Este documento trata de um pedido de habeas corpus preventivo impetrado pela Defensoria Pública da União em favor de uma paciente e sua filha para assegurar o direito ao cultivo e uso da Cannabis para fins medicinais. O pedido requer uma ordem de salvo-conduto para impedir que as autoridades policiais interfiram no cultivo e uso da Cannabis para tratamento da filha da paciente, portadora de autismo, cuja condição melhora significativamente com o uso do óleo de Cannabis. Após analisar os documentos médicos apresentados,
1. PROCESSO Nº: 0825358-20.2019.4.05.8300 - HABEAS CORPUS CRIMINAL
IMPETRANTE:
REPRESENTANTE: DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO
IMPETRADO: POLÍCIA FEDERAL DE PERNAMBUCO e outro
4ª VARA FEDERAL - PE (JUIZ FEDERAL TITULAR)
D E C I S Ã O
Trata-se de Habeas Corpus Preventivo (id. 13057366), com pedido de liminar, impetrado pela
DEFENSORIA PÚBLICO DA UNIÃO em favor da paciente
já qualificada, contra suposto ato de coação ilegal iminente em vias de ser praticado
pelas autoridades apontadas coatoras (SUPERINTENDENTE REGIONAL DO
DEPARTAMENTO DA POLÍCIA FEDERAL EM PERNAMBUCO, CHEFE DA
POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DE PERNAMBUCO e CHEFE DA POLÍCIA CIVIL
DO ESTADO DE PERNAMBUCO), considerado ameaçador da liberdade de locomoção da
paciente.
Ao final do writ, a DPU requer a concessão das seguintes providências:
a) seja concedida, initio litis e inaudita altera parte, ordem de salvo-conduto em favor da
paciente para assegurar que os agentes policiais se abstenham de atentar contra a sua liberdade
de locomoção, em razão da presença concomitante dos requisitos periculum in mora e fumus
boni iuris, e também, por ser necessário, segundo ordens médicas e reconhecido pelo órgão do
Estado, que a filha da paciente, , precisa do tratamento com
Cannabis medicinal, bem como fiquem impedidos de apreender as sementes das plantas
eventualmente importadas e mudas das plantas utilizadas nos respectivo tratamento terapêutico,
até decisão definitiva de mérito no presente Writ, por este Juízo;
b) seja dispensada a prestação de informações pelas autoridades apontadas como coatoras
conforme expressa previsão legal contida nos artigos 662 e 664 do CPP;
c) sejam os autos remetidos ao MPF para manifestação;
d) a declaração incidental de inconstitucionalidade do artigo 28, §1º, da Lei Federal nº
11.343/2006;
e) ao final, no mérito, seja confirmada a concessão da ordem de salvo-conduto em favor da
paciente , a fim de que as autoridades encarregadas,
Polícias Federal, Civil e Militar, competentes para receber eventuais denúncias, sejam
impedidas de proceder à prisão em flagrante da paciente pelo cultivo, uso, porte e produção
artesanal da Cannabis para fins exclusivamente terapêuticos, bem como se abstenham de
apreender os vegetais da planta utilizados para produzir os medicamentos necessários e ora
tutelados pelo presente mandamus; e
f) conste no salvo-conduto, autorização para porte, transporte/remessa de plantas e flores para
teste de quantificação e análise de canabinóides através de guia de remessa lacrada
confeccionada pelo próprio Paciente, aos órgãos entidades de pesquisa, ainda que em outra
unidade da federação, para que seja possível a feitura da parametrização laboratorial e o
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2. exercício e fruição plena de seus direitos constitucionais.
O impetrante alega que a competência deste Juízo decorre do rol de autoridades coatoras,
notadamente por constar referência ao nome do Superintendente Regional da Polícia Federal em
Pernambuco.
Explica que a medida pretendida é necessária para tutelar o cultivo caseiro da Cannabis,
consistente na aquisição da matéria-prima para florescimento das plantas, as quais germinam e
iniciam as suas vidas a partir de sementes altamente especializadas.
Argumentou, ainda, que a Polícia Federal instaurou, no país, inúmeros inquéritos com o
objetivo de apurar a importação de sementes de maconha, os quais culminaram com
indiciamento dos investigados pelos crimes de tráfico internacional de drogas (art. 33, c/c art.
40, I, da Lei nº 11.343/2006) ou contrabando (art. 334-A, do CP).
Requereu, assim, que fosse concedido liminarmente o salvo-conduto, determinando-se que as
autoridades policiais encarregadas de investigar e repreender o tráfico se abstenham de adotar
qualquer medida voltada a cercear a liberdade de locomoção da paciente, bem como de
apreender materiais, insumos, plantas e óleo, ou mesmo destruí-los, possibilitando o efetivo
acesso e exercício de seu direito à saúde e dignidade, até a não mais necessidade de uso de óleo
de cânhamo.
Por fim, para lastrear seu pedido, a impetrante juntou farta documentação, a saber: estudos
científicos e reportagens sobre o uso da Cannabis para fins terapêuticos, laudos médicos,
extratos de julgamentos sobre a matéria, cabendo destacar os seguintes:
(a) Atestados médicos de fls. 31/32, os quais comprovam que
possui autismo;
(b) Laudo médico de fl. 35, subscrito pelo neurologista Ronaldo Beltrão, atestando que
"tem características clínicas do TRANSTORNO DO ESPECTRO
AUTISTA (TEA) LEVE, CID 10: F84.0, ou seja, déficit de desenvolvimento da linguagem e
padrões restritos do comportamento e transtorno do processo sensorial com baixo limiar à
frustração; "
(c) Laudo médico de fl. 36, subscrito pelo neurologista Rodrigo Cariri Chalegre de Almeida,
em 05/07/2019, atestando "para os devidos fins de obtenção legal de óleo de cannabis que a
menor , 09 anos e acompanhada neste serviço pela CID (F84.0), com significativa
melhora clínica o uso do óleo de cannabis" (fl. 36);
(d) Termo de responsabilidade/esclarecimento para a utilização excepcional de medicamento à
base de substâncias sujeitas a controle especial sem registro no Brasil, preenchido em
04/05/2018, pelo médico Pedro da Costa Mello Neto, responsável pelo tratamento e
acompanhamento de (fls. 38/39);
(e) Laudo médico de fl. 40, subscrito pelo neurologista Rodrigo Cariri Chalegre de Almeida,
em 19/10/2019, atestando que "acompanha a paciente , portadora de autismo leve, pelo
que faz uso de óleo de canais rica em CBD (canabidiol); "
(f) Relato médico de fls. 41/42, elaborado por Rodrigo Cariri Chalegre de Almeida, em
19/1/2019, descrevendo detalhadamente o histórico de .
Ainda, no Id. 13098034, a DPU presta mais esclarecimentos instruídos com documentos anexos
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3. (Ids. 13098035, 13098062, 13098066, 13098076, 13098268), a respeito da tomada de eventuais
providências, caso deferida a liminar em questão, quais sejam:
a) O plantio para extração do óleo de Cannabis poderá ocorrer ou por meio de importação das
sementes (compra em sites estrangeiros especializados em tais produtos, ex.:
www.helveticseeds.com) ou por meio de fornecimento pela ABRACE, associação sediada em
João Pessoa/PB, que possui autorização da Justiça Federal para cultivo de Cannabis e produção
do óleo, tendo a referida entidade concordado em cooperar;
b) Produção artesanal do óleo, a ser ministrado à filha da paciente, , na própria
residência da paciente, passando por análise e controle de qualidade através da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, que se disponibilizou a fazer tal estudo, ou, ainda, por professores e
pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco, que informaram verbalmente à DPU
que teriam condições técnicas de realizar o controle de qualidade. Ao final, a DPU reitera o
pedido de concessão da liminar.
É o relatório.
Decido.
Preliminarmente verifico a competência da Justiça Federal por estar incluído nos pedidos a
possibilidade de importação das sementes, o que atrairia a competência criminal da justiça
federal, bem como pelo fato de constar entre as autoridades coatoras a superintendente da
polícia federal.
Mérito
Reconhecendo a inequívoca natureza urgente do pedido, dispensei, neste momento inicial, a
intimação do MPF, como requerido pela impetrante, para que exarasse parecer, o qual deverá
ser, necessariamente, colhido antes da manifestação final deste Juízo.
Debate-se no presente Habeas Corpus, em suma, o conflito existente entre o direito à saúde da
menor , portadora de doença cujo controle não vem sendo
possível sem o uso de produto à base de Cannabis, e a omissão do Poder Público na
regulamentação do cultivo e manipulação dessa planta para fins exclusivamente medicinais,
discussão essa que não pode ser desconsiderada por este Juízo em sede de cognição sumária.
Com efeito, o direito à saúde se insere na órbita dos direitos sociais constitucionalmente
garantidos. Trata-se de um direito público subjetivo, uma prerrogativa jurídica indisponível
assegurada à generalidade das pessoas:
"Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o
transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a
assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. "
"Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e
econômicas que visem à redução dos riscos de doença e de outros agravos e o acesso universal
e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".
Tal preceito é complementado pelo art. 2º da Lei n. º 8.080/90, que regulamentou o Sistema
Único de Saúde, bem como estabeleceu princípios e diretrizes para a saúde no país:
"A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições
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4. indispensáveis ao seu pleno exercício".
Nesse ponto, cabe sublinhar a definição de saúde dada por Henrique Hoffmann Monteiro
Castro[1]:
"Corresponde a um conjunto de preceitos higiênicos referentes aos cuidados em relação às
funções orgânicas e à prevenção das doenças. Em outras palavras, saúde significa estado
normal e funcionamento correto de todos os órgãos do corpo humano, sendo os medicamentos
os responsáveis pelo restabelecimento das funções de um organismo eventualmente debilitado.
"
O mencionado autor ensina, ainda, que a tutela do direito à saúde apresenta duas faces: uma de
preservação e outra de proteção. Enquanto a preservação da saúde se relacionaria às políticas
de redução de risco de uma determinada doença, numa órbita genérica, a proteção à saúde se
caracterizaria como um direito individual, de tratamento e recuperação de uma
determinada pessoa.
Ademais, também é interessante a definição proposta por Hewerston Humenhuk[2]:
"A saúde também é uma construção através de procedimentos. (...) A definição de saúde está
vinculada diretamente a sua promoção e qualidade de vida. (...) O conceito de saúde é,
também, uma questão de o cidadão ter direito a uma vida saudável, levando a construção de
uma qualidade de vida, que deve objetivar a democracia, igualdade, respeito ecológico e o
desenvolvimento tecnológico, tudo isso procurando livrar o homem de seus males e
proporcionando-lhe benefícios. "
A Constituição Federal não faz qualquer distinção no que tange ao direito à saúde, englobando
expressamente o acesso universal a ações de promoção, proteção e recuperação de saúde, nos
âmbitos individual e genérico. Seguem-se as linhas traçadas pela Organização Mundial de
Saúde, segundo a qual, a saúde se caracteriza como o completo bem-estar físico da sociedade e
não apenas como a ausência de doenças.
Ora, considerando que o direito à saúde se caracteriza como bem jurídico indissociável do
direito à vida, é certo que o Estado tem o dever de tutelá-la.
Neste contexto, não me parece razoável privar a ora paciente de ter acesso a produto que
contenha Cannabis Sativa e único que poderá garantir a sobrevivência de sua filha menor com
um mínimo de qualidade de vida, apenas por questões menos relevantes que o direito à vida,
assegurado pela Constituição Federal.
Os documentos juntados aos autos comprovam que, como bem esclareceu a DPU, "com o início
do uso do extrato de maconha, apresentou melhora significativa: passou dormir sem
medicamentos (antes era dependente rispiridona), ficou menos agitada, reduziu-se sua
agressividade com as outras crianças e teve melhoras no comportamento. Isso fez com que ela
fosse chamada para o convívio em festas das outras crianças, o que antes não acontecia. Mais
recentemente, na audiência pública ocorrida na Defensoria Pública da União para tratar do
uso medicinal da Cannabis, deu pessoalmente seu depoimento sobre os efeitos do óleo
de Cannabis, algo que seria impensável antes de iniciar o tratamento com a referida
substância. Ela também apresentou melhoras no aspecto cognitivo e nas convulsões que
sofria. Ela costumava ter cinco a oito crises por semana. Após o uso do CBD, ao longo de
dois anos, ela apresentou apenas duas crises. Tamanho efeito positivo levou seu médico a
suspender o Depakene. "
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5.
6.
7. Os atestados médicos acostados indicam que o tratamento com uso do óleo de cannabis resultou
em significativa melhora clínica (Laudo médico de fl. 36, subscrito pelo neurologista Rodrigo
Cariri Chalegre de Almeida, em 05/07/2019 - vinculado ao SUS).
Dessa forma, claro está que o intuito exclusivo, devidamente comprovado e justificado da
paciente é o uso da planta para fim medicinal.
A importação da semente, seu cultivo e a produção do óleo/extrato para fim exclusivamente
medicinal descaracteriza o dolo ínsito aos tipos penais da lei 11.343/06.
Como se vê, o fumus boni iuris é patente.
Por outro lado, o periculum in mora se mostra igualmente presente, pois, caso não seja
expedido o salvo conduto, ficará à mercê da fiscalização
de autoridades policiais, sendo iminente a sua prisão pela prática do crime de tráfico de
entorpecentes com conexão internacional, na medida em que a matéria prima ou sementes
usadas no cultivo da Cannabis são importadas.
Diante do exposto, DEFIRO a medida liminar requerida, concedendo à paciente
o salvo-conduto para que as autoridades coatoras se abstenham de
adotar qualquer medida voltada a cercear a sua liberdade de locomoção, na ocasião da
importação de sementes ou no seu recebimento das sementes/mudas junto à associação
ABRACE, bem como na produção e cultivo do vegetal Cannabis Sativa (dentro de sua
residência) em quantidade suficiente para produção de seu próprio óleo, com fins
exclusivamente medicinais, bem assim o transporte dos vegetais in natura nos trajetos (ida e
volta) entre a residência da paciente e a associação ABRACE, localizada em João Pessoa/PB, e
na remessa e retorno do extrato medicinal para o LATOX-UFRJ, com o fim de parametrização
com testes laboratoriais para a verificação da quantidade dos canabinóides presentes nas plantas
cultivadas, qualidade e níveis seguros de utilização dos seus extratos.
Determino, ainda, que:
Os restos de todo o processo (desde o cultivo até a extração) devem ser utilizados apenas como
adubo e não descartados com o lixo comum.
A paciente (responsável pela criança), deverá elaborar relatórios prestando informações sobre
quantidade de sementes ou mudas, espécie, extrações e remessas para avaliação, bem como
trazer atestado médico de acompanhamento da criança, a ser apresentado trimestralmente
nos autos até o trânsito em julgado do mérito do presente habeas corpus.
Importa advertir, po fim, que a concessão desta liminar obriga a que a paciente observe
estritamente os termos aqui estabelecidos, ficando ciente de que a autorização ora concedida é
pessoal, instransferível, de modo que não poderá, sob nenhuma hipótese, doar ou transferir, a
qualquer título, a matéria prima (ou parte dela) adquirida a terceiros, e para qualquer outra
finalidade não prevista nesta decisão, sob pena de incorrer nas sanções penais previstas pela Lei
nº 11.343/2006.
Dispenso a oitiva das autoridades apontadas como coatoras nos termos do art.662 do CPP.
Intime-se a Subsecretaria de Aduana e Relações Internacionais da Receita Federal do Brasil
para ciência e conhecimento do teor desta decisão.
Após, intimação do Ministério Público Federal para fins de manifestação, no prazo de 05
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8. (cinco) dias.
Intime-se. Publique-se.
Recife, 19 de dezembro de 2019.
ETHEL FRANCISCO RIBEIRO
Juíza Federal Titular da 34ª Vara/PE, respondendo pela 4ª Vara/PE
[1] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Do direito público subjetivo à saúde:
conceituação, previsão legal e aplicação na demanda de medicamentos em face do Estado-
membro. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6783 Acesso em
17.mar.2010.
[2] HUMENHUK, Hewerstton. O direito à saúde no Brasil e a teoria dos direitos fundamentais.
Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4839&p=2 Acesso em 17.mar.2010.
[3] Decisão prolatada pelo Juízo da 2ª Vara Federal/PE, nos autos do processo n.º
0800333-82.2017.4.05.8200.
Processo: 0825358-20.2019.4.05.8300
Assinado eletronicamente por:
ETHEL FRANCISCO RIBEIRO - Magistrado
Data e hora da assinatura: 19/12/2019 21:20:20
Identificador: 4058300.13109215
Para conferência da autenticidade do
documento:
https://pje.jfpe.jus.br/pje/Processo
/ConsultaDocumento/listView.seam
19121916443908000000013139037
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