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Dolores Aronovich Aguero
Doutoranda – UFSC/CNPq
INVENÇÕES DE ADULTOS: MITOS SOBRE A INFÂNCIA EM PARA LER O
PATO DONALD E LOLITA
É interessante enfatizar que muitas das idéias em Para Ler o Pato Donald
encontram ecos em Lolita, e também na noção de mitologia de Roland Barthes. De fato,
o ensaio de Barthes, “Mitologias Hoje”, permeia o livro panfletário de Ariel Dorfman e
Armand Matterlart. Escrito em 1971, dois anos antes do golpe militar patrocinado pelo
governo americano no Chile, o livro critica severamente Walt Disney e seu mundo por
contaminar crianças com a ideologia dominante. Para chegar a essa conclusão, os
autores analisaram centenas de revistas em quadrinhos publicadas no Chile durante o
período. Logo, eles rejeitam o conto de fadas de que Disney seja apolítico. Afinal, como
pode uma tirinha do final dos anos 60, no auge da Guerra do Vietnã, mostrar Donald
dizendo aos seus sobrinhos que “Nada de bom pode vir da Ásia” não ser considerada
política? (Dorfman e Mattelart 1980: 68). De acordo com os autores, Disney idealiza a
infância. Essa idealização não é tão diferente de como Humbert, o pedófilo e narrador
de Lolita, de Vladimir Nabokov, encara as meninas. O mito da infância idealizada e de
ver crianças como puras e inocentes torna-se, assim, uma invenção adulta para lidar
com a culpa.
Embora Para Ler o Pato Donald seja um produto de esquerda do início dos anos
70 e pareça datado em algumas partes—por exemplo, ao ignorar que Walt Disney não é
realmente o criador de Donald ou de Tio Patinhas; portanto, sua notória simpatia pelos
nazistas não transparece nessas tiras—, a descrição do livro de como os personagens da
Disney vêem as crianças é revelador. Crianças são claramente idealizadas por Disney
(quando Dorfman e Mattelart se referem a Disney, eles devem querer dizer a imensa
equipe de escritores fantasmas que trabalha para a corporação). Como em todo o
universo da Disney, as crianças não têm qualquer traço de sexualidade, e são
eternamente puras, honestas, e muito mais inteligentes que os próprios adultos.
Podemos observar este padrão no relacionamento de Donald com seus três sobrinhos.
Donald é o adulto, então tem poder sobre eles, mas são os garotos que conseguem ter
todas as idéias incríveis, geralmente relacionadas a ganhar dinheiro. Eles não apenas são
gênios precoces, mas também podem contar com seu manual de escoteiro, que contém
toda a sabedoria universal e nunca está errado (Dorfman e Mattelart 1980: 34). Os
autores nos lembram que tanto Disney como todos os outros quadrinhos para crianças
são feitos por adultos, cujo trabalho é moldado pela noção do que deveria ser uma
criança (Dorfman e Mattelart 2001: 147). O que uma criança deveria ser, obviamente,
quase nunca é o que uma criança realmente é. Sabemos que crianças podem ser cruéis, e
Freud provou que a sexualidade começa na mais tenra idade. Além disso, como Barthes
aponta no seu ensaio “Brinquedos”, as crianças não criam o mundo, mas meramente o
usam, e até brinquedos infantis são invenções de adultos feitas por aqueles que vêem as
crianças como adultos em miniatura (1993: 41). Segundo ele, antes da Revolução
Francesa, que marcou o triunfo burguês, a infância era vista como um tempo perdido
que deveria ser rapidamente deixado para trás. Com o começo do Romantismo, no
entanto, tornou-se regra celebrar a infância e querer que ela dure o máximo possível
(1993: 99).
Celebrar a infância é exatamente o que Humbert faz. Claro que, como o narrador
de Lolita é um pedófilo, suas noções sobre crianças são no mínimo ambíguas. Ele
começa o romance de Nabokov tentando se redimir, já que não é um pedófilo desde que
nasceu. Quando era criança, por exemplo, ele amava as garotas da sua idade. Ele pinta
sua própria infância sem mãe como idílica, e narra como se apaixonou por Annabel
quando ambos eram pré-adolescentes. Annabel funciona como álibi, atestando que ele
fora puro numa época. Para ele, as crianças são íntegras e inocentes, ou seja, ele reforça
o mito da infância idealizada. Afinal, ele e Annabel são crianças saudáveis e
perfeitamente felizes, antes de ela morrer de tifo e ele dedicar o resto de sua existência a
encontrar uma substituta. Quando ele implora para que as crianças continuem sendo
crianças, ele também inclui a si mesmo. É a sua pureza que está em jogo. Agora que ele
já não pertence a esse grupo idealizado, ele não é mais puro. Nas suas palavras: “Ah,
deixem-me em paz na minha pracinha pubescente, no meu jardim de macios musgos.
Que elas brinquem a meu redor para sempre. Que não cresçam nunca!” (Nabokov 2003:
22). Só podemos lembrar de como Dorfman e Mattelart descrevem esse fenômeno: “O
homem admira a si próprio no espelho, achando que este é uma janela. Mas a criança
brincando lá embaixo, no jardim, é o adulto purificado olhando de volta para si” (2001:
148, minha tradução). Para compensar seu fracasso em ser puro, Humbert inventa um
admirável mundo novo de inocência permanente onde, como dizem Dorfman e
Mattelart, “A imaginação da criança é concebida como a utopia passada e futura do
adulto” (2001: 149).
Porém, é lógico que há um desvio nisso tudo. Nabokov, através de Humbert, não
apenas reproduz o mito da infância idealizada (mesmo que as crianças ideais retratadas
estejam limitadas somente a Annabel e a como Humbert se vê), como também
basicamente cria um novo termo para uma mitologia antiga, a das ninfetas. Antes de
entrar nesse terreno, no entanto, é preciso ver como Barthes define o mito. Para ele, a
diferença entre mitos antigamente e hoje, na era da mídia, é que o mito é usado, mais do
que nunca, para amenizar conflitos (1993: 170). Quando o maior conflito era a morte, o
homem usava o mito para lidar com essa narrativa. Hoje a ciência oferece explicações
para a morte, logo a ciência, de um modo, tornou-se mitificada. O que os mitos fazem é
resolver problemas com os quais não conseguimos lidar. Por exemplo, para resolver o
conflito entre ricos e pobres, inventamos o mito de que qualquer um pode ficar rico se
trabalhar muito. Similarmente, o mito da infância idealizada resolve o conflito da culpa
que os adultos sentem. E, já que Disney faz do mundo uma utopia para adultos e
crianças, o conflito de gerações também desaparece. Portanto, o que Nabokov/Humbert
tentam fazer, de qual conflito tentam se desviar, ao reviver o mito das ninfetas?
Vejamos o que Humbert tem a dizer sobre elas em primeiro lugar:
Quero agora expor uma idéia. Entre os limites de idade de nove e catorze
anos, virgens há que revelam a certos viajores enfeitiçados, bastante mais
velhos do que elas, sua verdadeira natureza—que não é humana, mas nínfica
(isto é, diabólica). A essas criaturas singulares proponho dar o nome de
“ninfetas”. [...] Será que todas as meninas entre esses limites de idade são
ninfetas? Claro que não. Se assim fosse, nós que conhecemos o mapa do
tesouro, que somos os viajantes solitários, os ninfoleptos, teríamos há muito
enlouquecido. [...] Dentro dos mesmos limites de idade, o número de
genuínas ninfetas é muitíssimo inferior ao das meninas provisoriamente sem
atrativos, ou apenas “bonitinhas”, ou até mesmo “adoráveis”, que são
crianças essencialmente humanas [...]. É necessário ser um artista ou um
louco [...] a fim de discernir de imediato, com base em sinais inefáveis [...],
o pequeno e fatal demônio em meio às crianças normais. [...] Quando eu e
ela éramos crianças, não via em minha pequena Annabel uma ninfeta. Eu
era um de seus pares, um jovem fauno por méritos próprios, habitando
aquela mesma ilha de tempo fantasmagórico. (Nabokov 2003: 18-19)
Desnecessário dizer que é essa “ilha de tempo fantasmagórico” que Humbert
gostaria de habitar para sempre, como todos os adultos perdidos no mito nebuloso da
infância idealizada. Se ele tivesse se mantido criança, não haveria ninfetas e, assim, não
haveria a necessidade de corromper a infância. Ele estaria isento de culpa. Por outro
lado, para resolver o conflito perturbador de abuso infantil por parte de um adulto,
Humbert inventa o mito das ninfetas. Também devemos perceber que ele as vê como
“criaturas singulares”, e isso nos leva a como os mitos eram entendidos no seu estágio
primitivo, quando as pessoas precisavam sacrificar alguém (normalmente as virgens)
para aplacar a fúria dos deuses. Inconscientemente para Humbert, as ninfetas agem
como a ovelha do sacrifício para aplacar a gula dos pedófilos. Mas toda a idéia das
ninfetas também vai ao encontro do mito da mulher fatal, que afirma que as mulheres
são santas, já que podem ser mães, e que o modelo “fatal” reserva-se às prostitutas e
similares. E o mito da “boa” e da “má” menina também vem à mente—a menina má é
para fazer sexo, a menina boa é para casar. Isso é tudo muito parecido com o jeito que
Disney vê as mulheres. Nos seus quadrinhos, o único poder que mulheres podem ter é o
da sedução. Elas podem escolher apenas entre ser a Branca de Neve ou a Bruxa
Malvada. Nem a maternidade lhes é permitida. Tudo que elas podem optar é por esperar
para sempre pelo seu príncipe encantado. Enquanto isso, elas irão sucumbir ao star
system e venerar ídolos de matinê (Dorfman e Mattelart 1980: 35). Por coincidência,
Lolita também é proibida de ser mãe (ela morre durante o trabalho de parto) e ela, que
“escolheu” ser a Bruxa Malvada, a menina má, a ninfeta, também admira astros de
cinema—não muito modestamente, Humbert chama seu “disfarce de adulto” de “um
homem alto e bonitão, digno de uma tela de cinema” (Nabokov 2003: 41).
Portanto, não são todas as meninas que devem ser molestadas, assim como nem
todos os homens são molestadores de crianças. Segundo Humbert, os homens que
tornam-se molestadores só o fazem porque são seduzidos pelas ninfetas. Como essas
garotas são demoníacas, ao invés de humanas, e como essa é a sua verdadeira natureza,
nenhum estrago é feito. Os molestadores são vítimas privilegiadas e encantadas do
feitiço das ninfetas, não seus agressores. Humbert narra sua primeira experiência sexual
com Lolita como se ele estivesse no assento do passageiro, e Lolita fosse a motorista.
Ele afirma que foi Lolita quem o seduziu, não vice-versa. Depois de sua primeira vez
juntos, ele tenta nos convencer de sua inocência:
A disposição da lei romana segundo a qual as meninas podiam casar aos
doze anos foi adotada pela Igreja e ainda se mantém em vigor, de forma
mais ou menos tácita, em certos estados americanos. E a idade de quinze
anos é legal em toda a parte. [...] “Em certas cidades, como St. Louis,
Chicago e Cincinnati, o clima temperado e estimulante [Segundo uma velha
revista desencavada na biblioteca desta prisão] faz com que as meninas
amadureçam por volta do fim do décimo segundo ano de vida”. Dolores
Haze [Lolita] havia nascido a menos de quinhentos quilômetros da
estimulante Cintinnati. Nada mais fiz do que obedecer à natureza, sou o
mais fiel de seus cães. [...] Sensíveis senhoras membros do júri, nem mesmo
fui seu primeiro amante. (Nabokov 2003: 137, meu grifo)
Garry Leonard, em seu ensaio repetitivo mas impactante, “Power, Pornography,
and the Problem of Pleasure: The Semerotics of Desire and Commodity Culture in
Joyce,” atesta para a naturalização do estupro que Humbert tão desesperadamente tenta
disfarçar. Leonard usa o exemplo de Lêda e o cisne, de Virgem Maria e Deus, de
Gabriel e Gretta em “Os Mortos”, e de cartões postais pornográficos para mostrar a
ideologia subjacente, ou devemos dizer a mitologia, por trás do poder masculino: não há
poder algum porque não há a menor necessidade para isso. Afinal, as mulheres buscam
exatamente o mesmo que os homens em termos de sexo, mesmo que elas não saibam.
Assim como Gabriel, em “Os Mortos”, não precisa sentir-se culpado com este exercício
de poder ao simplesmente imaginar que Gretta deseja ser dominada (Leonard 1993: 21),
Humbert pode fantasiar as mesmas emoções diante de sua ninfeta. Mas ele próprio tem
um pouco de dificuldade em acreditar no mito que Lolita é a sedutora e que ele só fez o
que ela desejava em primeira instância, e ele sente algumas “pontadas de culpa”
(Nabokov 203: 140), ou assim transparece em seu relato altamente irônico dos fatos:
“Seu bruto”, [Lolita] disse, sorrindo meigamente para mim. “Você não
vale nada. Eu era uma mocinha pura e inocente, e olha só o que você fez
comigo. Devia chamar a polícia e dizer que você me violentou. Ah, seu
velho sujo, sujo!”
Seria só um gracejo? Havia uma nota ameaçadora, quase histérica, em
suas palavras tolas. Logo depois, fazendo com os lábios um som que parecia
um chiado, Lô começou a queixar-se de dores, disse que eu havia
arrebentado alguma coisa dentro dela. O suor escorria-me pelo pescoço e
quase atropelamos um animalzinho qualquer que cruzava a estrada com o
rabo empinado, e mais uma vez minha vitriólica companheira me chamou
de um nome feio. (Nabokov 2003: 142-3)
Naturalmente, Humbert chega à conclusão que Lolita só pode estar brincando e
desmente seu discurso como “tolo”, um “gracejo”. Ele clarifica, para nós pelo menos,
que é ela quem ainda mantém o controle das coisas. Ela pode lhe dizer onde e quando
parar o carro, por exemplo, e até ofendê-lo. No entanto, só para ficar mais seguro, ele
decide ameaçá-la. Se contar para qualquer um sobre seu caso, ela será mandada para um
orfanato, um reformatório, ou um centro para jovens delinqüentes (Nabokov 2003:
153). Curiosamente, Dorfman e Mattelart apelidam a sociedade Disney de um orfanato
do século dezenove, de onde os personagens não têm escapatória. Apesar de todas as
viagens, a única opção dos sobrinhos de Donald é retornar à velha estrutura de poder
(1980: 30). Isso é parecido com o resumo da situação de Lolita por Humbert. Após
chorar o dia inteiro ao descobrir que sua mãe morreu, ela vai até a cama dele, ao que ele
narra para nós: “Vocês compreendem, ela não tinha mesmo para onde ir” (Nabokov
1993: 143).
Humbert é um narrador que não desperta nenhuma confiança, e tudo—todos os
diálogos, todas as descrições, todas as opiniões—no romance é filtrado pelas suas
palavras. Logo, podemos escutar apenas o seu lado quando ele afirma que foi Lolita
quem o seduziu, e não o contrário. Mas como podemos ler o livro de Nabokov sem
engasgar com tanto horror, ou, ainda pior, sem achar várias passagens divertidas? Uma
das pistas encontra-se na ironia usada, mas uma indicação ainda mais certa é que
Humbert nos leva ao seu mundo. Ele é tão entusiástico sobre as ninfetas que nós quase
passamos a acreditar que menininhas têm uma tendência para a perversão natural. Tanto
Humbert quanto Disney dependem que vejamos seu mundo como natural. Se assim o
fizermos, não questionaremos suas escolhas. Dorfman e Mattelart explicam:
Todas as intenções de Disney baseiam-se na necessidade de que seu mundo
seja aceito como natural, isto é, que combine os rasgos de normalidade,
regularidade e infantilismo. A justificação das figuras da mulher e da
criança é, com efeito, a de que assim são objetivamente estes personagens,
ainda que, segundo vimos, tenha torturado implacavelmente a natureza de
cada ser do qual se acerca. (1980: 41)
Ou seja, devemos aceitar como natural que todos os relacionamentos no universo
Disney sejam baseados em transações comerciais (1980: 29). É perfeitamente normal
que Tio Patinhas visite ilhas exóticas, reúna todos os tesouros lá encontrados, e os
troque por migalhas com os selvagens, que não saberiam o que fazer com o ouro de
qualquer maneira. Tio Patinhas sabe: ele transforma o ouro em moedas e mergulha
nelas. É natural para ele explorar seus sobrinhos também, e ficar cada vez mais rico sem
produzir absolutamente nada. O mito da mobilidade social realmente soa normal: toda
criança nasce igual e vai acumular na vida o que merece (1980: 102). Aprendemos
inclusive que não há problema em um personagem ter mais dinheiro que a fortuna de
todos os outros personagens reunidos.
Humbert também quer que não vejamos nada de errado com seu mundo. Como
ele diz à página 151, “Desde o início de nossa relação, fui suficientemente esperto para
compreender que devia contar com [a] absoluta cooperação [de Lolita] a fim de manter
em segredo o que se passava entre nós, que isso deveria transformar-se para ela numa
segunda natureza [...]”. Sua primeira natureza, como já sabemos, é que ela não é
humana, mas demoníaca, com poderes suficientes para enfeitiçar um homem adulto. Ele
já argumentou que não fez nada além de “obedecer à natureza”. O problema parece ser
convencer Lolita que sua vida seja puramente natural. Para tanto, ele tenta ensiná-la:
“Sou o teu papai, Lô, teu velho pai. Olha, tenho aqui um livro erudito que
fala de meninas. Veja só, minha querida, o que ele diz: ‘A menina
normal’—normal, presta atenção—‘tem, em geral, um grande desejo de
agradar seu pai. Vê nele o precursor do companheiro desejado e esquivo
[...]. Na Sicília, as relações sexuais entre pai e filha são aceitas como algo
natural, e a menina que delas participa não é encarada com desaprovação
pela sociedade a que pertence’. Sou um grande admirador dos sicilianos,
bons atletas, bons músicos, gente muito virtuosa, Lô, e muita dada às
práticas sensuais. Mas chega de digressões”. (Nabokov 2003: 152)
Temos um palpite de que Lolita não concorda com tanta normalidade, já que começa a
cobrar dinheiro dele para fazer sexo, até fugir com outro pedófilo, Quilty. Mas, de um
modo, ao trocar Humbert por Quilty, ela está meramente reproduzindo seu
relacionamento com Humbert. Como Disney faz com seus personagens (Dorfman e
Mattelart 1980: 27), Nabokov nos oferece zero de mudança em Lolita. Ela não tem
futuro. Nem Humbert nem Quilty querem que Lolita cresça, impedindo-a de evoluir.
Ela abandona sua condição de ninfeta apenas ao se afastar dos dois pedófilos, mas
Nabokov a mata pouco depois. Lolita nunca consegue tornar-se uma mulher adulta.
Ao destituir Lolita de seu crescimento, e ao desejar sua própria infância eterna,
Humbert tenta eliminar a história, o que constitui, por sinal, o maior esforço das revistas
em quadrinhos em geral. Como uma criança representa o tempo, e o tempo lembra a
história, raramente vemos um personagem mudar nas tirinhas. Para os personagens da
Disney, passado, presente e futuro são sempre os mesmos (Dorfman e Mattelart 1980:
32). Os contos da Disney são não-históricos porque, por exemplo, a fortuna reunida em
um episódio desaparece no seguinte (1980: 102), ou pelo menos não há qualquer
memória do que foi feito para conquistar novos tesouros. Barthes acredita que a
privação da história é uma das principais funções da mitologia, devido ao fato que os
mitos apagam a história do objeto analisado (1993: 171). Lógico que Barthes, fiel ao
seu estilo, não diz isso diretamente: primeiro ele comenta que mitos são históricos, e
que a história pode suprimi-los (1993: 142); depois ele afirma que, nos mitos, a
qualidade histórica das coisas é eliminada (1993: 163). A mesma ambigüidade surge
quando Barthes diz que mitos são despolitizados. A maioria de nós discordaria dessa
afirmação, já que tendemos a ver mitos como parte da ideologia, não da descrição. Mas
o que Barthes quer dizer com despolitizar não é o que o senso comum nos indicaria, já
que Barthes redefine o prefixo des e diz ver política no sentido das relações humanas,
no seu poder de construir o mundo (1993: 163). Ele é bastante claro, no entanto, ao
dizer: “O mito não nega as coisas; a sua função é, pelo contrário, falar delas;
simplesmente, purifica-as, inocenta-as, fundamenta-as em natureza e em eternidade, dá-
lhes uma clareza, não de explicação, mas de constatação [. . .]” (1993: 163). Daí o mito
que envolve ninfetas estar voltado a purificá-las, fazendo-as parecer naturais. Por um
breve momento, Humbert tenta dar um tom histórico ao seu mito ao citar Dante,
Petrarca e Poe como outros pedófilos, mas o que ele realmente faz é tentar nos
convencer o quão natural é, e sempre foi, meninas novas fazerem sexo com homens
crescidos.
Os mitos, como tudo o mais, são criações de adultos. E é pouco provável que
adultos criem algo que prejudique seu prestígio de mestres do universo. Quadrinhos são
outra invenção de adultos, e Para Ler o Pato Donald esclarece que o objetivo de Disney
é ocultar a história e produzir utopia para adultos, ao mesmo tempo em que alivia os
adultos da culpa pela sua própria história. Para Humbert, aliviar-se da culpa não é tarefa
fácil, pois sua história está intimamente ligada à violência e estupro. Depois de ver
Lolita pela última vez e de matar Quilty, Humbert pausa para ouvir crianças brincando
em um jardim distante. Ele observa: “Ali fiquei, no meu sublime mirante, ouvindo
aquela vibração musical, o espocar de gritos isolados contra o tímido murmúrio do
fundo sonoro—e compreendi, então, que o que havia de desesperadoramente terrível
não era a ausência de Lolita a meu lado, mas a ausência de sua voz naquele coral”
(Nabokov 2003: 311). Isso não soa muito honesto. O que Humbert sente falta mais do
que nada é a sua própria ausência daquele jardim e coral, não como adulto, mas como
criança. E aqui temos a evocação de outro velho mito: que a infância deve ser a melhor
época de nossas vidas. Para Lolita não foi.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARTHES, R. Mitologias. Trad. Rita Buongermino, Pedro de Souza. 9a ed. Rio de
Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 1993.
DORFMAN, A. e A. MATTELART. Para Ler o Pato Donald: Comunicação de Massa
e Colonialismo. Trad. Álvaro de Moya do original em espanhol Para Leer al Pato
Donald. 2a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
--- . “Introduction: Instructions on how to Become a General in the Disneyland Club.”
Media and Cultural Studies: Keywords. Ed. Meenakschi Gigi Durham, Douglas M.
Kellner. Londres: Blackwell, 2001. 144-151.
LEONARD, G. “Power, Pornography, and the Problem of Pleasure: The Semerotics of
Desire and Commodity Culture in Joyce.” James Joyce Quarterly. Volume 30, Number
4, Summer 1993/Volume 31, Number 1, Fall 1993. 615-665.
NABOKOV, V. Lolita. 1955. Trad. Jorio Dauster. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo:
Folha de S. Paulo, 2003.

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Mitologia da infância idealizada em Disney, Nabokov e Dorfman

  • 1. Dolores Aronovich Aguero Doutoranda – UFSC/CNPq INVENÇÕES DE ADULTOS: MITOS SOBRE A INFÂNCIA EM PARA LER O PATO DONALD E LOLITA É interessante enfatizar que muitas das idéias em Para Ler o Pato Donald encontram ecos em Lolita, e também na noção de mitologia de Roland Barthes. De fato, o ensaio de Barthes, “Mitologias Hoje”, permeia o livro panfletário de Ariel Dorfman e Armand Matterlart. Escrito em 1971, dois anos antes do golpe militar patrocinado pelo governo americano no Chile, o livro critica severamente Walt Disney e seu mundo por contaminar crianças com a ideologia dominante. Para chegar a essa conclusão, os autores analisaram centenas de revistas em quadrinhos publicadas no Chile durante o período. Logo, eles rejeitam o conto de fadas de que Disney seja apolítico. Afinal, como pode uma tirinha do final dos anos 60, no auge da Guerra do Vietnã, mostrar Donald dizendo aos seus sobrinhos que “Nada de bom pode vir da Ásia” não ser considerada política? (Dorfman e Mattelart 1980: 68). De acordo com os autores, Disney idealiza a infância. Essa idealização não é tão diferente de como Humbert, o pedófilo e narrador de Lolita, de Vladimir Nabokov, encara as meninas. O mito da infância idealizada e de ver crianças como puras e inocentes torna-se, assim, uma invenção adulta para lidar com a culpa. Embora Para Ler o Pato Donald seja um produto de esquerda do início dos anos 70 e pareça datado em algumas partes—por exemplo, ao ignorar que Walt Disney não é realmente o criador de Donald ou de Tio Patinhas; portanto, sua notória simpatia pelos nazistas não transparece nessas tiras—, a descrição do livro de como os personagens da Disney vêem as crianças é revelador. Crianças são claramente idealizadas por Disney (quando Dorfman e Mattelart se referem a Disney, eles devem querer dizer a imensa equipe de escritores fantasmas que trabalha para a corporação). Como em todo o universo da Disney, as crianças não têm qualquer traço de sexualidade, e são eternamente puras, honestas, e muito mais inteligentes que os próprios adultos. Podemos observar este padrão no relacionamento de Donald com seus três sobrinhos. Donald é o adulto, então tem poder sobre eles, mas são os garotos que conseguem ter todas as idéias incríveis, geralmente relacionadas a ganhar dinheiro. Eles não apenas são
  • 2. gênios precoces, mas também podem contar com seu manual de escoteiro, que contém toda a sabedoria universal e nunca está errado (Dorfman e Mattelart 1980: 34). Os autores nos lembram que tanto Disney como todos os outros quadrinhos para crianças são feitos por adultos, cujo trabalho é moldado pela noção do que deveria ser uma criança (Dorfman e Mattelart 2001: 147). O que uma criança deveria ser, obviamente, quase nunca é o que uma criança realmente é. Sabemos que crianças podem ser cruéis, e Freud provou que a sexualidade começa na mais tenra idade. Além disso, como Barthes aponta no seu ensaio “Brinquedos”, as crianças não criam o mundo, mas meramente o usam, e até brinquedos infantis são invenções de adultos feitas por aqueles que vêem as crianças como adultos em miniatura (1993: 41). Segundo ele, antes da Revolução Francesa, que marcou o triunfo burguês, a infância era vista como um tempo perdido que deveria ser rapidamente deixado para trás. Com o começo do Romantismo, no entanto, tornou-se regra celebrar a infância e querer que ela dure o máximo possível (1993: 99). Celebrar a infância é exatamente o que Humbert faz. Claro que, como o narrador de Lolita é um pedófilo, suas noções sobre crianças são no mínimo ambíguas. Ele começa o romance de Nabokov tentando se redimir, já que não é um pedófilo desde que nasceu. Quando era criança, por exemplo, ele amava as garotas da sua idade. Ele pinta sua própria infância sem mãe como idílica, e narra como se apaixonou por Annabel quando ambos eram pré-adolescentes. Annabel funciona como álibi, atestando que ele fora puro numa época. Para ele, as crianças são íntegras e inocentes, ou seja, ele reforça o mito da infância idealizada. Afinal, ele e Annabel são crianças saudáveis e perfeitamente felizes, antes de ela morrer de tifo e ele dedicar o resto de sua existência a encontrar uma substituta. Quando ele implora para que as crianças continuem sendo crianças, ele também inclui a si mesmo. É a sua pureza que está em jogo. Agora que ele já não pertence a esse grupo idealizado, ele não é mais puro. Nas suas palavras: “Ah, deixem-me em paz na minha pracinha pubescente, no meu jardim de macios musgos. Que elas brinquem a meu redor para sempre. Que não cresçam nunca!” (Nabokov 2003: 22). Só podemos lembrar de como Dorfman e Mattelart descrevem esse fenômeno: “O homem admira a si próprio no espelho, achando que este é uma janela. Mas a criança brincando lá embaixo, no jardim, é o adulto purificado olhando de volta para si” (2001: 148, minha tradução). Para compensar seu fracasso em ser puro, Humbert inventa um admirável mundo novo de inocência permanente onde, como dizem Dorfman e
  • 3. Mattelart, “A imaginação da criança é concebida como a utopia passada e futura do adulto” (2001: 149). Porém, é lógico que há um desvio nisso tudo. Nabokov, através de Humbert, não apenas reproduz o mito da infância idealizada (mesmo que as crianças ideais retratadas estejam limitadas somente a Annabel e a como Humbert se vê), como também basicamente cria um novo termo para uma mitologia antiga, a das ninfetas. Antes de entrar nesse terreno, no entanto, é preciso ver como Barthes define o mito. Para ele, a diferença entre mitos antigamente e hoje, na era da mídia, é que o mito é usado, mais do que nunca, para amenizar conflitos (1993: 170). Quando o maior conflito era a morte, o homem usava o mito para lidar com essa narrativa. Hoje a ciência oferece explicações para a morte, logo a ciência, de um modo, tornou-se mitificada. O que os mitos fazem é resolver problemas com os quais não conseguimos lidar. Por exemplo, para resolver o conflito entre ricos e pobres, inventamos o mito de que qualquer um pode ficar rico se trabalhar muito. Similarmente, o mito da infância idealizada resolve o conflito da culpa que os adultos sentem. E, já que Disney faz do mundo uma utopia para adultos e crianças, o conflito de gerações também desaparece. Portanto, o que Nabokov/Humbert tentam fazer, de qual conflito tentam se desviar, ao reviver o mito das ninfetas? Vejamos o que Humbert tem a dizer sobre elas em primeiro lugar: Quero agora expor uma idéia. Entre os limites de idade de nove e catorze anos, virgens há que revelam a certos viajores enfeitiçados, bastante mais velhos do que elas, sua verdadeira natureza—que não é humana, mas nínfica (isto é, diabólica). A essas criaturas singulares proponho dar o nome de “ninfetas”. [...] Será que todas as meninas entre esses limites de idade são ninfetas? Claro que não. Se assim fosse, nós que conhecemos o mapa do tesouro, que somos os viajantes solitários, os ninfoleptos, teríamos há muito enlouquecido. [...] Dentro dos mesmos limites de idade, o número de genuínas ninfetas é muitíssimo inferior ao das meninas provisoriamente sem atrativos, ou apenas “bonitinhas”, ou até mesmo “adoráveis”, que são crianças essencialmente humanas [...]. É necessário ser um artista ou um louco [...] a fim de discernir de imediato, com base em sinais inefáveis [...], o pequeno e fatal demônio em meio às crianças normais. [...] Quando eu e ela éramos crianças, não via em minha pequena Annabel uma ninfeta. Eu era um de seus pares, um jovem fauno por méritos próprios, habitando aquela mesma ilha de tempo fantasmagórico. (Nabokov 2003: 18-19) Desnecessário dizer que é essa “ilha de tempo fantasmagórico” que Humbert gostaria de habitar para sempre, como todos os adultos perdidos no mito nebuloso da infância idealizada. Se ele tivesse se mantido criança, não haveria ninfetas e, assim, não haveria a necessidade de corromper a infância. Ele estaria isento de culpa. Por outro
  • 4. lado, para resolver o conflito perturbador de abuso infantil por parte de um adulto, Humbert inventa o mito das ninfetas. Também devemos perceber que ele as vê como “criaturas singulares”, e isso nos leva a como os mitos eram entendidos no seu estágio primitivo, quando as pessoas precisavam sacrificar alguém (normalmente as virgens) para aplacar a fúria dos deuses. Inconscientemente para Humbert, as ninfetas agem como a ovelha do sacrifício para aplacar a gula dos pedófilos. Mas toda a idéia das ninfetas também vai ao encontro do mito da mulher fatal, que afirma que as mulheres são santas, já que podem ser mães, e que o modelo “fatal” reserva-se às prostitutas e similares. E o mito da “boa” e da “má” menina também vem à mente—a menina má é para fazer sexo, a menina boa é para casar. Isso é tudo muito parecido com o jeito que Disney vê as mulheres. Nos seus quadrinhos, o único poder que mulheres podem ter é o da sedução. Elas podem escolher apenas entre ser a Branca de Neve ou a Bruxa Malvada. Nem a maternidade lhes é permitida. Tudo que elas podem optar é por esperar para sempre pelo seu príncipe encantado. Enquanto isso, elas irão sucumbir ao star system e venerar ídolos de matinê (Dorfman e Mattelart 1980: 35). Por coincidência, Lolita também é proibida de ser mãe (ela morre durante o trabalho de parto) e ela, que “escolheu” ser a Bruxa Malvada, a menina má, a ninfeta, também admira astros de cinema—não muito modestamente, Humbert chama seu “disfarce de adulto” de “um homem alto e bonitão, digno de uma tela de cinema” (Nabokov 2003: 41). Portanto, não são todas as meninas que devem ser molestadas, assim como nem todos os homens são molestadores de crianças. Segundo Humbert, os homens que tornam-se molestadores só o fazem porque são seduzidos pelas ninfetas. Como essas garotas são demoníacas, ao invés de humanas, e como essa é a sua verdadeira natureza, nenhum estrago é feito. Os molestadores são vítimas privilegiadas e encantadas do feitiço das ninfetas, não seus agressores. Humbert narra sua primeira experiência sexual com Lolita como se ele estivesse no assento do passageiro, e Lolita fosse a motorista. Ele afirma que foi Lolita quem o seduziu, não vice-versa. Depois de sua primeira vez juntos, ele tenta nos convencer de sua inocência: A disposição da lei romana segundo a qual as meninas podiam casar aos doze anos foi adotada pela Igreja e ainda se mantém em vigor, de forma mais ou menos tácita, em certos estados americanos. E a idade de quinze anos é legal em toda a parte. [...] “Em certas cidades, como St. Louis, Chicago e Cincinnati, o clima temperado e estimulante [Segundo uma velha revista desencavada na biblioteca desta prisão] faz com que as meninas amadureçam por volta do fim do décimo segundo ano de vida”. Dolores Haze [Lolita] havia nascido a menos de quinhentos quilômetros da
  • 5. estimulante Cintinnati. Nada mais fiz do que obedecer à natureza, sou o mais fiel de seus cães. [...] Sensíveis senhoras membros do júri, nem mesmo fui seu primeiro amante. (Nabokov 2003: 137, meu grifo) Garry Leonard, em seu ensaio repetitivo mas impactante, “Power, Pornography, and the Problem of Pleasure: The Semerotics of Desire and Commodity Culture in Joyce,” atesta para a naturalização do estupro que Humbert tão desesperadamente tenta disfarçar. Leonard usa o exemplo de Lêda e o cisne, de Virgem Maria e Deus, de Gabriel e Gretta em “Os Mortos”, e de cartões postais pornográficos para mostrar a ideologia subjacente, ou devemos dizer a mitologia, por trás do poder masculino: não há poder algum porque não há a menor necessidade para isso. Afinal, as mulheres buscam exatamente o mesmo que os homens em termos de sexo, mesmo que elas não saibam. Assim como Gabriel, em “Os Mortos”, não precisa sentir-se culpado com este exercício de poder ao simplesmente imaginar que Gretta deseja ser dominada (Leonard 1993: 21), Humbert pode fantasiar as mesmas emoções diante de sua ninfeta. Mas ele próprio tem um pouco de dificuldade em acreditar no mito que Lolita é a sedutora e que ele só fez o que ela desejava em primeira instância, e ele sente algumas “pontadas de culpa” (Nabokov 203: 140), ou assim transparece em seu relato altamente irônico dos fatos: “Seu bruto”, [Lolita] disse, sorrindo meigamente para mim. “Você não vale nada. Eu era uma mocinha pura e inocente, e olha só o que você fez comigo. Devia chamar a polícia e dizer que você me violentou. Ah, seu velho sujo, sujo!” Seria só um gracejo? Havia uma nota ameaçadora, quase histérica, em suas palavras tolas. Logo depois, fazendo com os lábios um som que parecia um chiado, Lô começou a queixar-se de dores, disse que eu havia arrebentado alguma coisa dentro dela. O suor escorria-me pelo pescoço e quase atropelamos um animalzinho qualquer que cruzava a estrada com o rabo empinado, e mais uma vez minha vitriólica companheira me chamou de um nome feio. (Nabokov 2003: 142-3) Naturalmente, Humbert chega à conclusão que Lolita só pode estar brincando e desmente seu discurso como “tolo”, um “gracejo”. Ele clarifica, para nós pelo menos, que é ela quem ainda mantém o controle das coisas. Ela pode lhe dizer onde e quando parar o carro, por exemplo, e até ofendê-lo. No entanto, só para ficar mais seguro, ele decide ameaçá-la. Se contar para qualquer um sobre seu caso, ela será mandada para um orfanato, um reformatório, ou um centro para jovens delinqüentes (Nabokov 2003: 153). Curiosamente, Dorfman e Mattelart apelidam a sociedade Disney de um orfanato do século dezenove, de onde os personagens não têm escapatória. Apesar de todas as viagens, a única opção dos sobrinhos de Donald é retornar à velha estrutura de poder
  • 6. (1980: 30). Isso é parecido com o resumo da situação de Lolita por Humbert. Após chorar o dia inteiro ao descobrir que sua mãe morreu, ela vai até a cama dele, ao que ele narra para nós: “Vocês compreendem, ela não tinha mesmo para onde ir” (Nabokov 1993: 143). Humbert é um narrador que não desperta nenhuma confiança, e tudo—todos os diálogos, todas as descrições, todas as opiniões—no romance é filtrado pelas suas palavras. Logo, podemos escutar apenas o seu lado quando ele afirma que foi Lolita quem o seduziu, e não o contrário. Mas como podemos ler o livro de Nabokov sem engasgar com tanto horror, ou, ainda pior, sem achar várias passagens divertidas? Uma das pistas encontra-se na ironia usada, mas uma indicação ainda mais certa é que Humbert nos leva ao seu mundo. Ele é tão entusiástico sobre as ninfetas que nós quase passamos a acreditar que menininhas têm uma tendência para a perversão natural. Tanto Humbert quanto Disney dependem que vejamos seu mundo como natural. Se assim o fizermos, não questionaremos suas escolhas. Dorfman e Mattelart explicam: Todas as intenções de Disney baseiam-se na necessidade de que seu mundo seja aceito como natural, isto é, que combine os rasgos de normalidade, regularidade e infantilismo. A justificação das figuras da mulher e da criança é, com efeito, a de que assim são objetivamente estes personagens, ainda que, segundo vimos, tenha torturado implacavelmente a natureza de cada ser do qual se acerca. (1980: 41) Ou seja, devemos aceitar como natural que todos os relacionamentos no universo Disney sejam baseados em transações comerciais (1980: 29). É perfeitamente normal que Tio Patinhas visite ilhas exóticas, reúna todos os tesouros lá encontrados, e os troque por migalhas com os selvagens, que não saberiam o que fazer com o ouro de qualquer maneira. Tio Patinhas sabe: ele transforma o ouro em moedas e mergulha nelas. É natural para ele explorar seus sobrinhos também, e ficar cada vez mais rico sem produzir absolutamente nada. O mito da mobilidade social realmente soa normal: toda criança nasce igual e vai acumular na vida o que merece (1980: 102). Aprendemos inclusive que não há problema em um personagem ter mais dinheiro que a fortuna de todos os outros personagens reunidos. Humbert também quer que não vejamos nada de errado com seu mundo. Como ele diz à página 151, “Desde o início de nossa relação, fui suficientemente esperto para compreender que devia contar com [a] absoluta cooperação [de Lolita] a fim de manter em segredo o que se passava entre nós, que isso deveria transformar-se para ela numa segunda natureza [...]”. Sua primeira natureza, como já sabemos, é que ela não é
  • 7. humana, mas demoníaca, com poderes suficientes para enfeitiçar um homem adulto. Ele já argumentou que não fez nada além de “obedecer à natureza”. O problema parece ser convencer Lolita que sua vida seja puramente natural. Para tanto, ele tenta ensiná-la: “Sou o teu papai, Lô, teu velho pai. Olha, tenho aqui um livro erudito que fala de meninas. Veja só, minha querida, o que ele diz: ‘A menina normal’—normal, presta atenção—‘tem, em geral, um grande desejo de agradar seu pai. Vê nele o precursor do companheiro desejado e esquivo [...]. Na Sicília, as relações sexuais entre pai e filha são aceitas como algo natural, e a menina que delas participa não é encarada com desaprovação pela sociedade a que pertence’. Sou um grande admirador dos sicilianos, bons atletas, bons músicos, gente muito virtuosa, Lô, e muita dada às práticas sensuais. Mas chega de digressões”. (Nabokov 2003: 152) Temos um palpite de que Lolita não concorda com tanta normalidade, já que começa a cobrar dinheiro dele para fazer sexo, até fugir com outro pedófilo, Quilty. Mas, de um modo, ao trocar Humbert por Quilty, ela está meramente reproduzindo seu relacionamento com Humbert. Como Disney faz com seus personagens (Dorfman e Mattelart 1980: 27), Nabokov nos oferece zero de mudança em Lolita. Ela não tem futuro. Nem Humbert nem Quilty querem que Lolita cresça, impedindo-a de evoluir. Ela abandona sua condição de ninfeta apenas ao se afastar dos dois pedófilos, mas Nabokov a mata pouco depois. Lolita nunca consegue tornar-se uma mulher adulta. Ao destituir Lolita de seu crescimento, e ao desejar sua própria infância eterna, Humbert tenta eliminar a história, o que constitui, por sinal, o maior esforço das revistas em quadrinhos em geral. Como uma criança representa o tempo, e o tempo lembra a história, raramente vemos um personagem mudar nas tirinhas. Para os personagens da Disney, passado, presente e futuro são sempre os mesmos (Dorfman e Mattelart 1980: 32). Os contos da Disney são não-históricos porque, por exemplo, a fortuna reunida em um episódio desaparece no seguinte (1980: 102), ou pelo menos não há qualquer memória do que foi feito para conquistar novos tesouros. Barthes acredita que a privação da história é uma das principais funções da mitologia, devido ao fato que os mitos apagam a história do objeto analisado (1993: 171). Lógico que Barthes, fiel ao seu estilo, não diz isso diretamente: primeiro ele comenta que mitos são históricos, e que a história pode suprimi-los (1993: 142); depois ele afirma que, nos mitos, a qualidade histórica das coisas é eliminada (1993: 163). A mesma ambigüidade surge quando Barthes diz que mitos são despolitizados. A maioria de nós discordaria dessa afirmação, já que tendemos a ver mitos como parte da ideologia, não da descrição. Mas o que Barthes quer dizer com despolitizar não é o que o senso comum nos indicaria, já
  • 8. que Barthes redefine o prefixo des e diz ver política no sentido das relações humanas, no seu poder de construir o mundo (1993: 163). Ele é bastante claro, no entanto, ao dizer: “O mito não nega as coisas; a sua função é, pelo contrário, falar delas; simplesmente, purifica-as, inocenta-as, fundamenta-as em natureza e em eternidade, dá- lhes uma clareza, não de explicação, mas de constatação [. . .]” (1993: 163). Daí o mito que envolve ninfetas estar voltado a purificá-las, fazendo-as parecer naturais. Por um breve momento, Humbert tenta dar um tom histórico ao seu mito ao citar Dante, Petrarca e Poe como outros pedófilos, mas o que ele realmente faz é tentar nos convencer o quão natural é, e sempre foi, meninas novas fazerem sexo com homens crescidos. Os mitos, como tudo o mais, são criações de adultos. E é pouco provável que adultos criem algo que prejudique seu prestígio de mestres do universo. Quadrinhos são outra invenção de adultos, e Para Ler o Pato Donald esclarece que o objetivo de Disney é ocultar a história e produzir utopia para adultos, ao mesmo tempo em que alivia os adultos da culpa pela sua própria história. Para Humbert, aliviar-se da culpa não é tarefa fácil, pois sua história está intimamente ligada à violência e estupro. Depois de ver Lolita pela última vez e de matar Quilty, Humbert pausa para ouvir crianças brincando em um jardim distante. Ele observa: “Ali fiquei, no meu sublime mirante, ouvindo aquela vibração musical, o espocar de gritos isolados contra o tímido murmúrio do fundo sonoro—e compreendi, então, que o que havia de desesperadoramente terrível não era a ausência de Lolita a meu lado, mas a ausência de sua voz naquele coral” (Nabokov 2003: 311). Isso não soa muito honesto. O que Humbert sente falta mais do que nada é a sua própria ausência daquele jardim e coral, não como adulto, mas como criança. E aqui temos a evocação de outro velho mito: que a infância deve ser a melhor época de nossas vidas. Para Lolita não foi.
  • 9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARTHES, R. Mitologias. Trad. Rita Buongermino, Pedro de Souza. 9a ed. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 1993. DORFMAN, A. e A. MATTELART. Para Ler o Pato Donald: Comunicação de Massa e Colonialismo. Trad. Álvaro de Moya do original em espanhol Para Leer al Pato Donald. 2a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. --- . “Introduction: Instructions on how to Become a General in the Disneyland Club.” Media and Cultural Studies: Keywords. Ed. Meenakschi Gigi Durham, Douglas M. Kellner. Londres: Blackwell, 2001. 144-151. LEONARD, G. “Power, Pornography, and the Problem of Pleasure: The Semerotics of Desire and Commodity Culture in Joyce.” James Joyce Quarterly. Volume 30, Number 4, Summer 1993/Volume 31, Number 1, Fall 1993. 615-665. NABOKOV, V. Lolita. 1955. Trad. Jorio Dauster. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003.