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C   A   P   Í   T   U   L      O
ASPECTOS GERAIS
DA AÇÃO DOS
FÁRMACOS
                                                                                                1
FASE FARMACODINÂMICA: INTERAÇÕES
ENTRE MICRO E BIOMACROMOLÉCULAS
A interação de um fármaco com o seu sítio de ação no sistema biológico ocorre
durante a chamada fase farmacodinâmica e é determinada por forças intermo-
leculares, isto é, interações hidrofóbicas, eletrostáticas e estéricas.1 Considerando
os possíveis modos de interação entre o fármaco e a biofase, necessários para
promover uma determinada resposta biológica, podemos classificá-los, de manei-
ra genérica, em dois grandes grupos: fármacos estruturalmente inespecíficos e
específicos.
    Os fármacos ditos estruturalmente inespecíficos são aqueles que dependem única
e exclusivamente de suas propriedades físico-químicas – por exemplo, coeficiente
de partição (P) e pKa – para promoverem o efeito biológico evidenciado. Os              FIGURA 1.1
anestésicos gerais são um exemplo clássico de substâncias que pertencem a esta
classe de fármacos, uma vez que seu mecanismo de ação envolve a depressão               Correlação entre as
inespecífica de biomembranas, elevando o limiar de excitabilidade celular ou a          propriedades físico-
                                                                                        químicas e a atividade
interação inespecífica com sítios hidrofóbicos de proteínas do sistema nervoso
                                                                                        biológica dos fármacos
central, provocando perda                                                               estruturalmente
de consciência.2-4 Neste ca-                                                            inespecíficos (1.1) e (1.2).
so, em que a complexação
do fármaco com macro-
moléculas da biofase ocor-
re predominantemente
através de interações de van
der Walls (forças de dis-
persão de London), a lipos-
solubilidade do fármaco es-
tá diretamente relaciona-
da à sua potência, como
pode ser exemplificado
comparativamente na Fi-
gura 1.1, para os anestési-
cos halotano (1.1) e isoflu-
rano (1.2).2-4
20    capítulo 1   ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS


                                  Em alguns casos, a alteração das propriedades físico-químicas, em função de
                               modificações estruturais de um fármaco, pode alterar seu mecanismo de interação
                               com a biofase. Um exemplo clássico diz respeito à classe dos anticonvulsivantes,
                               como o pentobarbital (1.3), cuja simples alteração de um átomo de oxigênio por
                               um átomo de enxofre confere um incremento de lipossolubilidade que altera o
                               perfil de atividade estruturalmente específico de (1.3) sobre o complexo receptor
                               GABA ionóforo para uma ação anestésica inespecífica evidenciada para o tiopental
                               (1.4) (Figura 1.2).4,5



 FIGURA 1.2

 Influência da modificação
 molecular no mecanismo
 de ação dos barbituratos
 (1.3) e (1.4).




                               FÁRMACOS ESTRUTURALMENTE ESPECÍFICOS
                               Os fármacos estruturalmente específicos exercem seu efeito biológico pela interação
                               seletiva com uma determinada biomacromolécula-alvo que na maioria dos casos
                               são enzimas, receptores metabotrópicos (acoplados à proteína G), receptores
                               ionotrópicos (acoplados a canais iônicos) e, ainda, ácidos nucléicos. O reconheci-
                               mento molecular do fármaco (micromolécula) pela biomacromolécula é depen-
                               dente do arranjo espacial dos grupamentos funcionais e das propriedades estrutu-
                               rais da micromolécula, que devem ser complementares ao sítio de ligação locali-
                               zado na macromolécula, isto é, o sítio receptor. A complementaridade molecular
                               necessária para a interação da micromolécula com a biomacromolécula receptora
                               pode ser simplificada ilustrativamente pelo modelo chave-fechadura (Figura 1.3).6
                               Neste modelo, proposto pelo químico alemão Emil Fischer para explicar a espe-
                               cificidade da interação enzima-substrato,6 podemos considerar a biomacromo-
                               lécula como a fechadura, o sítio receptor como o “buraco da fechadura”, isto é,
                               região da biomacromolécula que interagirá diretamente com a micromolécula
                               (fármaco), e as chaves como ligantes do sítio receptor. Na aplicação deste modelo,
                               a ação de “abrir a porta” ou “não abrir a porta” representam as respostas biológicas
                               decorrentes da interação chave-fechadura.6 A análise da Figura 1.3 permite-nos
                               evidenciar três principais tipos de chaves: a) chave original, que se encaixa ade-
                               quadamente com a fechadura, permitindo a abertura da porta, corresponderia
                               ao agonista natural (endógeno) ou substrato natural, que interage com o sítio
                               receptor da biomacromolécula localizado respectivamente em uma proteína-re-
                               ceptora ou enzima, desencadeando uma resposta biológica; b) chave modificada,
                               a qual tem propriedades estruturais que a tornam semelhantes à chave original
QUÍMICA MEDICINAL     21

e permitem seu acesso à fechadura e conseqüente abertura da porta, correspon-
deria ao agonista modificado da biomacromolécula, sintético ou de origem natu-
ral, capaz de ser reconhecido complementarmente pelo sítio receptor e desenca-
dear uma resposta biológica qualitativamente similar àquela do agonista natural;
c) chave falsa, a qual apresenta propriedades estruturais mínimas que permitem
seu acesso a fechadura, sem, entretanto, ser capaz de permitir a abertura da
porta, corresponderia ao antagonista, sintético ou de origem natural, capaz de
se ligar ao sítio receptor sem promover a resposta biológica e bloqueando a ação
do agonista endógeno e/ou modificado.


                                                                                      FIGURA 1.3

                                                                                      Modelo chave-fechadura e
                                                                                      o reconhecimento ligante-
                                                                                      receptor.




    Nos três casos em questão, podemos distinguir duas etapas relevantes desde
a interação da micromolécula ligante com a biomacromolécula, que contém a
subunidade receptora, até o desenvolvimento da resposta biológica resultante:
a) interação ligante-receptor propriamente dita – expressa quantitativamente
pelo termo afinidade, traduz a capacidade da micromolécula em se complexar
com o sítio complementar de interação; b) produção da resposta biológica –
expressa quantitativamente pelo termo atividade intrínseca, traduz a capacidade
do complexo ligante-receptor de desencadear uma determinada resposta biológi-
ca. A Tabela 1.1 ilustra estas considerações com o exemplo das substâncias (1.6-
1.8), que atuam como ligantes de receptores benzodiazepínicos, e do fármaco
diazepam (1.5), com ação agonista benzodiazepínico responsável pelo efeito seda-
tivo e anticonvulsivante desta classe terapêutica.7 Cabe destacar que as substân-
cias (1.6-1.8) são ligantes com afinidades distintas, uma vez que são reconhecidas
diferenciadamente pelos sítios complementares de interação localizados no bior-
receptor-alvo. Neste caso, o composto pirrolobenzodiazepínico (1.8) é aquele
que apresenta maior afinidade pelo receptor benzodiazepínico, seguido do deriva-
do imidazolobenzodiazepínico (1.7) e, por fim, a amida correspondente (1.6).
Entretanto, uma maior afinidade não traduz a capacidade do ligante de produzir
uma determinada resposta biológica, como podemos evidenciar pela análise com-
parativa dos derivados (1.7) e (1.6), que apresentam atividades intrínsecas distin-
tas, isto é, antagonista e agonista, respectivamente. Considerando que a ação
terapêutica desta classe é devida à atividade agonista sobre os receptores benzo-
diazepínicos, podemos concluir que o derivado (1.6), apesar de apresentar uma
menor afinidade por este receptor, é um melhor candidato a fármaco ansiolítico
e anticonvulsivante do que o derivado (1.7).
22   capítulo 1   ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS



 TABELA 1.1
 AFINIDADE E ATIVIDADE INTRÍNSECA DE LIGANTES DE RECEPTORES BENZODIAZEPÍNICOS




                   Substância                    Afinidade do ligante                       Atividade intrínseca
                                                 Ensaio de binding, IC50 (nM)               do ligante

                   1.6                           45                                         Agonista
                   1.7                           7,2                                        Antagonista
                   1.8                           0,1                                        Agonista

     IC50 = concentração da substância necessária para produzir interação com 50% dos receptores.




                                  INTERAÇÕES ENVOLVIDAS NO RECONHECIMENTO
                                  MOLECULAR: LIGANTE/SÍTIO RECEPTOR
                                  Do ponto de vista qualitativo, o grau de afinidade e a especificidade da ligação
                                  micromolécula-sítio receptor são determinados por interações intermoleculares,
                                  as quais compreendem forças eletrostáticas, de dispersão, hidrofóbicas, ligações
                                  de hidrogênio e ligações covalentes.


                                  FORÇAS ELETROSTÁTICAS
                                  As forças de atração eletrostáticas são aquelas resultantes da interação entre
                                  dipolos e/ou íons de cargas opostas, cuja magnitude depende diretamente da
                                  constante dielétrica do meio e da distância entre as cargas.
                                      A água apresenta elevada constante dielétrica (ε = 80), devido ao seu momen-
                                  to de dipolo permanente, podendo diminuir as forças de atração e repulsão entre
                                  dois grupos carregados, solvatados. Dessa forma, na maior parte dos casos a
                                  interação iônica é precedida de dessolvatação dos íons, processo que envolve perdas
                                  entálpicas e é favorecido pelo ganho entrópico resultante da formação de molécu-
                                  las de água livres (Figura 1.4). A força da ligação iônica, isto é, ~5 Kcal/mol, é
                                  dependente da diferença de energia da interação íon-íon versus a energia dos
                                  íons solvatados (Figura 1.4).
                                      No pH fisiológico, alguns aminoácidos presentes nos biorreceptores se encon-
                                  tram ionizados (p. ex., aminoácidos básicos: arginina, lisina, histidina, e ami-
                                  noácidos com caráter ácido: ácido glutâmico, ácido aspártico), podendo interagir
                                  com fármacos que apresentem grupos carregados negativa ou positivamente. O
QUÍMICA MEDICINAL       23




                                                                                  FIGURA 1.4

                                                                                  Interações iônicas e o
flurbiprofeno (1.9), antiinflamatório não-esteróide que atua inibindo a enzima
                                                                                  reconhecimento fármaco-
prostaglandina endoperóxido sintase (PGHS),8 é reconhecido molecularmente         receptor.
através de interações com resíduos de aminoácidos do sítio receptor, dentre as
quais se destaca a interação do grupamento carboxilato da forma ionizada de
(1.9) especificamente com o resíduo de arginina na posição 120 da seqüência
primária da PGHS (Figura 1.5).8 Cabe destacar que uma ligação iônica reforçada
por uma ligação de hidrogênio, como neste caso, resulta em expressivo incremen-
to da força de interação, ou seja, ~10 Kcal/mol.




                                                                                  FIGURA 1.5

   Adicionalmente, as forças de atração eletrostáticas podem incluir dois tipos   Reconhecimento molecular
                                                                                  do flurbiprofeno (1.9) pelo
de interações, que variam energeticamente entre 1-7 Kcal/mol:
                                                                                  resíduo Arg120 do sítio
                                                                                  ativo da PGHS, via
      íon-dipolo, força resultante da interação de um íon e uma espécie neutra    interação iônica.
      polarizável, com carga oposta àquela do íon;
24    capítulo 1   ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS


                                     dipolo-dipolo, interação entre dois grupamentos com polarizações de car-
                                     gas opostas (Figura 1.6). Essa polarização, decorrente da diferença de
                                     eletronegatividade entre um heteroátomo (p. ex., oxigênio) e um átomo
                                     de carbono, produz espécies que apresentam um aumento da densidade
                                     eletrônica do heteroátomo e uma redução da densidade eletrônica sobre
                                     o átomo de carbono, como ilustrado na Figura 1.6, para o grupamento
                                     carbonila.

                                  A interação do substrato natural da enzima ferro-heme dependente trombo-
                               xana sintase (TXS), isto é, endoperóxido cíclico de prostaglandina H2 (PGH2,
                               1.10), envolve a formação de uma interação íon-dipolo regiosseletiva entre o
                               átomo de ferro do grupamento heme e o átomo de oxigênio em C-11 da função
                               ambidente endoperóxido, polarizada adequadamente (Figura 1.7). Esse reconhe-
                               cimento molecular é responsável pelo rearranjo que permite a transformação da
                               PGH2 (1.10) no autacóide trombogênico tromboxana A2 (TXA2), e pode ser explo-
                               rado no planejamento de fármacos antitrombóticos que atuem como inibidores
                               de TXS (TXSi).9



 FIGURA 1.6

 Interações íon-dipolo e o
 reconhecimento fármaco-
 receptor.




 FIGURA 1.7

 Reconhecimento molecular
 da PGH2 (1.10) pelo
 resíduo Fe-Heme do sítio
 ativo da tromboxana
 sintase, via interação íon-
 dipolo.
QUÍMICA MEDICINAL        25

FORÇAS DE DISPERSÃO
Estas forças atrativas, conhecidas como forças de dispersão de London ou inte-
rações de van der Walls, caracterizam-se pela aproximação de moléculas apolares
apresentando dipolos induzidos. Estes dipolos são resultado de uma flutuação
local transiente (10-6 s) de densidade eletrônica entre grupos apolares adjacentes,   FIGURA 1.8
que não apresentam momento de dipolo permanente. Em geral, essas interações
                                                                                      Interações dipolo-dipolo
de fraca de energia, isto é, 0,5-1,0 Kcal/mol, ocorrem em função da polarização
                                                                                      pela polarização
transiente de ligações carbono-hidrogênio (Figura 1.8) ou carbono-carbono (Figu-      transiente de ligações
ra 1.9).                                                                              carbono-hidrogênio.




   Apesar de envolverem fracas energias de interação, as forças de dispersão
são de extrema importância para o processo de reconhecimento molecular do
fármaco pelo sítio receptor, uma vez que normalmente se caracterizam por inte-
rações múltiplas que, somadas, acarretam contribuições energéticas significativas.




                                                                                      FIGURA 1.9

INTERAÇÕES HIDROFÓBICAS                                                               Interações dipolo-dipolo
Como as forças de dispersão, as interações hidrofóbicas são individualmente           pela polarização
fracas (ca. 1 Kcal/mol) e ocorrem em função da interação entre cadeias ou subu-       transiente de ligações
nidades apolares. Normalmente, as cadeias ou subunidades hidrofóbicas, presen-        carbono-carbono.
tes tanto no sítio receptor como no ligante, se encontram organizadamente sol-
vatadas por camadas de moléculas de água. A aproximação das superfícies hi-
drofóbicas promove o colapso da estrutura organizada da água, permitindo a
interação ligante-receptor à custa do ganho entrópico associado à desorganização
do sistema. Em vista do grande número de subunidades hidrofóbicas presentes
26   capítulo 1   ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS


                              nas estruturas de peptídeos e fármacos, essa interação pode ser considerada
                              importante para o reconhecimento da micromolécula pela biomacromolécula,
                              como exemplificado na Figura 1.10 para a interação do fator de ativação plaque-
                              tária (PAF, 1.11) com o seu biorreceptor, através do reconhecimento da cadeia
                              alquílica C-16 por uma bolsa lipofílica presente na estrutura da proteína recep-
                              tora.10




 FIGURA 1.10

 Reconhecimento molecular     LIGAÇÃO DE HIDROGÊNIO (LIGAÇÃO-H)
 do PAF (1.11) via
                              As ligações de hidrogênio (ligação-H) são as mais importantes interações não-
 interações hidrofóbicas
 com a bolsa lipofílica de    covalentes existentes nos sistemas biológicos, sendo responsáveis pela manuten-
 seu biorreceptor.            ção das conformações bioativas de macromoléculas nobres, essenciais à vida –
                              α-hélices das proteínas (Figura 1.11) – e das bases purinas-pirimidinas dos ácidos
                              nucléicos (Figura 1.12).
                                  Essas interações são formadas entre heteroátomos eletronegativos, como oxi-
                              gênio, nitrogênio, flúor, e o átomo de hidrogênio de ligações O-H, N-H e F-H,
                              como resultado de suas polarizações (Figura 1.13). Cabe destacar que, apesar de
                              normalmente a ligação C-H não apresentar polarização suficiente para favorecer
                              a formação de ligações de hidrogênio, o forte efeito indutivo promovido pela
                              introdução de dois átomos de flúor pode compensar este comportamento, tornan-
                              do o grupo diflurometila (F2C-H) um bom aceptor de ligações de hidrogênio11
                              (Figura 1.13).
QUÍMICA MEDICINAL      27

    Inúmeros exemplos de fármacos que são reconhecidos molecularmente atra-
vés de ligações de hidrogênio podem ser citados: dentre eles, podemos destacar
ilustrativamente a interação do antiviral saquinavir (1.12) com o sítio ativo da
protease do vírus HIV-1 (Figura 1.14).12 O reconhecimento desse inibidor enzi-
mático (1.12) envolve a participação de ligações de hidrogênio com resíduos de
aminoácidos do sítio ativo, diretamente ou intermediada por moléculas de água
(Figura 1.14).



                                                                                   FIGURA 1.11

                                                                                   Ligações de hidrogênio e a
                                                                                   manutenção da estrutura
                                                                                   terciária de proteínas
                                                                                   (p. ex., calmodulina).




                                                                                   FIGURA 1.12

                                                                                   Ligações de hidrogênio e a
                                                                                   manutenção da estrutura
                                                                                   dupla fita do DNA.
28    capítulo 1   ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS



 FIGURA 1.13

 Principais grupos
 doadores e aceptores de
 ligações de hidrogênio.




 FIGURA 1.14

 Reconhecimento molecular do antiviral saquinavir (1.12) pelo
 sítio ativo da protease do HIV-1, via interações de hidrogênio.
QUÍMICA MEDICINAL              29

LIGAÇÃO COVALENTE                                                                        * No Capítulo 5, detalha-se a ação do AAS.

As interações intermoleculares envolvendo a formação de ligações covalentes
são de elevada energia, ou seja, 77-88 Kcal/mol. Considerando que, na temperatu-
ra usual dos sistemas biológicos (30-40oC), ligações mais fortes que 10 Kcal/mol
são dificilmente rompidas em processos não-enzimáticos, os complexos fármacos-
receptores envolvendo ligações covalentes são raramente desfeitos, culminando
em inibição enzimática irreversível ou inativação do sítio receptor.
     Essa interação, envolvendo a formação de uma ligação sigma entre dois áto-
mos que contribuem cada qual com um elétron, eventualmente ocorre com fár-
macos que apresentam grupamentos com acentuado caráter eletrofílico e bio-
nucleófilos orgânicos. O ácido acetilsalicílico (Aspirina®, 1.13) e a benzilpenicilina
(1.14) são dois exemplos de fármacos que atuam como inibidores enzimáticos
irreversíveis, cujo reconhecimento molecular envolve a formação de ligações co-
valentes.*
     O ácido acetilsalicílico (1.13) apresenta propriedades antiinflamatórias e anal-
gésicas decorrentes do bloqueio da biossíntese de prostaglandinas inflamatogê-
nicas e pró-algésicas, devido à inibição da enzima prostaglandina endoperóxido
sintase (PGHS).8,13 Esta interação fármaco-receptor é de natureza irreversível
em função da formação de uma ligação covalente resultante do ataque nucleo-
fílico da hidroxila do aminoácido serina-530 (Ser530) ao grupamento eletrofílico           FIGURA 1.15
acetila presente em (1.13) (Figura 1.15), promovendo a trans-acetilação deste
sítio enzimático. Cabe salientar que, atualmente, considera-se que a inibição da           Mecanismo de inibição
                                                                                           irreversível da PGHS pelo
enzima prostaglandina endoperóxido sintase (PGHS) pelo AAS é um processo
                                                                                           ácido acetilsalicílico (AAS,
pseudo-irreversível, pois o fragmento Ser-530-OAc é hidrolisado de forma tempo-            1.13), via formação de
dependente, regenerando a enzima PGHS.                                                     ligação covalente.




                       AAS (1.13)
30    capítulo 1    ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS


                                    Um outro exemplo diz respeito ao mecanismo de ação da benzilpenicilina
                                (1.14) e outras penicilinas semi-sintéticas, classificadas como antibióticos β-
                                lactâmicos, que atuam inibindo a D,D-carboxipeptidase, enzima responsável pela
                                formação de ligações peptídicas cruzadas no peptideoglicano da parede celular
                                bacteriana, através de processos de transpeptidação14 (Figura 1.16).
                                    O reconhecimento molecular deste fármaco (1.14) pelo sítio catalítico da
                                enzima é função de sua similaridade estrutural com a subunidade terminal D-
 FIGURA 1.16
                                Ala-D-Ala do peptideoglicano. Entretanto, a ligação peptídica inclusa no anel β-
 Mecanismo de inibição          lactâmico de (1.14) se caracteriza como um centro altamente eletrofílico, como
 irreversível da                ilustra o mapa de “densidade eletrônica” descrito na Figura 1.16. Dessa forma, o
 carboxipeptidase               ataque nucleofílico da hidroxila do resíduo serina da tríade catalítica da enzima
 bacteriana pela
                                ao centro eletrofílico de (1.14) promove a abertura do anel de quatro membros e
 benzilpenicilina (1.14), via
 formação de ligação
                                a formação de uma ligação covalente, responsável pela inibição irreversível da
 covalente.                     enzima (Figura 1.16).
QUÍMICA MEDICINAL     31


FATORES ESTEREOQUÍMICOS E CONFORMACIONAIS
ENVOLVIDOS NO RECONHECIMENTO MOLECULAR:
LIGANTE/SÍTIO RECEPTOR
Apesar de o modelo chave-fechadura ser útil na compreensão dos eventos envolvi-
dos no reconhecimento molecular ligante-receptor, caracteriza-se como uma re-
presentação parcial da realidade, uma vez que as interações entre a biomacromo-
lécula (receptor) e a micromolécula (fármaco) apresentam características tridi-
mensionais dinâmicas. Dessa forma, o volume molecular do ligante, as distâncias
interatômicas e o arranjo espacial entre os grupamentos farmacofóricos com-
põem aspectos fundamentais na compreensão das diferenças na interação fár-
maco-receptor. A Figura 1.17 ilustra a natureza 3D do complexo biomacromolé-
cula-micromolécula, com destaque para o arranjo espacial dos aminoácidos que
constituem o sítio ativo.15



                                                                                  FIGURA 1.17

                                                                                  Representação
                                                                                  tridimensional do complexo
                                                                                  da acetilcolinesterase
                                                                                  (AChE) com o inibidor
                                                                                  tacrina (1.15, rosa), com
                                                                                  destaque para os resíduos
                                                                                  de aminoácidos que
                                                                                  compõem o sítio receptor
                                                                                  (vermelho).




FLEXIBILIDADE CONFORMACIONAL DE PROTEÍNAS
E LIGANTES: TEORIA DO ENCAIXE INDUZIDO
As características de complementaridade rígida do modelo chave-fechadura
de Fisher limitam, por vezes, a compreensão e a avaliação do perfil de
afinidade de determinados ligantes por seu sítio molecular de interação,
podendo induzir a erros no planejamento estrutural de novos candidatos a
fármacos.16 Neste contexto, Koshland introduziu os aspectos dinâmicos
que governam o reconhecimento molecu-
lar de uma micromolécula por uma bio-           FIGURA 1.18
macromolécula na sua teoria do encaixe
induzido,17 propondo que o acomodamen-          Representação
                                                esquemática do processo
to conformacional recíproco no sítio de in-
                                                de indução e seleção da
teração constitui aspecto fundamental na        conformação bioativa de
compreensão de diferenças na interação          ligantes e receptores.
fármaco-receptor (Figura 1.18).18
32   capítulo 1   ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS


                                  Esta interpretação pode ser ilustrativamente empregada na compreensão dos
                              diferentes modos de interação de inibidores da enzima acetilcolinesterase (1.16)
                              e (1.17), planejados molecularmente como análogos estruturais da tacrina
                              (1.15),19 primeiro fármaco aprovado para o tratamento da doença de Alzheimer.
                              Cabe destacar que, a despeito da presença da subunidade farmacofórica tetraidro-
                              4-amino-quinolina, comum aos três inibidores, suas orientações e conseqüente-
                              mente seus modos de reconhecimento molecular pelo sítio ativo da enzima são
                              parcialmente distintos (Figura 1.19), comprometendo análises de relação estrutu-
                              ra-atividade que levem em consideração apenas a similaridade estrutural entre
                              estes compostos.




 FIGURA 1.19

 Sobreposição das
 conformações bioativas
                                 Por outro lado, ao analisar as interações envolvidas no reconhecimento mo-
 dos compostos (1.16,         lecular do derivado peptóide (1.18), capaz de inibir a metaloproteinase-3 de
 vermelho) e (1.17,           matriz (MMP-3) com Ki = 5 nM, podemos identificar a importância da subuni-
 amarelo), análogos           dade N-metil-carboxamida terminal, que participa diretamente do atracamento
 estruturais da tacrina       ao biorreceptor-alvo através de duas interações de hidrogênio (Figura 1.20).20
 (1.15, rosa), após
                              Considerando este perfil de ligação, poderíamos antecipar, a priori, que o derivado
 reconhecimento molecular
 pelo sítio ativo da AChE.    (1.19), análogo estrutural de (1.18), que apresenta um grupamento hidrofóbico
                              fenila substituindo o grupo N-metil-carboxamida terminal, deveria apresentar
                              menor afinidade pelo sítio ativo da enzima-alvo, devido à inabilidade desta subu-
                              nidade estrutural de reproduzir o reconhecimento molecular através de interações
                              de hidrogênio. Entretanto, a alteração conformacional no sítio ativo de MMP-3
                              induzida pela presença do composto (1.19), promove a exposição do aminoácido
                              hidrofóbico leucina que passa a participar do reconhecimento da subunidade
QUÍMICA MEDICINAL              33

                                                                                        FIGURA 1.20

                                                                                        Estrutura cristalográfica
                                                                                        dos complexos entre os
                                                                                        inibidores peptóides (1.18)
                                                                                        e (1.19) com a
                                                                                        metaloprotease-3 de
                                                                                        matrix.20




hidrofóbica fenila presente neste inibidor, mantendo sua afinidade pela enzima-
alvo (Ki = 9 nM) (Figura 1.20).20
    Dessa forma, podemos considerar que a interação entre um bioligante e uma
proteína deve ser imaginada como uma colisão entre dois objetos flexíveis. Neste
processo, o choque inicial do ligante com a superfície da proteína deve provocar
o deslocamento de algumas moléculas de água superficiais sem, entretanto, ga-
rantir o acesso imediato ao sítio ativo, uma vez que o transporte do ligante ao
sítio de reconhecimento molecular deve envolver múltiplas etapas de acomoda-
mento conformacional que produzam o modo de interação mais favorável en-
tálpica e entropicamente.16,21,22


CONFIGURAÇÃO ABSOLUTA E ATIVIDADE BIOLÓGICA*
Um dos primeiros relatos da literatura que indicava a relevância da estereoquí-
mica, mais particularmente da configuração absoluta na atividade biológica,
deve-se a Piutti, em 1886,23 que descreveu o isolamento e as diferentes proprieda-
des gustativas dos enantiômeros do aminoácido asparagina (1.20) (Figura 1.21).
Estas diferenças de propriedades organolépticas expressavam modos diferencia-
dos de reconhecimento molecular do ligante pelo sítio receptor, neste caso, locali-
zado nas papilas gustativas, traduzindo sensações distintas.24
    Entretanto, a importância da configuração absoluta na atividade biológica25       * O Capítulo 5 ilustra aspectos particula-
                                                                                      res da importância da configuração ab-
permaneceu obscura até a década de 1960, quando, hélas, ocorreu a tragédia da         soluta na atividade farmacológica dos
talidomida (1.21), decorrente do uso de sua forma racêmica, indicada para a           fármacos.
34       capítulo 1     ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS



  FIGURA 1.21

  Estereoisômeros da
  asparagina (1.20).




                                          redução do desconforto matinal em gestantes, resultando no nascimento de ca.
                                          12.000 crianças com malformações congênitas. Posteriormente, o estudo do me-
                                          tabolismo de (1.21) permitiu evidenciar que o enantiômero (S) era seletivamen-
                                          te oxidado, levando à formação de espécies eletrofílicas reativas do tipo areno-
                                          óxido,* que reagem com nucleófilos bioorgânicos, induzindo teratogenicidade,
                                          enquanto o antípoda (R) era responsável pelas propriedades sedativas e analgési-
                                          cas (Figura 1.22).
                                              Este episódio foi o marco de nova era no desenvolvimento de novos fármacos.
                                          Neste momento, a quiralidade passou a ter destaque, e a investigação cuidadosa
                                          do comportamento de fármacos quirais27 ou homoquirais28 frente a processos
                                          capazes de influenciar tanto a fase farmacocinética – absorção, distribuição, me-
                                          tabolismo e eliminação – quanto a fase farmacodinâmica – interação fármaco-
                                          receptor – passou a ser fundamental antes de sua liberação para uso clínico.



  FIGURA 1.22

  Estereoisômeros da
  talidomida (1.21).




* Espécies bioformadas pelo metabolismo
hepático (vide infra).
QUÍMICA MEDICINAL    35

    O diferente perfil farmacológico de substâncias quirais foi pioneiramente ra-
cionalizado por Easson e Stedman.29 Esses autores propuseram que o reconheci-
mento molecular de um ligante com um único centro assimétrico pelo biorre-
ceptor envolveria a participação de ao menos três pontos. Neste caso, o reconheci-
mento do antípoda correspondente pelo mesmo sítio receptor não seria tão eficaz
devido à perda de um ou mais pontos de interação complementar.30 Esses autores
inspiraram o modelo de três pontos ilustrado na Figura 1.23, que considera o
mecanismo de reconhecimento estereoespecífico do propranolol (1.22) pelos re-
ceptores β-adrenérgicos.30 O enantiômero (S)-(1.22) é reconhecido por esses re-
ceptores por meio de três principais pontos de interação: a) sítio de interação
hidrofóbica, que reconhece o grupamento lipofílico naftila de (1.22); b) sítio
doador de ligação de hidrogênio, que reconhece o átomo de oxigênio da hidroxila
da cadeia lateral de (1.22); c) sítio de alta densidade eletrônica, que reconhece o
grupamento amina da cadeia lateral (ionizado em pH fisiológico), através de
interações do tipo íon-dipolo. Neste caso particular, o enantiômero (R)-(1.22)
apresenta-se praticamente destituído das propriedades β-bloqueadoras terapeu-
ticamente úteis, devido à menor afinidade decorrente da perda do ponto de in-
teração (b), apresentando, por sua vez, propriedades indesejadas relacionadas à
inibição da conversão do hormônio da tireóide tiroxina à triiodotironina.
    Assim, de acordo com as regras de nomenclatura recomendadas pela Inter-
national Union of Pure and Applied Chemistry (IUPAC), o enantiômero tera-             FIGURA 1.23
peuticamente útil de um fármaco, que apresenta maior afinidade e potência
                                                                                      Reconhecimento molecular
pelos receptores-alvo, é denominado de eutômero, enquanto seu antípoda, ligante       dos grupamentos
de menor afinidade pelo biorreceptor; denomina-se distômero.31                        farmacofóricos dos
                                                                                      enantiômeros do
                                                                                      propranolol (1.22).
36       capítulo 1       ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS


                                               As diferenças de atividade intrínseca de fármacos enantioméricos possuindo
                                            as mesmas propriedades físico-químicas, excetuando-se o desvio do plano da
                                            luz polarizada, é função da natureza quiral dos aminoácidos, que constituem a
                                            grande maioria de biomacromoléculas receptoras e que se caracterizam como
                                            alvos-terapêuticos “oticamente ativos”. Dessa forma, a interação entre os antí-
                                            podas do fármaco quiral com receptores quirais leva à formação de complexos
                                            fármaco-receptor diastereoisoméricos que apresentam propriedades físico-quími-
                                            cas e energias diferentes, podendo, assim, promover respostas biológicas distintas.


                                            CONFIGURAÇÃO RELATIVA E ATIVIDADE BIOLÓGICA*
                                            De forma análoga, alterações da configuração relativa dos grupamentos farma-
                                            cofóricos de um ligante alicíclico ou olefínico também podem repercutir direta-
                                            mente no seu reconhecimento pelo biorreceptor, uma vez que as diferenças de
                                            arranjo espacial dos grupos envolvidos nas interações com o sítio receptor impli-
                                            cam em perda de complementaridade e conseqüente redução de sua afinidade e
                                            atividade intrínseca, como ilustra a Figura 1.24.
                                                Um exemplo clássico que ilustra a importância da isomeria geométrica (cis-
                                            trans, E-Z) na atividade biológica de um fármaco diz respeito ao desenvolvimento
                                            do estrogênio sintético, trans-dietilestilbestrol (1.23), cuja configuração relativa
                                            dos grupamentos para-hidroxifenila mimetiza o arranjo molecular do ligante
                                            natural, isto é, hormônio estradiol (1.24), necessário ao seu reconhecimento
                                            pelos receptores de estrogênio intracelulares (Figura 1.25). O estereoisômero cis
                                            do dietilestilbestrol (1.25) possui distância entre estes grupamentos farmacofó-
                                            ricos (7,7 Å) inferior àquela necessária ao reconhecimento pelo biorreceptor e,



  FIGURA 1.24

  Configuração relativa e o
  reconhecimento molecular
  ligante-receptor.




* O Capítulo 5 discute em detalhes os as-
pectos conformacionais envolvidos na
atividade farmacológica dos fármacos
QUÍMICA MEDICINAL             37

conseqüentemente, apresenta atividade estrogênica 14 vezes menor do que o
isômero trans correspondente (1.23) (Figura 1.25).



                                                                                      FIGURA 1.25

                                                                                      Reconhecimento molecular
                                                                                      dos grupamentos
                                                                                      farmacofóricos dos
                                                                                      estereoisômeros trans
                                                                                      (1.23) e cis-
                                                                                      dietilestilbestrol (1.25).




CONFORMAÇÃO E ATIVIDADE BIOLÓGICA*
As variações do arranjo espacial envolvendo a rotação de ligações covalentes
sigma, associadas a energias inferiores a 10 Kcal/mol, caracterizam as conforma-
ções. Este tipo particular de estereoisomeria é extremamente relevante para o
reconhecimento molecular de uma molécula, inclusive endógena (p. ex., dopa-
mina, serotonina, histamina, acetilcolina), e explica as diferenças de atividade
biológica, dependentes da modulação de diferentes subtipos de receptores (p.
ex., D1/D2/D3/D4/D5, 5-HT1/5-HT2/5-HT3, H1/H2/H3, muscarínicos/nicotínicos, res-
pectivamente).32
    A acetilcolina (1.26), importante neurotransmissor do sistema nervoso pa-
rassimpático, é capaz de sensibilizar dois subtipos de receptores: os receptores
muscarínicos, predominantemente localizados no sistema nervoso periférico, e os
receptores nicotínicos, localizados predominantemente no sistema nervoso central.
Entretanto, os diferentes efeitos biológicos promovidos por esse autacóide são
decorrentes de interações que envolvem distintos arranjos espaciais dos grupa-
mentos farmacofóricos com o sítio receptor correspondente, isto é, grupamento
                                                                                    * O Capítulo 5 discute em detalhes os as-
acetato e grupamento amôneo quaternário. Eles podem, preferencialmente, ado-        pectos conformacionais envolvidos na
tar uma conformação de afastamento máximo, conhecida como antiperiplanar,           atividade farmacológica dos fármacos.
38       capítulo 1       ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS


                                            ou conformações onde estes grupos apresentam um ângulo de 60o entre si, conhe-
                                            cidas como sinclinais (Figura 1.26).33 O reconhecimento seletivo dos bioligantes
                                            muscarina (1.27) e nicotina (1.28) por estes subtipos de receptores permitiu
                                            evidenciar que a conformação antiperiplanar de (1.26) está envolvida na interação
                                            com os receptores muscarínicos, enquanto a conformação sinclinal de (1.26) é a
                                            responsável pelo reconhecimento molecular do subtipo nicotínico.


  FIGURA 1.26

  Variações conformacionais
  da acetilcolina (1.26) e o
  reconhecimento molecular
  seletivo dos grupamentos
  farmacofóricos pelos
  receptores muscarínicos e
  nicotínicos.




                                            QUIRALIDADE AXIAL E ATIVIDADE BIOLÓGICA*
                                            Quando variações do arranjo espacial de moléculas envolvendo a rotação de
                                            ligações covalentes sigma estão associadas a barreiras energéticas superiores à
                                            40 Kcal/mol, observamos o “congelamento” de conformações enantioméricas,
                                            que podem ser caracterizadas isoladamente.34 Este tipo particular de estereoiso-
                                            meria, chamada atropoisomerismo,31 foi inicialmente descrita em bifenilas orto-
                                            funcionalizadas (1.29) (Figura 1.27), mas grande número de funções orgânicas
* O Capítulo 5 discute em detalhes os as-
pectos conformacionais envolvidos na ati-
                                            distintas podem apresentar este fenômeno, caracterizado pela presença de pro-
vidade farmacológica dos fármacos.          priedades quirais em ligantes que não apresentam centro estereogênico.34
QUÍMICA MEDICINAL        39

                                                                                     FIGURA 1.27

                                                                                     Atropoisomerismo da
                                                                                     bifenila orto-funcionalizada
                                                                                     (1.29).




    Diversos fármacos e substâncias bioativas que apresentam e dependem desta
propriedade estrutural para o reconhecimento molecular pelo biorreceptor-alvo
são conhecidos,34 como os exemplos representados pelo gossipol e pela colchicina,
discutidos nos Capítulos 2 e 3, respectivamente. Cabe destacar também o antibió-
tico atropoisomérico de origem natural vancomicina34,35 (1.30) (Figura 1.28),
que era, até o final da década de 1980, o último recurso terapêutico para o trata-
mento de certas infecções provocadas por bactérias resistentes à penicilina e
seus derivados. O mecanismo de ação deste antibiótico envolve sua complexação,
através de ligações de hidrogênio, com o peptídeo D-Ala-D-Ala precursor do
peptideoglicano que reforça a membrana externa, impedindo sua formação e
provocando a conseqüente morte bacteriana35 (Figura 1.28).



                                                                                     FIGURA 1.28

                                                                                     Antibiótico
                                                                                     atropoisomérico
                                                                                     vancomicina (1.30)
                                                                                     complexado à subunidade
                                                                                     D-Ala-D-Ala do
                                                                                     peptídeoglicano
                                                                                     bacteriano.
40       capítulo 1       ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS



* A fase farmacocinética é referida em li-
                                             PROPRIEDADES FÍSICO-QUÍMICAS
vros de língua inglesa como ADME (A =
absorção; D = distribuição; M = meta-        E ATIVIDADE BIOLÓGICA
bolismo [vide p. 46]; E = eliminação).
                                             Como mencionado, as propriedades físico-químicas de determinados grupamen-
                                             tos funcionais são de fundamental importância na fase farmacodinâmica da
                                             ação dos fármacos, etapa de reconhecimento molecular, uma vez que a afinidade
                                             de um fármaco pelo seu biorreceptor é dependente do somatório das forças de
                                             interação dos grupamentos farmacofóricos com sítios complementares da bio-
                                             macromolécula.
                                                 Adicionalmente, a fase farmacocinética, que engloba os processos de absorção,
                                             distribuição, metabolização e excreção,* repercutindo diretamente na biodispo-
                                             nibildade e no tempo de meia-vida do fármaco na biofase, também pode ser
                                             drasticamente afetada pela variação das propriedades fisico-químicas de um fár-
                                             maco.
                                                 As principais propriedades fisico-químicas de uma micromolécula capazes
                                             de alterar seu perfil farmacoterapêutico são o coeficiente de partição, que expressa
                                             a lipofilicidade relativa da molécula, e o coeficiente de ionização, expresso pelo
                                             pKa, que traduz o grau de contribuição relativa das espécies neutra e ionizada.
                                                 Considerando que a grande maioria dos fármacos disponíveis é absorvida
                                             passivamente, tendo de transpor a bicamada lipídica que constitui o ambiente
                                             hidrofóbico das membranas biológicas (Figura 1.29), destaca-se a importância
                                             das propriedades físico-químicas, isto é, lipofilicidade e pKa, para que o fármaco
                                             atinja concentrações plasmáticas capazes de reproduzir o efeito biológico evi-
                                             denciado em experimentos in vitro.


  FIGURA 1.29

  Bicamada lipídica das
  membranas biológicas.
QUÍMICA MEDICINAL       41

LIPOFILICIDADE (Log P)
A lipofilicidade é definida pelo coeficiente de partição
de uma substância entre uma fase aquosa e uma fase
orgânica. O conceito atualmente aceito para coeficien-
te de partição (P) pode ser definido pela razão entre a
concentração da substância na fase orgânica (Corg) e
sua concentração na fase aquosa (Caq) em um sistema
de dois compartimentos sob condições de equilíbrio,
como ilustrado na Figura 1.30.
    Os fármacos que apresentam maior coeficiente de
partição, ou seja, têm maior afinidade pela fase orgâni-
ca, tendem a ultrapassar com maior facilidade as bio-
membranas hidrofóbicas, apresentando melhor perfil
de biodisponibilidade, que pode refletir em um melhor
perfil farmacológico. A Tabela 1.2 ilustra como a intro-
dução de grupos funcionais polares (R = OH) altera o
coeficiente de partição e, conseqüentemente, a absorção
gastrintestinal dos fármacos cardiotônicos digitoxina
                                                                                 FIGURA 1.30
(1.31) e digoxina (1.32).36
                                                                                 Determinação do
                                                                                 coeficiente de partição (P)
                                                                                 de um soluto.



  TABELA 1.2
  COEFICIENTE DE PARTIÇÃO E A ABSORÇÃO GASTRINTESTINAL DE FÁRMACOS CARDIOTÔNICOS




  Fármaco                  Coeficiente de partição         Absorção                     Tempo de
                           P [CHCl3 / MeOH:H2O (16:84)]    gastrintestinal (%)          meia-Vida (h)

  Digitoxina (1.31)        96,5                            100                          144
  Digoxina (1.32)          81,5                            70-85                        38
42    capítulo 1   ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS


                                                             O coeficiente de partição (P) é tradicionalmente
                                                         determinado pelo método de shake flask, empregando
                                                         n-octanol como f ase orgânica devido à sua semelhan-
                                                         ça estrutural com os fosfolipídeos de membrana. Os
                                                         valores do logaritmo do coeficiente de partição (log
                                                         P) são normalmente correlacionados com a atividade
                                                         biológica, descrevendo em geral um modelo parabólico
                                                         bilinear37 (Figura 1.31), que indica haver lipofilicidade
                                                         ótima, capaz de expressar requisitos farmacocinéticos
                                                         e farmacodinâmicos ideais, cujo incremento leva à pro-
                                                         gressiva redução da atividade biológica.
                                                             Além da demonstração das correlações entre a ati-
                                                         vidade biológica e parâmetros físico-químicos (p. ex.,
                                                         lipofilicidade), os estudos de Hansch e colaboradores
                                                         demonstraram que log P é uma propriedade aditiva e
 FIGURA 1.31
                                                         possui um considerável caráter constitutivo. Por analo-
 Modelo bilinear usado para    gia à equação de Hammett (1935) utilizando derivados benzênicos substituídos,
 descrever as correlações      eles definiram a constante hidrofóbica do substituinte, πX, (equação 1.1):
 entre a atividade biológica
 e a lipofilicidade de uma
 série de fármacos
                                  πX = Log (PX / PH)                                                        eq.1.1
 congêneres.
                               e, então, o coeficiente de partição (Log PX) de um derivado funcionalizado com
                               um substituinte X apresentando pode ser calculado empregando-se a equação
                               1.2:

                                  Log PX = Log PH + πX                                                      eq.1.2


                               acrescentando o valor da contribuição da constante hidrofóbica do substituinte
                               X tabulada (vide Anexos) ao logaritmo do coeficiente de partição do derivado
                               não substituído (Log PH).38
                                   Podemos exemplificar o emprego desta equação no cálculo do logaritmo do
                               coeficiente de partição do analgésico paracetamol (1.33) a partir de valores experi-
                               mentalmente obtidos para o fenol (1.34), a acetanilida (1.35) e o benzeno (1.36),
                               como ilustra a Figura 1.32. Deve-se destacar que, em face do caráter aditivo do
                               parâmetro lipofilicidade em derivados congêneres, qualquer das rotas utilizadas
                               na predição do Log P do paracetamol (1.33) leva a valores bem próximos daquele
                               obtido experimentalmente, isto é, 0,46.
                                   A limitação do emprego deste método de predição do coeficiente de partição
                               está relacionado à impossibilidade de extrapolação dos valores da contribuição
                               hidrofóbica de radicais monovalentes (p. ex., -CH3) para radicais divalentes (p.
                               ex., -CH2-) ou trivalentes. Nesses casos, os valores preditos empregando as
                               constantes πx são normalmente menores do que os valores experimentais cor-
                               respondentes, fato que pode ser contornado pelo emprego das constantes frag-
                               mentais de Nys e Rekker.39
QUÍMICA MEDICINAL   43

                                                                                   FIGURA 1.32

                                                                                   Uso da equação de Hansch
                                                                                   na predição do Log P do
                                                                                   paracetamol (1.33).




pKa
A maior parte dos fármacos são ácidos ou bases fracas. Na biofase, fármacos de
natureza ácida (HA) podem perder o próton, levando à formação da espécie
aniônica correspondente (A–), enquanto fármacos de natureza básica (B) podem
ser protonados, levando à formação da espécie catiônica (BH+), como ilustra a
Figura 1.33.
    A constante de ionização de um fármaco é capaz de expressar, dependendo
de sua natureza química e do pH do meio, a contribuição percentual relativa das
espécies ionizadas (A– ou BH+) e não-ionizadas correspondentes (HA ou B) (Figu-
ra 1.33). Essa propriedade é de fundamental importância na fase farmacocinética,
uma vez que o grau de ionização é inversamente proporcional à lipofilicidade,
de forma que as espécies não-ionizadas, por serem mais lipofílicas, conseguem
atravessar as biomembranas por transporte passivo; já as espécies carregadas
são polares e normalmente se encontram solvatadas por moléculas de água,
dificultando o processo de absorção passiva (Figura 1.33).
    Adicionalmente, essa propriedade físico-química é de fundamental importân-
cia na fase farmacodinâmica, devido à formação de espécies ionizadas que podem
interagir complementarmente com resíduos de aminoácidos do sítio ativo da
biomacromolécula receptora por ligação iônica ou interações do tipo íon-dipolo.
44    capítulo 1   ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS



 FIGURA 1.33

 Grau de ionização e a
 absorção passiva de
 ácidos ou bases fracas.




                                  A equação de Henderson-Hasselbach para a ionização de ácidos fracos deriva
                               da equação 1.340:

                                  HA + H2O         A– + H3O+                                             eq.1.3


                               onde a constante de ionização Ka pode ser expressa pela relação das concentrações
                               das espécies ionizadas sobre as espécies não-ionizadas, como ilustra a equação
                               1.4:

                                        [H3O+] [A–]
                                  Ka = ____________                                                      eq.1.4
                                           [HA]

                               então, se considerarmos que:

                                  pKa = –Log Ka        e      pH = Log [H3O+]                      eq.1.5 e 1.6


                               podemos transformar a equação 1.4 na equação 1.7:

                                                               [A–]
                                  –Log Ka = –Log [H3O+] – Log _____                                eq.1.7,   onde
                                                              [HA]


                                                    [espécie ionizada]
                                  pKa = –pH – Log ____________________                                   eq.1.8
                                                  [espécie não-ionizada]

                               por fim, podemos atribuir à fração ionizada o termo α, de forma que em termos
                               percentuais a fração não-ionizada corresponderia à 100 – α, chegando então à
                               equação para cálculo do percentual de ionização de ácidos, descrita a seguir:
QUÍMICA MEDICINAL               45


                                        100
   % de ionização (α) = 100 – ____________________                        eq.1.9
                              1 + antilog (pH – pKa)



   Similarmente, a equação de Henderson-Hasselbach para o cálculo do grau
de ionização de bases pode ser desenvolvida como demonstrado, produzindo a
expressão final:

                                        100
   % de ionização (α) = 100 – ____________________                      eq.1.10
                              1 + antilog (pKa – pH)



    Sabendo-se que os principais compartimentos biológicos têm pH definidos
(p. ex., mucosa gástrica, pH ~ 1, mucosa intestinal, pH ~ 5 e plasma, pH ~ 7,4),
as equações de Henderson-Hasselbach podem ser empregadas na previsão do
comportamento farmacocinético de substâncias terapeuticamente úteis, isto é,
absorção, distribuição e excreção, podendo em alguns casos permitir a obtenção
de fármacos com propriedades físico-químicas otimizadas, como é o caso do
antiinflamatório não-esteróide piroxicam (1.37).41
    O piroxicam (1.37) é um fármaco de natureza ácida devido a presença de
função enólica e à estabilização da base conjugada correspondente (1.38) por
ligação de hidrogênio intramolecular (Figura 1.34). A absorção do piroxicam
(1.37) se dá no trato gastrintestinal, sob a forma não-ionizada, sendo, portanto,
modulada pelo coeficiente de partição (P), que determina as concentrações plas-
máticas efetivas, alcançadas duas horas após a administração oral deste fármaco.
Uma vez absorvido, o piroxicam (1.37) se ioniza fortemente no pH sangüíneo e
cerca de 99,3% é distribuído complexado com proteínas plasmáticas, como a
albumina. No tecido inflamado, existe uma intensa atividade metabólica, contro-
lada pela ação de proteases que acarretam em redução significativa do pH (~5),
condições nas quais mais de 95% do fármaco se encontra na forma não-ionizada,
podendo ser adequadamente absorvido (Figura 1.34).
    A adequação das propriedades físico-químicas de (1.37), aliada à sua afinidade
pelo biorreceptor, permite que baixas doses do fármaco – 20 mg/dia – sejam
necessárias para alcançar o efeito terapêutico desejado. Entretanto, em alguns
casos, as diferenças de pKa não são capazes de explicar diferenças no perfil farma-
coterapêutico de determinados fármacos, como é o caso dos antagonistas seletivos
de receptores β1, metoprolol (1.39) e atenolol (1.40), os quais, apesar de apresenta-
rem valores de pKa similares, têm coeficientes de partição bastante distintos em
função da variação dos substituintes da cadeia lateral (-CH2OCH3 vs. CONH2)
(Figura 1.35). Apesar de esses anti-hipertensivos da classe das ariloxipropano-
laminas apresentarem propriedades farmacodinâmicas similares, suas proprieda-
des na fase farmacocinética são distintas, implicando a possibilidade de emprego
clínico diferenciado. O metoprolol (1.39) é um β-bloqueador lipossolúvel (Log P
= 1,88), metabolizado por efeito de primeira passagem,* cujo uso clínico é contra-
indicado para pacientes com distúrbios no sistema nervoso central, devido à
tendência de atravessar a barreira hematoencefálica.

                                                                                        * Vide, a seguir, neste capítulo, os funda-
                                                                                        mentos do metabolismo de fármacos.
46   capítulo 1   ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS




 FIGURA 1.34

 Grau de ionização do
 piroxicam (1.37) em              O atenolol (1.40) é um β-bloqueador hidrossolúvel (Log P = 0,16), cujo uso
 compartimentos biológicos    clínico é contra-indicado para pacientes com distúrbios renais, devido ao estresse
 específicos.
                              provocado pela excreção renal do fármaco na forma não-modificada.



                              FUNDAMENTOS DO METABOLISMO DOS FÁRMACOS
                              O metabolismo dos fármacos compreende os processos enzimaticamente catali-
                              sados capazes de produzir modificações estruturais no fármaco. Neste contexto,
                              a classificação de Williams, de 1959, para as fases do metabolismo é ilustrativa.42
                              Esse autor denominou biotransformação a primeira fase do metabolismo (fase
                              1) de um fármaco na biofase, englobando reações de oxidação, redução e hidrólise.
                              A fase 2 do metabolismo compreende a etapa de conjugação, envolvendo reações
                              de glicuronidação, sulfatação, conjugação com glicina, acilação, metilação e a
                              formação de aductos com glutatião.
                                  Raramente uma substância orgânica, fármaco ou não, sobrevive à ação catalí-
                              tica dos diversos sistemas enzimáticos presentes nas células dos organismos
                              vivos. Considerando-se que o arsenal terapêutico atual compreende uma ex-
                              pressiva maioria de substâncias orgânicas, pode-se antecipar que dificilmente
QUÍMICA MEDICINAL      47

                                                                                      FIGURA 1.35

                                                                                      Perfil comparativo das
                                                                                      propriedades físico-
                                                                                      químicas do metoprolol
                                                                                      (1.39) e do atenolol
                                                                                      (1.40).




um medicamento, sintético ou não, de natureza orgânica, resistirá à ação das
enzimas da biofase.43
    Um fármaco tem sua utilidade terapêutica medida em função da ação benéfica
que exerce sobre um dado sistema biológico. Esta, por sua vez, depende da quanti-
dade do fármaco administrado capaz de atingir, na concentração necessária, o
sítio de ação desejado. Portanto, o estudo do metabolismo dos fármacos se torna
essencial para o completo conhecimento de fatores farmacocinéticos relevantes
ao seu uso adequado e seguro. Em termos experimentais, o estudo do metabolis-
mo de fármacos exige o emprego de técnicas analíticas sensíveis e eficazes, aliadas
a procedimentos de extração eficientes e quantitativos, de ínfimas quantidades
de substâncias de fluidos biológicos, de maneira a permitir a elucidação inequívo-
ca da estrutura química dos metabólitos de um fármaco, inclusive quanto a
definição de centros estereogênicos, quando presentes. Estes metabólitos, para
serem adequadamente isolados e terem suas estruturas elucidadas, precisam
ser teoricamente previstos, em termos estruturais, antecipando informações sobre
as propriedades físico-químicas, de maneira a permitir a racionalização da escolha
do método de isolamento quali e quantitativamente adequado.44 Por outro lado,
o conhecimento prévio das prováveis mudanças estruturais que um determinado
fármaco pode sofrer na biofase permite que se antecipem dados sobre sua provável
estabilidade ante o método de isolamento escolhido, garantindo sua eficiência
em termos quantitativos. Nessa ótica, o conhecimento das bases teóricas das
etapas de biotransfomação e conjugação, fase 1 e 2, que compreendem o meta-
bolismo dos fármacos, em termos moleculares, torna-se essencial.
    As transformações enzimaticamente promovidas na estrutura química dos
fármacos podem acarretar profundas alterações na resposta biológica, uma vez
que modificações moleculares, ainda que singelas, podem alterar significativa-
mente o farmacóforo, dificultando sua interação com o biorreceptor original ou,
ainda, favorecendo novas interações com outras biomacromoléculas, correspon-
dendo a novos e distintos efeitos biológicos, algumas vezes responsáveis pelos
48   capítulo 1   ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS


                              efeitos deletérios de um fármaco. Nesse sentido, a Organização Mundial de Saúde
                              (OMS) recomenda que os estudos do metabolismo dos fármacos sejam parte
                              obrigatoriamente integrante dos programas de avaliação pré-clínica e clínica de
                              quaisquer novos medicamentos.
                                  Em termos estruturais, os fármacos, em sua grande maioria, podem ser consi-
                              derados como micromoléculas orgânicas, lipossolúveis, polifuncionalizadas. Essas
                              características contribuem para que apresentem diferentes sítios reativos ante
                              as inúmeras enzimas da biofase. Como conseqüência dessa reatividade, um deter-
                              minado fármaco produz, não raramente, distintos metabólitos, visto a diferença
                              na cinética relativa das diferentes enzimas envolvidas em seu metabolismo. O
                              estudo molecular do metabolismo dos fármacos permite que se antecipe, à luz
                              das diferenças de reatividade química dos distintos sítios metabolicamente lábeis,
                              um nível de hierarquização na formação destes diferentes metabólitos, prevendo-
                              se, antecipadamente, aqueles majoritários. Por outro lado, o conhecimento das
                              bases moleculares do metabolismo dos fármacos permite que se introduzam, de
                              modo racional, determinadas modificações estruturais de maneira a aprimorar
                              sua biodisponibilidade ou eficácia (pró-fármacos).45


                              FASES DO METABOLISMO:
                              BIOTRANSFORMAÇÃO, FASE I
                              O destino de um fármaco no metabolismo está ilustrado no Quadro 1.1. No
                              primeiro caso, o fármaco originalmente inativo (pró-fármaco) sofreu uma ati-
                              vação metabólica, fornecendo, após sua metabolização, a substância terapeuti-
                              camente útil. No segundo caso, o fármaco originalmente administrado produz
                              um metabólito de estrutura similar, biologicamente ativo, porém com proprieda-
                              des farmacológicas distintas do fármaco original, em geral responsáveis pelos
                              efeitos tóxicos observados com o seu emprego. Essa situação depende da estrutura
                              original do fármaco administrado, que em função disso pode sofrer biotransfor-
                              mações que produzam espécies lábeis capazes de reagir covalentemente com
                              biomacromoléculas da biofase (exemplos dessa situação serão discutidos adian-
                              te). No terceiro caso ilustrado no Quadro 1.1, o fármaco original conduz a um
                              metabólito inativo (i.e., bioinativação metabólica) com propriedades adequadas
                              para a sua eliminação pela via renal. Essa situação representa uma situação
                              ideal, infelizmente rara.
                                  O estudo do metabolismo dos fármacos permite:

                                    estabelecer a cinética de formação e as estruturas químicas de seus meta-
                                    bólitos;



                                QUADRO 1.1
                                METABOLISMO DE FÁRMACOS

                                Fármaco inativo                Metabólito ativo
                                                               (Bioativação)

                                Fármaco ativo                  Metabólito ativo (mesma atividade ou não)
                                                               (Toxicidade)

                                Fármaco ativo                  Metabólito inativo
                                                               (Bioinativação)
QUÍMICA MEDICINAL      49

       determinar a velocidade e o sítio de absorção majoritário;
       determinar os níveis de concentração e depósito, plasmático e tissular,
       tanto do fármaco como de seus metabólitos, permitindo estabelecer sua
       vida-média na biofase;
       determinar a principal via de eliminação;
       determinar os sítios moleculares metabolicamente vulneráveis e correla-
       cioná-los com aqueles farmacoforicamente mais relevantes à atividade;
       compreender as interações metabólicas de um determinado fármaco com
       outro, administrado simultaneamente ou em associações;
       determinar a toxicidade dos metabólitos e correlacioná-los com a estrutura
       química;
       fornecer novos compostos protótipos para atividades farmacológicas distin-
       tas daquela do fármaco original.

    Os fármacos, assim como outros agentes químicos (solventes industriais, pes-
ticidas, aditivos de alimentos industrializados, etc.) estranhos ao organismo (i.e.,
xenobióticos) são metabolizados por distintos sistemas enzimáticos. Dentre esses,
o principal sistema enzimático envolvido no metabolismo dos fármacos com-
preende as enzimas microssomais hepáticas, em que se destacam uma hemepro-
teína oxidativa – denominada citocromo P450 (CYP450) (Figura 1.36) – e uma
flavoproteína – NADPH-citocromo-C redutase – que, associadas a lipídeos, for-
mam o sistema MFO (mixed function oxidases, oxidases de função mista). Embora
seja o fígado o principal sítio de metabolização dos fármacos, outros órgãos e
tecidos podem metabolizar fármacos (p. ex., trato gastrintestinal, pulmões, rins).



                                                                                       FIGURA 1.36

                                                                                       Estrutura do citocromo
                                                                                       P450 (CYP450).




   A primeira etapa do metabolismo dos medicamentos – fase 1 – caracteriza-se
por envolver reações redox ou hidrolitícas, responsáveis pela conversão do fár-
maco lipofílico em um primeiro metabólito mais polar. Na maioria das vezes,
50   capítulo 1   ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS


                              essa etapa envolve o CYP450 hepático e compreende, basicamente, a inserção de
                              um átomo de oxigênio, originário de uma molécula de O2, em sua estrutura
                              (Figura 1.37).



 FIGURA 1.37

 Mecanismo de
 monoxigenação catalisada
 por CYP450.




                                 O sistema CYP450 é composto por diversas isoenzimas, codificadas pela super-
                              família de genes CYP. Esta superfamília é dividida em famílias e subfamílias,46
                                                                 sendo que as principais subfamílias envolvi-
                                                                 das com o metabolismo de fármacos são as
                                                                 CYP 1A, 2A-F e 3A (Figura 1.38).
                                                                     A biotransformação oxidativa da cafeína
                                                                 (1.41), por exemplo, é mediada por diferen-
                                                                 tes isoformas de CYP450 (CYP 1A2 e 3A). A
                                                                 isoforma 1A2 é responsável pela formação
                                                                 de paraxantina (1.42), enquanto a isoforma
                                                                 3A está envolvida com a oxidação da posição
                                                                 8, levando à formação do ácido 1,3,7-trime-
                                                                 tilúrico (1.43) (Figura 1.39).




                                                                FIGURA 1.38

                                                                Principais isoformas de
                                                                CYP450 envolvidas no
                                                                metabolismo de fármacos.
QUÍMICA MEDICINAL        51

                                                                                  FIGURA 1.39

                                                                                  Metabolismo oxidativo da
                                                                                  cafeína (1.41).




   Observa-se ainda a existência de polimorfismo genético neste sistema enzi-
mático, justificando a existência de indivíduos com baixa taxa de metabolização
de certos fármacos, enquanto outros apresentam um comportamento normal.46
Essa diferença pode acarretar uma variação individual nas reações tóxicas a de-
terminado fármaco.
   Várias reações de bioconversão de diferentes grupos funcionais podem ocorrer
na fase 1 do metabolismo. Entre os processos microssomais, encontram-se
aqueles descritos no Quadro 1.2, englobando reações oxidativas; já os processos
não-microssomais estão ilustrados no Quadro 1.3.



 QUADRO 1.2
 PROCESSOS MICROSSOMAIS DE BIOTRANSFORMAÇÃO

 Oxidações catalisadas por citocromo P450

 Carbono

                        Hidroxilação alifática




                        Hidroxilação benzílica




                                                                                                   (Continua)
52   capítulo 1   ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS



 QUADRO 1.2 (continuação)
 PROCESSOS MICROSSOMAIS DE BIOTRANSFORMAÇÃO

                  Hidroxilação alílica




                  Hidroxilação α a heteroátomo




                  Hidroxilação aromática         ArH        ArOH

                  Epoxidação




 Nitrogênio

                  Aminas primárias               RNH2       RNHOH

                  Aminas secundárias             R1R2NH     R1R2NOH

                  Aminas terciárias              R1R2R3N    R1R2R3N -O

                  Amidas                         RCONHR’    RCON(R)OH

 Enxofre

                  Sulfetos                       RSR’       RSOR’

                  Sulfóxidos                     RSOR’      RSO2R’

 Reduções

                  Azo                            R-N=N-R’   R-NH2 + R’NH2

                  Nitro                          R-NO2      R-NH2

                  Cetonas                        RCOR’      RCH(OH)R’
QUÍMICA MEDICINAL         53

  QUADRO 1.3
  PRINCIPAIS BIOTRANSFORMAÇÕES NÃO-MICROSSOMAIS

  Fármaco                         Metabólito

  RCH2OH                          RCHO

  RCHO                            RCO2H

  R(CH2)2CO2H                     RCO2H

  RCH2NH2                         RCO2H

  RCOR’                           RCH(OH)R’

  RCH=CHR’                        RCH2CH2R’




   Entre os processos oxidativos não-microssomais de fase 1 encontram-se as
oxidações de álcoois por ação de desidrogenases hepáticas (LAD), também pre-
sentes nos pulmões e rins. Por ação dessas enzimas os álcoois primários produzem
aldeídos. Estudos de cinética relativa indicaram que os álcoois primários são
muito mais rapidamente oxidados do que os álcoois secundários, que produzem
compostos cetônicos como produtos (Figura 1.40).
   Compostos aldeídicos, por sua vez, são oxidados pelo sistema enzimático não-
microssomal, denominado aldeído-desidrogenase (LDD), produzindo o ácido car-
boxílico correspondente.                                                                 FIGURA 1.40
   Em nível plasmático, ocorrem reações de metabolização de ácidos alquil-car-
                                                                                         Reações não-
boxílicos por ação de β-oxidases. Essas enzimas são capazes de promover a cisão
                                                                                         microssomais envolvidas
oxidativa das ligações C-C sp3 das cadeias alifáticas de ácidos graxos (p. ex., 1.46),   na bioinativação da
produzindo bis-homólogos inferiores (p. ex., 1.47) (Figura 1.40).                        prostaglandina E2 (1.44).
54    capítulo 1   ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS


                                  Um complexo enzimático não-microssomal, cobre-dependente, capaz de pro-
                               mover a cisão oxidativa da ligação C-N de aminas primárias endógenas ou não,
                               é a monoaminoxidase (MAO), atualmente identificadas sob duas isoformas, a
                               saber: MAO-A e MAO-B. Neste processo, ocorre a oxidação do carbono-α ao
 FIGURA 1.41                   heteroátomo, que resulta na formação de um aza-cetal, lábil, que produz o
 Processo de X-
                               produto de N-dealquilação, ou X-dealquilação, onde X é um heteroátomo (N, O,
 dealquilação de fármacos.     S) (Figura 1.41).




                                  Compostos endogénos ou exógenos, isto é, xenobióticos, sofrem o processo
                               oxidativo mediado pelas enzimas microssomais hepáticas, conforme ilustra o
                               produto de N-oxidação da nicotina (1.28, Figura 1.42).



 FIGURA 1.42

 N-oxidação da nicotina
 (1.28).




                                  Reações não-oxidativas que ocorrem em nível microssomal compreendem a
                               redução de grupamentos nitro (NO2) e diazo (N=N). O sistema microssomal
                               responsável por estas reações não-oxidativas é dependente de NADPH-citocromo
                               C redutase. Fármacos que possuam grupamentos nitroaromáticos produzem,
                               por ação desse sistema enzimático, derivados anilínicos, como ilustra a biotrans-
                               formação do cloranfenicol (1.49, Figura 1.43).
QUÍMICA MEDICINAL        55

                                                                                     FIGURA 1.43

                                                                                     Metabolismo do
                                                                                     cloranfenicol (1.49).




    Alguns compostos nitrados podem produzir como principal metabólito a cor-        FIGURA 1.44
respondente hidroxilamina, substrato para enzimas conjugativas da fase 2 (vide
infra). Embora este produto de metabolização de substâncias nitroaromáticas          Formação da hidroxilamina
seja menos freqüente, interfere na rota metabólica de alguns agentes antibacte-      (1.52) durante o
                                                                                     metabolismo da
rianos, como o derivado nitrofurânico funcionalizado, nitrofurazona (1.51), con-     nitrofurazona (1.51).
forme ilustrado na Figura 1.44.




    A redução de diazocompostos por ação de enzimas microssomais foi descober-
ta com o estudo das propriedades antibacterianas do prontosil (1.53). Esse com-
posto representa o primeiro pró-fármaco conhecido, portanto inativo in vitro. Essa
substância sofre um processo de bioativação metabólica por ação de azo-redutases
produzindo, in vivo, a sulfanilamida (1.55), responsável pela ação antibacteriana
                                                                                     FIGURA 1.45
manifestada por antagonismo competitivo com o ácido para-aminobenzóico
(PABA) na biossíntese do ácido fólico47 (Figura 1.45).                               Bioativação do prontosil
                                                                                     (1.53) produzindo a
                                                                                     sulfanilamida (1.55).
56    capítulo 1   ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS


                                   As reduções não-microssomais representam rotas secundárias de metaboli-
                                zação de fármacos, onde intervêm processos de reduções de compostos, aldeídicos,
                                cetônicos e insaturados (Quadro 1.3).
                                   Além dos processos redox, o metabolismo de fármacos, em sua fase 1, com-
                                preende ainda reações hidrolíticas que podem ocorrer tanto em nível hepático
                                quanto plasmático. Essas reações são catalisadas por hidrolases e transformam
                                ésteres, amidas e outras funções derivadas de ácidos carboxílicos (p. ex., ácidos
                                hidroxâmicos, hidrazidas, carbamatos e nitrilas) em metabólitos mais polares.
                                    As hidrolases de ésteres, denominadas esterases, estão presentes no trato
 FIGURA 1.46                    gastrintestinal, no plasma, na flora microbiana intestinal e, algumas específicas,
                                em determinados tecidos (p. ex., acetilcolinesterase no sistema nervoso central).
 Conversão da                   As esterases plásmaticas têm sido amplamente exploradas na liberação de for-
 sultamacilina (1.56) em
                                mas latentes de fármacos derivados de ácidos carboxílicos (p. ex., penicilinas
 ampicilina (1.57) e ácido
 penicilânico-sulfona (1.58).   (1.56), Figura 1.46).48




                                   A exemplo das esterases, as amidases, responsáveis pela hidrólise enzimática
                                de amidas, encontram-se largamente distribuídas no plasma e trato gastrintes-
                                tinal, onde desempenham importantes funções na digestão. Ambos os tipos de
                                enzimas hidrolíticas são sensíveis a efeitos estéricos e eletrônicos, permitindo a
                                previsão de hidrólises cineticamente favorecidas em função, por exemplo, de
                                menores restrições estéricas. O estudo da hidrólise de ésteres da cocaína (1.59)
                                indicou que se pode prever a seletividade da reação enzimática em função do
                                menor impedimento estérico existente entre dois ésteres de um mesmo substrato.
                                Esses estudos contribuíram significativamente para o desenvolvimento de novos
                                agentes anestésicos (Figura 1.47).
QUÍMICA MEDICINAL         57

                                                                                    FIGURA 1.47

                                                                                    Hidrólise diferenciada da
                                                                                    cocaína (1.59).




   A meperidina (1.61), um poderoso agente analgésico central sem propriedades
hipnonarcóticas, mostrou-se estável ante as esterases plasmáticas em razão da
natureza neopentílica do éster em sua estrutura. Em contraste, este fármaco
pode ser facilmente hidrolisado por ação de esterases hepáticas inespecíficas,
indicando que tais enzimas são estericamente menos exigentes do que as isoen-
zimas plásmaticas (Figura 1.48).
   A hidrólise de amidas, carbamatos, hidrazidas, imidas, ureídas são passos de     FIGURA 1.48

biotransformação freqüentes no metabolismo de fármacos e são geralmente mais        Estrutura da meperidina
lentas do que a dos correspondentes ésteres (cf. Figura 1.47).                      (1.61).




    Por outro lado, derivados de ácidos hidroxâmicos (RCONHOH) produzem o
ácido carboxílico correspondente, através ação de enzimas hidrolíticas do plasma,
determinando para este grupo funcional uma enorme labilidade metabólica, a
qual depende do eventual impedimento estérico, em função da natureza do subs-
tituinte do átomo de nitrogênio. Diversos derivados de ácidos hidroxâmicos apre-
sentam propriedades inibidoras da enzima 5-lipoxigenase (5-LOX), responsável
pela bioformação de leucotrienos,49 uma classe de icosanóides com importantes
propriedades broncoconstritoras e, conseqüentemente, com potencial terapêutico
para emprego no tratamento da asma.50 Entretanto, em função da labilidade
metabólica, fruto da presença do grupamento ácido hidroxâmico, essencial no
mecanismo de ação desta classe de inibidores de 5-LOX, diminuiu o interesse
dos pesquisadores neste grupo de compostos, embora em 1988 tenha ocorrido a
descoberta do zileuton (1.62, A-64077) pela Abbott,51 apresentando o grupo
N-hidroxiuréia bioisóstero do ácido hidroxâmico (Figura 1.49).
58    capítulo 1   ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS




 FIGURA 1.49

 Zileuton (1.62), fármaco
 antiasmático contendo a
                               HIDROXILAÇÃO DE SISTEMAS AROMÁTICOS:
 função N-hidroxiuréia.        ÓXIDOS DE ARENOS
                               O estudo do metabolismo de fármacos que possuem anéis aromáticos, especial-
                               mente grupos fenilas, permitiu identificar a participação de uma espécie interme-
                               diária lábil, denominada óxido de areno, conforme ilustra o metabolismo do
                               fenobarbital (1.63). Este barbitúrico, amplamente empregado na terapêutica,
                               produz, em uma primeira etapa de metabolização hepática, o derivado para-
                               hidroxilado (1.65). Esse metabólito regiosseletivamente formado se bio-origina
                               pela oxidação enzimática do anel aromático através do sistema MFO, conduzindo
                               ao óxido de areno ou epóxido correspondente (1.64). Tal intermediário sofre um
                               rearranjo regioespecífico de hidreto (NIH-shift), conduzindo ao composto para-
                               hidroxilado (1.65). O rearranjo NIH é favorecido pela presença de substituintes
                               que não estabilizem o carbocátion intermediário formado, contribuindo para
                               sua maior reatividade52 (Figura 1.50).
                                  Uma reação competitiva que pode ocorrer com o óxido de areno intermediário
                               compreende o ataque de uma hidrolase sobre o anel oxirânico tensionado, produ-
                               zindo o diol correspondente, como ilustrado para o benzo[a]pireno (1.66), que
                               produz o derivado (1.67) (Figura 1.51).
QUÍMICA MEDICINAL        59




                             FIGURA 1.50

                             Mecanismos e exemplos
                             de formação de óxidos de
FIGURA 1.51                  arenos.

Formação de dióis a partir
de óxidos de arenos.
60    capítulo 1   ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS


                                   O mecanismo envolvido na formação do óxido de areno proveniente da oxida-
                               ção do benzo[a]pireno (1.66) ilustra que a etapa de oxidação inicial é regiossele-
                               tiva. Outros processos metabólicos apresentam a mesma característica, conforme
 FIGURA 1.52                   é mostrado no metabolismo da papaverina (1.68), derivado isoquinolínico te-
 Metabolismo da
                               trametoxilado. O produto de O-demetilação (1.69) formado envolve exclusiva-
 papaverina (1.68).            mente a metoxila indicada em vermelho em sua estrutura (Figura 1.52).




                                  Outro exemplo ilustrativo da regiosseletividade do processo oxidativo de anéis
                               aromáticos é o produto de oxidação do sistema diarilamina presente no diclofe-
                               naco (1.70) pela isoforma de CYP2C9.53 O principal metabólito origina-se da
                               oxidação do anel aromático mais reativo, contendo a subunidade ácido acético
                               (posição indicada pela seta azul na Figura 1.53).



 FIGURA 1.53

 Regiosseletividade do
 metabolismo de fármacos
 aromáticos, ilustrada pelo
 diclofenaco (1.70). A seta
 azul indica a posição
 ativada. À direita, visão
 estérica de sua estrutura,
 mostrando, em sombras
 vermelhas, os sítios
 estericamente impedidos.
QUÍMICA MEDICINAL      61

    A labilidade da posição benzílica, fruto de sua maior reatividade, permite
que se antecipe o principal sítio de oxidação do celecoxibe (1.71), representante
da segunda geração de fármacos antiinflamatórios não-esteróides,54 lançado no
Brasil em 1999. A posição benzílica correspondente ao grupo metila (em vermelho
na Figura 1.54) permite a formação do álcool e, posteriormente, do ácido carbo-
xílico correspondente.



                                                                                      FIGURA 1.54

                                                                                      Estrutura do celecoxibe
                                                                                      (1.71), indicando em
                                                                                      vermelho o principal sítio
                                                                                      de oxidação metabólica. À
                                                                                      direita, visão estérica da
                                                                                      estrutura do celecoxibe
                                                                                      (1.71), indicando a metila
                                                                                      (com sombra branca) e o
                                                                                      grupamento trifluormetila
                                                                                      em C-3 do sistema
                                                                                      pirazólico (sombra verde).




ETAPA DE CONJUGAÇÃO:
FASE 2 DO METABOLISMO
De maneira geral, os metabólitos de fase 1 apresentam um coeficiente de partição
(P) inferior ao do fármaco original, dependendo do nível de variação estrutural
do fármaco, inclusive quanto ao peso molecular. Entretanto, a maior polaridade
desses metabólitos de fase 1 não é suficiente para assegurar sua eliminação pela
principal via de excreção dos fármacos, a renal. Portanto, esses metabólitos sofrem
reações enzimáticas subseqüentes, chamadas de conjugação, formando conjuga-
dos mais hidrossolúveis, que são excretados na urina, preferencialmente, ou na
bile.
    O Quadro 1.4 ilustra as principais reações de conjugação envolvidas no meta-
bolismo dos fármacos. Cabe destacar que as reações de metilação e acetilação
não aumentam a polaridade do metabólito, contribuindo, em geral, para sua
bioinativação. Quando essa via de conjugação predomina na fase 2 do metabolis-
mo de um fármaco, ocorre, como conseqüência, aumento de sua vida-média.
Outra reação de fase 2 relevante compreende a conjugação com glutatião, um
tripeptídeo sulfidrílico (GSH), que promove reações de bioinativação de eletrófilos
biológicos (vide infra).
    Cabe mencionar que a presença de funções lábeis às enzimas que participam
da fase 2 do metabolismo em um determinado fármaco, permite que a etapa de
conjugação ocorra independentemente da fase 1, o que, geralmente, reduz a
meia-vida deste fármaco. Quando este processo ocorre, diz-se que o fármaco em
questão sofre efeito de primeira passagem.
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  • 1. C A P Í T U L O ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS 1 FASE FARMACODINÂMICA: INTERAÇÕES ENTRE MICRO E BIOMACROMOLÉCULAS A interação de um fármaco com o seu sítio de ação no sistema biológico ocorre durante a chamada fase farmacodinâmica e é determinada por forças intermo- leculares, isto é, interações hidrofóbicas, eletrostáticas e estéricas.1 Considerando os possíveis modos de interação entre o fármaco e a biofase, necessários para promover uma determinada resposta biológica, podemos classificá-los, de manei- ra genérica, em dois grandes grupos: fármacos estruturalmente inespecíficos e específicos. Os fármacos ditos estruturalmente inespecíficos são aqueles que dependem única e exclusivamente de suas propriedades físico-químicas – por exemplo, coeficiente de partição (P) e pKa – para promoverem o efeito biológico evidenciado. Os FIGURA 1.1 anestésicos gerais são um exemplo clássico de substâncias que pertencem a esta classe de fármacos, uma vez que seu mecanismo de ação envolve a depressão Correlação entre as inespecífica de biomembranas, elevando o limiar de excitabilidade celular ou a propriedades físico- químicas e a atividade interação inespecífica com sítios hidrofóbicos de proteínas do sistema nervoso biológica dos fármacos central, provocando perda estruturalmente de consciência.2-4 Neste ca- inespecíficos (1.1) e (1.2). so, em que a complexação do fármaco com macro- moléculas da biofase ocor- re predominantemente através de interações de van der Walls (forças de dis- persão de London), a lipos- solubilidade do fármaco es- tá diretamente relaciona- da à sua potência, como pode ser exemplificado comparativamente na Fi- gura 1.1, para os anestési- cos halotano (1.1) e isoflu- rano (1.2).2-4
  • 2. 20 capítulo 1 ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS Em alguns casos, a alteração das propriedades físico-químicas, em função de modificações estruturais de um fármaco, pode alterar seu mecanismo de interação com a biofase. Um exemplo clássico diz respeito à classe dos anticonvulsivantes, como o pentobarbital (1.3), cuja simples alteração de um átomo de oxigênio por um átomo de enxofre confere um incremento de lipossolubilidade que altera o perfil de atividade estruturalmente específico de (1.3) sobre o complexo receptor GABA ionóforo para uma ação anestésica inespecífica evidenciada para o tiopental (1.4) (Figura 1.2).4,5 FIGURA 1.2 Influência da modificação molecular no mecanismo de ação dos barbituratos (1.3) e (1.4). FÁRMACOS ESTRUTURALMENTE ESPECÍFICOS Os fármacos estruturalmente específicos exercem seu efeito biológico pela interação seletiva com uma determinada biomacromolécula-alvo que na maioria dos casos são enzimas, receptores metabotrópicos (acoplados à proteína G), receptores ionotrópicos (acoplados a canais iônicos) e, ainda, ácidos nucléicos. O reconheci- mento molecular do fármaco (micromolécula) pela biomacromolécula é depen- dente do arranjo espacial dos grupamentos funcionais e das propriedades estrutu- rais da micromolécula, que devem ser complementares ao sítio de ligação locali- zado na macromolécula, isto é, o sítio receptor. A complementaridade molecular necessária para a interação da micromolécula com a biomacromolécula receptora pode ser simplificada ilustrativamente pelo modelo chave-fechadura (Figura 1.3).6 Neste modelo, proposto pelo químico alemão Emil Fischer para explicar a espe- cificidade da interação enzima-substrato,6 podemos considerar a biomacromo- lécula como a fechadura, o sítio receptor como o “buraco da fechadura”, isto é, região da biomacromolécula que interagirá diretamente com a micromolécula (fármaco), e as chaves como ligantes do sítio receptor. Na aplicação deste modelo, a ação de “abrir a porta” ou “não abrir a porta” representam as respostas biológicas decorrentes da interação chave-fechadura.6 A análise da Figura 1.3 permite-nos evidenciar três principais tipos de chaves: a) chave original, que se encaixa ade- quadamente com a fechadura, permitindo a abertura da porta, corresponderia ao agonista natural (endógeno) ou substrato natural, que interage com o sítio receptor da biomacromolécula localizado respectivamente em uma proteína-re- ceptora ou enzima, desencadeando uma resposta biológica; b) chave modificada, a qual tem propriedades estruturais que a tornam semelhantes à chave original
  • 3. QUÍMICA MEDICINAL 21 e permitem seu acesso à fechadura e conseqüente abertura da porta, correspon- deria ao agonista modificado da biomacromolécula, sintético ou de origem natu- ral, capaz de ser reconhecido complementarmente pelo sítio receptor e desenca- dear uma resposta biológica qualitativamente similar àquela do agonista natural; c) chave falsa, a qual apresenta propriedades estruturais mínimas que permitem seu acesso a fechadura, sem, entretanto, ser capaz de permitir a abertura da porta, corresponderia ao antagonista, sintético ou de origem natural, capaz de se ligar ao sítio receptor sem promover a resposta biológica e bloqueando a ação do agonista endógeno e/ou modificado. FIGURA 1.3 Modelo chave-fechadura e o reconhecimento ligante- receptor. Nos três casos em questão, podemos distinguir duas etapas relevantes desde a interação da micromolécula ligante com a biomacromolécula, que contém a subunidade receptora, até o desenvolvimento da resposta biológica resultante: a) interação ligante-receptor propriamente dita – expressa quantitativamente pelo termo afinidade, traduz a capacidade da micromolécula em se complexar com o sítio complementar de interação; b) produção da resposta biológica – expressa quantitativamente pelo termo atividade intrínseca, traduz a capacidade do complexo ligante-receptor de desencadear uma determinada resposta biológi- ca. A Tabela 1.1 ilustra estas considerações com o exemplo das substâncias (1.6- 1.8), que atuam como ligantes de receptores benzodiazepínicos, e do fármaco diazepam (1.5), com ação agonista benzodiazepínico responsável pelo efeito seda- tivo e anticonvulsivante desta classe terapêutica.7 Cabe destacar que as substân- cias (1.6-1.8) são ligantes com afinidades distintas, uma vez que são reconhecidas diferenciadamente pelos sítios complementares de interação localizados no bior- receptor-alvo. Neste caso, o composto pirrolobenzodiazepínico (1.8) é aquele que apresenta maior afinidade pelo receptor benzodiazepínico, seguido do deriva- do imidazolobenzodiazepínico (1.7) e, por fim, a amida correspondente (1.6). Entretanto, uma maior afinidade não traduz a capacidade do ligante de produzir uma determinada resposta biológica, como podemos evidenciar pela análise com- parativa dos derivados (1.7) e (1.6), que apresentam atividades intrínsecas distin- tas, isto é, antagonista e agonista, respectivamente. Considerando que a ação terapêutica desta classe é devida à atividade agonista sobre os receptores benzo- diazepínicos, podemos concluir que o derivado (1.6), apesar de apresentar uma menor afinidade por este receptor, é um melhor candidato a fármaco ansiolítico e anticonvulsivante do que o derivado (1.7).
  • 4. 22 capítulo 1 ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS TABELA 1.1 AFINIDADE E ATIVIDADE INTRÍNSECA DE LIGANTES DE RECEPTORES BENZODIAZEPÍNICOS Substância Afinidade do ligante Atividade intrínseca Ensaio de binding, IC50 (nM) do ligante 1.6 45 Agonista 1.7 7,2 Antagonista 1.8 0,1 Agonista IC50 = concentração da substância necessária para produzir interação com 50% dos receptores. INTERAÇÕES ENVOLVIDAS NO RECONHECIMENTO MOLECULAR: LIGANTE/SÍTIO RECEPTOR Do ponto de vista qualitativo, o grau de afinidade e a especificidade da ligação micromolécula-sítio receptor são determinados por interações intermoleculares, as quais compreendem forças eletrostáticas, de dispersão, hidrofóbicas, ligações de hidrogênio e ligações covalentes. FORÇAS ELETROSTÁTICAS As forças de atração eletrostáticas são aquelas resultantes da interação entre dipolos e/ou íons de cargas opostas, cuja magnitude depende diretamente da constante dielétrica do meio e da distância entre as cargas. A água apresenta elevada constante dielétrica (ε = 80), devido ao seu momen- to de dipolo permanente, podendo diminuir as forças de atração e repulsão entre dois grupos carregados, solvatados. Dessa forma, na maior parte dos casos a interação iônica é precedida de dessolvatação dos íons, processo que envolve perdas entálpicas e é favorecido pelo ganho entrópico resultante da formação de molécu- las de água livres (Figura 1.4). A força da ligação iônica, isto é, ~5 Kcal/mol, é dependente da diferença de energia da interação íon-íon versus a energia dos íons solvatados (Figura 1.4). No pH fisiológico, alguns aminoácidos presentes nos biorreceptores se encon- tram ionizados (p. ex., aminoácidos básicos: arginina, lisina, histidina, e ami- noácidos com caráter ácido: ácido glutâmico, ácido aspártico), podendo interagir com fármacos que apresentem grupos carregados negativa ou positivamente. O
  • 5. QUÍMICA MEDICINAL 23 FIGURA 1.4 Interações iônicas e o flurbiprofeno (1.9), antiinflamatório não-esteróide que atua inibindo a enzima reconhecimento fármaco- prostaglandina endoperóxido sintase (PGHS),8 é reconhecido molecularmente receptor. através de interações com resíduos de aminoácidos do sítio receptor, dentre as quais se destaca a interação do grupamento carboxilato da forma ionizada de (1.9) especificamente com o resíduo de arginina na posição 120 da seqüência primária da PGHS (Figura 1.5).8 Cabe destacar que uma ligação iônica reforçada por uma ligação de hidrogênio, como neste caso, resulta em expressivo incremen- to da força de interação, ou seja, ~10 Kcal/mol. FIGURA 1.5 Adicionalmente, as forças de atração eletrostáticas podem incluir dois tipos Reconhecimento molecular do flurbiprofeno (1.9) pelo de interações, que variam energeticamente entre 1-7 Kcal/mol: resíduo Arg120 do sítio ativo da PGHS, via íon-dipolo, força resultante da interação de um íon e uma espécie neutra interação iônica. polarizável, com carga oposta àquela do íon;
  • 6. 24 capítulo 1 ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS dipolo-dipolo, interação entre dois grupamentos com polarizações de car- gas opostas (Figura 1.6). Essa polarização, decorrente da diferença de eletronegatividade entre um heteroátomo (p. ex., oxigênio) e um átomo de carbono, produz espécies que apresentam um aumento da densidade eletrônica do heteroátomo e uma redução da densidade eletrônica sobre o átomo de carbono, como ilustrado na Figura 1.6, para o grupamento carbonila. A interação do substrato natural da enzima ferro-heme dependente trombo- xana sintase (TXS), isto é, endoperóxido cíclico de prostaglandina H2 (PGH2, 1.10), envolve a formação de uma interação íon-dipolo regiosseletiva entre o átomo de ferro do grupamento heme e o átomo de oxigênio em C-11 da função ambidente endoperóxido, polarizada adequadamente (Figura 1.7). Esse reconhe- cimento molecular é responsável pelo rearranjo que permite a transformação da PGH2 (1.10) no autacóide trombogênico tromboxana A2 (TXA2), e pode ser explo- rado no planejamento de fármacos antitrombóticos que atuem como inibidores de TXS (TXSi).9 FIGURA 1.6 Interações íon-dipolo e o reconhecimento fármaco- receptor. FIGURA 1.7 Reconhecimento molecular da PGH2 (1.10) pelo resíduo Fe-Heme do sítio ativo da tromboxana sintase, via interação íon- dipolo.
  • 7. QUÍMICA MEDICINAL 25 FORÇAS DE DISPERSÃO Estas forças atrativas, conhecidas como forças de dispersão de London ou inte- rações de van der Walls, caracterizam-se pela aproximação de moléculas apolares apresentando dipolos induzidos. Estes dipolos são resultado de uma flutuação local transiente (10-6 s) de densidade eletrônica entre grupos apolares adjacentes, FIGURA 1.8 que não apresentam momento de dipolo permanente. Em geral, essas interações Interações dipolo-dipolo de fraca de energia, isto é, 0,5-1,0 Kcal/mol, ocorrem em função da polarização pela polarização transiente de ligações carbono-hidrogênio (Figura 1.8) ou carbono-carbono (Figu- transiente de ligações ra 1.9). carbono-hidrogênio. Apesar de envolverem fracas energias de interação, as forças de dispersão são de extrema importância para o processo de reconhecimento molecular do fármaco pelo sítio receptor, uma vez que normalmente se caracterizam por inte- rações múltiplas que, somadas, acarretam contribuições energéticas significativas. FIGURA 1.9 INTERAÇÕES HIDROFÓBICAS Interações dipolo-dipolo Como as forças de dispersão, as interações hidrofóbicas são individualmente pela polarização fracas (ca. 1 Kcal/mol) e ocorrem em função da interação entre cadeias ou subu- transiente de ligações nidades apolares. Normalmente, as cadeias ou subunidades hidrofóbicas, presen- carbono-carbono. tes tanto no sítio receptor como no ligante, se encontram organizadamente sol- vatadas por camadas de moléculas de água. A aproximação das superfícies hi- drofóbicas promove o colapso da estrutura organizada da água, permitindo a interação ligante-receptor à custa do ganho entrópico associado à desorganização do sistema. Em vista do grande número de subunidades hidrofóbicas presentes
  • 8. 26 capítulo 1 ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS nas estruturas de peptídeos e fármacos, essa interação pode ser considerada importante para o reconhecimento da micromolécula pela biomacromolécula, como exemplificado na Figura 1.10 para a interação do fator de ativação plaque- tária (PAF, 1.11) com o seu biorreceptor, através do reconhecimento da cadeia alquílica C-16 por uma bolsa lipofílica presente na estrutura da proteína recep- tora.10 FIGURA 1.10 Reconhecimento molecular LIGAÇÃO DE HIDROGÊNIO (LIGAÇÃO-H) do PAF (1.11) via As ligações de hidrogênio (ligação-H) são as mais importantes interações não- interações hidrofóbicas com a bolsa lipofílica de covalentes existentes nos sistemas biológicos, sendo responsáveis pela manuten- seu biorreceptor. ção das conformações bioativas de macromoléculas nobres, essenciais à vida – α-hélices das proteínas (Figura 1.11) – e das bases purinas-pirimidinas dos ácidos nucléicos (Figura 1.12). Essas interações são formadas entre heteroátomos eletronegativos, como oxi- gênio, nitrogênio, flúor, e o átomo de hidrogênio de ligações O-H, N-H e F-H, como resultado de suas polarizações (Figura 1.13). Cabe destacar que, apesar de normalmente a ligação C-H não apresentar polarização suficiente para favorecer a formação de ligações de hidrogênio, o forte efeito indutivo promovido pela introdução de dois átomos de flúor pode compensar este comportamento, tornan- do o grupo diflurometila (F2C-H) um bom aceptor de ligações de hidrogênio11 (Figura 1.13).
  • 9. QUÍMICA MEDICINAL 27 Inúmeros exemplos de fármacos que são reconhecidos molecularmente atra- vés de ligações de hidrogênio podem ser citados: dentre eles, podemos destacar ilustrativamente a interação do antiviral saquinavir (1.12) com o sítio ativo da protease do vírus HIV-1 (Figura 1.14).12 O reconhecimento desse inibidor enzi- mático (1.12) envolve a participação de ligações de hidrogênio com resíduos de aminoácidos do sítio ativo, diretamente ou intermediada por moléculas de água (Figura 1.14). FIGURA 1.11 Ligações de hidrogênio e a manutenção da estrutura terciária de proteínas (p. ex., calmodulina). FIGURA 1.12 Ligações de hidrogênio e a manutenção da estrutura dupla fita do DNA.
  • 10. 28 capítulo 1 ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS FIGURA 1.13 Principais grupos doadores e aceptores de ligações de hidrogênio. FIGURA 1.14 Reconhecimento molecular do antiviral saquinavir (1.12) pelo sítio ativo da protease do HIV-1, via interações de hidrogênio.
  • 11. QUÍMICA MEDICINAL 29 LIGAÇÃO COVALENTE * No Capítulo 5, detalha-se a ação do AAS. As interações intermoleculares envolvendo a formação de ligações covalentes são de elevada energia, ou seja, 77-88 Kcal/mol. Considerando que, na temperatu- ra usual dos sistemas biológicos (30-40oC), ligações mais fortes que 10 Kcal/mol são dificilmente rompidas em processos não-enzimáticos, os complexos fármacos- receptores envolvendo ligações covalentes são raramente desfeitos, culminando em inibição enzimática irreversível ou inativação do sítio receptor. Essa interação, envolvendo a formação de uma ligação sigma entre dois áto- mos que contribuem cada qual com um elétron, eventualmente ocorre com fár- macos que apresentam grupamentos com acentuado caráter eletrofílico e bio- nucleófilos orgânicos. O ácido acetilsalicílico (Aspirina®, 1.13) e a benzilpenicilina (1.14) são dois exemplos de fármacos que atuam como inibidores enzimáticos irreversíveis, cujo reconhecimento molecular envolve a formação de ligações co- valentes.* O ácido acetilsalicílico (1.13) apresenta propriedades antiinflamatórias e anal- gésicas decorrentes do bloqueio da biossíntese de prostaglandinas inflamatogê- nicas e pró-algésicas, devido à inibição da enzima prostaglandina endoperóxido sintase (PGHS).8,13 Esta interação fármaco-receptor é de natureza irreversível em função da formação de uma ligação covalente resultante do ataque nucleo- fílico da hidroxila do aminoácido serina-530 (Ser530) ao grupamento eletrofílico FIGURA 1.15 acetila presente em (1.13) (Figura 1.15), promovendo a trans-acetilação deste sítio enzimático. Cabe salientar que, atualmente, considera-se que a inibição da Mecanismo de inibição irreversível da PGHS pelo enzima prostaglandina endoperóxido sintase (PGHS) pelo AAS é um processo ácido acetilsalicílico (AAS, pseudo-irreversível, pois o fragmento Ser-530-OAc é hidrolisado de forma tempo- 1.13), via formação de dependente, regenerando a enzima PGHS. ligação covalente. AAS (1.13)
  • 12. 30 capítulo 1 ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS Um outro exemplo diz respeito ao mecanismo de ação da benzilpenicilina (1.14) e outras penicilinas semi-sintéticas, classificadas como antibióticos β- lactâmicos, que atuam inibindo a D,D-carboxipeptidase, enzima responsável pela formação de ligações peptídicas cruzadas no peptideoglicano da parede celular bacteriana, através de processos de transpeptidação14 (Figura 1.16). O reconhecimento molecular deste fármaco (1.14) pelo sítio catalítico da enzima é função de sua similaridade estrutural com a subunidade terminal D- FIGURA 1.16 Ala-D-Ala do peptideoglicano. Entretanto, a ligação peptídica inclusa no anel β- Mecanismo de inibição lactâmico de (1.14) se caracteriza como um centro altamente eletrofílico, como irreversível da ilustra o mapa de “densidade eletrônica” descrito na Figura 1.16. Dessa forma, o carboxipeptidase ataque nucleofílico da hidroxila do resíduo serina da tríade catalítica da enzima bacteriana pela ao centro eletrofílico de (1.14) promove a abertura do anel de quatro membros e benzilpenicilina (1.14), via formação de ligação a formação de uma ligação covalente, responsável pela inibição irreversível da covalente. enzima (Figura 1.16).
  • 13. QUÍMICA MEDICINAL 31 FATORES ESTEREOQUÍMICOS E CONFORMACIONAIS ENVOLVIDOS NO RECONHECIMENTO MOLECULAR: LIGANTE/SÍTIO RECEPTOR Apesar de o modelo chave-fechadura ser útil na compreensão dos eventos envolvi- dos no reconhecimento molecular ligante-receptor, caracteriza-se como uma re- presentação parcial da realidade, uma vez que as interações entre a biomacromo- lécula (receptor) e a micromolécula (fármaco) apresentam características tridi- mensionais dinâmicas. Dessa forma, o volume molecular do ligante, as distâncias interatômicas e o arranjo espacial entre os grupamentos farmacofóricos com- põem aspectos fundamentais na compreensão das diferenças na interação fár- maco-receptor. A Figura 1.17 ilustra a natureza 3D do complexo biomacromolé- cula-micromolécula, com destaque para o arranjo espacial dos aminoácidos que constituem o sítio ativo.15 FIGURA 1.17 Representação tridimensional do complexo da acetilcolinesterase (AChE) com o inibidor tacrina (1.15, rosa), com destaque para os resíduos de aminoácidos que compõem o sítio receptor (vermelho). FLEXIBILIDADE CONFORMACIONAL DE PROTEÍNAS E LIGANTES: TEORIA DO ENCAIXE INDUZIDO As características de complementaridade rígida do modelo chave-fechadura de Fisher limitam, por vezes, a compreensão e a avaliação do perfil de afinidade de determinados ligantes por seu sítio molecular de interação, podendo induzir a erros no planejamento estrutural de novos candidatos a fármacos.16 Neste contexto, Koshland introduziu os aspectos dinâmicos que governam o reconhecimento molecu- lar de uma micromolécula por uma bio- FIGURA 1.18 macromolécula na sua teoria do encaixe induzido,17 propondo que o acomodamen- Representação esquemática do processo to conformacional recíproco no sítio de in- de indução e seleção da teração constitui aspecto fundamental na conformação bioativa de compreensão de diferenças na interação ligantes e receptores. fármaco-receptor (Figura 1.18).18
  • 14. 32 capítulo 1 ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS Esta interpretação pode ser ilustrativamente empregada na compreensão dos diferentes modos de interação de inibidores da enzima acetilcolinesterase (1.16) e (1.17), planejados molecularmente como análogos estruturais da tacrina (1.15),19 primeiro fármaco aprovado para o tratamento da doença de Alzheimer. Cabe destacar que, a despeito da presença da subunidade farmacofórica tetraidro- 4-amino-quinolina, comum aos três inibidores, suas orientações e conseqüente- mente seus modos de reconhecimento molecular pelo sítio ativo da enzima são parcialmente distintos (Figura 1.19), comprometendo análises de relação estrutu- ra-atividade que levem em consideração apenas a similaridade estrutural entre estes compostos. FIGURA 1.19 Sobreposição das conformações bioativas Por outro lado, ao analisar as interações envolvidas no reconhecimento mo- dos compostos (1.16, lecular do derivado peptóide (1.18), capaz de inibir a metaloproteinase-3 de vermelho) e (1.17, matriz (MMP-3) com Ki = 5 nM, podemos identificar a importância da subuni- amarelo), análogos dade N-metil-carboxamida terminal, que participa diretamente do atracamento estruturais da tacrina ao biorreceptor-alvo através de duas interações de hidrogênio (Figura 1.20).20 (1.15, rosa), após Considerando este perfil de ligação, poderíamos antecipar, a priori, que o derivado reconhecimento molecular pelo sítio ativo da AChE. (1.19), análogo estrutural de (1.18), que apresenta um grupamento hidrofóbico fenila substituindo o grupo N-metil-carboxamida terminal, deveria apresentar menor afinidade pelo sítio ativo da enzima-alvo, devido à inabilidade desta subu- nidade estrutural de reproduzir o reconhecimento molecular através de interações de hidrogênio. Entretanto, a alteração conformacional no sítio ativo de MMP-3 induzida pela presença do composto (1.19), promove a exposição do aminoácido hidrofóbico leucina que passa a participar do reconhecimento da subunidade
  • 15. QUÍMICA MEDICINAL 33 FIGURA 1.20 Estrutura cristalográfica dos complexos entre os inibidores peptóides (1.18) e (1.19) com a metaloprotease-3 de matrix.20 hidrofóbica fenila presente neste inibidor, mantendo sua afinidade pela enzima- alvo (Ki = 9 nM) (Figura 1.20).20 Dessa forma, podemos considerar que a interação entre um bioligante e uma proteína deve ser imaginada como uma colisão entre dois objetos flexíveis. Neste processo, o choque inicial do ligante com a superfície da proteína deve provocar o deslocamento de algumas moléculas de água superficiais sem, entretanto, ga- rantir o acesso imediato ao sítio ativo, uma vez que o transporte do ligante ao sítio de reconhecimento molecular deve envolver múltiplas etapas de acomoda- mento conformacional que produzam o modo de interação mais favorável en- tálpica e entropicamente.16,21,22 CONFIGURAÇÃO ABSOLUTA E ATIVIDADE BIOLÓGICA* Um dos primeiros relatos da literatura que indicava a relevância da estereoquí- mica, mais particularmente da configuração absoluta na atividade biológica, deve-se a Piutti, em 1886,23 que descreveu o isolamento e as diferentes proprieda- des gustativas dos enantiômeros do aminoácido asparagina (1.20) (Figura 1.21). Estas diferenças de propriedades organolépticas expressavam modos diferencia- dos de reconhecimento molecular do ligante pelo sítio receptor, neste caso, locali- zado nas papilas gustativas, traduzindo sensações distintas.24 Entretanto, a importância da configuração absoluta na atividade biológica25 * O Capítulo 5 ilustra aspectos particula- res da importância da configuração ab- permaneceu obscura até a década de 1960, quando, hélas, ocorreu a tragédia da soluta na atividade farmacológica dos talidomida (1.21), decorrente do uso de sua forma racêmica, indicada para a fármacos.
  • 16. 34 capítulo 1 ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS FIGURA 1.21 Estereoisômeros da asparagina (1.20). redução do desconforto matinal em gestantes, resultando no nascimento de ca. 12.000 crianças com malformações congênitas. Posteriormente, o estudo do me- tabolismo de (1.21) permitiu evidenciar que o enantiômero (S) era seletivamen- te oxidado, levando à formação de espécies eletrofílicas reativas do tipo areno- óxido,* que reagem com nucleófilos bioorgânicos, induzindo teratogenicidade, enquanto o antípoda (R) era responsável pelas propriedades sedativas e analgési- cas (Figura 1.22). Este episódio foi o marco de nova era no desenvolvimento de novos fármacos. Neste momento, a quiralidade passou a ter destaque, e a investigação cuidadosa do comportamento de fármacos quirais27 ou homoquirais28 frente a processos capazes de influenciar tanto a fase farmacocinética – absorção, distribuição, me- tabolismo e eliminação – quanto a fase farmacodinâmica – interação fármaco- receptor – passou a ser fundamental antes de sua liberação para uso clínico. FIGURA 1.22 Estereoisômeros da talidomida (1.21). * Espécies bioformadas pelo metabolismo hepático (vide infra).
  • 17. QUÍMICA MEDICINAL 35 O diferente perfil farmacológico de substâncias quirais foi pioneiramente ra- cionalizado por Easson e Stedman.29 Esses autores propuseram que o reconheci- mento molecular de um ligante com um único centro assimétrico pelo biorre- ceptor envolveria a participação de ao menos três pontos. Neste caso, o reconheci- mento do antípoda correspondente pelo mesmo sítio receptor não seria tão eficaz devido à perda de um ou mais pontos de interação complementar.30 Esses autores inspiraram o modelo de três pontos ilustrado na Figura 1.23, que considera o mecanismo de reconhecimento estereoespecífico do propranolol (1.22) pelos re- ceptores β-adrenérgicos.30 O enantiômero (S)-(1.22) é reconhecido por esses re- ceptores por meio de três principais pontos de interação: a) sítio de interação hidrofóbica, que reconhece o grupamento lipofílico naftila de (1.22); b) sítio doador de ligação de hidrogênio, que reconhece o átomo de oxigênio da hidroxila da cadeia lateral de (1.22); c) sítio de alta densidade eletrônica, que reconhece o grupamento amina da cadeia lateral (ionizado em pH fisiológico), através de interações do tipo íon-dipolo. Neste caso particular, o enantiômero (R)-(1.22) apresenta-se praticamente destituído das propriedades β-bloqueadoras terapeu- ticamente úteis, devido à menor afinidade decorrente da perda do ponto de in- teração (b), apresentando, por sua vez, propriedades indesejadas relacionadas à inibição da conversão do hormônio da tireóide tiroxina à triiodotironina. Assim, de acordo com as regras de nomenclatura recomendadas pela Inter- national Union of Pure and Applied Chemistry (IUPAC), o enantiômero tera- FIGURA 1.23 peuticamente útil de um fármaco, que apresenta maior afinidade e potência Reconhecimento molecular pelos receptores-alvo, é denominado de eutômero, enquanto seu antípoda, ligante dos grupamentos de menor afinidade pelo biorreceptor; denomina-se distômero.31 farmacofóricos dos enantiômeros do propranolol (1.22).
  • 18. 36 capítulo 1 ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS As diferenças de atividade intrínseca de fármacos enantioméricos possuindo as mesmas propriedades físico-químicas, excetuando-se o desvio do plano da luz polarizada, é função da natureza quiral dos aminoácidos, que constituem a grande maioria de biomacromoléculas receptoras e que se caracterizam como alvos-terapêuticos “oticamente ativos”. Dessa forma, a interação entre os antí- podas do fármaco quiral com receptores quirais leva à formação de complexos fármaco-receptor diastereoisoméricos que apresentam propriedades físico-quími- cas e energias diferentes, podendo, assim, promover respostas biológicas distintas. CONFIGURAÇÃO RELATIVA E ATIVIDADE BIOLÓGICA* De forma análoga, alterações da configuração relativa dos grupamentos farma- cofóricos de um ligante alicíclico ou olefínico também podem repercutir direta- mente no seu reconhecimento pelo biorreceptor, uma vez que as diferenças de arranjo espacial dos grupos envolvidos nas interações com o sítio receptor impli- cam em perda de complementaridade e conseqüente redução de sua afinidade e atividade intrínseca, como ilustra a Figura 1.24. Um exemplo clássico que ilustra a importância da isomeria geométrica (cis- trans, E-Z) na atividade biológica de um fármaco diz respeito ao desenvolvimento do estrogênio sintético, trans-dietilestilbestrol (1.23), cuja configuração relativa dos grupamentos para-hidroxifenila mimetiza o arranjo molecular do ligante natural, isto é, hormônio estradiol (1.24), necessário ao seu reconhecimento pelos receptores de estrogênio intracelulares (Figura 1.25). O estereoisômero cis do dietilestilbestrol (1.25) possui distância entre estes grupamentos farmacofó- ricos (7,7 Å) inferior àquela necessária ao reconhecimento pelo biorreceptor e, FIGURA 1.24 Configuração relativa e o reconhecimento molecular ligante-receptor. * O Capítulo 5 discute em detalhes os as- pectos conformacionais envolvidos na atividade farmacológica dos fármacos
  • 19. QUÍMICA MEDICINAL 37 conseqüentemente, apresenta atividade estrogênica 14 vezes menor do que o isômero trans correspondente (1.23) (Figura 1.25). FIGURA 1.25 Reconhecimento molecular dos grupamentos farmacofóricos dos estereoisômeros trans (1.23) e cis- dietilestilbestrol (1.25). CONFORMAÇÃO E ATIVIDADE BIOLÓGICA* As variações do arranjo espacial envolvendo a rotação de ligações covalentes sigma, associadas a energias inferiores a 10 Kcal/mol, caracterizam as conforma- ções. Este tipo particular de estereoisomeria é extremamente relevante para o reconhecimento molecular de uma molécula, inclusive endógena (p. ex., dopa- mina, serotonina, histamina, acetilcolina), e explica as diferenças de atividade biológica, dependentes da modulação de diferentes subtipos de receptores (p. ex., D1/D2/D3/D4/D5, 5-HT1/5-HT2/5-HT3, H1/H2/H3, muscarínicos/nicotínicos, res- pectivamente).32 A acetilcolina (1.26), importante neurotransmissor do sistema nervoso pa- rassimpático, é capaz de sensibilizar dois subtipos de receptores: os receptores muscarínicos, predominantemente localizados no sistema nervoso periférico, e os receptores nicotínicos, localizados predominantemente no sistema nervoso central. Entretanto, os diferentes efeitos biológicos promovidos por esse autacóide são decorrentes de interações que envolvem distintos arranjos espaciais dos grupa- mentos farmacofóricos com o sítio receptor correspondente, isto é, grupamento * O Capítulo 5 discute em detalhes os as- acetato e grupamento amôneo quaternário. Eles podem, preferencialmente, ado- pectos conformacionais envolvidos na tar uma conformação de afastamento máximo, conhecida como antiperiplanar, atividade farmacológica dos fármacos.
  • 20. 38 capítulo 1 ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS ou conformações onde estes grupos apresentam um ângulo de 60o entre si, conhe- cidas como sinclinais (Figura 1.26).33 O reconhecimento seletivo dos bioligantes muscarina (1.27) e nicotina (1.28) por estes subtipos de receptores permitiu evidenciar que a conformação antiperiplanar de (1.26) está envolvida na interação com os receptores muscarínicos, enquanto a conformação sinclinal de (1.26) é a responsável pelo reconhecimento molecular do subtipo nicotínico. FIGURA 1.26 Variações conformacionais da acetilcolina (1.26) e o reconhecimento molecular seletivo dos grupamentos farmacofóricos pelos receptores muscarínicos e nicotínicos. QUIRALIDADE AXIAL E ATIVIDADE BIOLÓGICA* Quando variações do arranjo espacial de moléculas envolvendo a rotação de ligações covalentes sigma estão associadas a barreiras energéticas superiores à 40 Kcal/mol, observamos o “congelamento” de conformações enantioméricas, que podem ser caracterizadas isoladamente.34 Este tipo particular de estereoiso- meria, chamada atropoisomerismo,31 foi inicialmente descrita em bifenilas orto- funcionalizadas (1.29) (Figura 1.27), mas grande número de funções orgânicas * O Capítulo 5 discute em detalhes os as- pectos conformacionais envolvidos na ati- distintas podem apresentar este fenômeno, caracterizado pela presença de pro- vidade farmacológica dos fármacos. priedades quirais em ligantes que não apresentam centro estereogênico.34
  • 21. QUÍMICA MEDICINAL 39 FIGURA 1.27 Atropoisomerismo da bifenila orto-funcionalizada (1.29). Diversos fármacos e substâncias bioativas que apresentam e dependem desta propriedade estrutural para o reconhecimento molecular pelo biorreceptor-alvo são conhecidos,34 como os exemplos representados pelo gossipol e pela colchicina, discutidos nos Capítulos 2 e 3, respectivamente. Cabe destacar também o antibió- tico atropoisomérico de origem natural vancomicina34,35 (1.30) (Figura 1.28), que era, até o final da década de 1980, o último recurso terapêutico para o trata- mento de certas infecções provocadas por bactérias resistentes à penicilina e seus derivados. O mecanismo de ação deste antibiótico envolve sua complexação, através de ligações de hidrogênio, com o peptídeo D-Ala-D-Ala precursor do peptideoglicano que reforça a membrana externa, impedindo sua formação e provocando a conseqüente morte bacteriana35 (Figura 1.28). FIGURA 1.28 Antibiótico atropoisomérico vancomicina (1.30) complexado à subunidade D-Ala-D-Ala do peptídeoglicano bacteriano.
  • 22. 40 capítulo 1 ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS * A fase farmacocinética é referida em li- PROPRIEDADES FÍSICO-QUÍMICAS vros de língua inglesa como ADME (A = absorção; D = distribuição; M = meta- E ATIVIDADE BIOLÓGICA bolismo [vide p. 46]; E = eliminação). Como mencionado, as propriedades físico-químicas de determinados grupamen- tos funcionais são de fundamental importância na fase farmacodinâmica da ação dos fármacos, etapa de reconhecimento molecular, uma vez que a afinidade de um fármaco pelo seu biorreceptor é dependente do somatório das forças de interação dos grupamentos farmacofóricos com sítios complementares da bio- macromolécula. Adicionalmente, a fase farmacocinética, que engloba os processos de absorção, distribuição, metabolização e excreção,* repercutindo diretamente na biodispo- nibildade e no tempo de meia-vida do fármaco na biofase, também pode ser drasticamente afetada pela variação das propriedades fisico-químicas de um fár- maco. As principais propriedades fisico-químicas de uma micromolécula capazes de alterar seu perfil farmacoterapêutico são o coeficiente de partição, que expressa a lipofilicidade relativa da molécula, e o coeficiente de ionização, expresso pelo pKa, que traduz o grau de contribuição relativa das espécies neutra e ionizada. Considerando que a grande maioria dos fármacos disponíveis é absorvida passivamente, tendo de transpor a bicamada lipídica que constitui o ambiente hidrofóbico das membranas biológicas (Figura 1.29), destaca-se a importância das propriedades físico-químicas, isto é, lipofilicidade e pKa, para que o fármaco atinja concentrações plasmáticas capazes de reproduzir o efeito biológico evi- denciado em experimentos in vitro. FIGURA 1.29 Bicamada lipídica das membranas biológicas.
  • 23. QUÍMICA MEDICINAL 41 LIPOFILICIDADE (Log P) A lipofilicidade é definida pelo coeficiente de partição de uma substância entre uma fase aquosa e uma fase orgânica. O conceito atualmente aceito para coeficien- te de partição (P) pode ser definido pela razão entre a concentração da substância na fase orgânica (Corg) e sua concentração na fase aquosa (Caq) em um sistema de dois compartimentos sob condições de equilíbrio, como ilustrado na Figura 1.30. Os fármacos que apresentam maior coeficiente de partição, ou seja, têm maior afinidade pela fase orgâni- ca, tendem a ultrapassar com maior facilidade as bio- membranas hidrofóbicas, apresentando melhor perfil de biodisponibilidade, que pode refletir em um melhor perfil farmacológico. A Tabela 1.2 ilustra como a intro- dução de grupos funcionais polares (R = OH) altera o coeficiente de partição e, conseqüentemente, a absorção gastrintestinal dos fármacos cardiotônicos digitoxina FIGURA 1.30 (1.31) e digoxina (1.32).36 Determinação do coeficiente de partição (P) de um soluto. TABELA 1.2 COEFICIENTE DE PARTIÇÃO E A ABSORÇÃO GASTRINTESTINAL DE FÁRMACOS CARDIOTÔNICOS Fármaco Coeficiente de partição Absorção Tempo de P [CHCl3 / MeOH:H2O (16:84)] gastrintestinal (%) meia-Vida (h) Digitoxina (1.31) 96,5 100 144 Digoxina (1.32) 81,5 70-85 38
  • 24. 42 capítulo 1 ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS O coeficiente de partição (P) é tradicionalmente determinado pelo método de shake flask, empregando n-octanol como f ase orgânica devido à sua semelhan- ça estrutural com os fosfolipídeos de membrana. Os valores do logaritmo do coeficiente de partição (log P) são normalmente correlacionados com a atividade biológica, descrevendo em geral um modelo parabólico bilinear37 (Figura 1.31), que indica haver lipofilicidade ótima, capaz de expressar requisitos farmacocinéticos e farmacodinâmicos ideais, cujo incremento leva à pro- gressiva redução da atividade biológica. Além da demonstração das correlações entre a ati- vidade biológica e parâmetros físico-químicos (p. ex., lipofilicidade), os estudos de Hansch e colaboradores demonstraram que log P é uma propriedade aditiva e FIGURA 1.31 possui um considerável caráter constitutivo. Por analo- Modelo bilinear usado para gia à equação de Hammett (1935) utilizando derivados benzênicos substituídos, descrever as correlações eles definiram a constante hidrofóbica do substituinte, πX, (equação 1.1): entre a atividade biológica e a lipofilicidade de uma série de fármacos πX = Log (PX / PH) eq.1.1 congêneres. e, então, o coeficiente de partição (Log PX) de um derivado funcionalizado com um substituinte X apresentando pode ser calculado empregando-se a equação 1.2: Log PX = Log PH + πX eq.1.2 acrescentando o valor da contribuição da constante hidrofóbica do substituinte X tabulada (vide Anexos) ao logaritmo do coeficiente de partição do derivado não substituído (Log PH).38 Podemos exemplificar o emprego desta equação no cálculo do logaritmo do coeficiente de partição do analgésico paracetamol (1.33) a partir de valores experi- mentalmente obtidos para o fenol (1.34), a acetanilida (1.35) e o benzeno (1.36), como ilustra a Figura 1.32. Deve-se destacar que, em face do caráter aditivo do parâmetro lipofilicidade em derivados congêneres, qualquer das rotas utilizadas na predição do Log P do paracetamol (1.33) leva a valores bem próximos daquele obtido experimentalmente, isto é, 0,46. A limitação do emprego deste método de predição do coeficiente de partição está relacionado à impossibilidade de extrapolação dos valores da contribuição hidrofóbica de radicais monovalentes (p. ex., -CH3) para radicais divalentes (p. ex., -CH2-) ou trivalentes. Nesses casos, os valores preditos empregando as constantes πx são normalmente menores do que os valores experimentais cor- respondentes, fato que pode ser contornado pelo emprego das constantes frag- mentais de Nys e Rekker.39
  • 25. QUÍMICA MEDICINAL 43 FIGURA 1.32 Uso da equação de Hansch na predição do Log P do paracetamol (1.33). pKa A maior parte dos fármacos são ácidos ou bases fracas. Na biofase, fármacos de natureza ácida (HA) podem perder o próton, levando à formação da espécie aniônica correspondente (A–), enquanto fármacos de natureza básica (B) podem ser protonados, levando à formação da espécie catiônica (BH+), como ilustra a Figura 1.33. A constante de ionização de um fármaco é capaz de expressar, dependendo de sua natureza química e do pH do meio, a contribuição percentual relativa das espécies ionizadas (A– ou BH+) e não-ionizadas correspondentes (HA ou B) (Figu- ra 1.33). Essa propriedade é de fundamental importância na fase farmacocinética, uma vez que o grau de ionização é inversamente proporcional à lipofilicidade, de forma que as espécies não-ionizadas, por serem mais lipofílicas, conseguem atravessar as biomembranas por transporte passivo; já as espécies carregadas são polares e normalmente se encontram solvatadas por moléculas de água, dificultando o processo de absorção passiva (Figura 1.33). Adicionalmente, essa propriedade físico-química é de fundamental importân- cia na fase farmacodinâmica, devido à formação de espécies ionizadas que podem interagir complementarmente com resíduos de aminoácidos do sítio ativo da biomacromolécula receptora por ligação iônica ou interações do tipo íon-dipolo.
  • 26. 44 capítulo 1 ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS FIGURA 1.33 Grau de ionização e a absorção passiva de ácidos ou bases fracas. A equação de Henderson-Hasselbach para a ionização de ácidos fracos deriva da equação 1.340: HA + H2O A– + H3O+ eq.1.3 onde a constante de ionização Ka pode ser expressa pela relação das concentrações das espécies ionizadas sobre as espécies não-ionizadas, como ilustra a equação 1.4: [H3O+] [A–] Ka = ____________ eq.1.4 [HA] então, se considerarmos que: pKa = –Log Ka e pH = Log [H3O+] eq.1.5 e 1.6 podemos transformar a equação 1.4 na equação 1.7: [A–] –Log Ka = –Log [H3O+] – Log _____ eq.1.7, onde [HA] [espécie ionizada] pKa = –pH – Log ____________________ eq.1.8 [espécie não-ionizada] por fim, podemos atribuir à fração ionizada o termo α, de forma que em termos percentuais a fração não-ionizada corresponderia à 100 – α, chegando então à equação para cálculo do percentual de ionização de ácidos, descrita a seguir:
  • 27. QUÍMICA MEDICINAL 45 100 % de ionização (α) = 100 – ____________________ eq.1.9 1 + antilog (pH – pKa) Similarmente, a equação de Henderson-Hasselbach para o cálculo do grau de ionização de bases pode ser desenvolvida como demonstrado, produzindo a expressão final: 100 % de ionização (α) = 100 – ____________________ eq.1.10 1 + antilog (pKa – pH) Sabendo-se que os principais compartimentos biológicos têm pH definidos (p. ex., mucosa gástrica, pH ~ 1, mucosa intestinal, pH ~ 5 e plasma, pH ~ 7,4), as equações de Henderson-Hasselbach podem ser empregadas na previsão do comportamento farmacocinético de substâncias terapeuticamente úteis, isto é, absorção, distribuição e excreção, podendo em alguns casos permitir a obtenção de fármacos com propriedades físico-químicas otimizadas, como é o caso do antiinflamatório não-esteróide piroxicam (1.37).41 O piroxicam (1.37) é um fármaco de natureza ácida devido a presença de função enólica e à estabilização da base conjugada correspondente (1.38) por ligação de hidrogênio intramolecular (Figura 1.34). A absorção do piroxicam (1.37) se dá no trato gastrintestinal, sob a forma não-ionizada, sendo, portanto, modulada pelo coeficiente de partição (P), que determina as concentrações plas- máticas efetivas, alcançadas duas horas após a administração oral deste fármaco. Uma vez absorvido, o piroxicam (1.37) se ioniza fortemente no pH sangüíneo e cerca de 99,3% é distribuído complexado com proteínas plasmáticas, como a albumina. No tecido inflamado, existe uma intensa atividade metabólica, contro- lada pela ação de proteases que acarretam em redução significativa do pH (~5), condições nas quais mais de 95% do fármaco se encontra na forma não-ionizada, podendo ser adequadamente absorvido (Figura 1.34). A adequação das propriedades físico-químicas de (1.37), aliada à sua afinidade pelo biorreceptor, permite que baixas doses do fármaco – 20 mg/dia – sejam necessárias para alcançar o efeito terapêutico desejado. Entretanto, em alguns casos, as diferenças de pKa não são capazes de explicar diferenças no perfil farma- coterapêutico de determinados fármacos, como é o caso dos antagonistas seletivos de receptores β1, metoprolol (1.39) e atenolol (1.40), os quais, apesar de apresenta- rem valores de pKa similares, têm coeficientes de partição bastante distintos em função da variação dos substituintes da cadeia lateral (-CH2OCH3 vs. CONH2) (Figura 1.35). Apesar de esses anti-hipertensivos da classe das ariloxipropano- laminas apresentarem propriedades farmacodinâmicas similares, suas proprieda- des na fase farmacocinética são distintas, implicando a possibilidade de emprego clínico diferenciado. O metoprolol (1.39) é um β-bloqueador lipossolúvel (Log P = 1,88), metabolizado por efeito de primeira passagem,* cujo uso clínico é contra- indicado para pacientes com distúrbios no sistema nervoso central, devido à tendência de atravessar a barreira hematoencefálica. * Vide, a seguir, neste capítulo, os funda- mentos do metabolismo de fármacos.
  • 28. 46 capítulo 1 ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS FIGURA 1.34 Grau de ionização do piroxicam (1.37) em O atenolol (1.40) é um β-bloqueador hidrossolúvel (Log P = 0,16), cujo uso compartimentos biológicos clínico é contra-indicado para pacientes com distúrbios renais, devido ao estresse específicos. provocado pela excreção renal do fármaco na forma não-modificada. FUNDAMENTOS DO METABOLISMO DOS FÁRMACOS O metabolismo dos fármacos compreende os processos enzimaticamente catali- sados capazes de produzir modificações estruturais no fármaco. Neste contexto, a classificação de Williams, de 1959, para as fases do metabolismo é ilustrativa.42 Esse autor denominou biotransformação a primeira fase do metabolismo (fase 1) de um fármaco na biofase, englobando reações de oxidação, redução e hidrólise. A fase 2 do metabolismo compreende a etapa de conjugação, envolvendo reações de glicuronidação, sulfatação, conjugação com glicina, acilação, metilação e a formação de aductos com glutatião. Raramente uma substância orgânica, fármaco ou não, sobrevive à ação catalí- tica dos diversos sistemas enzimáticos presentes nas células dos organismos vivos. Considerando-se que o arsenal terapêutico atual compreende uma ex- pressiva maioria de substâncias orgânicas, pode-se antecipar que dificilmente
  • 29. QUÍMICA MEDICINAL 47 FIGURA 1.35 Perfil comparativo das propriedades físico- químicas do metoprolol (1.39) e do atenolol (1.40). um medicamento, sintético ou não, de natureza orgânica, resistirá à ação das enzimas da biofase.43 Um fármaco tem sua utilidade terapêutica medida em função da ação benéfica que exerce sobre um dado sistema biológico. Esta, por sua vez, depende da quanti- dade do fármaco administrado capaz de atingir, na concentração necessária, o sítio de ação desejado. Portanto, o estudo do metabolismo dos fármacos se torna essencial para o completo conhecimento de fatores farmacocinéticos relevantes ao seu uso adequado e seguro. Em termos experimentais, o estudo do metabolis- mo de fármacos exige o emprego de técnicas analíticas sensíveis e eficazes, aliadas a procedimentos de extração eficientes e quantitativos, de ínfimas quantidades de substâncias de fluidos biológicos, de maneira a permitir a elucidação inequívo- ca da estrutura química dos metabólitos de um fármaco, inclusive quanto a definição de centros estereogênicos, quando presentes. Estes metabólitos, para serem adequadamente isolados e terem suas estruturas elucidadas, precisam ser teoricamente previstos, em termos estruturais, antecipando informações sobre as propriedades físico-químicas, de maneira a permitir a racionalização da escolha do método de isolamento quali e quantitativamente adequado.44 Por outro lado, o conhecimento prévio das prováveis mudanças estruturais que um determinado fármaco pode sofrer na biofase permite que se antecipem dados sobre sua provável estabilidade ante o método de isolamento escolhido, garantindo sua eficiência em termos quantitativos. Nessa ótica, o conhecimento das bases teóricas das etapas de biotransfomação e conjugação, fase 1 e 2, que compreendem o meta- bolismo dos fármacos, em termos moleculares, torna-se essencial. As transformações enzimaticamente promovidas na estrutura química dos fármacos podem acarretar profundas alterações na resposta biológica, uma vez que modificações moleculares, ainda que singelas, podem alterar significativa- mente o farmacóforo, dificultando sua interação com o biorreceptor original ou, ainda, favorecendo novas interações com outras biomacromoléculas, correspon- dendo a novos e distintos efeitos biológicos, algumas vezes responsáveis pelos
  • 30. 48 capítulo 1 ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS efeitos deletérios de um fármaco. Nesse sentido, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda que os estudos do metabolismo dos fármacos sejam parte obrigatoriamente integrante dos programas de avaliação pré-clínica e clínica de quaisquer novos medicamentos. Em termos estruturais, os fármacos, em sua grande maioria, podem ser consi- derados como micromoléculas orgânicas, lipossolúveis, polifuncionalizadas. Essas características contribuem para que apresentem diferentes sítios reativos ante as inúmeras enzimas da biofase. Como conseqüência dessa reatividade, um deter- minado fármaco produz, não raramente, distintos metabólitos, visto a diferença na cinética relativa das diferentes enzimas envolvidas em seu metabolismo. O estudo molecular do metabolismo dos fármacos permite que se antecipe, à luz das diferenças de reatividade química dos distintos sítios metabolicamente lábeis, um nível de hierarquização na formação destes diferentes metabólitos, prevendo- se, antecipadamente, aqueles majoritários. Por outro lado, o conhecimento das bases moleculares do metabolismo dos fármacos permite que se introduzam, de modo racional, determinadas modificações estruturais de maneira a aprimorar sua biodisponibilidade ou eficácia (pró-fármacos).45 FASES DO METABOLISMO: BIOTRANSFORMAÇÃO, FASE I O destino de um fármaco no metabolismo está ilustrado no Quadro 1.1. No primeiro caso, o fármaco originalmente inativo (pró-fármaco) sofreu uma ati- vação metabólica, fornecendo, após sua metabolização, a substância terapeuti- camente útil. No segundo caso, o fármaco originalmente administrado produz um metabólito de estrutura similar, biologicamente ativo, porém com proprieda- des farmacológicas distintas do fármaco original, em geral responsáveis pelos efeitos tóxicos observados com o seu emprego. Essa situação depende da estrutura original do fármaco administrado, que em função disso pode sofrer biotransfor- mações que produzam espécies lábeis capazes de reagir covalentemente com biomacromoléculas da biofase (exemplos dessa situação serão discutidos adian- te). No terceiro caso ilustrado no Quadro 1.1, o fármaco original conduz a um metabólito inativo (i.e., bioinativação metabólica) com propriedades adequadas para a sua eliminação pela via renal. Essa situação representa uma situação ideal, infelizmente rara. O estudo do metabolismo dos fármacos permite: estabelecer a cinética de formação e as estruturas químicas de seus meta- bólitos; QUADRO 1.1 METABOLISMO DE FÁRMACOS Fármaco inativo Metabólito ativo (Bioativação) Fármaco ativo Metabólito ativo (mesma atividade ou não) (Toxicidade) Fármaco ativo Metabólito inativo (Bioinativação)
  • 31. QUÍMICA MEDICINAL 49 determinar a velocidade e o sítio de absorção majoritário; determinar os níveis de concentração e depósito, plasmático e tissular, tanto do fármaco como de seus metabólitos, permitindo estabelecer sua vida-média na biofase; determinar a principal via de eliminação; determinar os sítios moleculares metabolicamente vulneráveis e correla- cioná-los com aqueles farmacoforicamente mais relevantes à atividade; compreender as interações metabólicas de um determinado fármaco com outro, administrado simultaneamente ou em associações; determinar a toxicidade dos metabólitos e correlacioná-los com a estrutura química; fornecer novos compostos protótipos para atividades farmacológicas distin- tas daquela do fármaco original. Os fármacos, assim como outros agentes químicos (solventes industriais, pes- ticidas, aditivos de alimentos industrializados, etc.) estranhos ao organismo (i.e., xenobióticos) são metabolizados por distintos sistemas enzimáticos. Dentre esses, o principal sistema enzimático envolvido no metabolismo dos fármacos com- preende as enzimas microssomais hepáticas, em que se destacam uma hemepro- teína oxidativa – denominada citocromo P450 (CYP450) (Figura 1.36) – e uma flavoproteína – NADPH-citocromo-C redutase – que, associadas a lipídeos, for- mam o sistema MFO (mixed function oxidases, oxidases de função mista). Embora seja o fígado o principal sítio de metabolização dos fármacos, outros órgãos e tecidos podem metabolizar fármacos (p. ex., trato gastrintestinal, pulmões, rins). FIGURA 1.36 Estrutura do citocromo P450 (CYP450). A primeira etapa do metabolismo dos medicamentos – fase 1 – caracteriza-se por envolver reações redox ou hidrolitícas, responsáveis pela conversão do fár- maco lipofílico em um primeiro metabólito mais polar. Na maioria das vezes,
  • 32. 50 capítulo 1 ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS essa etapa envolve o CYP450 hepático e compreende, basicamente, a inserção de um átomo de oxigênio, originário de uma molécula de O2, em sua estrutura (Figura 1.37). FIGURA 1.37 Mecanismo de monoxigenação catalisada por CYP450. O sistema CYP450 é composto por diversas isoenzimas, codificadas pela super- família de genes CYP. Esta superfamília é dividida em famílias e subfamílias,46 sendo que as principais subfamílias envolvi- das com o metabolismo de fármacos são as CYP 1A, 2A-F e 3A (Figura 1.38). A biotransformação oxidativa da cafeína (1.41), por exemplo, é mediada por diferen- tes isoformas de CYP450 (CYP 1A2 e 3A). A isoforma 1A2 é responsável pela formação de paraxantina (1.42), enquanto a isoforma 3A está envolvida com a oxidação da posição 8, levando à formação do ácido 1,3,7-trime- tilúrico (1.43) (Figura 1.39). FIGURA 1.38 Principais isoformas de CYP450 envolvidas no metabolismo de fármacos.
  • 33. QUÍMICA MEDICINAL 51 FIGURA 1.39 Metabolismo oxidativo da cafeína (1.41). Observa-se ainda a existência de polimorfismo genético neste sistema enzi- mático, justificando a existência de indivíduos com baixa taxa de metabolização de certos fármacos, enquanto outros apresentam um comportamento normal.46 Essa diferença pode acarretar uma variação individual nas reações tóxicas a de- terminado fármaco. Várias reações de bioconversão de diferentes grupos funcionais podem ocorrer na fase 1 do metabolismo. Entre os processos microssomais, encontram-se aqueles descritos no Quadro 1.2, englobando reações oxidativas; já os processos não-microssomais estão ilustrados no Quadro 1.3. QUADRO 1.2 PROCESSOS MICROSSOMAIS DE BIOTRANSFORMAÇÃO Oxidações catalisadas por citocromo P450 Carbono Hidroxilação alifática Hidroxilação benzílica (Continua)
  • 34. 52 capítulo 1 ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS QUADRO 1.2 (continuação) PROCESSOS MICROSSOMAIS DE BIOTRANSFORMAÇÃO Hidroxilação alílica Hidroxilação α a heteroátomo Hidroxilação aromática ArH ArOH Epoxidação Nitrogênio Aminas primárias RNH2 RNHOH Aminas secundárias R1R2NH R1R2NOH Aminas terciárias R1R2R3N R1R2R3N -O Amidas RCONHR’ RCON(R)OH Enxofre Sulfetos RSR’ RSOR’ Sulfóxidos RSOR’ RSO2R’ Reduções Azo R-N=N-R’ R-NH2 + R’NH2 Nitro R-NO2 R-NH2 Cetonas RCOR’ RCH(OH)R’
  • 35. QUÍMICA MEDICINAL 53 QUADRO 1.3 PRINCIPAIS BIOTRANSFORMAÇÕES NÃO-MICROSSOMAIS Fármaco Metabólito RCH2OH RCHO RCHO RCO2H R(CH2)2CO2H RCO2H RCH2NH2 RCO2H RCOR’ RCH(OH)R’ RCH=CHR’ RCH2CH2R’ Entre os processos oxidativos não-microssomais de fase 1 encontram-se as oxidações de álcoois por ação de desidrogenases hepáticas (LAD), também pre- sentes nos pulmões e rins. Por ação dessas enzimas os álcoois primários produzem aldeídos. Estudos de cinética relativa indicaram que os álcoois primários são muito mais rapidamente oxidados do que os álcoois secundários, que produzem compostos cetônicos como produtos (Figura 1.40). Compostos aldeídicos, por sua vez, são oxidados pelo sistema enzimático não- microssomal, denominado aldeído-desidrogenase (LDD), produzindo o ácido car- boxílico correspondente. FIGURA 1.40 Em nível plasmático, ocorrem reações de metabolização de ácidos alquil-car- Reações não- boxílicos por ação de β-oxidases. Essas enzimas são capazes de promover a cisão microssomais envolvidas oxidativa das ligações C-C sp3 das cadeias alifáticas de ácidos graxos (p. ex., 1.46), na bioinativação da produzindo bis-homólogos inferiores (p. ex., 1.47) (Figura 1.40). prostaglandina E2 (1.44).
  • 36. 54 capítulo 1 ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS Um complexo enzimático não-microssomal, cobre-dependente, capaz de pro- mover a cisão oxidativa da ligação C-N de aminas primárias endógenas ou não, é a monoaminoxidase (MAO), atualmente identificadas sob duas isoformas, a saber: MAO-A e MAO-B. Neste processo, ocorre a oxidação do carbono-α ao FIGURA 1.41 heteroátomo, que resulta na formação de um aza-cetal, lábil, que produz o Processo de X- produto de N-dealquilação, ou X-dealquilação, onde X é um heteroátomo (N, O, dealquilação de fármacos. S) (Figura 1.41). Compostos endogénos ou exógenos, isto é, xenobióticos, sofrem o processo oxidativo mediado pelas enzimas microssomais hepáticas, conforme ilustra o produto de N-oxidação da nicotina (1.28, Figura 1.42). FIGURA 1.42 N-oxidação da nicotina (1.28). Reações não-oxidativas que ocorrem em nível microssomal compreendem a redução de grupamentos nitro (NO2) e diazo (N=N). O sistema microssomal responsável por estas reações não-oxidativas é dependente de NADPH-citocromo C redutase. Fármacos que possuam grupamentos nitroaromáticos produzem, por ação desse sistema enzimático, derivados anilínicos, como ilustra a biotrans- formação do cloranfenicol (1.49, Figura 1.43).
  • 37. QUÍMICA MEDICINAL 55 FIGURA 1.43 Metabolismo do cloranfenicol (1.49). Alguns compostos nitrados podem produzir como principal metabólito a cor- FIGURA 1.44 respondente hidroxilamina, substrato para enzimas conjugativas da fase 2 (vide infra). Embora este produto de metabolização de substâncias nitroaromáticas Formação da hidroxilamina seja menos freqüente, interfere na rota metabólica de alguns agentes antibacte- (1.52) durante o metabolismo da rianos, como o derivado nitrofurânico funcionalizado, nitrofurazona (1.51), con- nitrofurazona (1.51). forme ilustrado na Figura 1.44. A redução de diazocompostos por ação de enzimas microssomais foi descober- ta com o estudo das propriedades antibacterianas do prontosil (1.53). Esse com- posto representa o primeiro pró-fármaco conhecido, portanto inativo in vitro. Essa substância sofre um processo de bioativação metabólica por ação de azo-redutases produzindo, in vivo, a sulfanilamida (1.55), responsável pela ação antibacteriana FIGURA 1.45 manifestada por antagonismo competitivo com o ácido para-aminobenzóico (PABA) na biossíntese do ácido fólico47 (Figura 1.45). Bioativação do prontosil (1.53) produzindo a sulfanilamida (1.55).
  • 38. 56 capítulo 1 ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS As reduções não-microssomais representam rotas secundárias de metaboli- zação de fármacos, onde intervêm processos de reduções de compostos, aldeídicos, cetônicos e insaturados (Quadro 1.3). Além dos processos redox, o metabolismo de fármacos, em sua fase 1, com- preende ainda reações hidrolíticas que podem ocorrer tanto em nível hepático quanto plasmático. Essas reações são catalisadas por hidrolases e transformam ésteres, amidas e outras funções derivadas de ácidos carboxílicos (p. ex., ácidos hidroxâmicos, hidrazidas, carbamatos e nitrilas) em metabólitos mais polares. As hidrolases de ésteres, denominadas esterases, estão presentes no trato FIGURA 1.46 gastrintestinal, no plasma, na flora microbiana intestinal e, algumas específicas, em determinados tecidos (p. ex., acetilcolinesterase no sistema nervoso central). Conversão da As esterases plásmaticas têm sido amplamente exploradas na liberação de for- sultamacilina (1.56) em mas latentes de fármacos derivados de ácidos carboxílicos (p. ex., penicilinas ampicilina (1.57) e ácido penicilânico-sulfona (1.58). (1.56), Figura 1.46).48 A exemplo das esterases, as amidases, responsáveis pela hidrólise enzimática de amidas, encontram-se largamente distribuídas no plasma e trato gastrintes- tinal, onde desempenham importantes funções na digestão. Ambos os tipos de enzimas hidrolíticas são sensíveis a efeitos estéricos e eletrônicos, permitindo a previsão de hidrólises cineticamente favorecidas em função, por exemplo, de menores restrições estéricas. O estudo da hidrólise de ésteres da cocaína (1.59) indicou que se pode prever a seletividade da reação enzimática em função do menor impedimento estérico existente entre dois ésteres de um mesmo substrato. Esses estudos contribuíram significativamente para o desenvolvimento de novos agentes anestésicos (Figura 1.47).
  • 39. QUÍMICA MEDICINAL 57 FIGURA 1.47 Hidrólise diferenciada da cocaína (1.59). A meperidina (1.61), um poderoso agente analgésico central sem propriedades hipnonarcóticas, mostrou-se estável ante as esterases plasmáticas em razão da natureza neopentílica do éster em sua estrutura. Em contraste, este fármaco pode ser facilmente hidrolisado por ação de esterases hepáticas inespecíficas, indicando que tais enzimas são estericamente menos exigentes do que as isoen- zimas plásmaticas (Figura 1.48). A hidrólise de amidas, carbamatos, hidrazidas, imidas, ureídas são passos de FIGURA 1.48 biotransformação freqüentes no metabolismo de fármacos e são geralmente mais Estrutura da meperidina lentas do que a dos correspondentes ésteres (cf. Figura 1.47). (1.61). Por outro lado, derivados de ácidos hidroxâmicos (RCONHOH) produzem o ácido carboxílico correspondente, através ação de enzimas hidrolíticas do plasma, determinando para este grupo funcional uma enorme labilidade metabólica, a qual depende do eventual impedimento estérico, em função da natureza do subs- tituinte do átomo de nitrogênio. Diversos derivados de ácidos hidroxâmicos apre- sentam propriedades inibidoras da enzima 5-lipoxigenase (5-LOX), responsável pela bioformação de leucotrienos,49 uma classe de icosanóides com importantes propriedades broncoconstritoras e, conseqüentemente, com potencial terapêutico para emprego no tratamento da asma.50 Entretanto, em função da labilidade metabólica, fruto da presença do grupamento ácido hidroxâmico, essencial no mecanismo de ação desta classe de inibidores de 5-LOX, diminuiu o interesse dos pesquisadores neste grupo de compostos, embora em 1988 tenha ocorrido a descoberta do zileuton (1.62, A-64077) pela Abbott,51 apresentando o grupo N-hidroxiuréia bioisóstero do ácido hidroxâmico (Figura 1.49).
  • 40. 58 capítulo 1 ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS FIGURA 1.49 Zileuton (1.62), fármaco antiasmático contendo a HIDROXILAÇÃO DE SISTEMAS AROMÁTICOS: função N-hidroxiuréia. ÓXIDOS DE ARENOS O estudo do metabolismo de fármacos que possuem anéis aromáticos, especial- mente grupos fenilas, permitiu identificar a participação de uma espécie interme- diária lábil, denominada óxido de areno, conforme ilustra o metabolismo do fenobarbital (1.63). Este barbitúrico, amplamente empregado na terapêutica, produz, em uma primeira etapa de metabolização hepática, o derivado para- hidroxilado (1.65). Esse metabólito regiosseletivamente formado se bio-origina pela oxidação enzimática do anel aromático através do sistema MFO, conduzindo ao óxido de areno ou epóxido correspondente (1.64). Tal intermediário sofre um rearranjo regioespecífico de hidreto (NIH-shift), conduzindo ao composto para- hidroxilado (1.65). O rearranjo NIH é favorecido pela presença de substituintes que não estabilizem o carbocátion intermediário formado, contribuindo para sua maior reatividade52 (Figura 1.50). Uma reação competitiva que pode ocorrer com o óxido de areno intermediário compreende o ataque de uma hidrolase sobre o anel oxirânico tensionado, produ- zindo o diol correspondente, como ilustrado para o benzo[a]pireno (1.66), que produz o derivado (1.67) (Figura 1.51).
  • 41. QUÍMICA MEDICINAL 59 FIGURA 1.50 Mecanismos e exemplos de formação de óxidos de FIGURA 1.51 arenos. Formação de dióis a partir de óxidos de arenos.
  • 42. 60 capítulo 1 ASPECTOS GERAIS DA AÇÃO DOS FÁRMACOS O mecanismo envolvido na formação do óxido de areno proveniente da oxida- ção do benzo[a]pireno (1.66) ilustra que a etapa de oxidação inicial é regiossele- tiva. Outros processos metabólicos apresentam a mesma característica, conforme FIGURA 1.52 é mostrado no metabolismo da papaverina (1.68), derivado isoquinolínico te- Metabolismo da trametoxilado. O produto de O-demetilação (1.69) formado envolve exclusiva- papaverina (1.68). mente a metoxila indicada em vermelho em sua estrutura (Figura 1.52). Outro exemplo ilustrativo da regiosseletividade do processo oxidativo de anéis aromáticos é o produto de oxidação do sistema diarilamina presente no diclofe- naco (1.70) pela isoforma de CYP2C9.53 O principal metabólito origina-se da oxidação do anel aromático mais reativo, contendo a subunidade ácido acético (posição indicada pela seta azul na Figura 1.53). FIGURA 1.53 Regiosseletividade do metabolismo de fármacos aromáticos, ilustrada pelo diclofenaco (1.70). A seta azul indica a posição ativada. À direita, visão estérica de sua estrutura, mostrando, em sombras vermelhas, os sítios estericamente impedidos.
  • 43. QUÍMICA MEDICINAL 61 A labilidade da posição benzílica, fruto de sua maior reatividade, permite que se antecipe o principal sítio de oxidação do celecoxibe (1.71), representante da segunda geração de fármacos antiinflamatórios não-esteróides,54 lançado no Brasil em 1999. A posição benzílica correspondente ao grupo metila (em vermelho na Figura 1.54) permite a formação do álcool e, posteriormente, do ácido carbo- xílico correspondente. FIGURA 1.54 Estrutura do celecoxibe (1.71), indicando em vermelho o principal sítio de oxidação metabólica. À direita, visão estérica da estrutura do celecoxibe (1.71), indicando a metila (com sombra branca) e o grupamento trifluormetila em C-3 do sistema pirazólico (sombra verde). ETAPA DE CONJUGAÇÃO: FASE 2 DO METABOLISMO De maneira geral, os metabólitos de fase 1 apresentam um coeficiente de partição (P) inferior ao do fármaco original, dependendo do nível de variação estrutural do fármaco, inclusive quanto ao peso molecular. Entretanto, a maior polaridade desses metabólitos de fase 1 não é suficiente para assegurar sua eliminação pela principal via de excreção dos fármacos, a renal. Portanto, esses metabólitos sofrem reações enzimáticas subseqüentes, chamadas de conjugação, formando conjuga- dos mais hidrossolúveis, que são excretados na urina, preferencialmente, ou na bile. O Quadro 1.4 ilustra as principais reações de conjugação envolvidas no meta- bolismo dos fármacos. Cabe destacar que as reações de metilação e acetilação não aumentam a polaridade do metabólito, contribuindo, em geral, para sua bioinativação. Quando essa via de conjugação predomina na fase 2 do metabolis- mo de um fármaco, ocorre, como conseqüência, aumento de sua vida-média. Outra reação de fase 2 relevante compreende a conjugação com glutatião, um tripeptídeo sulfidrílico (GSH), que promove reações de bioinativação de eletrófilos biológicos (vide infra). Cabe mencionar que a presença de funções lábeis às enzimas que participam da fase 2 do metabolismo em um determinado fármaco, permite que a etapa de conjugação ocorra independentemente da fase 1, o que, geralmente, reduz a meia-vida deste fármaco. Quando este processo ocorre, diz-se que o fármaco em questão sofre efeito de primeira passagem.