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sta edição do Grito Mulher pretende
Esuscitar o debate sobre a situação
das mulheres que exercem a
prostituição, o estigma e as violações de direitos
humanos que lhes afetam particularmente
(como violência, falta de condições mínimas de
higiene, insalubridade dos locais de prostituição,
exploração econômica e a falta de proteção
frente a determinados clientes e donos desses
locais).
Para além da velha e ultrapassada discus-
são entre abolicionistas e regulamentaristas,
pretendemos promover a reflexão a partir de
novas perspectivas, surgidas dos relatos e
demandas apresentadas pelas próprias mulhe-
res que estão nesse meio. Buscamos também
motivar a discussão sobre quais são as medidas
mais eficazes para seu empoderamento e para
sua proteção social e jurídica.
A experiências destes anos no acompa-
nhamento de mulheres em situação de prostitui-
ção nos ensinou que não serve qualquer medida
abolicionista nem qualquer tipo de regulamenta-
ção. O enfrentamento da vulnerabilidade e a
discriminação que sofrem nos exige “sair da
caixinha”, pensar diferente, determinar cami-
nhos alternativos, em colaboração com outras
entidades e movimentos sociais e com as própri-
as associações de prostitutas que lutam para
melhorar suas condições de vida.
REDE OBLATAREDE OBLATA Instituto das Irmãs Oblatas
do Santíssimo Redentor
ELAS TÊM
DIREITOSDIREITOS
Jornal da Pastoral da Mulher de Belo Horizonte - MG - Junho de 2015 - Ano XXIII - Edição nº 127Jornal da Pastoral da Mulher de Belo Horizonte - MG - Junho de 2015 - Ano XXIII - Edição nº 127Jornal da Pastoral da Mulher de Belo Horizonte - MG - Junho de 2015 - Ano XXIII - Edição nº 127
A
sociedade brasileira
sempre teve uma ati-
tude dupla e ambígua
com relação à prostituição: por
uma parte aceita sua existência e
até usufrui, por outra parte rejeita
o seu reconhecimento. Por isso,
apesar de ser um fenômeno
amplamente consumido em
nosso país, a legislação pratica-
mente guarda silêncio, especial-
mente no relativo à garantia de
direitos das profissionais do sexo.
E quando aborda o tema, o faz
unicamente para criminalizar algu-
mas condutas relacionadas à pros-
tituição (artigos 227 a 230 do Códi-
go Penal), relegando esta ativida-
de a uma posição de marginalida-
de.
Um pequena mudança no
modo como as políticas públicas
brasileiras têm abordado a prosti-
tuição se deu com o reconheci-
mento da ocupação “profissional
do sexo” pelo Ministério do Traba-
lho e Emprego em 2002, quando
foi incluída na Classificação Brasi-
leira de Ocupação (CBO).
Segundo a CBO estes profissio-
nais são pessoas que buscam
programas sexuais, atendem e
acompanham clientes, além de
participar em ações educativas no
campo da sexualidade.
Porém, surpreendentemente,
esta profissão, reconhecida como
lícita, não possui qualquer amparo
institucional para seu adequado
exercício. O jurista Renato de
Almeida Oliveira Muçouçah, cuja
tese de doutorado é “Trabalhado-
res do sexo e seu exercício profis-
sional: um enfoque pelo prisma da
ciência jurídica trabalhista”, abor-
da esta questão com muita preci-
são:
“...por não haver balizamen-
tos legais em relação à maneira
de atuar de rufiões ou casas de
prostituição, estes podem ser con-
siderados os “gatos” do comércio
sexual – pessoas que, sem idonei-
dade financeira, exploram o traba-
lho alheio e não o remuneram
condignamente, deixando de ofe-
recer condições mínimas de higi-
dez física e psíquica aos trabalha-
dores, ambiente do trabalho com
o mínimo de salubridade, prote-
ção contra riscos oriundos do tra-
balho, etc. Estes aviltam, e de
maneira gritante, a própria digni-
dade da pessoa do trabalhador do
sexo. Este é um motivo a mais
para que as relações comerciais
de sexo sejam consideradas
como de emprego, tendo-se em
vista a proteção da pessoa do
trabalhador em seus mais ele-
1
mentares direitos ” .
Precisamente por essa clan-
destinidade, por essa falta de nor-
matividade, as transgressões, e
as vulnerações de direitos podem
acontecer com maior facilidade.
Ao deixar de prever garantias e
direitos básicos às pessoas que
escolhem esta atividade como
forma de ganhar a vida, se lhe
impede o reconhecimento da sua
identidade de trabalhadoras e
que possam receber a proteção
do Estado. Este fator, que nega
sua plena cidadania, vem a refor-
çar ainda mais a estigmatização
daquelas que estão na prostitui-
ção.
Nas palavras de Gabriela
2
Leite :
O que acaba com uma prosti-
tuta, o que tira sua dignidade e sua
saúde, não é transar, não é fazer
sexo profissionalmente. O que
acaba com ela é a falta de condi-
ções de trabalho: não tem água
para se lavar, o quarto não tem
condições de higiene, tem perce-
vejo andando pelas paredes; se
ela não trabalha um dia ou mais,
vem a cafetina dizer que ela tem
que trabalhar para pagar pelo dia
de trabalho e pelas faltas, e a pros-
tituta fica devendo um monte de
dinheiro. Vira escrava da cafetina.
Não há regra para nada, nenhuma
legislação que a ampare.
Evidentemente a exploração
econômica incide no mercado do
sexo, igual que em muitos outros
trabalhos ofertados no mercado,
onde existe uma grande dispari-
dade entre o salário pago e o valor
do trabalho produzido. Permitir
que, em ausência de normativa,
as partes regulem livremente as
02
(Gabriela Leite)
Direitos trabalhistaspara as mulheres que exercem a prostituição?
O que acaba
com uma prostituta,
o que tira sua
dignidade e sua
saúde, não é transar,
não é fazer sexo
profissionalmente.
O que acaba com
ela é a falta de
condições de
trabalho...
4
Por José Manuel Lázaro Uriol
JUNHO | 2015
condições em que deve ser exerci-
do o trabalho sexual (como acon-
tece hoje) é abrir a porta aos abu-
sos e à violação de direitos, máxi-
me quando existe um enorme
desequilíbrio de poder econômico
entre quem contrata e quem é
contratada. Neste caso é preciso
invocar o papel do Estado na
garantia de direitos.
É verdade também a prostitui-
ção como instituição não pode
compreender-se fora da estrutura
patriarcal, sistema social, político e
econômico, no qual os homens
controlam, individual e coletiva-
mente, o trabalho, o corpo e a sexu-
alidade das mulheres. A prostitui-
ção não é um problema exclusiva-
mente individual de quem exerce e
quem paga, é uma questão tam-
bém social, porque estamos falan-
do de desigualdade econômica e
de gênero e de ideologia patriar-
cal. Por isso, a instituição prostitu-
cional, base sustentadora dessa
ordem (ou desordem?) deve ser
combatida no plano cultural e polí-
tico. É preciso politizar a sexuali-
dade e questionar a construção
ideológica das necessidades sexu-
ais masculinas. Esta batalha,
longa e difícil, não nos deve fazer
esquecer o que as trabalhadoras
sexuais nos estão dizendo. Por
isso, é importante diferenciar entre
tática e estratégia: melhorar aqui e
agora suas condições de vida e
trabalho no curto prazo, sem per-
der o horizonte de trabalhar por
mudanças culturais e sociais no
longo prazo.
As mulheres que livremente
exercem a prostituição merecem
desde já o respeito e o amparo dos
seus direitos como cidadãs e tra-
balhadoras. Trabalhar hoje por
empoderá-las e garantir seus dire-
itos civis e trabalhistas não se
opõe a promover, desde uma pers-
pectiva feminista , uma sociedade
com plena igualdade nas relações
entre gêneros.
Da mesma maneira que lutar
para que as empregadas domésti-
cas (uma profissão, herança
escravista, que só se mantém atra-
vés da exploração de uma classe
social por outra) tenham mais
direitos trabalhistas reconhecidos
não significa concordar com esta
instituição e com a divisão sexual
do trabalho que ela manifesta.
Não oferecer direitos laborais
às profissionais do sexo vulnera os
fundamentos da dignidade huma-
na e o principio da não-discrimi-
nação. A regulamentação em si
mesma, formalmente, não é deci-
siva. Uma determinada regula-
mentação da prostituição pode
agravar a exploração e reforçar o
patriarcado ou pode fornecer às
mulheres proteção de seus direi-
tos, tudo depende do conteúdo
dessa normativa e a quais inte-
resses serve.
1 - MUÇOUÇAH, Renato de Almeida Oliveira, O trabalho dos profissionais do sexo e sua tutela pelo Direito. Disponível em
http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=7a7b4862f2e69483. Acesso em 10 de março de 2015.
2 - LEITE, Gabriela. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992, p. 170
3 - Teóricas feministas, como Heleieth Saffioti mostraram como o emprego doméstico associa modos capitalistas de exploração do trabalho com antigas estruturas de
dominação no âmbito familiar. Baseada na organização patriarcal da família, a instituição do serviço doméstico é um sintoma da desigualdade de gênero e
desigualdade social existente. O desejo de poder superar, no futuro, esta “instituição” não impede que seja importante lutar aqui e agora por melhores condições de
trabalho das empregadas domésticas.
4 - Coordenador da Pastoral da Mulher de Belo Horiznote
As mulheres que livremente exer-
cem a prostituição merecem desde já
o respeito e o amparo dos seus direitos
como cidadãs e trabalhadoras.
JUNHO | 2015
O
Projeto Diálogos pela
Liberdade dá voz às
mulheres que exercem
a prostituição e abre espaço para
ouvirmos delas quais são seus
maiores desafios e de que forma
eles podem ser enfrentados. Cons-
tatamos que a discriminação e o
preconceito são os maiores empe-
cilhos ao diálogo, ao respeito e a
liberdade destas mulheres. A
prostituição ainda é vista como
"vadiagem" o que associa o exer-
cício de uma atividade à uma
imagem que desqualifica as
mulheres e abre portas para bana-
lizar a violência, lhes negar direi-
tos humanos e restringir a cidada-
nia.
Com o objetivo de ampliar o
debate e refletir sobre o estigma e
idéias preconcebidas que pesam
sobre a prostituição conversamos
com duas mulheres, que há anos
lutam para promover os direitos
destas pessoas.
Joice Oliveira começou sua
luta por direitos no Rio de Janeiro
quando “achando que lá meus
direitos estavam sendo violados
resolvi denunciar. Foi aí que
conheci a ONG DAVIDA. Eu,
desde que comecei a trabalhar
como prostituta, sempre fui assu-
mida”.
Cida Vieira, presidente da
Aprosmig (Associação das Prosti-
tutas de Minas Gerais), acredita
que “ o fato das mulheres escon-
derem a própria identidade gera
mais violência. Porque quando
você grita e vai para a rua, seus
direitos são revistos. Muitas vezes
as mulheres prostitutas abaixam a
cabeça. A Associação veio para
isto: pra dizer, olha, eu tenho pro-
fissão, nós somos autônomas,
nós somos reconhecidas.”
PM- Quais são os principais
problemas enfrentados pelas
mulheres que exercem a prostitui-
ção nos hotéis da Guaicurus?
CV- Duas questões são fun-
damentais: direitos humanos,
cidadania e a violência contra a
prostituta no local de trabalho.
Por ser mulher deveria ter seus
direitos humanos e de cidadã res-
peitados e paralelamente o reco-
nhecimento de leis específicas
para mulheres que exercem a
prostituição. Mas, por preconcei-
to e estigma ela não está na condi-
ção de mulher. Para a sociedade
ela vive a margem. Não por ser
mulher, mas por exercer uma pro-
fissão que inclusive, já é reconhe-
cida pela CBO (Classificação Bra-
sileira de Ocupações)
O que adianta você ter uma
profissão que não tem espaço e
fica clandestina? Então, a dis-
cussão é esta: regulamenta, pois
já é ocupação e aí poderemos
abranger as políticas públicas.
Olha, rua tem que ter banheiro e
mais policiamento. Boate, mulhe-
res trabalhando? É proibido e é
crime beber em lugar de trabalho.
Então as mulheres não têm que
beber enquanto trabalham. Nos
hotéis, adaptar as formas. Vem a
vigilância sanitária e outros
órgãos responsáveis pela higiene
e segurança. Muitas mulheres
não seriam espancadas, violenta-
das como estão sendo agora. Mas
infelizmente a sociedade é
machista.
JO- Os principais problemas
são: valor das diárias; muito caras.
A higiene é precária. Trabalhamos
com nosso corpo. Pelo valor que a
gente paga queremos um hotel
limpo e tem hotel que é muito sujo.
Outra questão é a segurança. Nos
problemas com homens nos quar-
tos os seguranças tem que ser
melhor orientados em como con-
duzir a situação; tinham que ser
mais qualificados para nos aten-
der, nos proteger. Os gerentes
tinham que ter um curso, saber
como tratar a mulher, porque eles
têm que entender que é da gente
que eles ganham. Tem gerente de
hotel que humilha muito a mulher.
Já houve época que falavam para
a gente chegar aqui 5:30 da
manhã. A gente ficava sentada no
corredor com homens andado e
às vezes não nos davam chave.
São questões muitos sérias que
tem que ser pensadas, que são
pouco vistas
Como se dá o preconceito?
CV- O medo é tanto! Medo da
família e suas repressões. Tanto a
igreja quanto quem contrata os
serviços da prostituta acaba na
rua discriminando as meninas. A
pessoa tem aquele medo de se
revelar, escondem a identidade
profissional devido ao preconceito
da sociedade. Ela é uma mulher,
mas não pode aparecer como
uma prostituta e aí se coloca à
margem o que gera mais violên-
cia. Ela vira uma pessoa submis-
sa. Quando você grita seu direito
ninguém te faz submissa. Se
04
E N T R E V I S T A
VOZ NA PROSTITUIÇÃO
O que adianta você ter
uma profissão que não
tem espaço e fica
clandestina?
”(Cida Vieira)
“
JUNHO | 2015
entendêssemos que esta profis-
são é comum e todas fossem para
a rua lutar por direitos, hoje não
haveria assassinatos, violências
gravíssimas, violações de direitos.
Asociedade iria nos respeitar.
JO- Eu, como prostituta, me
senti discriminada quando tive um
problema em um hotel onde esta-
va hospedada. Quando eu chamei
a polícia e falei que era prostituta
me senti discriminada. E também
quando o policial ameaçou cha-
mar o conselho tutelar para tirar
minha filha, armei a maior confu-
são. Mas tudo isto porque sou
prostituta; senti o peso bem na fala
do policial.
Eu passei uma semana em
Brasília e fiquei chocada com o
tratamento da Ministra, do Con-
gresso, dos deputados, com tudo.
Quando por exemplo, se fala que
o marido matou a mulher todo
mundo fala “coitadinha da
mulher”, mas se você fala que um
homem agrediu uma prostituta
“ela que se dane, é prostituta ela
está lá porque ela quer”. Ninguém
se espanta com uma agressão a
uma prostituta. Mas se torna uma
agressão a mulher.
PM - Existe possibilidades de
um dia as mulheres saírem para
as ruas para reclamar seus direi-
tos?
CV- Devido ao preconceito as
mulheres têm medo de serem
reconhecidas e isto dificulta que
se associem para reivindicar direi-
tos. Se as pessoas se conscienti-
zassem que esta atividade é um
trabalho e elas mesmas se movi-
mentassem, conscientizassem
que nós somos um movimento
social reconhecido a violência
diminuiria.
JO- Poucas mulheres têm cora-
gem de lutar por seus direitos
como prostituta. Eu desde que
comecei a trabalhar como prosti-
tuta sempre fui assumida. Só que
muitas mulheres têm vergonha e
medo de assumir o que são.
Como se alguém tivesse alguma
coisa a ver com a vida delas.
Então, eu acho assim, desde que
algumas mulheres começam a se
encorajar, empoderar e tomar
conta de si e entender que aquilo é
um direito delas, que não estão
fazendo nada de errado, acho que
mais associações serão criadas.
Porque as mulheres vão estar
mais empoderadas para lutar por
seus direitos e vão fortalecer
outros vínculos. Aqui em BH tem
muitas prostitutas e é uma capital
que precisa de uma associação
empoderada, não pode ser uma
associação só de nome. Por
exemplo, com relação às diárias
altas a melhor solução seria
cobrar entrada nos hotéis, mas
para diminuir as diárias. Não adi-
anta cobrar entrada e não diminuir
as diárias. Hoje o hotel mais bara-
to aqui é R$150,00. Então é caro.
Sobre a regulamentação
JO- O Projeto de Lei está para-
do em Brasília há dois anos, espe-
rando uma posição e nada é feito.
Do meu ponto de vista, como pros-
tituta não sou a favor do PL. Acho
que o PL tinha que ser revista, até
porque quando foi constituída não
foi só por prostitutas. Tinha mais
acadêmicos. A gente quer fazer
alterações, mesmo tendo em vista
que isso não vai mudar, porque as
chances do PL ser aprovado são
mínimas. Hoje a Rede Brasileira
de Prostitutas está articulando
uma carta para chegar até o Con-
gresso. Vamos ter um encontro
nacional em novembro em que
vamos refazer o Projeto de Lei,
escolhendo um parlamentar para
apresentar em Brasília. O atual
projeto propõe que os donos de
espaços de exercício da prostitui-
ção possam ficar com até
50% do que a mulher fatura.
Vamos entrar num acordo de
35%. A Rede, principalmente a
articulação Norte - Nordeste está
bem organizada e acreditamos
que será possível fazer este acor-
do.
O PL não fala em assinar car-
teira, mas pode ter a possibilida-
de. Eu senti em Brasília, na pró-
pria Secretaria dos Direitos Huma-
nos, no Congresso a discrimina-
ção com esta pauta de prostitutas.
Então, quando a gente conseguir
articular uma pauta certa e con-
creta, vou pedir uma audiência
com a Ministra para que a prosti-
tuição entre na pauta da Secreta-
ria dos Direitos Humanos e eles
têm que destinar verbas para tra-
balhar com prostituição. Porque a
SDH fala que trabalhar com prosti-
tuta é trabalhar saúde, HIV, mas
quando é para trabalhar direitos
eles não querem. Se a gente pede
uma verba para fazer mapeamen-
to de violação de direitos humanos
eles não querem. É uma forma de
preconceito. Eles têm que saber
que nós temos direitos e deveres,
que a gente tem que entrar na
pauta deles como mulher com
nossos direitos. Tem que ter
outras políticas públicas e argu-
mentos para trabalhar com isto.
05
“
”
(Joice Oliveira)
Quando se fala que o
marido matou a mulher
todo mundo fala
“coitadinha”, mas se
você fala que um
homem agrediu uma
prostituta“ela que
se dane...
JUNHO | 2015
trabalho diário com
Oas mulheres que exer-
cem a prostituição
tem nos provocado a fazer refle-
xões constantes. A zona boêmia
de Belo Horizonte, historicamente
localizada no centro da cidade,
sempre foi território masculino
onde as “moças de família” não
deveriam sequer passar. Lem-
brando que, o termo “moça de
família”, já traz implícito o contra-
ponto preconceituoso que está
latente na palavra mulher. Pois, há
territórios e comportamentos que,
por si só, colocam sob suspeita o
status sexual da mulher. Dito de
outra forma, todas as mulheres
são controladas por um sistema
informal e malicioso, no qual “pu-
ta” é uma ofensa a qualquer
mulher que transgride o que se
considera “boa reputação femini-
na”.
Para a mulher, o uso correto
da sexualidade se restringe ao
casamento, reservando-lhe o
lugar de “rainha do lar” – aquela
que está a serviço de todos -
desempenhando tarefas que tem
reconhecimento social, mas não
econômico. Estando restrita ao
âmbito doméstico, tem poucas
oportunidades de desenvolver
suas potencialidades e dificulda-
des de acessar recursos econô-
micos que tornem viáveis sua
independência e autonomia. Este
fato naturaliza e perpetua a discri-
minação, facilitando o controle
ideológico sobre a mulher. O con-
trole da sexualidade feminina,
constituído em bases patriarcais,
responde a uma ordem econômi-
ca que visa a garantir a certeza da
paternidade e a transmissão da
herança a herdeiros legítimos.
A legitimação deste controle
é possível a partir da incorporação
dos valores machistas pela pró-
pria mulher. Simone de Beauvoir
nos lembra que “ninguém nasce
mulher: torna-se mulher”, referin-
do-se as relações desiguais de
poder que coloca o feminino
subordinado ao masculino. Assim
sendo, “mulher de má fama”, opos-
to de “rainha do lar” é um arranjo
ideológico com motivação peda-
gógica, e está ali para nos ensinar
o que acontece se nos afastamos
do que é “conveniente”. Enten-
dendo como conveniente o matri-
mônio, que é o que dá legitimida-
de social e autovalorização à
mulher. O medo de sermos identi-
ficadas como “desviadas, deson-
radas” nos faz assumir o discurso
sexista que cria padrões hegemô-
nicos e heterogênicos de condu-
tas sexuais, impondo direitos desi-
guais para homens e mulheres.
Logo, protótipos de comporta-
mentos considerados desviantes
para as mulheres e, portanto, pas-
síveis de punição, são distintivos e
valorativos do que é ser macho.
“Eu falo que a prostituta tem
que existir, a sociedade seria pior
sem ela. Quando um homem ou
uma mulher casada me questiona
sobre prostituição eu falo, ô minha
filha, homem não vive sem sexo.
Porque se o homem não pegar a
prostituta, não tiver ela, ele vai
pegar a mulher casada, ele vai
pegar a menina adolescente.
Seria mais estupro; assim eu pen-
so. O homem tem instinto animal,
esse é o instinto dele.” (M.A.)
Diante dessa conjuntura,
mesmo com toda a opressão e
controle, o que faz com que algu-
mas mulheres optem pela prosti-
tuição?
Embora seja comum que as
mulheres que exercem a prostitui-
ção tenham uma história marcada
por vulnerações sócio-afetivas e
desrespeito a direitos elementa-
res e básicos, tais como acesso à
moradia, saúde, educação, isto
não será determinante para a
entrada na atividade. Vários fato-
res devem ser considerados.
Além das histórias individuais, as
conjunturas sociais, políticas,
econômicas e culturais interferem
na construção da subjetividade de
cada pessoa influenciando em
suas escolhas.
Escutando as mulheres,
observamos que elas tiveram
oportunidades de trabalho, mas
diante dos baixos salários que
receberiam, optam pela prostitui-
ção como possibilidade de traba-
lho por ser mais rentável, oferecer
maior flexibilidade de horários, dar
maior liberdade e autonomia.
“Na minha vida, a prostituição
não foi problema; foi solução"
(M.P.)
06
ESTIGMA NA
PROSTITUIÇÃO
E LUTA POR DIREITOS
Por Isabel Brandão e Lucinete Santos
JUNHO | 2015
“Com o dinheiro que ganhei
ajudei minha mãe a cuidar de
meus irmãos.” (M.P.)
“Eu não conseguia emprego,
mas conseguia cantada.” (L. W.)
“Com quinze anos conheci a
prostituição. Foi uma porta que se
abriu.” (C. L.)
“Sabe o vício da garota de
programa? Ter dinheiro para fazer
o que quer.” (L.W.)
“Eu não vivo com salário míni-
mo.” (D. S.)
De fato, o acesso desigual
aos recursos econômicos entre
homens e mulheres faz com que,
historicamente, a prostituição seja
uma estratégia laboral para as
mulheres ditas “desviadas”, ape-
sar do alto custo social e psicológi-
co que a prostituição impõe.
“A mulher se veste muito
bem, então ela cobre aquele
estigma que ela carrega. Ela entra
no shopping parecendo uma
madame e ela senta em uma
mesa tomando um café, fumando
um cigarro, tomando uma cerveja
ou uísque, com outra madame do
lado, que pensa que ela é dama. E
pergunta pra ela: o que você faz?
Ah! eu tenho um salão de beleza
no Rio, tenho uma lanchonete,
mas sempre como dona. Ela pode
mascarar. Ha... faz de conta que
está tudo bem, está com sapato
caro,está bem vestida, está acom-
panhando executivo que é o políti-
co do Brasil, ninguém fala nada”.
(V.M.)
“Você aguentar um homem
dentro de quatro paredes e conse-
guir sair bem não é pra qualquer
um não. Ali, está garantido seu
aluguel, sua comida, então tem
que ter jogo de cintura, não é pra
qualquer um não”. (M.A.)
Desde a ótica da mulher, a
prostituição é menos escravizante
que outras atividades que ofere-
cem baixa remuneração e são
estigmatizadas por serem consi-
deradas de baixa qualificação
profissional. É comum que ela
utilize a renda obtida nesta ativi-
dade para a melhoria da qualida-
de de vida própria e de seus famili-
ares, construindo casa, auxiliando
com recursos financeiros em caso
de doenças, pagando estudos
para irmãos, sobrinhos e filhos. E,
ainda assim, será rotulada de “va-
dia” e “vagabunda”.
“Rotulam nós como sujas,
acham que nós somos um bando
de aidéticas, com gonorréia.
Acham que a gente é lixo do lixo,
que serve só para os homens des-
carregar”. (A. K)
Por que as mulheres que
exercem a prostituição estão em
situação desfavorável frente a
outras/os trabalhadoras/os? Qual
é a real situação de vulnerabilida-
de?
O estigma. Entendido como
tratar o “diferente como inferior".
O olhar preconceituoso da
sociedade não vê a prostituição
como uma atividade, mas como
uma identidade que desqualifica a
mulher. Prostituta equivale à má
mãe, “mulher de vida fácil”, dege-
nerada, manipulada entre outros.
Como ressalta Minayo, “a trans-
gressão como busca de identida-
de para ser reconhecido como
sujeito esbarra na violência estru-
tural: existência e reprodução das
desigualdades, exclusão social e
moral e dominação de classe e
gênero”.
“O preconceito é assim: a
mulher de programa, para a socie-
ImagemIlustrativa
JUNHO | 2015
08
dade hipócrita é indigna, embora
ela não seja. Até o homem que
usa a garota de programa vê este
trabalho como um trabalho sujo”.
(L.W.).
“Vocês acham que pela
minha profissão eu não sei criar
meus filhos? Tem muita gente que
tem diploma e não sabe criar os
filhos” (L.P.).
Neste sentido, o estigma é o
extremo da violência por ser “um
atributo que implica desvaloriza-
ção e situa a pessoa em uma posi-
ção de desvantagem.”
Quando se associa a prostitu-
ição à marginalidade e delinquên-
cia, abrem-se espaços para restri-
ções de direitos civis e sociais
destas pessoas, naturalizando a
violência e exploração econômi-
ca.Além do mais, “conceitos nega-
tivos dessa espécie, designam um
comportamento que não repre-
senta uma injustiça só porque ele
estorva os sujeitos em sua liber-
dade de ação ou lhes inflige
danos, pelo contrário, visa-se
aquele aspecto de um comporta-
mento lesivo pelo qual as pessoas
são feridas numa compreensão
positiva de si mesmas, que elas
adquiriram de maneira intersubje-
tiva.” (Axel Honneth).
Tais conceitos potencializam
a discriminação e humilhação
“atuando de dentro para fora, atra-
vés do medo, da fraqueza de cará-
ter e da sensação de impotência
criada e mantida pelo permanente
processo de auto-julgamento,
auto-condenação e auto-
flagelação, o que confirma e ante-
cipa o fracasso pessoal, reafir-
mando o estigma social” (Letícia
Lans)
Discursos antagônicos e pre-
conceituosos sobre a sexualidade
podem ser usados como elemen-
tos para fortalecer e manter a obje-
tificação da mulher: vítima - se a
mulher está na prostituição por
adversidade do destino; delin-
qüente - se ela encara a prostitui-
ção como possibilidade de exer-
cer liberdade, autonomia e resis-
tência; aquela que precisa ser
“salva”; mulher passiva, objeto
sexual, escrava sexual... Em
todos os casos o que está mal
visto é a “troca de sexo por dinhei-
ro”, que em uma leitura latente diz
respeito à autonomia, protagonis-
mo e liberdade da mulher.
O estigma é um mecanismo
de controle tão efetivo que as tra-
balhadoras sexuais passam a “se
ver” com o olhar daqueles/as que
as discriminam. Assim, são lesa-
das em sua autoestima e são mar-
cadas pela ambiguidade: sentem
vergonha do que fazem e introje-
tam a imagem que a sociedade
tem delas: “não presto”. Estigmati-
zadas, envergonhadas e com
medo de serem identificadas pelo
trabalho que exercem acabam
não se associando para reivindi-
car direitos:
“O que vou reivindicar se
tenho vergonha do que faço?”
“Tem muito tempo que eu
nem cumprimentava ninguém por
causa disso. Ninguém, ninguém.
Agente fica com medo de ser reco-
nhecida”
Cabe perguntar-nos: será
que também contribuímos para
propagar idéias preconcebidas e
de cunho moralista que reforçam
a discriminação a que as mulhe-
res estão submetidas?
Estamos cientes de que há
várias situações de vulnerações
de direitos no exercício da prosti-
tuição, por isso, não abrimos mão
de lutar contra estruturas perver-
sas que promovem injustiças e
desigualdades.
Contemplando a vida
destas pessoas a partir do seu
olhar e de suas dores, lutaremos
para que as mulheres que exer-
cem a prostituição sejam reconhe-
cidas como sujeitos de direitos.
Que possam exercer sua ocupa-
ção livres de marginalização, humi-
lhação, violência e exploração
econômica. Poderemos rever
conceitos e preconceitos, abando-
nar construtos morais e criar
novos paradigmas que promovam
a resistência e autonomia das
mulheres.
Quem sabe, um dia, toda a
sociedade poderá olhar para uma
prostituta como relata C., filha de
uma das mulheres que frequenta
a Pastoral: “tenho orgulho da
minha mãe porque ela nunca dei-
xou faltar nada para nós, nem um
chinelo. Ela nunca colocou a
gente para pedir nem deixou a
gente tirar nada de ninguém.”
* * *
Isabel Cristina Brandão
Furtado – Psicóloga e Lucinete
Santos – Educadora Social – For-
mada em Serviço Social (Inte-
grantes da Equipe Pastoral da
Mulher de Belo Horizonte).
REFERÊNCIAS
- El trabajo sexual em la mira. Polémicas
e estereótipos - Dolores Juliano;
- Amor, um real por minuto - ThaddeusB-
lanchetie eAna Paula da Silva;
- Luta por reconhecimento; A Gramática
Moral dos Conflitos Sociais -Axel Honneth;
- A vueltas com La prostituicón - Holgado
Fernández, Isabel;
- Profissionais do sexo – uma perspecti-
va antropológica do estigma da prostituição –
Vanessa Petró;
- Estigma, Auto-estigma e Invisibilidade
Social dos Crossdressers – Letícia Lanz
http://www.leticialanz.org/estigma-auto-
estigma-e-invisibilidade-social-dos-
crossdressers-13-10-2011/;
”
“Quando se associa
a prostituição à
marginalidade e
delinquência,
abrem-se espaços
para restrições de
direitos civis e sociais
destas pessoas...
JUNHO | 2015
ste ano a Pastoral da
EMulher de BH tem com
foco de seu trabalho a
defesa e garantia de direitos e a
luta contra a discriminação e pre-
conceito contra as mulheres que
exercem a prostituição. Ao refletir
sobre estas questões uma per-
gunta se impõe: por que elas
estão em situação desfavorável
frente a outros/as trabalhado-
res/as?
A discriminação abre portas
para o não cumprimento e viola-
ção de direitos mínimos assim
como à exploração econômica.
Sabemos que as origens da
discriminação contra as mulheres
são históricas e que a conquista
de direitos somente é possível
quando o próprio cidadão se reco-
nhece como sujeito de direitos.
Assim, com o objetivo de dar voz
às mulheres para que expressem
os desafios cotidianos de seu tra-
balho abrimos espaço para o diá-
logo e conversamos com V., que
trabalha há muitos anos nos
hotéis da Rua Guaicurus, além de
ter trabalhado em outras cidades
do Brasil, nos apresenta uma pers-
pectiva muito realista da vida de
prostituta.
Como você percebe as con-
dições de trabalho das mulhe-
res nos hotéis da Guaicurus? O
que poderia ser feito para
melhorar?
Quando se fala em exploração
nos hotéis de prostituição de Belo
Horizonte, são as duas diárias
cobradas por 16 horas de aluguel
do quarto. Porque o quarto que eu
trabalho não vale R$150,00. Eu
não tenho conforto nenhum para
pagar R$150,00. Como eu traba-
lho meio horário eu pago R$80,00,
sem direito a nada. Material de
limpeza é meu, lençol é meu. Se
você quiser pano de chão você
tem que comprar, então sua des-
pesa não é só a diária. Tem diária,
tem material de limpeza, alimenta-
ção. Se você não tiver uns
R$110,00 não tem como ficar ali.
Para eu abrir a porta tenho que ter
todos os dias R$110,00.
Limpeza é um problema sério.
Você chega você tem que ser faxi-
neira porque o faxineiro não limpa,
mal tira o lixo, às vezes varre, às
vezes não varre. Sem contar que
no hotel que eu trabalho é compli-
cado porque é bidê. São 70
mulheres para 2 banheiros. Falta
dedetização, pessoas qualifica-
das, alarme, segurança.
Colocaram detector de metal
na entrada mas infelizmente não
resolve nada. Por quê? Apitou o
porteiro não tem autoridade para
falar: abre sua bolsa. Porque
quem tem esta autoridade é polí-
cia ou vigilante treinado, qualifica-
do no curso de vigilância. Aquilo é
inútil, porque não resolve. Há
menos de uma semana, embaixo
do meu quarto uma mulher estava
sendo espancada. Eu ouvi ela
berrando. Quem gritou para o
segurança fui eu. Quer dizer, não
existe segurança.
No seu entendimento, o que
ocasiona o descaso e a explora-
ção econômica na prostitui-
ção?
Primeiro, a maioria dos hotéis,
embora dependa de nosso traba-
09
Garantia de
Direitos e a
luta contra a
discriminação
ImagemIlustrativa
JUNHO | 2015
10
lho, ainda vê a prostituição como
vadiagem. Esta é uma triste reali-
dade, porque se eles vissem
nosso trabalho como profissão
existiria respeito.
Você não vai ao supermerca-
do, consome o que está no merca-
do, sai do mercado, passa pelo
gerente, ainda dá tchau, sai sem
pagar. Você faz isso? Então, por
que lá você vai, tem relaciona-
mento com a menina, diz que não
vai pagar e o gerente não faz
nada, o segurança não faz nada?
Isto acontece por dois motivos:
o gerente tem medo pela vida
dele. Ele não tem respaldo de
ninguém se acontecer alguma
coisa, se ele tomar peito para
defender alguém ali. Segundo, a
sociedade ainda vê a prostituição
como vadiagem, não como profis-
são. Enquanto isto não mudar não
vai acontecer nada. Vai continuar
meninas apanhando, vai continu-
ar gente dando calote. Você não
vai numa loja, pega uma roupa,
veste no provador, sai com a
roupa e não paga. Por que não
paga? A prostituição é uma pres-
tação de serviço. Então por que é
diferente? Não existe um trabalho
eficaz que mostre para a socieda-
de que a gente não está ali por
vadiagem. É um trabalho que
merece respeito.
Acho também que as meninas
não lutam por direitos porque
acham que nunca vai mudar. Que
mesmo que dê a cara a tapa isto
nunca vai resolver. Eu já ouvi, por
exemplo, frases de algumas meni-
nas que apanharam nos hotéis
“ah! Eu não vou correr atrás, por-
que não vai dar nada mesmo.”
Talvez, porque o preconceito é
muito dentro delas próprias.
Enquanto elas se acharem dimi-
nuídas diante da sociedade,
enquanto não se empoderarem
dos direitos que tem, acreditar que
merecem respeito e que não tem
que esconder o fato, a sociedade
não vai mudar.
É possível uma mudança de
atitude por parte das garotas de
programa?
Não é um trabalho fácil. Já
trabalhei em outras ONG's, por
exemplo, em Salvador. Nós tínha-
mos dificuldades de trazer as
meninas para reuniões dentro da
associação. Mas já que Maomé
não vai à montanha, a montanha
vai a Maomé. Então nós passa-
mos a ir para a rua fazer trabalhos.
Tinha dias que a gente ia para as
praças. A gente ia para as casas
de massagem a gente ia para os
bordéis. Porque se elas não queri-
am ir até a gente, a gente tinha
que ir até elas. O importante é que
o trabalho tinha que ser feito. Nós
fazíamos um café da manhã na
praça pública para as meninas.
Nós tínhamos parceiros, eles doa-
vam as coisas. E aquilo era novi-
dade.
E a gente, com este trabalho,
acabava atingindo a população
também. Porque se é um espaço
aberto não ia ser só as garotas
que iam assistir. As pessoas iam
passando e paravam para assistir
também. O que acontece, num
primeiro momento: garotas de
programa, sem máscara com a
população. Porque elas não iam
vestir máscaras para tomar café
da manhã. Então era uma manei-
ra delas serem vistas.
Eu sei que lidar com o abuso
não é fácil. Em Feira de Santana
foi um pouco diferente. Lá a gente
fazia o encontro intermunicipal de
prostituta. Nós começamos com
sete meninas. Aí teve o segundo,
o terceiro. Eu participei do quarto
e do quinto. No quarto nós conse-
guimos colocar 42 meninas. No
quinto encontro éramos 127 meni-
nas.
Lá em Feira, as meninas já iam
para as ruas sem máscaras, sem
nada, brigando por seus direitos
de mulher. Porque elas têm direito
à saúde, respeito pelo trabalho
delas, pelo direito de não violên-
cia. Só que é um trabalho de 20
anos, não é uma coisa que come-
ça hoje.
Como o preconceito e o
estigma interferem na vida das
garotas de programa? Como
enfrentá-los?
O preconceito é assim, a
mulher de programa, para a socie-
dade hipócrita, que usa a garota
de programa, o homem que faz
programa, ele vê este trabalho
como um trabalho sujo.Asocieda-
de pensa assim, ela é indigna,
embora ela não seja. Mas para a
sociedade, até aquele homem
que vai lá e fica com a gente, eles
pensam é isto. Eu falo para os
meus clientes, na cabeça deles a
gente é uma máquina de sexo. A
gente não tem sentimento.
Eu falo para
os meus clientes,
na cabeça deles a
gente é uma
máquina de sexo.
A gente não tem
sentimento.
”
“
ImagemIlustrativa
JUNHO | 2015
De tanto ouvir que ela tem um
trabalho que não é normal ela
começa a se sentir anormal. Ela
começa a se sentir diferente. E
isto, vai fazendo ela ter seguelas
psicológicas. O fato de ela ter que
esconder de vizinho, de família,
isto demonstra claramente que
não é uma questão muito bem
resolvida. Porque se ela fosse
bem resolvida com isto ela não
teria que esconder. Não haveria
motivo para esconder. Mas por-
que ela esconde? Por causa do
medo do preconceito; o medo de
não ser aceita, o medo de perder
o amor dos filhos; tudo isto come-
ça a deixar ela frustrada. Aí vêm
os problemas psicológicos porque
ela se encontra fazendo algo que
precisa pelo dinheiro, mas que ela
sente vergonha. E que talvez afas-
te as pessoas que ela ama. Então
ela começa a viver uma turbulên-
cia de emoções, de conflitos e,
geralmente, em conseqüência
disto vem a depressão.
Ao contrário do que as pesso-
as pensam a garota de programa
é muito mais carente que as
outras. Porque gente, o homem
fica com a gente só por causa de
sexo. Aí, quando aparece alguém
que dá o outro lado, aquilo que a
gente não tem que é carinho, aten-
ção, a gente acaba se apegando
muito rápido. Mas isto é questão
do que eu não tenho, que é uma
vida sentimental, uma vida social
que eu não tenho. Chego lá 8:00 e
saio 22:30, de segunda a segun-
da. Que vida que eu tenho?
Amaioria das meninas, acham
que a família não sabe. Ou acham
que os vizinhos, as pessoas não
sabem o que elas fazem. Acham!
Acho que sabem, porque não tem
como você esconder se o lugar é
público. Seu parente passa, sua
vizinha passa, você está saindo,
alguém te vê. Então, como você
vai esconder? Você viver uma
mentira é muito louco.
Eu abri para minha família, há
pouco tempo, o que eu fazia e eu
senti o peso do preconceito. Por-
que, simplesmente, a minha irmã
ficou muda no telefone e depois
disto, se ela não me ligava, agora
que não liga mesmo. Eu acho que
no fundo eles sempre souberam,
porque eu tinha um noivo e ele
jogou isto para a minha mãe.
Então, eles sabiam de onde o
meu dinheiro vinha, mas como era
necessário se fazia silêncio. É
assim, a maioria das pessoas
sabem, mas preferem fazer de
conta que não sabe.
Ontem, no posto de saúde
estava se falando da Elisa Samú-
dio e alguém falou, 'mais você viu
o que ela fazia, né?' Me admirou
que quem falou isto era uma garo-
ta de programa, entendeu? Aí eu
falei: ' o fato dela ser prostituta não
significa que ela era menos
mulher que qualquer a outra ou
que tem menos direitos que as
outras.
Você entende que o preconce-
ito começa na própria garota de
programa?
Asociedade só vai mudar o dia
que você tiver coragem de dizer
eu sou e quero que você me res-
peite.
O que você pensa sobre a
regulamentação da prostitui-
ção?
Quando se fala em legalizar a
prostituição não é só botar no
papel para a gente ter direito cons-
titucional.
Na verdade, tinha que ser feita
uma reforma política. Porque a
previdência social tinha que
entender quando uma prostituta
pudesse ser encostada. A gente
precisa de saúde também. Olha,
existe menina soropositivo onde
eu trabalho. A gente não tem
noção de quantos homens vem
que são soropositivos. Hoje
mesmo eu fiz um programa com
um cliente antigo e ele propôs,
porque ele é cliente de sete anos,
que a gente abrisse mão do pre-
servativo. Eu olhei para ele e falei:
você está louco, você bebeu?
Que aconteceu com você, meu
filho?
Teríamos que entender o que
seria um acidente de trabalho
dentro da prostituição. Por exem-
plo, me machucar fisicamente, o
rompimento de uma camisinha e
ter alguma consequência por isso.
O próprio ciclo menstrual. Então,
peguei uma chave, coloquei meu
material de trabalho, arrumei o
quarto, fiz o primeiro programa e
menstruei. Eu tenho direito de não
quer trabalhar deste jeito, querer ir
para a casa. Eu tenho que ter este
direito. É o meu corpo. Se eu
estou trabalhando numa empre-
sa, e tiver uma indisposição de
estômago, eu não tenho o direito
de ir para casa? Então, se eu tra-
balho com meu órgão sexual eu
tenho o direito de cuidar de mim.
Então, tudo isto teria que ser estu-
dado.
Outra coisa, mesmo que se
tente legalizar, a sociedade ainda
não está preparada para isto. A
sociedade é hipócrita. Se hoje
muitas pessoas não veem a pros-
tituição como realidade, que é
uma atividade profissional, discri-
minam, você acha que só o fato
de legalizar vai tirar este precon-
ceito todo?
11
Ao contrário do
que as pessoas
pensam a garota
de programa é muito
mais carente que
as outras.
”
“
ImagemIlustrativa
JUNHO | 2015
GAROTA
DE PROGRAMA
MãE
E aGOrA?
[
FiLHa
IrMã
HUmANa
ProVeDoRA
CiDaDÃ
CONCEITO: CONECTIDEA.COM.BR | FOTO: KUES/SHUTTERSTOCK/ARQUIVO
pENsE... EnFRenTE sEU PRECONCEITO!
Instituto das Irmãs Oblatas
do Santíssimo Redentor
Coordenação:
Apoio:
A Pastoral da Mulher de Belo
Horizonte, existente desde 1982, é uma
entidade sem fins lucrativos, que tem por
finalidade promover ações determinantes
para a emancipação e humanização das
mulheres que se encontram em situação
de prostitui-ção. É uma ação orgânica,
sistemática e planejada em processos
com os pequenos grupos, desde uma
perspectiva de gênero e espiritualidade
às atitudes sociais.
Revisão e Redação:
Equipe Pastoral da Mulher de BH
Projeto Visual e Diagramação:
Mário Pires Marketing Comunicativo
Assessor de Comunicação da Rede Oblata
Tiragem: 2.000 Exemplares
A reprodução total ou parcial de conteúdos desta
publicação será permitida desde que a finalidade
não seja comercial, bem como, seja citada a fonte.
Os créditos deverão ser atribuídos aos seus
respectivos(as) autores(as).
E X P E D I E N T E
SEDE PASTORAL DA MULHER DE BELO HORIZONTE
Galeria do Comércio - Av. Santos Dumont, nº 644 e Rua Gaicurus, 669 (sala 327)
CEP: 30.111-040 - Centro - Belo Horizonte/MG - Funcionamento: de 2ª a 6ª, das 8h30 às 17h30.
Telefone: 3272.7349 | e-mail: apmmbh@yahoo.com.br

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Jornal Grito Mulher - Maio 2015

  • 1. sta edição do Grito Mulher pretende Esuscitar o debate sobre a situação das mulheres que exercem a prostituição, o estigma e as violações de direitos humanos que lhes afetam particularmente (como violência, falta de condições mínimas de higiene, insalubridade dos locais de prostituição, exploração econômica e a falta de proteção frente a determinados clientes e donos desses locais). Para além da velha e ultrapassada discus- são entre abolicionistas e regulamentaristas, pretendemos promover a reflexão a partir de novas perspectivas, surgidas dos relatos e demandas apresentadas pelas próprias mulhe- res que estão nesse meio. Buscamos também motivar a discussão sobre quais são as medidas mais eficazes para seu empoderamento e para sua proteção social e jurídica. A experiências destes anos no acompa- nhamento de mulheres em situação de prostitui- ção nos ensinou que não serve qualquer medida abolicionista nem qualquer tipo de regulamenta- ção. O enfrentamento da vulnerabilidade e a discriminação que sofrem nos exige “sair da caixinha”, pensar diferente, determinar cami- nhos alternativos, em colaboração com outras entidades e movimentos sociais e com as própri- as associações de prostitutas que lutam para melhorar suas condições de vida. REDE OBLATAREDE OBLATA Instituto das Irmãs Oblatas do Santíssimo Redentor ELAS TÊM DIREITOSDIREITOS Jornal da Pastoral da Mulher de Belo Horizonte - MG - Junho de 2015 - Ano XXIII - Edição nº 127Jornal da Pastoral da Mulher de Belo Horizonte - MG - Junho de 2015 - Ano XXIII - Edição nº 127Jornal da Pastoral da Mulher de Belo Horizonte - MG - Junho de 2015 - Ano XXIII - Edição nº 127
  • 2. A sociedade brasileira sempre teve uma ati- tude dupla e ambígua com relação à prostituição: por uma parte aceita sua existência e até usufrui, por outra parte rejeita o seu reconhecimento. Por isso, apesar de ser um fenômeno amplamente consumido em nosso país, a legislação pratica- mente guarda silêncio, especial- mente no relativo à garantia de direitos das profissionais do sexo. E quando aborda o tema, o faz unicamente para criminalizar algu- mas condutas relacionadas à pros- tituição (artigos 227 a 230 do Códi- go Penal), relegando esta ativida- de a uma posição de marginalida- de. Um pequena mudança no modo como as políticas públicas brasileiras têm abordado a prosti- tuição se deu com o reconheci- mento da ocupação “profissional do sexo” pelo Ministério do Traba- lho e Emprego em 2002, quando foi incluída na Classificação Brasi- leira de Ocupação (CBO). Segundo a CBO estes profissio- nais são pessoas que buscam programas sexuais, atendem e acompanham clientes, além de participar em ações educativas no campo da sexualidade. Porém, surpreendentemente, esta profissão, reconhecida como lícita, não possui qualquer amparo institucional para seu adequado exercício. O jurista Renato de Almeida Oliveira Muçouçah, cuja tese de doutorado é “Trabalhado- res do sexo e seu exercício profis- sional: um enfoque pelo prisma da ciência jurídica trabalhista”, abor- da esta questão com muita preci- são: “...por não haver balizamen- tos legais em relação à maneira de atuar de rufiões ou casas de prostituição, estes podem ser con- siderados os “gatos” do comércio sexual – pessoas que, sem idonei- dade financeira, exploram o traba- lho alheio e não o remuneram condignamente, deixando de ofe- recer condições mínimas de higi- dez física e psíquica aos trabalha- dores, ambiente do trabalho com o mínimo de salubridade, prote- ção contra riscos oriundos do tra- balho, etc. Estes aviltam, e de maneira gritante, a própria digni- dade da pessoa do trabalhador do sexo. Este é um motivo a mais para que as relações comerciais de sexo sejam consideradas como de emprego, tendo-se em vista a proteção da pessoa do trabalhador em seus mais ele- 1 mentares direitos ” . Precisamente por essa clan- destinidade, por essa falta de nor- matividade, as transgressões, e as vulnerações de direitos podem acontecer com maior facilidade. Ao deixar de prever garantias e direitos básicos às pessoas que escolhem esta atividade como forma de ganhar a vida, se lhe impede o reconhecimento da sua identidade de trabalhadoras e que possam receber a proteção do Estado. Este fator, que nega sua plena cidadania, vem a refor- çar ainda mais a estigmatização daquelas que estão na prostitui- ção. Nas palavras de Gabriela 2 Leite : O que acaba com uma prosti- tuta, o que tira sua dignidade e sua saúde, não é transar, não é fazer sexo profissionalmente. O que acaba com ela é a falta de condi- ções de trabalho: não tem água para se lavar, o quarto não tem condições de higiene, tem perce- vejo andando pelas paredes; se ela não trabalha um dia ou mais, vem a cafetina dizer que ela tem que trabalhar para pagar pelo dia de trabalho e pelas faltas, e a pros- tituta fica devendo um monte de dinheiro. Vira escrava da cafetina. Não há regra para nada, nenhuma legislação que a ampare. Evidentemente a exploração econômica incide no mercado do sexo, igual que em muitos outros trabalhos ofertados no mercado, onde existe uma grande dispari- dade entre o salário pago e o valor do trabalho produzido. Permitir que, em ausência de normativa, as partes regulem livremente as 02 (Gabriela Leite) Direitos trabalhistaspara as mulheres que exercem a prostituição? O que acaba com uma prostituta, o que tira sua dignidade e sua saúde, não é transar, não é fazer sexo profissionalmente. O que acaba com ela é a falta de condições de trabalho... 4 Por José Manuel Lázaro Uriol JUNHO | 2015
  • 3. condições em que deve ser exerci- do o trabalho sexual (como acon- tece hoje) é abrir a porta aos abu- sos e à violação de direitos, máxi- me quando existe um enorme desequilíbrio de poder econômico entre quem contrata e quem é contratada. Neste caso é preciso invocar o papel do Estado na garantia de direitos. É verdade também a prostitui- ção como instituição não pode compreender-se fora da estrutura patriarcal, sistema social, político e econômico, no qual os homens controlam, individual e coletiva- mente, o trabalho, o corpo e a sexu- alidade das mulheres. A prostitui- ção não é um problema exclusiva- mente individual de quem exerce e quem paga, é uma questão tam- bém social, porque estamos falan- do de desigualdade econômica e de gênero e de ideologia patriar- cal. Por isso, a instituição prostitu- cional, base sustentadora dessa ordem (ou desordem?) deve ser combatida no plano cultural e polí- tico. É preciso politizar a sexuali- dade e questionar a construção ideológica das necessidades sexu- ais masculinas. Esta batalha, longa e difícil, não nos deve fazer esquecer o que as trabalhadoras sexuais nos estão dizendo. Por isso, é importante diferenciar entre tática e estratégia: melhorar aqui e agora suas condições de vida e trabalho no curto prazo, sem per- der o horizonte de trabalhar por mudanças culturais e sociais no longo prazo. As mulheres que livremente exercem a prostituição merecem desde já o respeito e o amparo dos seus direitos como cidadãs e tra- balhadoras. Trabalhar hoje por empoderá-las e garantir seus dire- itos civis e trabalhistas não se opõe a promover, desde uma pers- pectiva feminista , uma sociedade com plena igualdade nas relações entre gêneros. Da mesma maneira que lutar para que as empregadas domésti- cas (uma profissão, herança escravista, que só se mantém atra- vés da exploração de uma classe social por outra) tenham mais direitos trabalhistas reconhecidos não significa concordar com esta instituição e com a divisão sexual do trabalho que ela manifesta. Não oferecer direitos laborais às profissionais do sexo vulnera os fundamentos da dignidade huma- na e o principio da não-discrimi- nação. A regulamentação em si mesma, formalmente, não é deci- siva. Uma determinada regula- mentação da prostituição pode agravar a exploração e reforçar o patriarcado ou pode fornecer às mulheres proteção de seus direi- tos, tudo depende do conteúdo dessa normativa e a quais inte- resses serve. 1 - MUÇOUÇAH, Renato de Almeida Oliveira, O trabalho dos profissionais do sexo e sua tutela pelo Direito. Disponível em http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=7a7b4862f2e69483. Acesso em 10 de março de 2015. 2 - LEITE, Gabriela. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992, p. 170 3 - Teóricas feministas, como Heleieth Saffioti mostraram como o emprego doméstico associa modos capitalistas de exploração do trabalho com antigas estruturas de dominação no âmbito familiar. Baseada na organização patriarcal da família, a instituição do serviço doméstico é um sintoma da desigualdade de gênero e desigualdade social existente. O desejo de poder superar, no futuro, esta “instituição” não impede que seja importante lutar aqui e agora por melhores condições de trabalho das empregadas domésticas. 4 - Coordenador da Pastoral da Mulher de Belo Horiznote As mulheres que livremente exer- cem a prostituição merecem desde já o respeito e o amparo dos seus direitos como cidadãs e trabalhadoras. JUNHO | 2015
  • 4. O Projeto Diálogos pela Liberdade dá voz às mulheres que exercem a prostituição e abre espaço para ouvirmos delas quais são seus maiores desafios e de que forma eles podem ser enfrentados. Cons- tatamos que a discriminação e o preconceito são os maiores empe- cilhos ao diálogo, ao respeito e a liberdade destas mulheres. A prostituição ainda é vista como "vadiagem" o que associa o exer- cício de uma atividade à uma imagem que desqualifica as mulheres e abre portas para bana- lizar a violência, lhes negar direi- tos humanos e restringir a cidada- nia. Com o objetivo de ampliar o debate e refletir sobre o estigma e idéias preconcebidas que pesam sobre a prostituição conversamos com duas mulheres, que há anos lutam para promover os direitos destas pessoas. Joice Oliveira começou sua luta por direitos no Rio de Janeiro quando “achando que lá meus direitos estavam sendo violados resolvi denunciar. Foi aí que conheci a ONG DAVIDA. Eu, desde que comecei a trabalhar como prostituta, sempre fui assu- mida”. Cida Vieira, presidente da Aprosmig (Associação das Prosti- tutas de Minas Gerais), acredita que “ o fato das mulheres escon- derem a própria identidade gera mais violência. Porque quando você grita e vai para a rua, seus direitos são revistos. Muitas vezes as mulheres prostitutas abaixam a cabeça. A Associação veio para isto: pra dizer, olha, eu tenho pro- fissão, nós somos autônomas, nós somos reconhecidas.” PM- Quais são os principais problemas enfrentados pelas mulheres que exercem a prostitui- ção nos hotéis da Guaicurus? CV- Duas questões são fun- damentais: direitos humanos, cidadania e a violência contra a prostituta no local de trabalho. Por ser mulher deveria ter seus direitos humanos e de cidadã res- peitados e paralelamente o reco- nhecimento de leis específicas para mulheres que exercem a prostituição. Mas, por preconcei- to e estigma ela não está na condi- ção de mulher. Para a sociedade ela vive a margem. Não por ser mulher, mas por exercer uma pro- fissão que inclusive, já é reconhe- cida pela CBO (Classificação Bra- sileira de Ocupações) O que adianta você ter uma profissão que não tem espaço e fica clandestina? Então, a dis- cussão é esta: regulamenta, pois já é ocupação e aí poderemos abranger as políticas públicas. Olha, rua tem que ter banheiro e mais policiamento. Boate, mulhe- res trabalhando? É proibido e é crime beber em lugar de trabalho. Então as mulheres não têm que beber enquanto trabalham. Nos hotéis, adaptar as formas. Vem a vigilância sanitária e outros órgãos responsáveis pela higiene e segurança. Muitas mulheres não seriam espancadas, violenta- das como estão sendo agora. Mas infelizmente a sociedade é machista. JO- Os principais problemas são: valor das diárias; muito caras. A higiene é precária. Trabalhamos com nosso corpo. Pelo valor que a gente paga queremos um hotel limpo e tem hotel que é muito sujo. Outra questão é a segurança. Nos problemas com homens nos quar- tos os seguranças tem que ser melhor orientados em como con- duzir a situação; tinham que ser mais qualificados para nos aten- der, nos proteger. Os gerentes tinham que ter um curso, saber como tratar a mulher, porque eles têm que entender que é da gente que eles ganham. Tem gerente de hotel que humilha muito a mulher. Já houve época que falavam para a gente chegar aqui 5:30 da manhã. A gente ficava sentada no corredor com homens andado e às vezes não nos davam chave. São questões muitos sérias que tem que ser pensadas, que são pouco vistas Como se dá o preconceito? CV- O medo é tanto! Medo da família e suas repressões. Tanto a igreja quanto quem contrata os serviços da prostituta acaba na rua discriminando as meninas. A pessoa tem aquele medo de se revelar, escondem a identidade profissional devido ao preconceito da sociedade. Ela é uma mulher, mas não pode aparecer como uma prostituta e aí se coloca à margem o que gera mais violên- cia. Ela vira uma pessoa submis- sa. Quando você grita seu direito ninguém te faz submissa. Se 04 E N T R E V I S T A VOZ NA PROSTITUIÇÃO O que adianta você ter uma profissão que não tem espaço e fica clandestina? ”(Cida Vieira) “ JUNHO | 2015
  • 5. entendêssemos que esta profis- são é comum e todas fossem para a rua lutar por direitos, hoje não haveria assassinatos, violências gravíssimas, violações de direitos. Asociedade iria nos respeitar. JO- Eu, como prostituta, me senti discriminada quando tive um problema em um hotel onde esta- va hospedada. Quando eu chamei a polícia e falei que era prostituta me senti discriminada. E também quando o policial ameaçou cha- mar o conselho tutelar para tirar minha filha, armei a maior confu- são. Mas tudo isto porque sou prostituta; senti o peso bem na fala do policial. Eu passei uma semana em Brasília e fiquei chocada com o tratamento da Ministra, do Con- gresso, dos deputados, com tudo. Quando por exemplo, se fala que o marido matou a mulher todo mundo fala “coitadinha da mulher”, mas se você fala que um homem agrediu uma prostituta “ela que se dane, é prostituta ela está lá porque ela quer”. Ninguém se espanta com uma agressão a uma prostituta. Mas se torna uma agressão a mulher. PM - Existe possibilidades de um dia as mulheres saírem para as ruas para reclamar seus direi- tos? CV- Devido ao preconceito as mulheres têm medo de serem reconhecidas e isto dificulta que se associem para reivindicar direi- tos. Se as pessoas se conscienti- zassem que esta atividade é um trabalho e elas mesmas se movi- mentassem, conscientizassem que nós somos um movimento social reconhecido a violência diminuiria. JO- Poucas mulheres têm cora- gem de lutar por seus direitos como prostituta. Eu desde que comecei a trabalhar como prosti- tuta sempre fui assumida. Só que muitas mulheres têm vergonha e medo de assumir o que são. Como se alguém tivesse alguma coisa a ver com a vida delas. Então, eu acho assim, desde que algumas mulheres começam a se encorajar, empoderar e tomar conta de si e entender que aquilo é um direito delas, que não estão fazendo nada de errado, acho que mais associações serão criadas. Porque as mulheres vão estar mais empoderadas para lutar por seus direitos e vão fortalecer outros vínculos. Aqui em BH tem muitas prostitutas e é uma capital que precisa de uma associação empoderada, não pode ser uma associação só de nome. Por exemplo, com relação às diárias altas a melhor solução seria cobrar entrada nos hotéis, mas para diminuir as diárias. Não adi- anta cobrar entrada e não diminuir as diárias. Hoje o hotel mais bara- to aqui é R$150,00. Então é caro. Sobre a regulamentação JO- O Projeto de Lei está para- do em Brasília há dois anos, espe- rando uma posição e nada é feito. Do meu ponto de vista, como pros- tituta não sou a favor do PL. Acho que o PL tinha que ser revista, até porque quando foi constituída não foi só por prostitutas. Tinha mais acadêmicos. A gente quer fazer alterações, mesmo tendo em vista que isso não vai mudar, porque as chances do PL ser aprovado são mínimas. Hoje a Rede Brasileira de Prostitutas está articulando uma carta para chegar até o Con- gresso. Vamos ter um encontro nacional em novembro em que vamos refazer o Projeto de Lei, escolhendo um parlamentar para apresentar em Brasília. O atual projeto propõe que os donos de espaços de exercício da prostitui- ção possam ficar com até 50% do que a mulher fatura. Vamos entrar num acordo de 35%. A Rede, principalmente a articulação Norte - Nordeste está bem organizada e acreditamos que será possível fazer este acor- do. O PL não fala em assinar car- teira, mas pode ter a possibilida- de. Eu senti em Brasília, na pró- pria Secretaria dos Direitos Huma- nos, no Congresso a discrimina- ção com esta pauta de prostitutas. Então, quando a gente conseguir articular uma pauta certa e con- creta, vou pedir uma audiência com a Ministra para que a prosti- tuição entre na pauta da Secreta- ria dos Direitos Humanos e eles têm que destinar verbas para tra- balhar com prostituição. Porque a SDH fala que trabalhar com prosti- tuta é trabalhar saúde, HIV, mas quando é para trabalhar direitos eles não querem. Se a gente pede uma verba para fazer mapeamen- to de violação de direitos humanos eles não querem. É uma forma de preconceito. Eles têm que saber que nós temos direitos e deveres, que a gente tem que entrar na pauta deles como mulher com nossos direitos. Tem que ter outras políticas públicas e argu- mentos para trabalhar com isto. 05 “ ” (Joice Oliveira) Quando se fala que o marido matou a mulher todo mundo fala “coitadinha”, mas se você fala que um homem agrediu uma prostituta“ela que se dane... JUNHO | 2015
  • 6. trabalho diário com Oas mulheres que exer- cem a prostituição tem nos provocado a fazer refle- xões constantes. A zona boêmia de Belo Horizonte, historicamente localizada no centro da cidade, sempre foi território masculino onde as “moças de família” não deveriam sequer passar. Lem- brando que, o termo “moça de família”, já traz implícito o contra- ponto preconceituoso que está latente na palavra mulher. Pois, há territórios e comportamentos que, por si só, colocam sob suspeita o status sexual da mulher. Dito de outra forma, todas as mulheres são controladas por um sistema informal e malicioso, no qual “pu- ta” é uma ofensa a qualquer mulher que transgride o que se considera “boa reputação femini- na”. Para a mulher, o uso correto da sexualidade se restringe ao casamento, reservando-lhe o lugar de “rainha do lar” – aquela que está a serviço de todos - desempenhando tarefas que tem reconhecimento social, mas não econômico. Estando restrita ao âmbito doméstico, tem poucas oportunidades de desenvolver suas potencialidades e dificulda- des de acessar recursos econô- micos que tornem viáveis sua independência e autonomia. Este fato naturaliza e perpetua a discri- minação, facilitando o controle ideológico sobre a mulher. O con- trole da sexualidade feminina, constituído em bases patriarcais, responde a uma ordem econômi- ca que visa a garantir a certeza da paternidade e a transmissão da herança a herdeiros legítimos. A legitimação deste controle é possível a partir da incorporação dos valores machistas pela pró- pria mulher. Simone de Beauvoir nos lembra que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, referin- do-se as relações desiguais de poder que coloca o feminino subordinado ao masculino. Assim sendo, “mulher de má fama”, opos- to de “rainha do lar” é um arranjo ideológico com motivação peda- gógica, e está ali para nos ensinar o que acontece se nos afastamos do que é “conveniente”. Enten- dendo como conveniente o matri- mônio, que é o que dá legitimida- de social e autovalorização à mulher. O medo de sermos identi- ficadas como “desviadas, deson- radas” nos faz assumir o discurso sexista que cria padrões hegemô- nicos e heterogênicos de condu- tas sexuais, impondo direitos desi- guais para homens e mulheres. Logo, protótipos de comporta- mentos considerados desviantes para as mulheres e, portanto, pas- síveis de punição, são distintivos e valorativos do que é ser macho. “Eu falo que a prostituta tem que existir, a sociedade seria pior sem ela. Quando um homem ou uma mulher casada me questiona sobre prostituição eu falo, ô minha filha, homem não vive sem sexo. Porque se o homem não pegar a prostituta, não tiver ela, ele vai pegar a mulher casada, ele vai pegar a menina adolescente. Seria mais estupro; assim eu pen- so. O homem tem instinto animal, esse é o instinto dele.” (M.A.) Diante dessa conjuntura, mesmo com toda a opressão e controle, o que faz com que algu- mas mulheres optem pela prosti- tuição? Embora seja comum que as mulheres que exercem a prostitui- ção tenham uma história marcada por vulnerações sócio-afetivas e desrespeito a direitos elementa- res e básicos, tais como acesso à moradia, saúde, educação, isto não será determinante para a entrada na atividade. Vários fato- res devem ser considerados. Além das histórias individuais, as conjunturas sociais, políticas, econômicas e culturais interferem na construção da subjetividade de cada pessoa influenciando em suas escolhas. Escutando as mulheres, observamos que elas tiveram oportunidades de trabalho, mas diante dos baixos salários que receberiam, optam pela prostitui- ção como possibilidade de traba- lho por ser mais rentável, oferecer maior flexibilidade de horários, dar maior liberdade e autonomia. “Na minha vida, a prostituição não foi problema; foi solução" (M.P.) 06 ESTIGMA NA PROSTITUIÇÃO E LUTA POR DIREITOS Por Isabel Brandão e Lucinete Santos JUNHO | 2015
  • 7. “Com o dinheiro que ganhei ajudei minha mãe a cuidar de meus irmãos.” (M.P.) “Eu não conseguia emprego, mas conseguia cantada.” (L. W.) “Com quinze anos conheci a prostituição. Foi uma porta que se abriu.” (C. L.) “Sabe o vício da garota de programa? Ter dinheiro para fazer o que quer.” (L.W.) “Eu não vivo com salário míni- mo.” (D. S.) De fato, o acesso desigual aos recursos econômicos entre homens e mulheres faz com que, historicamente, a prostituição seja uma estratégia laboral para as mulheres ditas “desviadas”, ape- sar do alto custo social e psicológi- co que a prostituição impõe. “A mulher se veste muito bem, então ela cobre aquele estigma que ela carrega. Ela entra no shopping parecendo uma madame e ela senta em uma mesa tomando um café, fumando um cigarro, tomando uma cerveja ou uísque, com outra madame do lado, que pensa que ela é dama. E pergunta pra ela: o que você faz? Ah! eu tenho um salão de beleza no Rio, tenho uma lanchonete, mas sempre como dona. Ela pode mascarar. Ha... faz de conta que está tudo bem, está com sapato caro,está bem vestida, está acom- panhando executivo que é o políti- co do Brasil, ninguém fala nada”. (V.M.) “Você aguentar um homem dentro de quatro paredes e conse- guir sair bem não é pra qualquer um não. Ali, está garantido seu aluguel, sua comida, então tem que ter jogo de cintura, não é pra qualquer um não”. (M.A.) Desde a ótica da mulher, a prostituição é menos escravizante que outras atividades que ofere- cem baixa remuneração e são estigmatizadas por serem consi- deradas de baixa qualificação profissional. É comum que ela utilize a renda obtida nesta ativi- dade para a melhoria da qualida- de de vida própria e de seus famili- ares, construindo casa, auxiliando com recursos financeiros em caso de doenças, pagando estudos para irmãos, sobrinhos e filhos. E, ainda assim, será rotulada de “va- dia” e “vagabunda”. “Rotulam nós como sujas, acham que nós somos um bando de aidéticas, com gonorréia. Acham que a gente é lixo do lixo, que serve só para os homens des- carregar”. (A. K) Por que as mulheres que exercem a prostituição estão em situação desfavorável frente a outras/os trabalhadoras/os? Qual é a real situação de vulnerabilida- de? O estigma. Entendido como tratar o “diferente como inferior". O olhar preconceituoso da sociedade não vê a prostituição como uma atividade, mas como uma identidade que desqualifica a mulher. Prostituta equivale à má mãe, “mulher de vida fácil”, dege- nerada, manipulada entre outros. Como ressalta Minayo, “a trans- gressão como busca de identida- de para ser reconhecido como sujeito esbarra na violência estru- tural: existência e reprodução das desigualdades, exclusão social e moral e dominação de classe e gênero”. “O preconceito é assim: a mulher de programa, para a socie- ImagemIlustrativa JUNHO | 2015
  • 8. 08 dade hipócrita é indigna, embora ela não seja. Até o homem que usa a garota de programa vê este trabalho como um trabalho sujo”. (L.W.). “Vocês acham que pela minha profissão eu não sei criar meus filhos? Tem muita gente que tem diploma e não sabe criar os filhos” (L.P.). Neste sentido, o estigma é o extremo da violência por ser “um atributo que implica desvaloriza- ção e situa a pessoa em uma posi- ção de desvantagem.” Quando se associa a prostitu- ição à marginalidade e delinquên- cia, abrem-se espaços para restri- ções de direitos civis e sociais destas pessoas, naturalizando a violência e exploração econômi- ca.Além do mais, “conceitos nega- tivos dessa espécie, designam um comportamento que não repre- senta uma injustiça só porque ele estorva os sujeitos em sua liber- dade de ação ou lhes inflige danos, pelo contrário, visa-se aquele aspecto de um comporta- mento lesivo pelo qual as pessoas são feridas numa compreensão positiva de si mesmas, que elas adquiriram de maneira intersubje- tiva.” (Axel Honneth). Tais conceitos potencializam a discriminação e humilhação “atuando de dentro para fora, atra- vés do medo, da fraqueza de cará- ter e da sensação de impotência criada e mantida pelo permanente processo de auto-julgamento, auto-condenação e auto- flagelação, o que confirma e ante- cipa o fracasso pessoal, reafir- mando o estigma social” (Letícia Lans) Discursos antagônicos e pre- conceituosos sobre a sexualidade podem ser usados como elemen- tos para fortalecer e manter a obje- tificação da mulher: vítima - se a mulher está na prostituição por adversidade do destino; delin- qüente - se ela encara a prostitui- ção como possibilidade de exer- cer liberdade, autonomia e resis- tência; aquela que precisa ser “salva”; mulher passiva, objeto sexual, escrava sexual... Em todos os casos o que está mal visto é a “troca de sexo por dinhei- ro”, que em uma leitura latente diz respeito à autonomia, protagonis- mo e liberdade da mulher. O estigma é um mecanismo de controle tão efetivo que as tra- balhadoras sexuais passam a “se ver” com o olhar daqueles/as que as discriminam. Assim, são lesa- das em sua autoestima e são mar- cadas pela ambiguidade: sentem vergonha do que fazem e introje- tam a imagem que a sociedade tem delas: “não presto”. Estigmati- zadas, envergonhadas e com medo de serem identificadas pelo trabalho que exercem acabam não se associando para reivindi- car direitos: “O que vou reivindicar se tenho vergonha do que faço?” “Tem muito tempo que eu nem cumprimentava ninguém por causa disso. Ninguém, ninguém. Agente fica com medo de ser reco- nhecida” Cabe perguntar-nos: será que também contribuímos para propagar idéias preconcebidas e de cunho moralista que reforçam a discriminação a que as mulhe- res estão submetidas? Estamos cientes de que há várias situações de vulnerações de direitos no exercício da prosti- tuição, por isso, não abrimos mão de lutar contra estruturas perver- sas que promovem injustiças e desigualdades. Contemplando a vida destas pessoas a partir do seu olhar e de suas dores, lutaremos para que as mulheres que exer- cem a prostituição sejam reconhe- cidas como sujeitos de direitos. Que possam exercer sua ocupa- ção livres de marginalização, humi- lhação, violência e exploração econômica. Poderemos rever conceitos e preconceitos, abando- nar construtos morais e criar novos paradigmas que promovam a resistência e autonomia das mulheres. Quem sabe, um dia, toda a sociedade poderá olhar para uma prostituta como relata C., filha de uma das mulheres que frequenta a Pastoral: “tenho orgulho da minha mãe porque ela nunca dei- xou faltar nada para nós, nem um chinelo. Ela nunca colocou a gente para pedir nem deixou a gente tirar nada de ninguém.” * * * Isabel Cristina Brandão Furtado – Psicóloga e Lucinete Santos – Educadora Social – For- mada em Serviço Social (Inte- grantes da Equipe Pastoral da Mulher de Belo Horizonte). REFERÊNCIAS - El trabajo sexual em la mira. Polémicas e estereótipos - Dolores Juliano; - Amor, um real por minuto - ThaddeusB- lanchetie eAna Paula da Silva; - Luta por reconhecimento; A Gramática Moral dos Conflitos Sociais -Axel Honneth; - A vueltas com La prostituicón - Holgado Fernández, Isabel; - Profissionais do sexo – uma perspecti- va antropológica do estigma da prostituição – Vanessa Petró; - Estigma, Auto-estigma e Invisibilidade Social dos Crossdressers – Letícia Lanz http://www.leticialanz.org/estigma-auto- estigma-e-invisibilidade-social-dos- crossdressers-13-10-2011/; ” “Quando se associa a prostituição à marginalidade e delinquência, abrem-se espaços para restrições de direitos civis e sociais destas pessoas... JUNHO | 2015
  • 9. ste ano a Pastoral da EMulher de BH tem com foco de seu trabalho a defesa e garantia de direitos e a luta contra a discriminação e pre- conceito contra as mulheres que exercem a prostituição. Ao refletir sobre estas questões uma per- gunta se impõe: por que elas estão em situação desfavorável frente a outros/as trabalhado- res/as? A discriminação abre portas para o não cumprimento e viola- ção de direitos mínimos assim como à exploração econômica. Sabemos que as origens da discriminação contra as mulheres são históricas e que a conquista de direitos somente é possível quando o próprio cidadão se reco- nhece como sujeito de direitos. Assim, com o objetivo de dar voz às mulheres para que expressem os desafios cotidianos de seu tra- balho abrimos espaço para o diá- logo e conversamos com V., que trabalha há muitos anos nos hotéis da Rua Guaicurus, além de ter trabalhado em outras cidades do Brasil, nos apresenta uma pers- pectiva muito realista da vida de prostituta. Como você percebe as con- dições de trabalho das mulhe- res nos hotéis da Guaicurus? O que poderia ser feito para melhorar? Quando se fala em exploração nos hotéis de prostituição de Belo Horizonte, são as duas diárias cobradas por 16 horas de aluguel do quarto. Porque o quarto que eu trabalho não vale R$150,00. Eu não tenho conforto nenhum para pagar R$150,00. Como eu traba- lho meio horário eu pago R$80,00, sem direito a nada. Material de limpeza é meu, lençol é meu. Se você quiser pano de chão você tem que comprar, então sua des- pesa não é só a diária. Tem diária, tem material de limpeza, alimenta- ção. Se você não tiver uns R$110,00 não tem como ficar ali. Para eu abrir a porta tenho que ter todos os dias R$110,00. Limpeza é um problema sério. Você chega você tem que ser faxi- neira porque o faxineiro não limpa, mal tira o lixo, às vezes varre, às vezes não varre. Sem contar que no hotel que eu trabalho é compli- cado porque é bidê. São 70 mulheres para 2 banheiros. Falta dedetização, pessoas qualifica- das, alarme, segurança. Colocaram detector de metal na entrada mas infelizmente não resolve nada. Por quê? Apitou o porteiro não tem autoridade para falar: abre sua bolsa. Porque quem tem esta autoridade é polí- cia ou vigilante treinado, qualifica- do no curso de vigilância. Aquilo é inútil, porque não resolve. Há menos de uma semana, embaixo do meu quarto uma mulher estava sendo espancada. Eu ouvi ela berrando. Quem gritou para o segurança fui eu. Quer dizer, não existe segurança. No seu entendimento, o que ocasiona o descaso e a explora- ção econômica na prostitui- ção? Primeiro, a maioria dos hotéis, embora dependa de nosso traba- 09 Garantia de Direitos e a luta contra a discriminação ImagemIlustrativa JUNHO | 2015
  • 10. 10 lho, ainda vê a prostituição como vadiagem. Esta é uma triste reali- dade, porque se eles vissem nosso trabalho como profissão existiria respeito. Você não vai ao supermerca- do, consome o que está no merca- do, sai do mercado, passa pelo gerente, ainda dá tchau, sai sem pagar. Você faz isso? Então, por que lá você vai, tem relaciona- mento com a menina, diz que não vai pagar e o gerente não faz nada, o segurança não faz nada? Isto acontece por dois motivos: o gerente tem medo pela vida dele. Ele não tem respaldo de ninguém se acontecer alguma coisa, se ele tomar peito para defender alguém ali. Segundo, a sociedade ainda vê a prostituição como vadiagem, não como profis- são. Enquanto isto não mudar não vai acontecer nada. Vai continuar meninas apanhando, vai continu- ar gente dando calote. Você não vai numa loja, pega uma roupa, veste no provador, sai com a roupa e não paga. Por que não paga? A prostituição é uma pres- tação de serviço. Então por que é diferente? Não existe um trabalho eficaz que mostre para a socieda- de que a gente não está ali por vadiagem. É um trabalho que merece respeito. Acho também que as meninas não lutam por direitos porque acham que nunca vai mudar. Que mesmo que dê a cara a tapa isto nunca vai resolver. Eu já ouvi, por exemplo, frases de algumas meni- nas que apanharam nos hotéis “ah! Eu não vou correr atrás, por- que não vai dar nada mesmo.” Talvez, porque o preconceito é muito dentro delas próprias. Enquanto elas se acharem dimi- nuídas diante da sociedade, enquanto não se empoderarem dos direitos que tem, acreditar que merecem respeito e que não tem que esconder o fato, a sociedade não vai mudar. É possível uma mudança de atitude por parte das garotas de programa? Não é um trabalho fácil. Já trabalhei em outras ONG's, por exemplo, em Salvador. Nós tínha- mos dificuldades de trazer as meninas para reuniões dentro da associação. Mas já que Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé. Então nós passa- mos a ir para a rua fazer trabalhos. Tinha dias que a gente ia para as praças. A gente ia para as casas de massagem a gente ia para os bordéis. Porque se elas não queri- am ir até a gente, a gente tinha que ir até elas. O importante é que o trabalho tinha que ser feito. Nós fazíamos um café da manhã na praça pública para as meninas. Nós tínhamos parceiros, eles doa- vam as coisas. E aquilo era novi- dade. E a gente, com este trabalho, acabava atingindo a população também. Porque se é um espaço aberto não ia ser só as garotas que iam assistir. As pessoas iam passando e paravam para assistir também. O que acontece, num primeiro momento: garotas de programa, sem máscara com a população. Porque elas não iam vestir máscaras para tomar café da manhã. Então era uma manei- ra delas serem vistas. Eu sei que lidar com o abuso não é fácil. Em Feira de Santana foi um pouco diferente. Lá a gente fazia o encontro intermunicipal de prostituta. Nós começamos com sete meninas. Aí teve o segundo, o terceiro. Eu participei do quarto e do quinto. No quarto nós conse- guimos colocar 42 meninas. No quinto encontro éramos 127 meni- nas. Lá em Feira, as meninas já iam para as ruas sem máscaras, sem nada, brigando por seus direitos de mulher. Porque elas têm direito à saúde, respeito pelo trabalho delas, pelo direito de não violên- cia. Só que é um trabalho de 20 anos, não é uma coisa que come- ça hoje. Como o preconceito e o estigma interferem na vida das garotas de programa? Como enfrentá-los? O preconceito é assim, a mulher de programa, para a socie- dade hipócrita, que usa a garota de programa, o homem que faz programa, ele vê este trabalho como um trabalho sujo.Asocieda- de pensa assim, ela é indigna, embora ela não seja. Mas para a sociedade, até aquele homem que vai lá e fica com a gente, eles pensam é isto. Eu falo para os meus clientes, na cabeça deles a gente é uma máquina de sexo. A gente não tem sentimento. Eu falo para os meus clientes, na cabeça deles a gente é uma máquina de sexo. A gente não tem sentimento. ” “ ImagemIlustrativa JUNHO | 2015
  • 11. De tanto ouvir que ela tem um trabalho que não é normal ela começa a se sentir anormal. Ela começa a se sentir diferente. E isto, vai fazendo ela ter seguelas psicológicas. O fato de ela ter que esconder de vizinho, de família, isto demonstra claramente que não é uma questão muito bem resolvida. Porque se ela fosse bem resolvida com isto ela não teria que esconder. Não haveria motivo para esconder. Mas por- que ela esconde? Por causa do medo do preconceito; o medo de não ser aceita, o medo de perder o amor dos filhos; tudo isto come- ça a deixar ela frustrada. Aí vêm os problemas psicológicos porque ela se encontra fazendo algo que precisa pelo dinheiro, mas que ela sente vergonha. E que talvez afas- te as pessoas que ela ama. Então ela começa a viver uma turbulên- cia de emoções, de conflitos e, geralmente, em conseqüência disto vem a depressão. Ao contrário do que as pesso- as pensam a garota de programa é muito mais carente que as outras. Porque gente, o homem fica com a gente só por causa de sexo. Aí, quando aparece alguém que dá o outro lado, aquilo que a gente não tem que é carinho, aten- ção, a gente acaba se apegando muito rápido. Mas isto é questão do que eu não tenho, que é uma vida sentimental, uma vida social que eu não tenho. Chego lá 8:00 e saio 22:30, de segunda a segun- da. Que vida que eu tenho? Amaioria das meninas, acham que a família não sabe. Ou acham que os vizinhos, as pessoas não sabem o que elas fazem. Acham! Acho que sabem, porque não tem como você esconder se o lugar é público. Seu parente passa, sua vizinha passa, você está saindo, alguém te vê. Então, como você vai esconder? Você viver uma mentira é muito louco. Eu abri para minha família, há pouco tempo, o que eu fazia e eu senti o peso do preconceito. Por- que, simplesmente, a minha irmã ficou muda no telefone e depois disto, se ela não me ligava, agora que não liga mesmo. Eu acho que no fundo eles sempre souberam, porque eu tinha um noivo e ele jogou isto para a minha mãe. Então, eles sabiam de onde o meu dinheiro vinha, mas como era necessário se fazia silêncio. É assim, a maioria das pessoas sabem, mas preferem fazer de conta que não sabe. Ontem, no posto de saúde estava se falando da Elisa Samú- dio e alguém falou, 'mais você viu o que ela fazia, né?' Me admirou que quem falou isto era uma garo- ta de programa, entendeu? Aí eu falei: ' o fato dela ser prostituta não significa que ela era menos mulher que qualquer a outra ou que tem menos direitos que as outras. Você entende que o preconce- ito começa na própria garota de programa? Asociedade só vai mudar o dia que você tiver coragem de dizer eu sou e quero que você me res- peite. O que você pensa sobre a regulamentação da prostitui- ção? Quando se fala em legalizar a prostituição não é só botar no papel para a gente ter direito cons- titucional. Na verdade, tinha que ser feita uma reforma política. Porque a previdência social tinha que entender quando uma prostituta pudesse ser encostada. A gente precisa de saúde também. Olha, existe menina soropositivo onde eu trabalho. A gente não tem noção de quantos homens vem que são soropositivos. Hoje mesmo eu fiz um programa com um cliente antigo e ele propôs, porque ele é cliente de sete anos, que a gente abrisse mão do pre- servativo. Eu olhei para ele e falei: você está louco, você bebeu? Que aconteceu com você, meu filho? Teríamos que entender o que seria um acidente de trabalho dentro da prostituição. Por exem- plo, me machucar fisicamente, o rompimento de uma camisinha e ter alguma consequência por isso. O próprio ciclo menstrual. Então, peguei uma chave, coloquei meu material de trabalho, arrumei o quarto, fiz o primeiro programa e menstruei. Eu tenho direito de não quer trabalhar deste jeito, querer ir para a casa. Eu tenho que ter este direito. É o meu corpo. Se eu estou trabalhando numa empre- sa, e tiver uma indisposição de estômago, eu não tenho o direito de ir para casa? Então, se eu tra- balho com meu órgão sexual eu tenho o direito de cuidar de mim. Então, tudo isto teria que ser estu- dado. Outra coisa, mesmo que se tente legalizar, a sociedade ainda não está preparada para isto. A sociedade é hipócrita. Se hoje muitas pessoas não veem a pros- tituição como realidade, que é uma atividade profissional, discri- minam, você acha que só o fato de legalizar vai tirar este precon- ceito todo? 11 Ao contrário do que as pessoas pensam a garota de programa é muito mais carente que as outras. ” “ ImagemIlustrativa JUNHO | 2015
  • 12. GAROTA DE PROGRAMA MãE E aGOrA? [ FiLHa IrMã HUmANa ProVeDoRA CiDaDÃ CONCEITO: CONECTIDEA.COM.BR | FOTO: KUES/SHUTTERSTOCK/ARQUIVO pENsE... EnFRenTE sEU PRECONCEITO! Instituto das Irmãs Oblatas do Santíssimo Redentor Coordenação: Apoio: A Pastoral da Mulher de Belo Horizonte, existente desde 1982, é uma entidade sem fins lucrativos, que tem por finalidade promover ações determinantes para a emancipação e humanização das mulheres que se encontram em situação de prostitui-ção. É uma ação orgânica, sistemática e planejada em processos com os pequenos grupos, desde uma perspectiva de gênero e espiritualidade às atitudes sociais. Revisão e Redação: Equipe Pastoral da Mulher de BH Projeto Visual e Diagramação: Mário Pires Marketing Comunicativo Assessor de Comunicação da Rede Oblata Tiragem: 2.000 Exemplares A reprodução total ou parcial de conteúdos desta publicação será permitida desde que a finalidade não seja comercial, bem como, seja citada a fonte. Os créditos deverão ser atribuídos aos seus respectivos(as) autores(as). E X P E D I E N T E SEDE PASTORAL DA MULHER DE BELO HORIZONTE Galeria do Comércio - Av. Santos Dumont, nº 644 e Rua Gaicurus, 669 (sala 327) CEP: 30.111-040 - Centro - Belo Horizonte/MG - Funcionamento: de 2ª a 6ª, das 8h30 às 17h30. Telefone: 3272.7349 | e-mail: apmmbh@yahoo.com.br