1. Não é difícil reconhecer Maitê Schineider. De grandes olhos
azuis e cabelos pretos, não é somente pela beleza que ela chama
atenção: possuí uma sensibilidade extremamente transparente.
Presidente da ONG União Brasileira deTransexuais,e vice-presi-
dente do Núcleo dos Direitos Humanos do Movimento Pro-Pa-
raná,Maitê é vista,nos últimos anos,em cima de um trio elétrico,
animando as pessoas e convidando-as a participar da Parada da
Diversidade, evento realizado há cinco anos em Curitiba. Mas ela
não tem somente estes méritos para se destacar perante toda uma
sociedade que ainda é repleta de discriminação e preconceitos.
Hoje, com 33 anos, Maitê não se considera homossexual
e, sim, uma transexual. A diferença é que ela nasceu com uma
identidade de gênero diferente da que lhe foi imposta:uma cabeça
de mulher em um corpo perfeito de homem. Complicado? Nem
tanto. O transexual é enquadrado junto com a travesti na identi-
dade de gêneros diversas, diferente das que teve de nascimento.
A orientação sexual destes dois gêneros pode variar entre homo,
bi, heterossexual e ainda as assexuadas (não tem atuação sexual).
Desde criança, Maitê já sabia que era uma criança diferente
daquela que a família queria: nasceu Alexandre, ganhou roupas
azuis, bolas, carrinhos. E ainda se dava ao luxo de escolher quais
brinquedos queria, pois era o irmão do meio, tendo um outro
irmão mais velho, e uma irmã mais nova. Como criança inocente,
que não conhece a malícia adulta da clara distinção de sexos, é
claro que preferia brincar de fazer chazinho com a irmã.
Em relação à família,o pai sempre deixou claro que condenava
tudo quanto é tipo de homem que aparecia de tanga comemoran-
do o carnaval na televisão:“Ele dizia que tinha que colocar esses
homens no paredão e exterminar.E eu ficava com os olhos arrega-
lados de medo!”,lembra-se.Com 16 anos,começou a freqüentar
uma boate gay – e lembra-se que eram tempos complicados,pois a
maioria dos estabelecimentos eram escondidos – e claro,por ironia
do destino,uma amiga do irmão que acabou a vendo,contou para
o irmão,que contou para o pai.Este último veio tomar satisfações
e antes de responder, o então adolescente Alexandre pensou:“O
que eu tenho a perder? Se eu falar que fui, que era eu, vou levar
um tabefe na cara,e vou perder um quarto que tenho na casa dos
meus pais, vou ser mandado embora, vou começar minha vida. E
eu só tinha 16 anos.Não tinha nada construído mesmo”. Acabou
falando a verdade e, surpresa, viu que o pai aceitou compreensi-
velmente. E ainda hoje é seu maior anjo protetor.
O resto da família se fechou totalmente, recriminando o pai
com frases do estilo “você está apoiando esta sem-vergonhice,
incentivando que isso continue, isso não é correto.” A mãe foi a
principal pessoa contraria.“E eu achei que seria a principal a favor.
Ela falou que tinha vergonha de andar comigo na rua. E nesse
‘tenho vergonha’, é como se tivesse uma faca cortado o cordão
umbilical”,explica. A partir deste momento,ficaram 10 anos sem
se falar, desde os 16 até os 26 anos de idade.
Sensibilidade
ExtremaPOR a.baldini fotos a.baldini, KASS GRACIELA E WWW.CASADAMAITE.COM
A Parada da
Diversidade de
Curitiba teve a
concentração
em frente à
Universidade
FederaldoParaná
em 2005, com
umtotalde60mil
participantes.
Osorganizadores
do evento
esperam, para
esteano,umtotal
de70milpessoas.
social
36 2006 / 05/06
2. A REAPROXIMAÇÃO PELA WEB
Com o apoio do pai, Maitê começou a se
descobrir devagar: a primeira relação sexual foi
com 18 anos, quando estava bem definida na ca-
beça o queria, quem era e como queria seguir a
vida. Mas como toda pessoa, precisava trabalhar:
tinha boa aparência,simpatia,conseguia destacar-se
nas entrevistas de emprego. Mas na hora de levar
os documentos para o contrato de trabalho, era
sempre negado.“Sempre me diziam que iriam ligar,
e o telefone nunca tocava”.Então,o pai lhe deu um
computador.Começou a ganhar dinheiro digitando
teses e trabalhos escolares até que, em 1997, foi
apresentada à internet:“Fui para o chat, comecei
a descobrir páginas, saber das coisas sem ir para
a biblioteca e sem tomar chuva” E foi pela troca
de e-mails com pessoas que ela conheceu pela
rede,respondendo as curiosidades de sua própria
história,que decidiu montar um site pessoal.Com
o tempo, as perguntas começaram a ir mais além:
dúvidas em relação a este ou aquele problema,
conselhos, entre outros. No começo, respondia
e-mail por e-mail, ia atrás de respostas para os in-
ternautas.Começaram a se aproximar profissionais
como médicos e especialistas no assunto e,logo o
site se transformou em um portal direcionado para
o assunto, que trata não somente de sexualidade,
mas também de identidade, descobertas, entrete-
nimento e diversão.“É para a pessoa se sentir em
casa mesmo, permitindo que ela se abra, mesmo
que não queira estar se identificando”.
Lá pelo o ano de 2000,a mãe de Maitê ganhou
um computador.Logicamente,como todo coração
de mãe que ama, acessou o endereço virtual da
filha e começou a conhecer melhor a transexual
que tinha na web a história da sua vida como um
livro aberto. Depois de muitos acessos, começou
a conhecer realmente quem era a pessoa que
criou, que não se corrompeu com valores que
julgava errados e que, ainda por cima, ajudava as
pessoas.Claro que uma leve mágoa ainda habitava
no pensamento da senhorita Schineider de olhos
azuis, mas nada que uma boa conversa, pedido
de desculpas e lágrimas resolvessem. E ainda foi
além: a mãe de Maitê queria ajudá-la de alguma
forma. Então tiveram a idéia de criar uma seção
no site chamada “MãeVirtual”, na qual ela a ajuda
responder dúvidas de outros pais e anônimos que
tiveram o mesmo problema de discriminação que
ela teve no passado. Faz tanto sucesso, hoje, que
conta com a ajuda de mais quatro mães.
O site é um sucesso. Maitê o desenvolve so-
zinha e passa 14 horas na frente do computador,
respondendo mais de 200 e-mails por dia. Em seu
portal, é possível achar conteúdo claro sobre pais
que têm medo de diálogo com seus filhos,além de
“mostrar que é possível existir felicidade mesmo
remando contra uma sociedade que ainda discri-
mina muito,que é muito preconceituosa e que isso
tudo pode acontecer com qualquer
um”, complementa.
OS PROJETOS
PESSOAIS
Maitê estudou a vida inteira
em um colégio tradicionalíssimo de
Curitiba.Tentou Odontologia e não
passou, depois, tentou Direito na
Faculdade de Direito de Curitiba,
onde cursou 2 anos e meio, mas
trancou. “A faculdade era muito
conservadora. Eu tinha uma turma
maravilhosa, que me entendia, mas
com professores extremamente
cruéis,que não aceitavam me chamar
de Maitê porque na chamada estava
Alexandre.Acabei fazendo vestibular
em Letras na Federal e fui levando as
duas juntas. Mas como as faculdades
exigiam muito,e eu estava começan-
do a descobrir experiências pessoais
como namorar, acabei parando.”
Mas para quem pensa que ela
nada fez para crescer pessoalmente,
engana-se. Começou a trabalhar
como voluntária, ajudando pessoas
que sofreram o que ela passou,sendo
totalmente solidária, intercedendo
de maneira construtiva e positiva
nos projetos sociais de ONGs e
partidos políticos.“Então eu comecei
a ver que era disso que eu gostava,
pois não precisava de títulos para
ser alguém”.
A PARADA DA
DIVERSIDADE
Maitê interpretando a
prostitutaLudmillanapeça“O
Santo”, de
Edson Bueno.
Abaixo, Maitê e Beto Kaiser
naParadadaDiversidadede
2004 cujo tema foi a paz.
3705/06 / 2006
3. Um grande evento não é construído sozinho.A Parada da Diversidade
começou a ser realizada em Curitiba há cinco anos, organizada pela ONG
Impar 28 de Junho.A idéia não era somente fazer uma parada gay,pois o Impar
não atende somente os homossexuais, mas também negros, catadores de
papel,mulheres,ciganos,índios,entre outras minorias.A idéia é reunir todos
os que são discriminados pela sociedade e que sejam inseridos nesta forma
de protesto, na qual todas as bandeiras são levantadas para que a imprensa
os notem,nem que seja durante um único dia.“Há muito mais coisas que nos
unem do que nos separam e,nessa lógica,temos lutas semelhantes,um único
ideal de igualdade”, relata Maitê, que começou a convidar o povo na rua em
2000, juntamente com Beto Kaiser, presidente do Impar, sobre um salto alto
enorme e sob a clássica chuva de Curitiba. Uma grande vitória: mesmo de
capuzes, guarda-chuvas e até mesmo molhados, conseguiram sensibilizar 2
mil pessoas. No ano seguinte, 10 mil.
Nos anos seguintes, as pessoas já apareciam coloridas e outros movi-
mentos começaram a participar de maneira muito mais efetiva. Em 2005,
chegaram à marca de 60 mil participantes.“As pessoas não estavam ali por
causa de uma festa, de um carnaval de rua. Elas estavam representando uma
consciência de movimento, pois sabem que estavam fazendo a diferença”,
relata Maitê.“A Parada não é feita para aqueles 60 mil que estão ali - porque
estes são os felizardos, que já conseguem, mesmo com máscara, ou então
escondidos no canto da rua, estar presente e levantando o braço, dizendo
“estou com vocês, faço parte disso”.Todos que fazem a parada pensam nos
milhões que não podem estar lá por causa da sociedade,família,religião,medos
e preconceitos internos que elas têm consigo mesmas.Quando eu olho aquela
multidão na frente, eu olho milhões de invisíveis que estão encaixotados. É
muita responsabilidade! E este espaço sempre tem que continuar”, diz .
Maitê é assim:sofreu com o preconceito (até da própria mãe),mas nunca
se colocou no papel de vítima.O fato de,anos depois,a família ter aceitado sua
posição, ter pessoas que a amam e ter uma fonte de trabalho, não a fizeram
ficar acomodada, deixando de pensar no próximo. Pelo contrário, sensibili-
zou-a ainda mais, transparecendo com grande nitidez a sede de mudanças,
batalhando por uma causa, seja ela da nobreza e grandeza que for. “Eu acho
que, quando você trata as pessoas como iguais, respeitando as diferenças de
cada uma, aí é que você conhece amigos”, revela entusiasmada.
teatro realista
Maitê também se consagra como atriz.
Sua estréia teatral foi na peça deAlexandre
Linhares,intitulada“Jesus Pra Cristo” – uma
das mais polêmicas do Festival deTeatro de
Curitiba 2005 –,na qual representou Maria
(mãe de Jesus). No fim do mesmo ano,
Maitê estreou“O Santo”,dessa vez dirigida
por Edson Bueno. A peça conta a história
do escritor Ulisses e da prostituta Ludmilla
(Maitê).O texto é repleto de sadomasoquis-
mo e fetiches sexuais, além de apresentar
desejos homoeróticos de Santo Expedito,
um dos mais reverenciados pela cultura
popular. Atualmente, Maitê é a protago-
nista de “Febre”, com direção de Gerson
Delliano, peça que fez parte do Festival de
Teatro de Curitiba deste ano. Ambientada
em uma piscina, o enredo reflete regras e
normas que disciplinam vidas e relações,
abusando do simbolismo. Conta a história
de dois irmãos que ritualizam eternamente
o enterro de sua mãe. Com a chegada de
um parente distante, as três personagens
vão revelando aos poucos seus segredos,
angústias e desejos. Maitê interpreta Isabel,
mulher viajada que percorreu o mundo e
volta para trazer o que experimentou em
terras distantes. “Ela vive tentando achar
respostas às suas perguntas e dificilmente
as encontra. A aparição de Isabel na peça
é justamente para tentar responder suas
inquietações,bem como colocar os demais
personagens a pensar e refletir seus atos
repetidos”, explica Maitê.
Cenas de“Febre”, história contada
em uma piscina.
Parada de 2005:
Maitê (de saia
vermelha) no trio
elétrico incentiva
o respeito e a
dignidade, sendo
destaquedoevento
desde 2000.