
(1893/1953), ator e realizador que se concentrou na temática da
conscientização social, e Alexandre Petrovitch Dovjenko (1894/l956), um
ucraniano que cantou, com lirismo e amor, a morte e a natureza. Dziga Vertov
foi depois hostilizado pelo cinema comercial e o sistema conservador dos
estúdios oficiais, pela frente burocrática do stalinismo que o relegou ao
desterro interno, pelos críticos que o levaram ao ostracismo de trabalhar num
laboratório de porão úmido, com enormes ratazanas circulando e a suportar o
inclemente frio do chão de terra batida. A pressão contrária do regime levou-o
a abandonar o cinema e se tornar um dirigente industrial. Até Eisenstein,
inadvertidamente, também o condenou de "formalista e travesso". Sofrendo
humilhações, recusas, indiferenças e os reflexos de doença incurável, ele
legou um diário com palavras de profunda amargura. No dia 12 de fevereiro
de 1954, morre em Moscou abatido por um cancro. Influenciou importantes
escolas de cinema no mundo e a televisão hoje sobrevive dos seus
ensinamentos, embora com absoluta diluição do seu sentimento da vida e da
arte.

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Vertov, Dziga - O ideograma do girassol

  • 1. O ideograma do girassol: Dziga Vertov inventa o cinema-verdade José Umberto Dias Cineasta baiano. Eu propunha um tipo superior de plano. Um plano de ação para a organização e a criação, que asseguraria uma interação contínua do plano e da realidade e, em lugar de ser um dogma, nada mais teria sido do que um guia para a ação. Um plano de organização e criação que teria garantido a unidade de análise e de síntese das cine-observações realizadas. (Dziga Vertov, 1934) A arte nomeia sua progênie na caverna do abracadabra e na catacumba da prece. Ela é o totem da ancestralida de que se instrumentaliza através de uma antena anímica a energizar o destino da raça humana. Uma atividade que se virtualiza no prolongamento da vida e funciona como desregramento das partes no invólucro do tempo ao tempo que ordenadora do caos. O absurdo equilibrando-se na forma que dá sustentáculo à monumentalidade da beleza que é o crustáceo da verdade. O único compromisso do artesão anônimo é com o mistério. Sua obra está envolvida na unicidade do culto e da magia, movida pela fé na tradição do inatingível, aquela atitude de beatificação contemplativa, plasmada na idolatria da compaixão cujo alvo é o espírito. Uma estética teológica que visa exclusivamente confessar-se com a invisibilidade dos deuses. Este longínquo véu de pureza, sustentado pelo segredo do sagrado, começa a abalar-se com o monoteísmo, entra em crise profunda no Renascimento quando se opera o deslocamento para a liturgia do Belo e fica perplexa no Romantismo forjado pela burguesia industrial que exaspera a veneração ao ego. O artista assina sua obra e com dandismo assina o passado. As técnicas revolucionárias de reprodução gráfica vêm destruir o conceito de aura, conforme constatação do pensador moderno Walter Benjamin, num ensaio exemplar. Com o surgimento da litografia, saltando posteriormente para a tipografia e culminando com a invenção da fotografia, abre-se então o tempo novo da multiplicação das cópias — o reservado passa pelo processo de profanação do espaço. O cinematógrafo vem coroar o crescimento da participação coletiva. A imagem se expõe em profusão, ganha o valor de
  • 2. mercadoria, a realidade passa à categoria da venda e a arte supera aquela noção antiga. Um conceito hegemônico de linguagem com autoridade se impõe: o conhecimento é poder. A atividade artística se engaja nas relações de produção, transforma-se num instrumento de domínio, ícone de mudanças históricas, aparelho de poder influente que celebra a catarse do triunfo da paixão política. Pião Vermelho O cinema rasga o século como viajante do mundo. Sua clave penetra na pauta de todos os povos que assistem, em escalas, o augúrio da civilização da estampa. Não obstante os acontecimentos significativos, em diversas nações, detemo-nos com particularidade numa Rússia czarista decaída na fome, oprimida na escassez elétrica, carente de película cinematográfica, embora circulassem filmes comerciais de dramas mundanos e policiais possuídos pelo pessimismo. Com o desenrolar da guerra civil, parte dos artista emigra sobretudo para Paris. O nervo da sociedade, contudo, começava a tencionar-se com a contestação incontrolável dos modelos acadêmicos vigentes. Neste burburinho, as idéias belicistas do futurismo de F. T. Marinetti ganhavam efervescência entre inúmeros grupos de jovens vanguardistas humanistas que proliferavam como o desejo de renovação, pregando que "não há beleza senão na luta", reivindicando a antitradição, acreditando com alegria criadora na conquista da técnica e no domínio absoluto sobre os desígnios da natureza bruta. Ganha impulso a palavra vermelho que, no idioma russo arcaico, significa bonito. O governo revolucionário estimula a fermentação intelectual com experiências inovadoras em todas as áreas do conhecimento. Destaca-se, no entanto, a politização teatral de Meyerhold com a sua oficina popular Proletkult, comprometida com as mudanças sócio-econômicas, e da sua agitação, mesclada com prazer e revolta, sairiam a fúria verbal de Wladimir Maiakovsky e o gérmen da montagem de atrações do futuro cineasta Sergei Mikhailovich Eisenstein (1898-1948) que exercitava o conceito cruel de uma violentação dialética dirigida ao espectador. O zênite de entusiasmo da preparação da primavera para a linha de fogo ocorre no dia 27 de agosto de 1919 quando Lenin nacionaliza o empreendimento cinematográfico e declara convicto: "De todas as artes, o cinema, para nos, é a mais importante". Este impacto insurreto, entretanto, não ocorreria sem a ativa presença generosa de uma personagem precursora: Denis Arkadievitch Kaufman,
  • 3. nascido em Bialysto, na Polônia, província anexada à Rússia czarista , no dia 02 de janeiro de 1896. Cedo ele transfere seu nome para Dziga Vertov, com etimologia bem apropriada à sua ousada biografia, roda que gira sem parar em torno do seu próprio eixo, movimento perpétuo ou cigano, que se resume em pião. Um visionário semeador de girassóis que se propõe a desmembrar o movimento, alongar o tempo, absorver o espaço através da "decodificação comunista da realidade" e estabelecer o método da montagem pela intervenção humana como o princípio básico do cinema. Primogênito, precocemente escreve poesia, pratica o ensaio, elabora romance, estuda medicina em São Petersburgo, com preferência pela psiconeurologia, ao passo que empreende o seu Laboratório do Ouvido, uma experiência com o fonógrafo, ao editar música e ruídos ambientes a fim de jogralizar seus versos, manifestos e programas futuristas, com o seu arauto Maiakovsky. Tesoura poética Em 1918, Vertov já está no Kino-Nedelia, redigindo e montando cine- atualidades. Centenas de cinegrafistas correspondentes são enviados para diversos pontos do país com a finalidade de colocarem a retina de vidro em permanente vigília nas frentes de combate. Não eram operadores neutros, mas aventureiros abertos à percepção crítica, para a alma da máquina que capta o negativo do tempo, prontos para surpreender a intimidade das gentes em ação, recolher suas impressões deliberadas como num diário do tempo, captando o ignorado do factual com o rigor da militância, às vezes abandonando a câmera para pegar no fuzil. A palavra de ordem esta num conselho de Tolstoi — "o cinema deve registrar a vida tal como ela é". Sem behaviorismo nem dogma, e sem máscara, contudo, atento por sua vez ao inconsciente visual, ao olhar rápido da verdade nua, à visão iluminada de classe social, com a liberdade de transpor o mágico e atingir o epistemológico pela objetiva dedicada ao bem comum. Dziga Vertov vai recebendo esses retalhos da existência de improviso, sem qualquer ordenação e, com sua companheira Elisabeta Svilova, sem desperdiçar qualquer imagem colhida, começa a arquivá-los numa minuciosidade criativa de organização, escolhendo os pormenores, isolando-os e unido-os por intervalos de passagens de um movimento para outro com senso exato de precisão e velocidade de ação ate o desenlace cinético para, em 1919, concluir o Aniversario da Revolução (Goduchtchina Revolutsii), com duração de três horas e considerada a primeira tentativa de montagem como ato criador na URSS.
  • 4. A base da explosão soviética é a montagem como princípio nuclear cinematográfico. A câmera colhe os planos e forma uma cadeia de fragmentos que é justaposta num método orgânico de transições, através de cortes e outros recursos de pontuações, estabelecendo assim variações rítmicas, baseadas em intensidades crescentes que determinam a progressão equilibrada da ilusão do movimento. Eisenstein sistematizou suas idéias de montagem a partir do ideograma da tradição de sinais gráficos feudais do Oriente. O hieróglifo se sustenta na combinação de imagens que cria conceitos abstratos. Ele observou que essa união não equivale à soma das unidades porém ao seu produto composto. "O plano é a célula da montagem", afirma para, entretanto, acrescentar que esta partícula junta-se a outras não com o intuito de promover um encadeamento linear. Sua proposta é no sentido de opor-se ao processo convencional do naturalismo psicológico e realizar uma brusca criação elíptica de contextos intelectuais cujo fortalecimento está circunscrito no conflito, o âmago da arte. A arte revolucionária tem como vértice a rigidez da colisão. Sob o impulso e a dinâmica das partes em tensão é que se obtém a síntese do todo. Ocorre, todavia, que esse contraponto audiovisual não transcorre exclusivamente na colagem mecânica de uma ponta à outra da tomada. O choque essencialmente fenomenológico tramita no interior do próprio plano. A dialética, cuja tração é para diante, sempre, está implícita na composição do próprio fotograma com suas linhas evolutivas e estáticas, na luta plástica com suas balanceadas tonalidades de luz, os jogos intensificados de profundidade de campo, as alternâncias de enquadramentos que arquitetam as distâncias dos volumes enfocados na relação com sua dimensões, a projeção dos acontecimentos no espaço articulada à duração no tempo, além dos ângulos, inclinamentos, tonalidades sonoras ... enfim, são recursos ilimitados ao alcance do artista inventivo que pretenda praticar sua análise sintática por intermédio da desintegração e desproporcionalidade do real a fim de alcançar o universo da linguagem estética que é capaz de traduzir os signos do invisível e o sentido do desconhecido. Cine-olho Vertov exacerba-se radicalmente na sua tese do Kino-Glaz onde defende que a câmera possui o olho mais objetivo que o globo ocular humano. Sustenta a imparcialidade da mecânica, governada por suas leis científicas, capaz de proporcionar o olhar novo de infinitas probabilidades, vibrante, profético, agressivo, polêmico, que engendra no ventre cinematográfico o óvulo da
  • 5. objetividade sem rótulo nem estigma de autoritarismo. "Eu, cine-olho, crio um homem muito mais perfeito do que aquele criado por Adão", provoca num dos seus inúmeros manifestos produzidos para o Kinoki, nome de guerra do seu grupo. Inimigo ferrenho do espetáculo e do conservadorismo, ele apela para a depuração do cinema que não deve estar atrelado à música, ao teatro ou à literatura. Prega, portanto, sua independência lingüística diante das ameaças. Recusa abruptamente a encenação, reconstituição, ator, figurino, maquilagem, estúdio, cenografia, iluminação, num protesto apaixonado contra a sétima arte que estava sendo submetida e desviada da sua natureza original. Todos esses artifícios ou tocaias eram legados de uma tradição superada, enquanto a linguagem cinematográfica sinalizava para outra direção, livre do peso das convenções cristalizadas, num desafio crucial aos cineastas comprometidos com o marco zero da nova sintaxe, uma tábula rasa da civilização que merecia esforços para conduzi-la sem medo às veredas do inesperado. Participou ativamente do agit-prop — ação político-cultural de cunho marxista — agitando o Comboio de Propaganda com exibições públicas em diversos rincões, promovendo sessões para os soldados nas estações de linha de ferro, difundindo projeções em automóveis ambulantes, percorrendo as estepes geladas em êxtase e exibindo seus filmes contundentes no barco Estrela Vermelha a singrar a águas do Volga ao som das balalaicas. Introduzindo o conceito de câmera-na-mão, ele realizou, com agilidade e sensibilidade crônicas, filmes de viagem, diário, apontamentos, relatos, fitas de combate, animação de objetos, experimental, folhetins e reportagens para o cine-jornal Kino-Pravda, uma extensão fílmica do periódico criado por Lenin em 1912. Seu ecletismo de gêneros sintonizava com a inquietação de uma personalidade marcada pela força moral, a paixão pelo cinema e sua fidelidade transparente ao ideal do socialismo. Deixando uma filmografia extensa, merece porém o registro de duas obras-primas: O Homem da Câmera de Filmar (Chelovek s Kinoappartan, 1929), seu testemunho das possibilidades de cinema, e Três Canções para Lenin (Tri Pesni o Pesni o Leninye, 1924/34), sua crença no futuro. Da sua geração marcante é forçoso mencionar ainda Lev Kulechov, sobretudo um teórico que revelou a técnica do Modelo Vivo, Vsevolod Pudovkin (1893/1953), ator e realizador que se concentrou na temática da conscientização social, e Alexandre Petrovitch Dovjenko (1894/l956), um ucraniano que cantou, com lirismo e amor, a morte e a natureza. Dziga Vertov foi depois hostilizado pelo cinema comercial e o sistema conservador dos estúdios oficiais, pela frente burocrática do stalinismo que o relegou ao
  • 6. desterro interno, pelos críticos que o levaram ao ostracismo de trabalhar num laboratório de porão úmido, com enormes ratazanas circulando e a suportar o inclemente frio do chão de terra batida. A pressão contrária do regime levou-o a abandonar o cinema e se tornar um dirigente industrial. Até Eisenstein, inadvertidamente, também o condenou de "formalista e travesso". Sofrendo humilhações, recusas, indiferenças e os reflexos de doença incurável, ele legou um diário com palavras de profunda amargura. No dia 12 de fevereiro de 1954, morre em Moscou abatido por um cancro. Influenciou importantes escolas de cinema no mundo e a televisão hoje sobrevive dos seus ensinamentos, embora com absoluta diluição do seu sentimento da vida e da arte.