Este documento é uma coleção de poemas e fragmentos poéticos sem um tema unificador aparente. Os poemas exploram ideias como a morte, o amor, a luz, a vela e a casa de uma maneira surreal e abstrata, frequentemente usando repetições e jogos de palavras. A linguagem é altamente metafórica e ambígua, deixando pouco claro o significado exato dos poemas.
3. aviso aos marjnautas
esta página expirou
quando o poeta espirrou
em seu zênite zen
(auge transcen
dente) ninguém
(nenhum leitor)
leitor marjnauta
a espiou
4. quero um texto claro preciso
água límpida doce didática
quase matemática lógica
metros ritos incisivos
sobre a carne das palavras
reduzidas a osso e oco
cubos e axiomas sem eco
e depois de toda essa assepsia
injetar algumas gotas de anexato
o mínimo milímetro preciso
para ante tanta limpidez desse deserto
estontear todas as rotas suas
corpo repleto
5. sob
o pre
texto de en
saio textos anex
atos por onde
possam passar
uns fios de
vida
6.
7. ela lendo como se fosse
me lembra um falso
a avó como se a voz
que será a linha fosse
a vó da lenda um fio sem fim
de sempre sem meada
a linda vó enleada em seu
das vozes todas tecer
dos meninos
todos de todos como se fosse par
os cantos um parecer
de voz em voz
de vez
em vez
me vem a voz
talvez tal vez
venha de muito longe embora
apenas perto a vejo
figura do meu ou
vido vida vidra
a voz desfigurada
por mim por quem
produz ida?
8. narciso se vê na f(r)onte
na f(r)onte de todos os mitos
narciso se transforma
9. errar a gramática
errar a rima
errar a raiva
errar com raiva e força
(e riso)
errar tudo e tanto
até o (de) sempre
ser
o último espanto
até que reste apenas
penas
de um vôo
errante
12. vento nas folhas
passar as tardes longe
vendo o vidro
mostrar-me o lento
fluxo de tempo
e a chuva chegando
esquecer todos os manda-chuvas
volver-me todo (e só sei se entregar-me
se tragar-me até o último pulso)
ao luxo de um frêmito de vácuo
caos e acaso miríades ninguéns
acolhei estas ondas quase domadas
quase concêntricas em si (mim)
lançai-as ao descompasso anexato
do fluxo desta chuva
não reconhecer-se
esquecer todos os abismos
apagar as cismas
soltá-las prisma
cacos nacos
de lembranças refugadas
num cisma
nego-me e pego apenas
penas flutuantes
amantes de uma lua
de rua
chuva
jamais me houve
13. estar doente
tem suas vantagens
de ver assim meio de esgueio
gente bicho coisa
assim querendo cair
a gente atravessa o mundo de lado
meio deslumbrado meio soçobrado
a vida trisca num quase
num se ou numa frase
nem doída nem satisfeita
viver doente empestiado ou demente
assim meio sem jeito é feito
fazer de qualquer ponto
da vida uma tangente
14. aqui dentro
bom dia doutor diz a secretária
bom dia de volta e pensa:
vou te comer salafrária
e ela consigo: seu pança seu velho canalha
me faz um favor doutor...
aqui dentro
bom dia doutor e lá fora
barulhos de carros e danças
de folhas ao vento na tarde
calor de sol e de asfalto
pedaços de céu nas vidraças
um doido vadia as ruas
cigarras dormem nos galhos
como a vida mais vida valia
se a vida fosse toda fora
mais lia mais ria mais dia
vadia vazando mais vida
15. a vida toda um fora
olharmo-nos nos olhos
e esquecer as teias todas
serpeando entre nós
e o mundo esquecer
inclusive nós mesmos
nada mais oculto
sob nosso olhar
apenas ar e mar
gelo e areia desertar
desterrarmo-nos do mundo
de tudo o que é profundo
suspensos
sem nenhum mistério
gravidade alguma
entre nosso olhar
vazio de nós
vadia calmo o caos
16. a música vital
transcorre na arritmia
da viola incontrolável
e sua báquica melodia
embriaga as razões
na harmonia do caos
17. hoje amanheceu tão fresco
não a manhã nem o ar
nem esta brisa em mim tão leve
amanheceu o dia em mim
como há muito não fazia
soprou uma brisa breve
no meu pensamento
fez-me esquecer de pensar
esquecer do dia duro por vir
esquecer de mim tão leve
eu estive esta manhã
a alma tão calma tão nova
tão alva quase não havia
como em menino tudo
era descoberta e magia
tão fresco amanheceu-me o dia
18. oração da volta do supermercado
carro trânsito compras
serviço amanhã
dívidas ontem
são baco e santo orfeu
protegei-me
para que eu nunca perca
o poder de perder-me
num pôr de sol
como este
19. não ter que ler
não ter que fazer
não ter que ver
se vai dar ou faltar
não comedir
nem se angustiar
augusto o dia
em que como você
velho
não ter que ter
20. e agora zé
literatura acabou
contra-cultura
é a favor
utopia rodou
pé na estrada é turismo
ismo nenhum sobrou
todo sonho so
çobrou
e agora zé
droga é mercado
marginal é orga
nizado
toda rima é suspeita
de conspirar com uma cifra
cisma alguma
vai dar
n’algum cisma
e agora zé
que fazer do que resta
da festa
que que eu faço com o agora
21. palmo a
palmo o
espaço
digital
izado
as margens
sempre
mais
estreitas
tornar-se
mais
rar
efeito
vazar
pelos
poros
das mar
gens
tornar-se
mais mar
ginal
22. ex-littera
a metáfora desaforada
o poema sem tema
a tradição travestida
a decadência da transcendência
o resto dos mestres
o simulacro sublime
o todo didático do texto avali(z)ado
a fábrica têxtil toda avariada
23. a coisa é feita de ruídos
puídos ou recém
nascidos
doloridos ou não
não importam muito os
idos
desde que bem imbricados
os ruídos
é um ofício difícil
precisa estar concentrado
até o último lance
de dados
os neurônios todos
ligados
por outro lado
é extrema
mente fácil
basta estar distraído
(como dizia o leminski)
pra (ou)vir um bom ruído
a gente faz o que pode
alguma vez vai bem
na maior parte
se fode
25. leve
mais leve que uma pluma
nem um tema
que o queira
mais profundo
teorema
menos denso que a espuma
de uma onda
tenso como o grito
de uma corda
(no espaço
de um lapso)
lema algum
leva este pre
texto ao abismo
do sentido
um risco
ronda este dizer
se tornar menos que isto
traço ao infinito
do não dito
suma
26. não declame poemas
nem os cante
no máximo sussurre-os
eles odeiam cordas vocais
amam somente o som
silente atravessando a mente
27. UMA LUZ QUASE NULA
UMA VOZ QUASE MUDA
UM POEMA
QUASE NADA
28. em silêncio
dança
no silêncio
dança
do silêncio
30. a morte
no instante da morte
é um corte
e no instante do corte
o gosto
do gozo
no instante do gozo
a gosma
num ácido instante
e numenal semblante
como a rosa
aberta instantânea
na tênue eterna
névoa fragrante
no ar
a dama consorte
a lavar
e amar nossa sorte
a planar
aspirar expirar
um acorde
da sonata espiral
31. o papel do poeta é algo mudando para algo mundano que algo
do mundo
(que) algo agouro
um mal agouro do mundo
e o papel do poeta
não se encharca das tintas
não é mais amarelo que amarela com o tempo e torna
poroso e áspero
que colorem as tintas
que vão se descolorindo num sem tom descolor
que são todas as cores: branca
esbranquiçadas
retornam por todos os poros e afloram
tal qual primavera refloram
por todos os cantos colorem de todas as cores reflorem
não são mais
tintas papéis e poetas
não mais
cores e poros e algo
não sei mais
32. lunar
subi a escada
decantada de ladrilhos pétreos
comunguei ao pé da igreja velha
um olhar para trás
a cidade nebulosa viva
sem alma viva que se mova
a esta hora desta noite
se movia a ouvia seu respirar vivaz
eu a revia idosa revivia idade
me movia
em direção ao templo queria ver em tempo
o que escondia densas ásperas pesadas paredes
dessas lisas trêmulas vacilosas mãos deslizam
as dobras do tecido duro frio não vaticina o vento
arrepio sem pensar se move rumo à quina
o mar revolto se revela vento revolvia olhar e via
olhar o mar quebrar em branco
silêncio ao mar
a voz
à voz volver o olhar daquela
alva voz tenaz olhar fugaz contemplar
todos os anos passados naquele ato inato
um estender a mão
um entender de fato a falta
vestida pelo manto escuro véu cobrindo lisos talos
que se deslizam aéreos pela alva tece
o mar medita algo
mar
33. Amo-te demente
caridoso morrerei
remorsoso e mórbido
culpar-te-ei.
Culpar-te-ás e partirás também
ao imaterial abraço de teu rei
e escravo?
Escravo e rei não hei
de entristecer em meu sofrer
pois me darei
a ti
e a ti possuirei
como tantos, como tantos, por dever
morrerei, morreramos
pelo carma dum caudal impiedoso
e ressuscitaremos
eu pedra
e tu a flor do outro monte que um pássaro
num arco sobre as árvores
trouxe o olor
vago
dissipado pelo vento da manhã
um frescor
ainda um frescor à rocha desventurada
34. era uma casa muito engraçada
não tinha teto não tinha nada
v.m.
aquele que não posso ser está vivendo
não sei o que ele quer na funda noite escura
daquele quarto ao fundo que sequer eu entro
a casa agora estranha e a amada não escuta
a voz daquele eu mudo que agora já não ama
desenvolta ela passeia e se deita em sua cama
e o quarto não clareia e mesmo assim enche de luz
este outro a possui enquanto a casa se revela
antiqüíssima morada de deuses que conduz
aquele eu cego a viver à luz de velas
ver sem velas ou sol imponderáveis nuances dela
casa sem piso oitão ou teto vizinha do infinito
um rociar de eternidade impregna os cômodos disformes
foi tudo ti culpada amada a voltear por cômodos famintos
de não sei quê de além amor a entristecê-la enquanto dormes
co’este outro e sem meu toque nos perdoe
luz inconsciente a lumiar o mar profundo
em que mergulha aquele que se diz eu
na busca indefinida de um mapa o mar inunda
cômodos e casa e tudo bóia e se perdeu
do eu amar e amada cômodos e casa e aquele outro
ainda chora o que não sinto e às vezes tem
(tenho certeza) amada em leito seu e amor um pouco
que (náufrago) não sei e luz é assim, às vezes vem...
35. vela que o vento leva que o vento come
vela suspensa no ar e no escuro mar
vela que voa ao longo do horizonte
vela que incendeia por sobre o monte
vela do desatino do aventureiro
vela que voga a lua na noite cheia
vela inflada de uma lufada
vela inflamável no fim do olhar
vela que vela a luz do plenilúnio
vela da tua vala
vela velha comadre de um sino
vela entre deus e meus olhos
vela que me leva
vela que me lava do escuro breu
vela vento que passou
vela luz que enluou
vela vala de minh’alma
valo do meu corpo
morto
caravela da vida
tênue vela ao vento
ao sopro do vento
que a voa
que apaga
36. teus olhos são tão sol
que molhas meu sol
quando me olhas farol
que me banha de tanta luz tamanha
tanta cruz estranha
soa no meu sol uma luz tamanha
outra luz de tuas entranhas
outra luz estranha
a tua luz nua
que luze em tua rua
curva e turva e pura
via para as tuas duas luas
que me vias
vias tão estreitas que diante
de tua luz tamanha, estranha nas entranhas
sãopuro
leite
vias leito impuro
leite pleno leito plano
lácteas de estrelas
leite amplo leito estreito
leito de estrelas
divino leite leito profano
estrada de sóis
extracto de luz
entre o teu leite e o teu leito
as deito no desamparoluas na minha rua nua
me tuas duas
no teu jeito de me deixar sol
de me deixar sou
só no descampado
desta luz tua: lua
37. leite puro leito impuro
leite pleno leito plano
leite amplo leito estreito
divino leite leito profano
entre o teu leite e o teu leito
me deito no desamparo
no teu jeito de me deixar sol
de me deixar sou
só no descampado
desta luz tua: lua
38. ontem nasceu narciso
fogo de ritos
narciso de amor foge
preso no próprio riso
rio de narciso
de mim não sei se preciso
frio rio de lava
nos lábios de narciso
narciso se vê na fonte
na fronte de todos os mitos
narciso se transforma
39. estava tão mudo em hades
lodo de muro antigo
pelas frestas
pelas festas de dionísio
um quintal me invade!
tardes de narciso
riso de narciso
siso de narciso
ris?
rio calmo como a morte
rio forte
narciso se vê na fronte
na fonte de todos os mitos
narciso se transforma
40. era narciso
que falava
fala de narciso
de que falo
era narciso
entre as águas
sai o eco de narciso
pelas ondas
zeros se es
palham — zeus!
da lágrima
de narciso
por um tris
te narciso
narciso se vê na fonte
na fonte de todos os mitos
narciso se transforma
41. josarrá
quem dera ter do mundo
o silêncio que necessitas agora
em que sentes sede de contemplar
e o teu semblante
destemido a pairar
mal recobres o que descobre ao bulir
em tais sonhos que tens teu olhar
teu olhar, teu pobre olhar
josarrá, mas
há um cheiro negro no ar
que colore os teus sonhos meninos
e redescobre a cada olhar
nos teus cantos, lugares, teu lar
que enraíza o alicerce da casa
e se espalha aos vãos de teu chão
teu piso, e sobes enfim por teus móveis
alcançando por fim teu telhado
tuas vigas de cheiro ocreado
tuas telhas de aranha que vêm que vão
não em vão tua vida emaranha
tantos casos de casa encantada
pelo vão das paredes caminham
caminham tanto e não chegam a lugar
que luares tu queres panhar
josarrá? não te notas, não queres notar
não deves, não podes voar
por teares tecidos de ar
não deves negar tuas cores
teu manto, teus tantos encantos
de uma cor que de cores te enche
solta o pranto que queres chorar e diz
josarrá, diz que o cheiro permeia o ar
que vem de tão longe e tanto tempo a
jorrar
e deságua num rompante de dor
desnorteia o poente do sol que brotas
agora em teu sonhar
tua solidão, josarrá
teu amar.
43. de um lado o lodo da noite
do outro
outro lodo e as gramas putrefatas
vicejando
esta faixa dura e noturna
dividindo o deserto
é uma serpente sem casa
deglutindo metais
e peidando gases
vomitando vísceras
ao pasto de lama
indiferente
tu: reflexo de serpente no olho perdido
no horizonte perdido
44. vieste para fugir
mas encontraste buscar
e voltas encontrarás
vieste para encontrar
o que por onde passou
nunca deixou atrás
deixou este fino olor quase partido
este calor bafo
e o amargor seco na boca
este vago eco de amor quase um toque de dor
branco do seu palor grito cego de uma flor
alheia do seu compor
pobre de uma só cor
que insetos sabem de cor
45. foges mas deves voltar
sem nunca
sair deste norte
como nunca saíste do não
norte e não um são
sempre no mesmo lugar
sempre no agora mesmo
que o vento soprar
mesmo
que o norte voar
46. no entanto a um passo está o norte
no entanto um abismo de morte
desenha entre nós este corte
que o nada só o nada em acorde
transpõe esta linha este forte
apague dos olhos o norte
cale o norte da boca e ouça!
o vento do norte zunir
a sua melô dia louca
trazendo o norte pra dentro
soprando na vela rouca
47. norte
ensaio de morte
de onde voltamos
cada vez mais
deus ateus
cada vez mais
48. pelo que há de vão
infindo no seio dele
pela música que soa
nadeante no seu silêncio
pelo que ele não é
sendo nas profundezas
pelo desmarcamento
das margens esparramadas
pela marca da fluidez
no seio dos demarcados
49. apenas eu
sem mim
nesta cidade que me rodeia
sem outros sem si
mudos à minha volta
nesta avenida absorta em si
no seu barulho surdo
ao lençol de silêncio dos olhos
que me olham
de dentro
do meu nada
mais p'ro
fundo do negror de minha ausência
pálidas nuvens passam ignoradas
e sob plácidos lagos serenos
dorme a morte que seremos
e dentro dela
com ela comungando e a corroendo
um átimo de norte dói correndo
e salta
leve brisa raio vento
fogo do pensamento
e fura a vida da avenida
50. ave em fúria
gula sem nome que nos consome
comida
de nossas feridas
que nos ilumina e a cada pedra destroçada do asfalto
a cada ato ao acaso
ao cheiro de gasolina a cada passo apressado
mal sabe os homens o norte deste instante
da face de joén nos seus semblantes
do urro de prazer dos dois amantes
da flor sem haste que brotou na face
do tempo
sem depois
nem antes
agora
deste norte desnorteante
51. todo o vento
num momento
todo o tento
num instante
o vento
e seu ventre
aberto
entre dois semblantes
sempre dois movimentos
vendo o abismo deserto
arco precário
istmo arbitrário
centelha dissipada
de vísceras
vácuo
o nada desse buraco
esse sovaco no cerrado
olhar
fixo
de vossas vozes
ávidas de barro
e engasgadas
de catarro
esse pigarro cósmico
semi desnatado
e carcomido
de fragmentos
iaras
e suas árias
aéreas
o norte
e sua sorte
incerta
53. meus velhos versos de segunda
vento e pássaros relva e rio
dissolvo-me neles na esperança
na esperança como nas lembranças
em que vingo a má ventura
onde perdem-se as razões, a harmonia e a sextina
e o ritmo com as pulsações
dentro e fora
fora-se toda a fruidez
e qualquer pertencimento à entidades obscuras
que passaram a fluir
transe e embriaguez
doçura e tortura
perderam-se, perdi-os e todos se lançaram
e lancei junto com eles
a qualquer alvo
de água, de madeira ou de metal
estou à salvo, não estou
talvez... talvez...
55. fala da palestrante
a mulher do senador hermenegildo de moraes
na época das frutas
abria os portões da sua casa
para que o povo
desfrutasse
da quantidade de frutas
que vocêtinha dentro daquela casa!
56. quando, ainda criança, me deparei com aquele livro misto de causos e exaltação dos
grandes vultos morrinhenses (intelectuais, políticos, artísticos), cujo título
MORRINHOS: DE CAPELA
A CIDADE DOS POMARES
pensei significar (por um desses equívocos que só as crianças podem cometer com sua
prodigiosa imaginação) :
MORRINHOS DE CAPELA: A CIDADE DOS POMARES
então algo surrealista – uma cidade travestida de capela, carregando uma
carapaça/capela – emergiu do texto... foi a melhor leitura que fiz do livro, até hoje
benditos sejam erros meninos
57. neste livro um soneto lírio parnaso
florido em pleno pós-guerra
de guilherme xavier poeta-doutor
quando a língua de bilac já era dada como morta
e enterrada:
Meu coração é uma cidade antiga,
De casas brancas e compridos muros,
Com pomares amplíssimos, escuros,
E gente simples de feição amiga.
Seus habitantes não são todos puros,
Talvez entre eles haja alguma intriga.
Mas a harmonia geralmente abriga,
E ajunta, rindo-se, os rivais mais duros.
Sua alegria buliçosa e clara
Esconde mágoas que ninguém suspeita
Nem descobrir impertinente ousara.
E julga-se feliz, pois, sem vaidade,
Confunde na modéstia mais perfeita,
Tranqüilidade com felicidade.
58. é consenso considerar o parnasianismo um período literário
muito renitente no caso do brasil (vide cândido e bosi)
é preciso dizer que o parnaso foi mais [muito muito +]
algo como um estado de espírito artístico-intelectual (uma economia mental)
coisa de doutores e damas entre togas e cetins
diga-se também (na companhia de bandeira) que o parnaso
não deixou de ser uma continuação (+ contida) de seu suposto desafeto
o romantismo – que por estas bandas é muito # de seu congênere europeu
digamos então que impregnou o brasil fim de séc XIX um estado de espírito:
romântico-parnasiano
59. melhor que ―período‖, ―estado de espírito‖ ou ―economia mental‖
digamos que houve uma atmosfera:
ATMOSFERA ROMÂNTICO-PARNASIANA (ARP)
uma atmosfera é espacial, um período é temporal
ela se dissipa, ele é superado
ela é mais palpável (respirável) que um estado de espírito
a ARP começou a se dissipar no brasil a partir de uma pequena explosão
de luzes e ruídos, ocorrida na são paulo de 20, chamada modernismo:
outra atmosfera se criava e se expandia contra as ondas bolorentas da
antiga ARP
mas sua dissipação foi muito mais lenta e custosa nos rincões mais
remotos do país
em plena década de 70 uma pessoa de faro mais fino podia sentir a
persistência da ARP em lugares ermos como, por exemplo, na
Cidade dos Pomares!
60. mas
uma província tem duas bandas duas atmosferas
imbricadas
a dos doutores damas e coronéis ARP
freudiana perturbada complexo de inferioridade
inconformada por não ser centro faz de tudo
para que pelo menos em seu pequeno mundo
haja quem seja umbigo haja quem seja mudo
haja quem seja tudo haja quem nunca aja
a outra banda-atmosfera
a da gentalha analfabeta dos meninos e dos velhos
bicho mato tapera
(vide drummond ramos e barros)
toda tosca sem pertences nem complexos
ubiqüidade desumbigada
alguns a chamam sertão (mar)
essa é toda margem
61. e pra complicar
como estão imbricadas
uma entra na outra
de modo que a gentalha respira ARP
e togas e cetins se impregnam de sertão
nos dias de festa (de banda e discurso)
vê-se bem como o povo respira
e aspira a ARP
embora casa grande e móveis coloniais
com aquele ar de calma e fixidez
amados pelo parnaso
aquele ambiente aconchegante
só pode ser pra uns poucos
a custa do suor e do sangue de muitos
na lida dura e mal paga do campo
que a gentalha anônima têm de cumprir dia após dia
pra que a sinhazinha leia no seu aconchego
os seus romances românticos
entre móveis coloniais
e gatos perfumados
encantando os poetas parnasianos
que a chamarão de ninfa
em seus virtuosos sonetos
62. mas tudo tudo isto hoje
são apenas lembranças
de quem não viveu
aquela atmosfera em seu esplendor
e apenas passou menino
pela cidade dos pomares
quando restavam quase dissipados
uns cheiros de ARP
e restam ainda
umas saudades doentias de velho
daqueles móveis de jacarandá e peroba rosa
nos quais quando se fecha os olhos
vê-se ainda a donzela trêmula
de amor sem objeto
devorando seus folhetins
umas saudades que são apenas mais uns cacos
em meio aos fragmentos de agora
outra atmosfera esta
nem ARP nem sertão
nem mesmo modernista
cheia de máquinas mínimas
e cálculos enormes
63. benedito ventura
que (nesta vida) só foi velho e menino
afável e bonachão com aquele ar de bobão
mas só pra quem não olha nos olhos perdidos de sertão
poeta da província um pouco douto outro caipira-caipora
respirador de dois ares cheio de vícios e ofícios
tribunas e altares
mas também de sóis de luares
taperas e margens
como deixaria de ser o que é?
mestre bené
64. PARTE IV
Benedito Ventura
Poeta do gran circo imperial das togas
65. não chores amada mia
que choras de amarga a vida
pois saibas que a vida vinha
devindo das idas mias
até que a vida um dia
envia por não sei vias
ao pranto que tão doía
à vida que então se via
sem vida e que só temia
que amargo não cessaria
amada que amar-me-ia não digas amada meiga
que o pranto quer não quer queira
pois saibas amada mia despenca da ribanceira
que a dor do ir existe não chores amada amiga
pois saibas que a dor insiste pois olhas e então me diga
que a vida porém persiste se alguma qualquer ferida
e saibas que amar permite se achou maior um dia
que saibas que embora triste que um dia de alegria
mui triste que o amor existe na vida de amada mia
há chama alegre da vida
maior que a dor da vida
que o sol do meio dia
sabes que a dor existe eu sei
e sabes que o pranto insiste e tens
saberes que a sina é triste e bem
sabes que a dor persiste e vem
vindo demais e tensa e hei
de querer e embora não sei
da dor que existe intensa a lei
que amar de amar e de amar demais
que amar te tenho e te tenho paz
66. Ora!
Tudo que quero é dizer que amo. Amo-te de um amor menino.
Só um velho como eu pode dizer tal coisa, hoje. Mas que redundância!
Queres coisa mais infantil
Amo-te Que amar infante?
De incondicional amor intransitivo
Como o dos poetas, como tem que ser. Amo-te simplesmente
Mas isto também já foi dito por muitos
Como o amor dos tolos, de um se dar desmedido. (por todos os que amam)
Como os profetas, cegos de amar e ver. Mas não importa para quem ama.
De um amor lascivo como o de animais, Se algo importasse para quem ama
Puro instinto e violência, sangue e gozo. não haveria amor.
Como poesia não haveria
O amor do Cristo que me purificais se o poeta pensasse antes.
Límpido e eterno, cristalino, água e fogo. Se o amante pensasse antes
não haveria amante,
Do amor que flui de dentro para fora, não haverias tu, amada e exaltada
De fora para dentro como o teu olhar em mim. por esta alma desarmada, desarrumada.
Nem alma, se me permita Deus, havia
Do amor que fica, mesmo indo embora, se amor não houvesse.
Tão dentro e forte ante a distância sem fim
Pois que amo-te enfim
Da morte ou de um simples ir em meio à tempestade
Para outro cômodo que não sei seguir. e em princípio é princípio meu amar
a ti e amando-te transbordar
Amo-te de um amor impossível, o amor.
De impossível exprimir. E amar a todos e a tudo,
Mas tão impossível a mim e amar o amor.
Que nem espremo palavras
Para vos dizer. Amo-te como quem ama.
Quem saiba assim o diga
Neste sereno não dizer...
67. noite grande da cidade
casas depois de tantas casas
luzes que tampam estrelas
postes e mais postes
teia de fios metálicos
estalando lâmpadas no ar
ruas depois de ruas
teias de ruas sem fim
deste quarto pequeninim
este magro meninim
solta a imaginação
até o mais longe desvão
mas não há desvão!
cada vão cada vale
vale um pedaço de casa
desta teia de casa até onde?
desta teia que o fio se esconde esta noite tem tanta invenção
destas veias noturnas escorrem luminosa ela tem tanto escurél
carros roncando pra onde de noite grande
sonha-se a noite que move
cada carro pros confins pelos morros ondula a malha de luzes
asfálticos da sua pele há luzes a mais depois dos morros?
morro de vontade dissolver-me
nesta idade nesta cidade nesta sede
de enredar-me nesta rede vede!
68. noite grande do sertão
vede esta noite longa
larga noite profunda
vede esta noite de redes
vede esta noite de malhas
vede este céu repicado
vede o repisque de estrelas
vede este cheiro de noite
e o cheiro do galho picado
salpicado de orvalho
esta noite picadas escuras
esta cíclica noite de luas
três luas e não lua
vede esta noite sem ruas
deste carro ou desta
o cheiro verde vai entranhando as narinas tapera solta no sertão
a poeira não passa o vento não vem solta o menino a sua ilusão
nem vai nesta noite imóvel que nos cerca de ver o invisível que não sabe
teias de terras teias de verdes teias o indizível que não se vê
de tantos galhos que se cruzam no cruzeiro saindo de si sobre a serrania
teias de quanto mistério quantas grotas sem seu olhar
brotam agora neste instante
de noite fulgurante?
tantas formigas fervilhando
e estrelas nos olhando
estalando a nos brilhar
69. noite minha pequenininha
noite contida eu sei
de cada canto seu
cada recanto de breu
ou brilho
noite pequena eu sei
só não sei porque o de todo dia toda noite
eu não sei mais noite mais íntima sei
onde acabas com as casas
onde as asas se divisam
onde as abas desta noite
só não sei porque estas beiras
me cheiram sem eira nem beira
não sei porque que te beijam
meus beiços com tanto ardor tu és em cada poste cada luz
cada lua e cada estrela
lua cheia de quintal cada telha cada casa
encheste o meu portal e casa-te com cada para-
para o sem fim de mim lelepípedo negro de amor
tão pequeninim que te carrega de dia
noite do meu morrim e se consome de noite no seu fulgor
abraçando-nos brincando-nos de nós
nos nós do futuro
noite o futuro é escuro
quero-te passada luz-minada
70. o nariz frio do cachorro alegre
e um portão monstruoso
o muro alto
velho
verde de lodo
e descascado
cascas de árvores
e passeios de praças
bicicletas e bolas
bobas meninas
e meninos sonsos
e tristes
alegres e tristes
postes de luzes cinzas
e janelas mortas
e abertas
tortas
ruelas voltas
e voltas
mortas
e tristes
vilas e rodas vivas
e noites
vivas e mortas
manhãs
e tardes quentes
e longas
71. faz frio na rua nua
frio de batê- queixo
faz cheiro de chuva molhada
vai ter pardal no fio
vai ter pinguinho nas folhas
que hoje eu sei que é orvalho
amanhã de manhã tem frio
tem cheiro de terra fresca
flor de jabuticaba
depois do aguaceiro
72. tapera é uma espera
no meio do nada
no veio do dia plantada
no seio da noite rebrotada
tapera abando nada
beira de ninguém sem eira
na esteira do musgo
e do lodo na esteira
tapera na capoeira
grota de vaca fugida
greta de visco ungido
fundida no cisco
fugido pro zóio
doído de luz
que tampa a tapera
tapera uma sombra
salpicada de sol
picada de noite
no veio do dia
73. jurubeba é uma biloca verde
margosa
feito fel
que levada ao céu
da boca leva a boca
ao céu
feito o amor
depois da dor
feita a vida
desfeita de uma ferida
jurubeba é um ensina
dor
jurubeba é um amar
gor
é uma esfera repleta de flor
antes e depois de flor
na embriagada língua
eufórica
sofrida
queimada de antiflor
jurubeba é um desvéu
que desvela
o amargo-doce
é um favo de fel no céu
da boca ávida
de mel
é mel tão apurado que amarga
74. sou
o que lembro e o que lembro
é mandinga pr’eu ter sido
o que sonhei um dia ido
e dolorido não sei se setembro
não sei se me relembro ou a lembrança
que há de vir ao ar se insinuar
é o enchimento amanhã do esvaziar
que ficou perdido na manhã esperança
acordes pobres de pardais infância
fios de postes das catadupas ignoradas
pela alegria brincando sem nada
pensar sobre as pedras da rua sem ânsia
sobre a perda a distância medita esferográfica
sobre a mesa dos tempos idos só doridos
e sarados neste retraçar florido
de alma velha sem viço pra ginástica
ó pardais e jabuticabas bobos e bolos
cidade natal pós-modernamente em cacos
nesta cabaça podre que a guarda saco
de gatos lentos e sem unhas do desconsolo
75. arrasto um punhado de pó
pelas ruas
arauto das casas desertas
e puídas
pelo silêncio e pela treva
carcomida
de luz entrante de uma fresta
(festa de meninos)
gatos conhecem-na biblicamente
entre móveis silentes calmamente
roçam pêlos nas suas entranhas
casa estranha trêmulo vácuo
arrepio de frio sob a tarde de morrinhos
quintal pomar escuro mar de podridão doce
muro de frinchas funcho e hortelã
lã estas redes de madeira teto
tateante alto de barro
piso em falso
um braço de halo
sobra do sol
que arrasto