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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO 
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS 
FACULDADE DE SERVIÇO SOCIAL 
RAPHAEL MAGNUS SILVA ORTIZ 
NO BALANÇO DO TREM: PERFIL DOS TRABALHADORES AMBULANTES DOS TRENS DO RAMAL DE SANTA CRUZ 
Rio de Janeiro 
Março de 2013
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RAPHAEL MAGNUS SILVA ORTIZ 
NO BALANÇO DO TREM: PERFIL DOS TRABALHADORES AMBULANTES DOS TRENS DO RAMAL DE SANTA CRUZ 
Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação apresentado à Faculdade de Serviço Social do Centro de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro para a obtenção do título de Assistente Social 
Orientadora: Profª. Drª. Rosangela Nair de Carvalho Barbosa 
Rio de Janeiro 
Março de 2013
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NO BALANÇO DO TREM: PERFIL DOS TRABALHADORES AMBULANTES DOS TRENS DO RAMAL DE SANTA CRUZ 
RAPHAEL MAGNUS SILVA ORTIZ 
Aprovado em ____/____/_____. 
BANCA EXAMINADORA 
_________________________________________________ 
Rosangela Nair de Carvalho Barbosa (orientadora) 
Profª. Drª. Adjunta da Faculdade de Serviço Social da UERJ 
__________________________________________________ 
Cleier Marconsin 
Profª. Drª. Adjunta da Faculdade de Serviço Social da UERJ 
__________________________________________________ 
Isabel Cristina da Costa Cardoso 
Profª. Drª. Adjunta da Faculdade de Serviço Social da UERJ 
CONCEITO FINAL: _____________________
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À Maria Regina da Silva, minha vó, trabalhadora incansável (in memoriam)
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“É triste ver este homem, guerreiro menino, Com a barra de seu tempo por sobre seus ombros. Eu vejo que ele berra, eu vejo que ele sangra. A dor que traz no peito, pois ama e ama. Um homem se humilha se castram seu sonho. 
Seu sonho é sua vida e a vida é trabalho. E sem o seu trabalho, um homem não tem honra. 
E sem a sua honra, se morre, se mata”. 
Raimundo Fagner – Guerreiro Menino 
"Mas pra quem tem pensamento forte 
O impossível é só questão de opinião”. 
Chorão- Só os Loucos Sabem
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RESUMO 
Esta monografia tem como objeto o trabalho informal dos trabalhadores ambulantes, especificamente os que desenvolvem suas atividades laborativas nos trens do ramal de Santa Cruz no Rio de Janeiro. Temos por objetivo identificar os fatores que levam estes trabalhadores a adotarem esta atividade informal como sua ocupação. Nossa hipótese é que esta opção de trabalho decorre da facilidade com que esses sujeitos, através da atividade ambulante, encontram para adquirir uma renda, constituindo-se uma forma mais rápida de colocação no mercado de trabalho, assumindo assim, como uma estratégia de sobrevivência imediata, para além dos limites que caracterizam seu perfil, tais como a baixa escolaridade, a falta de qualificação e a faixa etária elevada. Para tal, partimos do acumulado teórico sobre o tema, tendo como instrumental metodológico a realização de entrevistas semi-estruturadas, com informantes-chave, bem como os trabalhadores ambulantes a fim de se delinear o perfil de cada um dos tipos de trabalho ambulante desenvolvido no espaço dos trens do ramal de Santa Cruz. Como resultados a pesquisa apresentou um quadro complexo de determinantes e situações que condicionam as escolhas e permanências neste tipo de trabalho. 
Palavras-chave: Trabalho informal. Trabalho ambulante no trem. Segregação sócio- espacial.
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SUMÁRIO 
INTRODUÇÃO......................................................................... 
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Capítulo I 
AS MÚLTIPLAS FACES DA INFORMALIDADE E AS MUDANÇAS DO MUNDO DO TRABALHO............................ 
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1.1- 
A informalidade e sua função estratégica no Capitalismo....... 
15 
1.2- 
Particularidades da informalidade do trabalho no Brasil......... 
25 
Capítulo II 
PENSANDO O TRABALHO INFORMAL NOS TRENS DO RAMAL DE SANTA CRUZ...................................................... 
32 
2.1- 
O trem e sua função estratégica na reprodução social.......... 
33 
2.2- 
Um transporte pobre para os pobres: o processo de degradação dos trens urbanos do Rio de Janeiro.................. 
43 
2.3- 
Trabalho ambulante como elemento integrante da sociabilidade nos trens............................................................ 
46 
2.4- 
―No fio da navalha‖: a insegurança do trabalho ambulante e a possibilidade de organização política.................................. 
60 
Capítulo III 
TRAJETÓRIA DE TRABALHO DOS AMBULANTES DOS TRENS DE SANTA CRUZ....................................................... 
70 
3.1- 
Caracterização da pesquisa de campo para as entrevistas.... 
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3.2- 
―O retrato falado‖ dos ambulantes no trem: trabalho e trajetória de vida...................................................................... 
74 
3.3- 
Quem são os trabalhadores ambulantes ligados às empresas?.............................................................................. 
86 
3.4- 
Quem são os trabalhadores ambulantes ―soltos‖?................. 
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CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................... 
143 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................... 
147 
ANEXOS................................................................................ 
154
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INTRODUÇÃO 
Esta monografia tem por objetivo apresentar resultados da pesquisa sobre o trabalho informal realizado por trabalhadores ambulantes dos trens do ramal de Santa Cruz, no Rio de Janeiro. 
Esta pesquisa foi gestada a partir de 2011, com os exercícios propostos na Disciplina de Pesquisa Social sendo enriquecido, posteriormente nas Disciplinas de Oficina de Pesquisa e concretizado nas Disciplinas de Seminário de Trabalho de Conclusão I e Seminário de Trabalho de Conclusão II. Nesse processo, construímos uma dinâmica que possibilitou que aprofundássemos conhecimento sobre o debate contemporâneo acerca da produção acadêmica a respeito do trabalho informal. 
O interesse pelo tema surgiu da observação aleatória sobre o considerável quantitativo de trabalhadores neste transporte de massa popular, durante nossos eventuais deslocamentos nesse núcleo urbano formado pela cidade do Rio de Janeiro e área metropolitana. Percebemos que ali, além do grande número de pessoas que recorrem a este tipo de trabalho, algumas outras características são peculiares, e foram imediatamente percebidas, como a predominância de uma mão de obra masculina e um perfil etário bastante diversificado. Estas particularidades nos fizeram pensar os motivos que levam esta fração de trabalhadores a optarem por tal atividade. 
O trabalho de campo foi precedido da devida revisão teórica sobre a produção relativa à temática da informalidade. A fim de ultrapassarmos a aparência do fenômeno do trabalho ambulante no trem, recorremos ao acumulado teórico sobre a
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temática do trabalho informal, o que possibilitou a reflexão sobre o tema e o estabelecimento das devidas relações entre o dado singular desses trabalhadores nos trens do Rio, sua ligação com o particular deste fenômeno no Brasil. Assim como, a visualização do panorama mais universal do trabalho no mundo, a partir das atuais configurações do capital e suas inferências no mundo do trabalho. 
Para tanto, a metodologia da pesquisa envolveu levantamento e análise bibliográfica, aplicação de questionários e realização de entrevistas semi- estruturadas. Portanto, contamos com fontes de dados primárias e secundárias. Do confronto desses dados elaboramos reflexão no quadro da tradição crítico-dialética da sociedade, procurando entender o tema dentro do contexto da crítica da sociabilidade capitalista. 
Escolhemos como amostra para apreciação empírica o trabalho ambulante realizado nos trens do ramal de Santa Cruz, no Rio de Janeiro. A estratégia escolhida para a coleta dos dados foi a de abordagem direta aos ambulantes, por meio da aplicação de questionário, no qual foram colhidas informações objetivas que possibilitem traçar um perfil geral de tais trabalhadores, bem como a captação de percepções acerca do próprio trabalho realizado, entre outras questões correlacionadas à atividade ambulante. Para além desses trabalhadores, outros informantes chaves também foram entrevistados, a fim de que pudéssemos obter informações preliminares acerca das problemáticas que envolviam o trabalho ambulante nos trens, bem como de opiniões ―de fora‖ do núcleo duro da ação ambulante no ramal de Santa Cruz. 
Conforme se verá, a informalidade é um fenômeno anacrônico no interior da sociedade capitalista, que passa a ser considerado um problema empírico e
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conceitual somente a partir da década de 1970. Como a massificação do pleno emprego não se tornou uma realidade em todos os países capitalistas, o trabalho informal se fortaleceu como uma realidade latente, especialmente entre os chamados países da periferia, dependentes no sistema mundial. A história mostrou os limites das matrizes liberais burguesas do desenvolvimento geral dos povos, com a incorporação aos benefícios dos avanços do desenvolvimento baseado no crescimento produtivo. 
Neste sentido, segundo esta perspectiva, a informalidade era um dado que não combinava com os padrões de desenvolvimento capitalista, parecendo algo ―fora do sistema‖, ou um sintoma do ―atraso das nações subdesenvolvidas‖. Assim sendo, a Teoria da Marginalidade será o mote sobre o qual irão surgir os primeiros estudos sobre este fenômeno. 
A informalidade é muitas vezes apresentada aos trabalhadores como uma alternativa para a geração de renda, diante da agigantada escala de desemprego. Deste modo, ideologicamente, é possível se observar incentivos de cunho liberal para que esta fração da população economicamente ativa constitua o ―seu próprio negócio‖, alimentado-a com a ideia da independência e do protagonismo econômico. No entanto, a realidade esconde a ―outra face desta moeda‖: os grandes sacrifícios pessoais que estão embutidos no trabalho informal. 
Por outro lado, para além do dado ideológico, e diante da necessidade imediata de sobrevivência, o trabalhador informal necessita garantir o seu sustento e de sua família, fazendo do recurso a este tipo de trabalho uma saída imediata para sua situação.
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Nesta pesquisa assumimos outra compreensão sobre a interpretação do fenômeno da informalidade. Aqui assumimos o entendimento de que as próprias atividades informais não são estranhas àquelas formais, de modo que não podem ser percebidas sem a sua íntima relação com as formais, uma vez que àquelas, ao contrário do que parece ser, não estão fora da dinâmica de acumulação capitalista. A informalidade é uma ―produção‖ da extensão do capitalismo, e funcional para a mesma (OLIVEIRA, 2003, p.33). 
Assim, a monografia se propõe a pensar essa dialética no contexto do quadro das novas configurações do mundo do trabalho, em consequência da reestruturação do capital nas últimas décadas, que trouxe mudanças estruturais na sociedade como um todo, desde o centro da economia do capital até sua periferia. Nesse contexto, o Brasil, como nação aspirante a uma economia desenvolvida, reproduz as sequelas deste sistema, acentuando ainda mais as disparidades socioeconômicas entre sua população. No campo do trabalho, o fenômeno da informalidade, que já era presente de forma cultural e institucional no país, agora se sedimenta como opção estruturante da economia, servindo como uma ―alternativa‖ para abarcar uma massa de trabalhadores presente de forma estrutural no desemprego. 
Assim sendo, a hipótese deste estudo é a de que os fatores que levam os trabalhadores ambulantes dos trens do ramal de Santa Cruz no Rio de Janeiro a adotarem esta atividade como sua ocupação principal decorrem da facilidade com que esses sujeitos, através dela, encontram para adquirir uma renda, constituindo-se uma forma mais rápida de colocação no mercado de trabalho assumindo assim como uma estratégia de sobrevivência imediata. A falta de perspectiva de reinserção no mercado de trabalho formal devido aos vários fatores que compõem o perfil desta
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população - a baixa escolaridade, a falta de qualificação e a faixa etária elevada ou baixa - tendem a favorecer a inserção nesta atividade informal como sendo, em muitos casos, a única alternativa para esses trabalhadores. Soma-se a isso, a relativa autonomia que estes trabalhadores informais têm sobre o seu trabalho, no que diz respeito ao horário de trabalho e a obtenção de um rendimento maior do que teriam se estivessem empregados formalmente. Aliás, essa relativa e aparente autonomia pode ser considerada fator de retenção e permanência do trabalhador na própria atividade, como uma difícil sina de repetição em cada estação da vida. Estão no trem por falta de emprego e por baixa escolarização, e estando no trem não têm como superar esses limites porque o trabalho é penoso e fadigante. 
Assim sendo, estruturamos a exposição esta pesquisa da seguinte forma: no primeiro capítulo, apresentamos a revisão teórica acerca da informalidade do trabalho e suas diferentes acepções, da década de 1970 até hoje. Na primeira parte procuraremos demonstrar a funcionalidade estratégica da informalidade ao capitalismo, mostrando que o baixo nível de renda aferido nestes empreendimentos arcaicos representa custo de comercialização dos produtos industrializados e de produtos agropecuários que são postos fora dos custos internos de produção e reforçam a acumulação nas unidades centrais do sistema. Na segunda parte abordaremos as peculiaridades do trabalho informal no Brasil, que diferentemente de outras nações, mesmo antes das grandes mudanças estruturais do mundo do trabalho, já apresentava, desde muito tempo, a concentração de consideráveis contingentes não assalariados em atividades laborativas informais.
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Em seguida, no segundo capítulo, nos deteremos na especificidade do trabalho ambulante nos trens do ramal de Santa Cruz, no Rio de Janeiro. Inicialmente, faremos um resgate histórico do papel do trem na constituição e desenvolvimento da cidade do Rio de Janeiro e da Região Metropolitana ao redor. Daremos ênfase ao contexto das relações sociais desiguais construídas no processo de urbanização da cidade. A seguir nos deteremos no trabalho dos ambulantes nos trens do ramal de Santa Cruz, descrevendo a sociabilidade criada no interior deste espaço, bem como as origens da organização política dos trabalhadores. 
Esperamos, através deste capítulo, demonstrar a linha de proximidade da vivência de precariedade social entre os trabalhadores ambulantes e os passageiros dos trens, que coletivamente formam a classe subalterna, que compartilha as precariedades cotidianas da vida e do trabalho na periferia urbana fluminense. 
No terceiro e último capítulo desta monografia apresentaremos o trabalho ambulante no trem através da análise do perfil de cada um dos tipos de trabalho ambulante desenvolvido no espaço dos trens do ramal de Santa Cruz. Para isso faremos, no início, um breve relato sobre o percurso metodológico empreendido no trabalho de campo, e, logo após, faremos uma síntese das entrevistas realizadas, destacando a vivência particular de cada ambulante com relação à trama maior do trabalho informal na qual estão inseridos. Por fim, descreveremos o perfil tanto dos ambulantes ligados às empresas, como os não ligados às mesmas. 
Objetivamos neste capítulo, captar as semelhanças e diferenças entre esses diferentes atores sociais, de modo a tornar mais visível as experiências vivenciadas no trabalho ambulante no trem e a sua relação com o contexto estrutural do mundo do trabalho, quando é possível tornar inteligível o fenômeno da informalidade.
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Capítulo 1: AS MÚLTIPLAS FACES DA INFORMALIDADE E AS MUDANÇAS DO MUNDO DO TRABALHO 
“Se a aparência e a essência das coisas coincidissem, a ciência seria desnecessária.” MARX, Karl. O capital (livro III, 2º tomo). São Paulo: Abril, 1983, p. 271. 
Neste capítulo pretendemos situar a temática da informalidade do trabalho, recorrendo a algumas variantes históricas. Em primeiro lugar, procuraremos situar o papel estratégico da informalidade no sistema capitalista. Para tal, remontaremos os antecedentes históricos da construção social do termo, nos idos da década de 1960 do século passado, passando por algumas das vertentes teóricas que versam sobre as questões relativas ao trabalho. Ao final apresentaremos, brevemente, algumas características típicas do trabalho informal. 
Seguidamente vamos nos deter, especificamente, no trabalho informal no Brasil, procurando evidenciar as suas particularidades e a relação com o contexto mais amplo, no âmbito do capitalismo globalizado. 
De maneira geral, o que se deseja mostrar neste capítulo é a funcionalidade do trabalho informal no sistema capitalista, na medida em que colabora com o processo de acumulação, ainda que, aparentemente, apresente-se como um elemento anacrônico à sociedade do trabalho assalariado. 
1.1- A informalidade do trabalho e sua função estratégica no Capitalismo 
Iniciamos essa reflexão situando que o tratamento do tema da informalidade deita raízes nos esforços teóricos para explicar as disparidades socioeconômicas entre os países. Alves e Tavares (2006) destacam a influência da teoria da
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marginalidade, que orientou as políticas de governo dos países da América Latina na década de 1960. Também conhecida como teoria do subdesenvolvimento, a teoria da marginalidade apregoava que o trabalho informal, entendido como ―trabalho de tipo não capitalista‖ eram causas do subdesenvolvimento dos assim chamados países do ―terceiro mundo‖. Para os teóricos dessa corrente ―a urbanização dos países latino-americanos aconteceu sem que ocorressem transformações econômicas capazes de absorver uma crescente oferta de força de trabalho‖ (idem, p 426). O argumento é que o hiato entre os processos de urbanização e industrialização provocariam a permanência de estruturas arcaicas, sobreviventes e coexistentes com as práticas sociais mais tipicamente capitalistas. 
Tal fenômeno fomentou uma desconcentração da força de trabalho no setor secundário (industrial) e um superdimensionamento desta mesma força no setor terciário (serviços), aumentando, por sua vez as populações sobrantes vivendo em situação de emprego e subemprego (OLIVEIRA, 2003, p. 54-57). 
Posteriormente, quando os governos latino-americanos se colocaram o dilema de equalizar o desenvolvimento econômico e social, recorreram a novas análises sobre os espaços urbanos, cenários nos quais se concentravam o capital industrial e um crescente contingente populacional. 
Neste sentido, a Cepal (Comissão Econômica para América Latina)1 encarrega-se de elaborar esta nova análise sobre o subdesenvolvimento econômico. 
1 ―Uma das cinco comissões econômicas regionais das Nações Unidas (ONU) criada para monitorar as políticas direcionadas à promoção do desenvolvimento econômico da região latino-americana, assessorar as ações encaminhadas para sua promoção e contribuir para reforçar as relações econômicas dos países da área, tanto entre si como com as demais nações do mundo. Posteriormente, seu trabalho ampliou-se para os países do Caribe e se incorporou o objetivo de promover o desenvolvimento social e sustentável.‖ Disponível em: http://www.cepal.org/cgi- in/getProd.asp?xml=/brasil/noticias/paginas/2/5562/p5562.xml&xsl=/brasil/tpl/p18f.xsl&base=/brasil/tpl/top-bottom.xsl Acesso em 24 de setembro de 2012).
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Baseadas numa perspectiva estruturalista, os teóricos cepalinos buscaram explicar tal subdesenvolvimento latino-americano, igualmente a partir de uma concepção dualista da realidade, ou seja, para estes, ―a dependência econômica seria a causa da marginalização de amplos setores da população urbana, impedindo a incorporação deles no mercado formal de trabalho‖ (ALVES E TAVARES, 2006, p.426). 
Em oposição a estas teses, Kowarick (1981), apontava que no decorrer do desenvolvimento do capitalismo, as formas de produção tradicionais, ―as economias de subsistência, o artesanato e a indústria em domicílio‖ (1981, p.61), não foram extintas. Mas ao contrário, foram incorporadas à divisão social do trabalho, alimentando-se dela durante o processo de acumulação. Deste modo, este fenômeno não deveria ser compreendido como algo distinto, mas, na verdade, apresentava-se como ―inerente ao desenvolvimento do capitalismo latino-americano‖ (Ibidem). Assim sendo, o sistema de acumulação capitalista mantêm formas ―tradicionais‖, bem como incorpora ―novas‖ formas de uso da força de trabalho (idem, p. 54), e assim o fazendo produz-se o seu barateamento, tornando-se um elemento positivo para o incremento do processo de acumulação. 
Para ele, a teoria da marginalidade, de base funcionalista, privilegia a questão do desenvolvimento sobre o viés psicossocial da integração social dos indivíduos, reiterando os ―termos da dualidade estrutural que opõe o ‗tradicional‘ ao ‗moderno‘, o ‗marginal‘ ao ‗integrado‖ (KOWARICK, 1981, p. 17). 
Outro crítico das teorias da marginalidade e da dependência foi Oliveira (2003). Para ele ―o desenvolvimento era um problema que também dizia respeito às contradições sociais internas‖ (2003, p. 33). Ou seja, para o autor o modo de análise
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dos ―teóricos do modo de produção subdesenvolvido‖ (ibdem) era insuficiente, pois estes compreendiam a noção de atraso unicamente pelo viés da relação dos países ―subdesenvolvidos‖ latino-americanos com aos desenvolvidos do hemisfério norte. 
No entanto, segundo Oliveira, é necessário também compreender que o problema desta dependência diz respeito igualmente aos problemas das classes sociais internas dos países. Para o autor um conjunto de fatores deixou de ser percebidos pelos teóricos cepalinos: ―as imbricações entre agricultura de subsistência e sistema financeiro‖ (idem p. 129), de modo que a atrasada agricultura financiava a agricultura atrasada e a industrialização, ―a subordinação da nova classe social urbana, o proletariado, ao Estado, e o ‗transformismo‘ brasileiro‖ que opera uma ―revolução produtiva, sem uma revolução burguesa‖. Tais fatores, segundo o autor conferem um ―caráter ‗produtivo‘ ao atraso‖ (idem p.130-131). 
Enfatizando tal crítica ao conceito de desenvolvimento tão caro aos cepalinos o autor assim expressa: 
Penetrado de ambiguidade, o ‗subdesenvolvimento‘ parecia ser um sistema que se move entre sua capacidade de produzir um excedente que é apropriado parcialmente pelo exterior e sua incapacidade de absorver internamente de modo produtivo a outra parte excedente que gera (Idem, p.34). 
Com a modernização das economias nacionais, na década 1970, evidenciam- se as insuficiências das expectativas dos teóricos do subdesenvolvimento. Pois, a despeito do crescimento econômico, um grande contingente populacional não foi incluído no processo produtivo , bem como a hipótese de supressão das economias típicas não capitalistas, tal como apregoado pelos teóricos cepalinos, não se fez real. Para este autor 
As atividades não tipicamente capitalistas eram resultantes e consequências do processo de acumulação capitalista, o qual mantinha parte da força de
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trabalho na reserva, tendo por função pressionar a força de trabalho que estava na ativa (OLIVEIRA, 2003, p.69). 
Assim sendo, mesmo as relações tipicamente não capitalistas de trabalho colaboram para o aumento dos níveis de exploração e acumulação, na medida em que elas reduzem o custo da reprodução da força de trabalho produtiva, e, consequentemente, para o crescimento da proporção de trabalho não pago. 
Pode-se então dizer que, longe de parecer algo estranho à própria constituição econômica capitalista, estas ―formas de subsistências na economia periférica urbana‖ são essenciais para a existência do próprio sistema capitalista, que tem em seu próprio eixo funcional a relação de desigualdade das partes. 
Esses setores que funcionam como satélites das populações nucledas nos subúrbios e, portanto, atendem a populações de baixo poder aquisitivo: por esta forma, os baixos salários dessas populações determinam o nível de ganho desses pseudo-pequenos proprietários (o que parecia uma operação de criação de ―bolsões de subsistência‖ no nível das populações de baixo poder aquisitivo); na verdade, o baixo nível desses ganhos representa custo de comercialização dos produtos industrializados e de produtos agropecuários que são postos fora dos custos internos de produção e reforçam a acumulação nas unidades centrais do sistema (Ibidem, grifo do autor). 
Alves e Tavares (2006) situam no âmbito dos estudos sobre o problema da empregabilidade, organizados pela OIT2 (Organização Internacional do Trabalho), a elaboração das categorias economia ou trabalho informal. A partir da realização dos estudos sobre o problema do emprego, no Quênia, em 1972. 
Nesta pesquisa, a OIT classificou dois seguimentos distintos na ordem produtiva: um denominado setor formal, estruturado por unidades produtivas organizadas; e outro, denominado setor informal, formado por unidades produtivas 
2 A OIT é uma das instituições da ONU (Organização das Nações Unidas) responsável pelas convenções internacionais acerca do trabalho em termos como: emprego, proteção social, recursos humanos, saúde e segurança no trabalho, entre outros. Disponível em: http://www.onu.org.br/onu-no-brasil/oit/ Acesso em 24 de setembro de 2012).
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não organizadas, baixo capital e que eram pouco competitivas. Desde então se popularizou o emprego dos termos nas análises econômicas, especialmente no que diz respeito à economia urbana dos países dependentes (ALVES E TAVARES, 2006, p.427). 
Particularmente as análises e estudos sobre a América Latina, especificamente por meio do Prealc (Programa Regional de Emprego para América Latina e Caribe), no interior da CEPAL, formou-se o entendimento de que as atividades de baixo nível de produtividade, bem como àquelas não reguladas por uma legislação trabalhista seriam pertencentes ao setor informal. Assim sendo, tais análises sobre o conceito de setor informal são vistas especialmente sob a ótica do mercado de trabalho, especificamente no que diz respeito ao emprego e ao subemprego. 
No entanto, tais análises não faziam referência a estreita ligação entre o setor informal e o funcionamento do sistema econômico. Esta concepção só foi elaborada a partir dos anos de 1980, por Souza (1980) e Cacciamali (1983), que passam a definir o setor informal como ―intersticial e subordinado ao movimento das empresas capitalistas‖ (Idem, p. 428). As atividades informais se ampliam quando do crescimento econômico geral, e se retraem quanto este entra em processo de crise. As características de tal setor eram: 
1)O trabalhador vivia de sua força de trabalho e, em alguns casos, utilizava- se do trabalho familiar ou, mais recentemente, subcontratava ajudantes como extensão de seu próprio trabalho; 2) tinha como objetivo a obtenção de renda para consumo individual e familiar, visando manter também sua atividade econômica; essa forma de trabalho não propiciava acumulação ao produtor direto; 3) o proprietário mantinha o domínio sobre a totalidade das etapas que compunham aquela produção (CACCIAMALI apud ALVES E TAVARES, 2006, p.428) 
Tais características do trabalho informal conformam a vida laboriosa daqueles indivíduos impossibilitados de acumular capital. No entanto, a partir da década de
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1990, passam a ser incorporados nos estudos sobre a informalidade, também aqueles trabalhadores inseridos nas crescentes ondas de precarizações no mundo do trabalho empreendidas pelas políticas econômicas neoliberais. Assim sendo, ganha maior força nos debates a respeito à relação dessas formas de trabalho tipicamente não capitalistas e a própria acumulação de capital. Diante disso faz-se necessário superar a limitação do conceito de setor informal, circunscrito na ideia de segmento à parte para o de informalidade. 
Malaguti, caminha nesta direção ao definir que a informalidade é um conceito muito mais amplo que o de setor informal. O autor aborda em sua pesquisa, alguns casos, no qual seria possível constatar situações de trabalho informal por dentro de uma aparente relação de formalidade: 
O funcionário público que durante o expediente vende peças de roupas, perfumes e sabonetes; o assalariado de uma empresa multinacional que faz horas extras sem recebê-las; o mestre de obras de uma grande empreiteira que trabalha sem os utensílios de proteção etc (2000, p. 99). 
Malaguti, deste modo, desconstrói a dualidade e a aparente separação entre a formalidade e a informalidade no âmbito das relações de trabalho. Através dos exemplos é possível perceber que até mesmo as relações reguladas pelo mercado de trabalho, por meio das legislações trabalhistas, portanto, formalizadas, podem ser permeadas por situações de informalidade. Deste modo, mesmo a carteira de trabalho assinada – símbolo maior da formalidade- pode ser um mero ―documento de fachada‖ (Ibdem), na medida em que escamoteia relações de trabalho informalizadas em seu interior. 
Entretanto, o autor continua a problematização da questão ao falar que o inverso também é verdadeiro, ou seja, é possível também verificar elementos de formalidade por dentro do ―setor‖ informal.
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Uma situação exemplar é a do ambulante que é casado com uma funcionária pública [...] Independentemente do fato desta funcionária ajudar o ambulante em suas vendas, seu contracheque público é fundamental para a obtenção de crédito por parte do ambulante-marido. É através da situação relativamente estável de sua esposa que ele financia suas compras junto aos fornecedores (MALAGUTI, 2000, p.100). 
Outro elemento importante levantado pelo autor para a constatação do problema é que a informalidade pode ser construída tanto pela empresa ou instituição, quanto pelo empregado ou funcionário (Idem, p. 101). 
Tais elementos revelam a complexidade do binômio formalidade/informalidade, de modo que, é estabelecida uma espécie de simbiose entre essas duas dimensões, revelando ambas que o conteúdo do trabalho capitalista elucida a sua forma. Deste modo, para efeitos de análise, uma forma não pode ser concebida sem a outra. 
No entanto, apesar de seu caráter abrangente, o conceito informalidade não é unívoco no debate acadêmico. Autores como Noronha (2003) e Machado da Silva (2003), utilizam-se do termo com algumas reservas, ainda que não proponham outro conceito mais apropriado. Para Noronha (2003) o termo informalidade é carregado de ambiguidades, por não distinguir de imediato do que trata especificamente, pois ele serve para descrever uma ―ampla gama de situações urbanas-industriais‖ (2003, p. 116) muito diversas. Para ele o problema do termo não é especificamente acadêmico, mas institucional. 
Neste sentido, para o referido autor a economia informal, ou simplesmente a informalidade, é um termo por demais amplo, sendo preferível, para fins de estudo acadêmico o conceito de informalidade do trabalho. É com esta acepção que pretendemos nos referir, de agora em diante, neste presente trabalho. 
Segundo este autor, as questões do subemprego ou da "informalidade" só podem ser entendidas como resultantes da própria construção da noção de
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"formalidade", que, por sua vez, está associada às noções de cidadania e de direito social (NORONHA, 2003, p.113). 
Por outro lado Machado da Silva (2003) chama atenção para outro aspecto que figura no uso contemporâneo do termo informalidade. Segundo ele, dada as presentes mudanças estruturais no mundo do trabalho, o conceito tem sido usado quase como um sinônimo de ―empregabilidade‖, ou seja, como uma alternativa num ambiente em que o processo produtivo encontra-se em retração, e, consequentemente incorporando poucos trabalhadores no círculo do assalariamento. Assim sendo, segundo o autor, o falacioso discurso do ―empreendedorismo‖, vem substituindo a noção de informalidade (2003, p.164-167). Mas segundo o autor o que ocorre é que o debate acerca da empregabilidade por meio do empreendedorismo tira de cena a questão da injustiça que, de certa forma, o antigo debate da informalidade colocava. 
Outros autores já preferem utilizar-se do conceito de ―processo de informalidade‖, ao conceber que as mudanças estruturais da economia e da sociedade levaram a redefinição da inserção do trabalho no processo de reestruturação das economias em escala mundial, nacional e local. Cacciamali apresenta quatro elementos para se pensar os condicionantes estruturais da economia global, que irão incidir diretamente sobre o processo de informalidade: 
1) os processos de reestruturação produtiva; 2) a internacionalização e expansão do mercado financeiros; 3) o aprofundamento da internacionalização e a maior abertura comercial das economias; 4) a desregulamentação dos mercados (CACCIAMALI apud ALVES E TAVARES, 2006, p. 249). 
Esses eventos diretamente a economia e o emprego, pois geram uma insegurança econômica que impacta negativamente sobre o crescimento econômico, atingindo, consequentemente, o mercado de trabalho.
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Para a autora duas categorias de trabalhadores fazem parte da informalidade: ―os assalariados sem registro‖, contratados de forma ilegal, portanto, sem as garantias e direitos devidos; e, os ―trabalhadores por conta própria‖, que prestam serviço e, eventualmente, contam com o auxilio familiar ou de outros ajudantes para a obtenção de renda para sua reprodução (idem). 
Em suma, podemos dizer que uma das consequências mais visíveis das mudanças recentes do trabalho3 resulta aquilo que Havery (1992) denominou ―acumulação flexível‖4, forjando massas crescentes de trabalhadores sem emprego, engrossando as fileiras daquilo que Marx denomina ―exército industrial de reserva‖. Permanecendo nesse quadro de modo cada vez mais constante, e porque não dizer permanentemente, aumentando o nível do desemprego estrutural no quadro da população economicamente ativa. 
É justamente nessa nova configuração do quadro do mundo do trabalho que localizamos o objeto desta pesquisa, para pensar a subproletarização do trabalho que se manifesta nas ―formas de trabalho precário, parcial, temporário, subcontratado, 'terceirizados', vinculados à 'economia informal', entre tantas modalidades existentes‖ (ANTUNES, 1999, p. 44, grifo nosso). 
3 Essas mudanças estão situadas na chamada reestruturação produtiva que foi a resposta dada pelo capital diante da crise iniciada no sistema produtivo a partir dos anos de 1970. Ela consiste numa série de ajustamento dos padrões de produtividade e de qualidade, readequando alguns dos princípios tayloristas/fordistas às novas condições do mercado, bem como introduziu novos formas mais competitivas ao processo produtivo, tal como a implantação da automação, flexibilidade, produção enxuta, qualidade total, descentralização produtiva, etc., derivados do método Toyotista (Havery,1992). 
4 ―A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por confronto direto com a rigidez do Fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fortalecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente de inovação comercial, tecnológica e organizacional‖ (Idem, p. 140).
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Pela sua própria natureza, conforme já visto, o trabalho informal é uma categoria complexa, que pode englobar diversas categorias de trabalhadores com inserções ocupacionais bastante peculiares. O traço comum é a heterogeneidade, e, por isso, Silva (2009) classifica este ―setor‖ em quatro grandes grupos: Os trabalhadores autônomos ou por conta própria, os que vivem dos pequenos empreendimentos domiciliares, os assalariados sem registro em carteira e os ligados aos sistemas de cooperativa. 
O desafio desta pesquisa é pensar uma experiência de trabalho concreta, aquela dos trabalhadores dos ambulantes dos trens urbanos, ou seja, os trabalhadores autônomos ou por conta própria5. 
1.2- Particularidades da informalidade do trabalho no Brasil 
Ao longo do século XX, o capitalismo consolidou seu padrão de desenvolvimento por meio da massificação do modelo fordista-taylorista. Entretanto, como é característica de sua lógica, a homogeneidade dos seus benefícios, principalmente a incorporação de crescentes massas de trabalhadores no processo de industrialização (a estratégia do pleno emprego associada à incorporação de um 
5 Cabe destacar que esta categorização engloba, além dos ambulantes, os trabalhadores sem 
vínculo empregatício subordinados às empresas – tanto na produção, como é o caso de costureiras, como na distribuição, caso dos vendedores por comissão, marceneiros, pedreiros, pintores, encanadores, entre outros. Segundo o IBGE (2012), esta categoria forma o grupo mais expressivo dos trabalhadores informais, correspondendo a mais de 4/5 do total e 19% das pessoas ocupadas em 2012. Para efeitos metodológicos desagregou a população ocupada em oito categorias: empregados com carteira assinada no setor privado; empregados sem carteira assinada no setor privado; trabalhadores por conta própria; empregadores; trabalhadores domésticos; militares ou funcionários públicos estatutários; empregados com carteira assinada no setor público; e, empregados sem carteira assinada no setor público.
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número cada vez maior de consumidores), não se estendeu a todos os países de economia capitalista. 
Dentre os principais motivos deste fenômeno está o enfraquecimento do ―Welfare State‖ nos países centrais, e a sua parcial formação nos de economia periférica. Sobretudo, a partir da crise, iniciada nos anos de 1970, quando o regime de acumulação capitalista começou a dar sinais de esgotamento, através da queda dos lucros, crise do padrão produtivo taylorista/fordista (superprodução) e da grande concentração de capitais (através dos conglomerados monopolistas) (ANTUNES, 2000 p. 29 e 30). 
Deste modo, o que evidenciamos na pesquisa é que os efeitos da expansão do capital se dão de modo diferenciado em diferentes partes do globo. Assim sendo, o que é realizado em um determinado tempo no centro produtivo (países com economias mais desenvolvidas), reverbera seus efeitos, na periferia do sistema, em momentos distintos. 
O caso brasileiro parece se encaixar neste aspecto, já que o mercado de trabalho, mesmo em seu auge industrial, nunca alcançou universalmente as massas trabalhadoras. 
Ainda que com algumas particularidades, conforme veremos adiante, na aurora de sua industrialização tardia, foi preciso organizar e consolidar a massa de trabalhadores conforme os novos padrões de desenvolvimento. 
Neste sentido, a estratégia usada pelo Estado Novo varguista, na década de 1940, foi a de assegurar a seminal classe trabalhadora brasileira, um conjunto
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normativo de proteção social vinculada ao status ocupacional6. Com isso criou-se aquilo que Gomes (2002) denomina ―a invenção do trabalhismo‖, ou seja, a criação ideológica de uma nova cultura política a respeito do trabalho, criando um vínculo entre ―a ideia de cidadania e a existência de direitos sociais‖ (2002, p.33), isso possibilitou o afastamento de um duplo perigo: o acirramento das questões sociais advindas do conflito entre capital e trabalho e a ―sedução‖ do discurso comunista suscitado em tal disputa. 
Para a autora, as conquistas dos direitos sociais, dentre eles os relativos ao trabalho, no caso brasileiro, é muito distinta daquela descrição linear elaborada por Marshall (1967), especificamente referindo-se a experiência inglesa, no qual os direitos civis, políticos e sociais, foram sendo conquistados sucessivamente ao longo dos séculos XVIII, IXI e XX. 
O Brasil, formado por uma diversidade de atores sociais e com interesses em jogo, tornou a nossa experiência de alcance de cidadania um pouco mais distinta e complexa, segundo a autora 
Por razões históricas, os direitos sociais, especialmente os do trabalho, assumiram posição estratégica para a vivência da cidadania, o que se reforçou pela fragilidade dos direitos civis e pelo desrespeito aos direitos políticos, infelizmente muito praticado ao longo do século XX (GOMES, 2002, p.12). 
Com isso, é conformado um novo padrão de acesso aos diretos sociais à classe trabalhadora, uma ―cidadania regulada‖ (SANTOS, 1979 e 1998) fortemente protegida pelo Estado, em função de sua função estratégica ao mercado. 
6 Não é demais esclarecer que os direitos sociais relativos ao trabalho, não faz parte de um movimento unilateral de um dos atores que conformam a sociedade brasileira, no caso o Estado, ela também é fruto de lutas que se estabelecem socialmente entre classe trabalhadora, em suas reenvidicações, e o empresariado, na defesa da maximixação de seus lucros. No caso brasileiro, o que se verifica é a antecipação às demandas das classes subalternas, de moda a ―fazer a revolução, antes que o povo a faça‖(GOMES, 1979, p. 47).
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Entretanto, mesmo a regulamentação desse mercado deixou também de fora os trabalhadores rurais e muitas categorias de trabalhadores urbanos, que viviam sem a formalização da carteira de trabalho. Segundo Noronha (2003), as noções de formalidade e informalidade, se caracterizavam, no Brasil, pelo vínculo empregatício, ou seja, pelo fato de ter ou não carteira de trabalho assinada, pois é ela que comprovava a identidade de trabalhador, e, portanto, a sua cidadania. 
A constituição de um ―mercado formal‖ de trabalho, no auge do período de crescimento econômico, a década de 1970, atingiu apenas 50% da população economicamente ativa empregada no meio urbano (POCHMANN, 2002). Esse processo conviveu, concomitantemente, com o aumento de formas de trabalho informal em pequenas empresas urbanas de pequeno porte, no campo, e nas inúmeras e precárias formas de trabalho autônomo e doméstico, ―cujos padrões de contratação e assalariamento passavam ao largo da legislação trabalhista e social e de qualquer possibilidade de representação coletiva‖ (COSTA, 2010, p. 171, grifo da autora). 
Essa realidade se agrava sobremaneira na década de 1990 com as mudanças estruturais na economia e nas instituições do mercado de trabalho. A abertura econômica dos mercados e as privatizações de órgãos públicos, pressionaram o processo de reestruturação produtiva sistêmica, sobretudo no setor secundário, afetando não apenas o nível do emprego, mas também a sua qualidade, com a flexibilização dos vínculos e dos regimes de trabalho. 
Além desses aspectos político-econômicos, há ainda a necessidade de acrescentar alguns outros aspectos históricos que conformam a estrutura social brasileira no século XX. Chamamos atenção, em particular, para a herança recente
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de passado escravista, que a despeito da abolição, não incorporou a recém-criada ―mão de obra livre‖ às incipientes estruturas de emprego à época. 
Para efeito de ilustração, são clássicas as cenas retratadas por artistas como Rugendas e Debret, que captaram a ocupação do espaço da rua pelos negros em sua ―viração‖ no Rio de Janeiro do Século XIX (BATISTA, 2008, p.7-10; FERREIRA e LEMOS, s/d. p.10). Este tipo de atividade desenvolvida, por muitos escravos no período anterior à abolição da escravatura, como escravos de ganho, ou aluguel, permanecerá como uma das principais atividades da mão de obra negra urbana no cenário urbano do Rio de Janeiro, após 1888. Mais ainda, os estudos como o de Mattos (2007) apontam que este mesmo contingente populacional será decisivo nas primeiras lutas de classe, por meio das greves sindicais do início do século XX. 
Neste sentido, o fenômeno da informalidade, conforme sinalizado, não é algo novo no Brasil. Existindo desde antes da estruturação do mercado de trabalho assalariado e livre. Agora resta saber em que medida tal fenômeno se apresenta posteriormente a esta estruturação e aos movimentos do capital e suas crises cíclicas. 
A partir da já citada conjuntura internacional da crise do capital, iniciada nos anos de 1970, esse processo se complexifica. Neste sentido, é preciso ter em conta que 
iniciou-se um processo de reorganização do capital e de seu sistema ideológico e político de dominação, cujos contornos mais evidentes foram o advento do neoliberalismo, com a privatização do Estado, a desregulamentação dos direitos do trabalho e a desmontagem do setor produtivo estatal […]; a isso também seguiu um intenso processo de reestruturação da produção e do trabalho, com vista a dotar o capital do instrumental necessário para tentar repor os patamares de expansão anteriores (ANTUNES, 2000, p.31, grifo do autor) . 
Associadas a esse processo reativo do capital aliam-se a estruturação de novas formas do domínio técnico científico, bem como as de gerenciamento da
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força de trabalho. Como aludimos, tal processo tem seu início nos países de economia mais desenvolvida, mas que em seu curso, também incorporavam os de economia periférica, numa relação de dependência e subordinação aos primeiros (Idem, p. 32). 
Cleps (2009) ilustra bem as consequências destas transformações, em nível nacional, principalmente no que diz respeito ao trabalho informal, objeto desta pesquisa: 
As atividades econômicas informais estão cada vez mais presentes no cotidiano da sociedade brasileira. Seu crescimento deve-se, entre outras razões, às transformações sócio-econômicas resultantes da adoção de modelos flexíveis de gestão que se refletiram diretamente sobre o mercado de trabalho. Diante do aumento dos índices de desemprego e das baixas remunerações oferecidas no setor formal, a informalidade tem sido, na maioria das vezes, a única alternativa de trabalho para um expressivo contingente de mão-de-obra que se encontra fora dos padrões exigidos pelo mercado de trabalho (CLEPS, 2009 p. 327). 
Uma das grandes consequências deste quadro é o processo de desasalariamento e desemprego. Pochmann (2006) ao desenvolver estudos sobre este fenômeno descreve que ―entre as décadas de 1940 e 1970 a cada dez postos de trabalho gerados, oito eram empregos assalariados. Entretanto, nos anos 1990, a cada dez empregos criados, somente quatro eram assalariados‖ (2006, p.61). 
Desta forma há uma gradativa diminuição da participação dos empregos assalariados e com registro, de modo que a maior parte das vagas abertas no mercado de trabalho vem sendo preenchida por ―ocupações sem remuneração, por conta própria, autônomo, trabalho independente, de cooperativa, entre outras‖ (ibdem). 
Assim sendo, as atividades informais, já praticadas no período anterior a organização do mercado de trabalho livre, continua a coexistir com as formais, reguladas por leis trabalhistas e organizadas pelo Estado. Com o agravante que
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nesta atual conjuntura político-econômica, tal fenômeno ganha outro vulto, servindo muitas vezes, como uma única alternativa de sobrevivência para um contingente mais expressivo da população. 
No entanto, conforme dito, as próprias atividades informais não podem ser percebidas sem a sua íntima relação com as formais, uma vez que àquelas, ao contrário do que parece ser, não estão fora do processo de acumulação capitalista, ele é uma ―produção‖ da extensão do capitalismo (OLIVEIRA, 2003 p.33) e funcional para a mesma. 
Até aqui nos detivemos especificamente às questões relativas às polêmicas conceituais acerca da informalidade. Procuraremos adiante explorar a realidade específica de um tipo de trabalho informal, objeto desta monografia: o trabalho informal dos trabalhadores ambulantes dos trens do Rio de Janeiro. Para isso faremos uma breve recuperação histórica sobre as ferrovias no Rio de Janeiro, bem como procuraremos discorrer sobre a sociabilidade empreendida no interior desse meio de transporte de massa, onde se desenvolve a atividade ambulante.
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Capítulo 2: O TRABALHO INFORMAL NOS TRENS DO RAMAL DE SANTA CRUZ 
“A estrada de ferro tritura ilusões, come planícies, bebe descampado e leva dentro dos seus vagões os homens e o gado. Um dia, sem discursos nem sermões, tudo foi confiscado e leiloado, descampado, planícies e vagões, planícies, vagões e descampado. Tudo como laranjas ou limões nas banquetas de um mercado. Tudo pra aumentar confusões, tudo com nevoeiro misturado - e quem comprou os vagões comprou os homens e o gado”. 
MURALHA, Sidônio. A ESTRADA DE FERRO, in: Os Olhos das criança. São Paulo, Indústria gráfica brasileira: 1963 
O capítulo apresenta o trabalho ambulante desenvolvido no interior dos trens dos subúrbios cariocas e da Baixada Fluminense, particularmente sobre o recorte espacial do ramal de Santa Cruz. 
Inicialmente, faremos um resgate histórico do papel do trem na constituição e desenvolvimento da cidade do Rio de Janeiro e da área mais ampla chamada Região Metropolitana. Enfocaremos esse quadro no contexto das relações sociais desiguais construídas neste processo da urbanização fluminense. 
Logo após nos deteremos no trabalho dos ambulantes nos trens do ramal de Santa Cruz, descrevendo a sociabilidade criada no interior deste espaço - dividido com diversos atores sociais - bem como as origens da organização política dos trabalhadores. 
Esperamos, através deste capítulo, demonstrar a linha de proximidade da vivência de precariedade social entre os trabalhadores ambulantes e os passageiros dos trens. Em conjunto, eles formam a classe subalterna, que compartilha as precariedades cotidianas da vida e do trabalho na periferia urbana fluminense.
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2.1- O trem e sua função estratégica na reprodução econômica e social no Rio de Janeiro 
Embora a origem do transporte sobre trilhos remonte o século XVI, é no século XVIII, com a revolução industrial inglesa, que ela irá assumir novo vigor. Por meio da manipulação da energia a vapor, foi possível elevar o uso do deslocamento sobre trilhos - até então utilizado com o auxílio de tração animal - a um patamar mais elevado, a de um meio de transporte de massas, de fato. 
Em 1825 foi inaugurada na Inglaterra, a primeira ferrovia, que ligava a cidade de Darlington ao norte do país. Em 1830, isto é, cinco anos depois, era aberta a ferrovia Liverpool-Manchester, ligando as duas grandes cidades com conglomerados industriais. Esta linha, segundo Rodriguez (2004) a primeira a transportar passageiros, foi ―a precursora da era das ferrovias, pois trouxe conhecimento público as potencialidades de tração a vapor sobre trilhos‖ (2004, p.13). 
Rapidamente esta nova tecnologia se espalhou pelo mundo, sendo fundamental para a consolidação do imperialismo inglês no século XIX. 
O Brasil, quando do advento das ferrovias, estava sob o governo regencial de Diogo Antônio Feijó, que procurava de algum modo equacionar o problema das grandes distâncias entre a Corte e as capitais das províncias. A necessidade da construção de estradas de ferro se fez um imperativo. 
Para tanto, por meio da Lei Feijó, de 31 de outubro de 1835, foi aberta a primeira ―concessão‖ para a criação de uma ferrovia que pudesse ligar o Rio de Janeiro às capitais de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Bahia. 
Cunha (2002) ressalta que tal lei não atraiu o interesse dos investidores, especialmente os ingleses, que não viram vantagens nas contrapartidas do
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governo brasileiro. Não obstante, segundo o autor, em alguns estados, entre eles o Rio de Janeiro, algumas iniciativas isoladas de infraestrutura ferroviária foram iniciadas 
Embora não alcançando seu principal objetivo, o decreto de Feijó contribuiu para que algumas províncias também assumissem a responsabilidade de implantação de ferrovias em seus territórios. Esse foi o caso da Província do Rio de Janeiro, que, através da Lei nº 192, de 9 de maio de 1840, procurou estabelecer uma estrada de ferro entre a Vila de Iguaçu e um ponto da baía de Niterói (CUNHA, 2002, p. 48). 
No entanto, para o autor, mais do que uma integração nacional, a ferrovia era a real solução logística para o escoamento da produção cafeeira e sua permanente migração para terras cada vez mais afastadas do litoral, em especial, no Vale do Paraíba. 
Assim, o transporte terrestre, que desde os tempos coloniais fora feito no dorso dos muares, a cada dia se tornava mais caro e penoso. Sendo assim o trem ―o verdadeiro milagre tecnológico, solução nova para um antigo problema‖ (idem, p. 49). 
Mas apesar dos esforços de Feijó, e, posteriormente do próprio Imperador Dom Pedro II, as experiências de implantação de ferrovias foram marcadas por mais derrotas que vitórias. Mesmo o referido caminho de ferro, descrito por Cunha entre a Vila Iguaçú e a baía de Niterói (atual baía de Guanabara) não se concretizou, devido a seu alto custo e pouca participação de capital investidor (OLIVEIRA, 2004, p. 18). 
Este quadro só irá se alterar quando da entrada de um importante ator que foi crucial para a implantação de um investimento de tamanha monta: Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá. 
No ano de 1852 ele recebeu do governo da Província do Rio de Janeiro a concessão para construir uma ferrovia ligando a Corte ao Vale do Paraíba do
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Sul e em menos de dois anos ele inaugurava o primeiro trecho da Imperial Companhia de Navegação a Vapor e Estrada de Ferro de Petrópolis, ligando o porto de Mauá, em Magé, até a Raiz da Serra. (CUNHA, 2002, p.51). 
No entanto, é interessante notar que o mesmo fenômeno que provocou o declínio das ferrovias no Brasil, no século XX, conforme veremos no item seguinte, já se fazia presente em sua gênese. A competição com a via rodoviária levou o Barão de Mauá, após sucessivos prejuízos, a sua venda, alguns anos mais tarde. Além disso, conforme destaca Cunha 
Não é difícil imaginar como se tornava complicado o transbordo das mercadorias dos trens para as carroças e vice-versa. A linha que deveria servir à zona cafeeira, que se situava a oeste, deslocara-se para outra direção. Urgia que se atingisse o Vale do Paraíba o mais depressa possível. Assim surgira a ideia de se construir uma outra ferrovia que, partindo diretamente do centro do Rio de Janeiro, pudesse atingir a zona cafeeira (2002, p. 54) 
Desta forma, abre-se espaço para a construção da mais nova ferrovia brasileira, a Estrada de Ferro D. Pedro II, em 1858, ligando a Corte à Queimados, num percurso de 48 quilômetros. 
Esta estrada, que, posteriormente será chamada de Central do Brasil teve um papel muito importante no desenvolvimento do país, pois ―facilitou a circulação de riquezas e de pessoas na medida em que a fronteira econômica se interiorizava‖ (RODRIGUES, 2004, p.20). 
A ferrovia contava inicialmente com 5 estações: Corte (no Campo de Santana), Cascadura, Maxambomba (Nova Iguaçú) e Pouso dos Queimados (Queimados). Rodriguez destaca que no projeto original do traçado, o trecho inicial tinha previsto como estação final a freguesia de Nossa Senhora de Belém e Menino Deus (Japeri), mas devido a um surto de malária que vitimou 5.000 empregados chineses que trabalhavam na construção da referida
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estação, a linha não chegou até Queimados, em sua inauguração (idem, p.20 e 21). 
É curiosa a utilização de mão de obra estrangeira nesta obra, dada a inexistência de mão de obra livre no país até então. Abreu (1997) irá destacar esta relação contraditória entre as produções arcaicas, de base escravista, e a formação desses novos projetos, essencialmente capitalistas, que aqui se introduziam. A cidade do Rio de Janeiro do século XIX ―passa a ser movida por duas lógicas distintas (escravista e capitalista), e os conflitos gerados por esse movimento irão se refletir claramente no seu espaço urbano‖ (1997, p. 28). 
A partir de 1861, foi inaugurado o serviço de trens de subúrbios para o transporte de passageiros, pois até aquele momento a estrada servia exclusivamente ao escoamento da produção cafeeira do Vale do Paraíba. Tal modalidade de transporte era ofertada entre as estações da Corte à Cascadura, compreendendo as estações de São Cristovão, São Francisco Xavier e Engenho Novo (RODRIGUES, 2004, p.21). 
Este serviço ferroviário possibilitou uma rápida ocupação por parte da população das freguesias suburbanas atravessadas pela linha férrea. No entanto, conforme destaca Weid (1994, p.1 e 2) ele não foi o único responsável por esta expansão. Há de se acrescentar a esta ―revolução do transporte urbano‖ (ABREU, 1997, p.37) o papel complementar dos bondes.
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Ilustração 1: Mapa da rede da EFCB em 1969, no auge de sua extensão. No detalhe as linhas do centro, que atendiam os subúrbios cariocas. Entre elas o atual ramal de Santa Cruz, que na época tinha seu fim em Mangaratiba 
Fonte: Acervo Revista Ferroviária.
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Aliada ao maior investimento da Estrada de Ferro D. Pedro II, em 1870, o serviço de bondes, iniciado em 1868, começou a se consolidar, através da implantação de inúmeras companhias que concorriam no uso do espaço urbano. 
O transporte de massa permitiu o desafogo do centro, onde se concentravam tanto os ricos quanto os pobres. A ampliação do sistema de transporte permitiu o início do processo de segregação social (Villaça, 1997, p.6). Segundo o autor, por meio do processo de segregação social, as classes dominantes controlaram a produção do espaço urbano, tanto pelo seu poder econômico, quanto pelo controle sobre dinâmicas do Estado, bem como da construção ideológica sobre o espaço. Deste modo, possibilitaram o paulatino processo de ―expulsão‖ das camadas populares do centro urbano do Rio em direção às periferias da cidade e da Baixada Fluminense, em especial das áreas limítrofes às linhas férreas7. 
Neste contexto de disputa e controle do espaço urbano, há de se destacar a estratégia de domínio econômico de uma empresa, sobre o controle dos serviços públicos: a Tramway Light and Power (atual grupo Light). 
Esta companhia iniciou sua operação no Brasil em 1899, instalando-se, primeiramente em São Paulo, com objetivo de geração de energia elétrica, a partir da matriz hídrica. Em pouco tempo, também obteve concessão para a 
7 O auge desse processo de reformulação do espaço urbano se dará nos primeiros decênios do século XX, com a chamada Reforma Passos que promoveu grandes obras na infraestrutura urbana da cidade do Rio, com a construção de vários edifícios, segundo os ditames da ―belle époque‖ francesa, bem como a abertura de largas avenidas, em especial a Central (atual Rio Branco). Tudo isso com o custo social da política do ―bota à baixo‖, que promoveu a demolição de vários cortiços que serviam de habitação para a população trabalhadora urbana na cidade. O pano de fundo ideológico era a saúde pública da cidade, mas, na verdade, o que estava em jogo era o interesse econômico e a disputa pelo espaço e seu valor enquanto localização.
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execução de serviço de exploração de transportes ferro-carris por tração elétrica, bem como comprou as ações da Companhia de Água e Luz de São Paulo. 
Por meio da lógica de obtenção de lucratividade tanto na geração da energia elétrica, quanto na execução dos serviços terminais, dependentes de tal energia, a companhia conseguiu grande acúmulo de capital, em especial, através de sua estratégia de formação de oligopólio, que lhe conferiu o apelido de ―polvo canadense‖ (WEID, 2003). 
Em pouco tempo, a Tramway Light and Power chega ao Rio, até então a capital da República e um centro urbano muito mais importante que São Paulo naquele momento. Entretanto, 
A situação na Capital Federal era muito diferente da encontrada em São Paulo. A presença do poder central era muito forte, havia correntes políticas mais definidas além de animosidades e antagonismos que poderiam ser descarregados na proposta estrangeira, canalizando o sentimento nacionalista facilmente explorado pelos concorrentes. Para atuar nos serviços públicos da Capital, os empresários canadenses deveriam se entender, ao mesmo tempo, com o poder federal e o municipal. Além de precisarem recorrer ao governo estadual, pois era quem poderia atribuir concessões para o uso da força hidráulica de cachoeiras quando o rio tivesse todo o curso no território do estado (idem, p. 3). 
Deste modo, a Companhia conseguiu transitar em meio a esse cenário político complexo - inicialmente através da concessão de geração de energia elétrica, em 1904, mas, paulatinamente, em ritmo bem mais lento do que o empregado em São Paulo -, espalhando os seus ―tentáculos‖ sobre os demais serviços públicos da cidade do Rio. 
Segundo Oliveira (2012, p.4) a Light tinha interesse na operação das atividades de transporte viário de bondes, utilizando energia das termoelétricas existentes na cidade para eletrificar as linhas das principais companhias que
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operavam na Zona Norte e no Centro8. Mas para isso foi preciso comprar as concessões das empresas que operavam esses serviços. 
Entre as empresas assimiladas pela Ligth a época estavam: Cia. Belga Societé Anonyme Du Gaz, responsável pelo serviço de iluminação pública da capital federal, bem como inúmeras empresas de transportes coletivos sobre trilhos, como: a Cia Jardim Botânico, que dominava os transportes na zona sul e orla marítima; a Cia. São Cristovão, que servia a Cidade Nova e a zona portuária; a Cia. de Carris Urbanos, que circulava no centro; e a Cia. Vila Isabel, pertencente ao grupo alemão Siemens & Halske Aktien Gesellschaft, que tinha o controle da área da Tijuca, zona norte (idem, p.22-27). 
Neste sentido, os bondes, conforme destaca Abreu 
não só vieram a atender uma demanda já existente como, em atendendo a essa demanda, passaram a ter influência direta, não apenas sobre o padrão de ocupação de grande parte da cidade, como também sobre o padrão de acumulação do capital que aí circulava, tanto nacional como estrangeiro. O capital nacional, proveniente de grande parte dos lucros da aristocracia cafeeira, dos comerciantes e financistas, passou cada vez mais a ser aplicado em propriedades imóveis nas áreas servidas pelas linhas de bonde. O capital estrangeiro, por sua vez, teve condições de se multiplicar, pois controlava as decisões sobre as áreas que seriam servidas por bondes, além de ser responsável pela provisão de infra-estrutura urbana. Os dois, entretanto, nem sempre atuavam separadamente, aliando seus esforços em muitas instâncias, quando esta associação era desejada, ou mesmo inevitável, como no caso da criação de novos bairros (1997, p.36). 
Assim sendo, tanto os bondes como os trens deflagraram a conturbada relação centro-periferia urbana no Rio de Janeiro. Por meio dela, aprofundou- se a distância social com o deslocamento das classes populares em direção à zona oeste da cidade, por meio do trem, e o deslocamento das classes dominantes na direção da zona sul, por meio dos bondes. Abreu citando 
8 Os bondes das companhias que operavam até então eram movidos por tração animal de cavalos ou burros (idem, p. 36; OLIVEIRA, 2012, p.9).
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Santos ressalta os aspectos contraditórios desses transportes na constituição da cidade: 
Trem e bondes foram, sem dúvida, indutores do desenvolvimento urbano do Rio. Mas o caráter de massa destes meios de transporte tem de ser relativizado, como também devem ser relativizados os seus papéis frente ao ambiente urbano. É que trem, bondes e, mais tarde, ônibus (e os sistemas viários correspondentes) só vieram "coisificar "um sistema urbano preexistente, ou pelo menos um sis- tema de organização do espaço urbano, cujas premissas já estavam prontas em termos de representação ideológica do espaço e que apenas esperavam os meios de concretização. Em outras palavras, o bonde fez a zona sul, porque as razões de ocupação seletiva da área já eram "realidade" ... Já o trem veio responder a uma necessidade de localização de pessoas de baixa renda e de atividades menos nobres (SANTOS apud ABREU, 1997, p.37). 
Lúcio Kowarick (2000) denomina esse processo desigual de acesso e construção do espaço urbano de espoliação urbana. Ou seja, a reprodução das desigualdades, funcionais ao próprio processo social capitalista repercutem também na construção do espaço urbano. E o sistema de transporte é um instrumento desses dramas sociais. 
O autor destaca que tais desigualdades, que têm sua origem no mundo do trabalho, não se resumem a elas. A este fator somam-se uma série de outras dimensões da vida que fazem com que aumente a situação de desigualdade. A este conjunto de fatores ele denomina espoliação urbana que pode ser definida como 
A somatória de extorsões que se opera pela inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo, que juntamente ao acesso a terra e a moradia apresentam-se como socialmente necessários para a reprodução dos trabalhadores e aguçam ainda mais a dilapidação decorrente da exploração do trabalho, ou pior, da falta desta (KOWARICK, 2000 p. 22). 
Neste sentido, a noção de espoliação está intimamente ligada à acumulação do capital e à expropriação do trabalhador.
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No entanto, esta espoliação também decorre de um processo de lutas sociais entre vários atores sociais pela conquista de suas demandas em relação ao ―acesso à terra, habitação e bens de consumo coletivo‖ (idem, p. 23). Daí o papel estratégico do Estado, para o aumento ou diminuição do ―processo de especulação imobiliária e segregação social‖. Os investimentos públicos ou a falta deles fazem aumentar ou diminuir a valorização da terra em determinado espaço urbano. 
Estes processos diferenciados de valorização do espaço aumentam o elemento contraditório da espoliação urbana, na medida em que algumas zonas só podem ser ocupadas por seguimentos populacionais de maior poder aquisitivo. Nestas regiões são ricas as estruturas e equipamentos públicos. Em contrapartida, as regiões menos valorizadas, são as que são ocupadas pelos seguimentos mais pauperizados, mas que, no entanto, sofrem pela falta de estabelecimentos mais básicos, essenciais à subsistência (idem, p.27 e 28). 
Tais elementos desiguais da ocupação do espaço urbano se manifestam na vida dos atores abordados nesta pesquisa. É curioso notar neste sentido que quanto mais distante do centro - em especial seguindo a direção à zona oeste da cidade do Rio, tomando o caminho dos subúrbios, nos ramais do trem de Deodoro e Santa Cruz - mais a estratificação social e os elementos que compõem a segregação social e a espoliação urbana se fazem presentes. Nos próximos itens exploraremos um pouco mais os efeitos desta condição na vida dos trabalhadores.
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2.2- Um transporte pobre para os pobre: o processo de degradação dos trens urbanos do Rio de Janeiro 
A despeito da rica história dos trens e de seu papel fundamental na formação social e econômica brasileira nos séculos XIX e XX, conforme anteriormente exposto, houve uma paulatina substituição deste meio de transporte, pela matriz rodoviária. 
Pelo que pudemos apurar na pesquisa, tal fato se explica mais por uma opção econômica do que uma mera substituição de tecnologia novecentista, pela modernidade do automóvel, própria do século XX. Com o advento da indústria automobilística, com forte lobby norte americano, o Estado brasileiro, no seu inicial processo de industrialização, na década de 1940, privilegiou a expansão da malha rodoviária nacional em detrimento das ferrovias9 e até do incipiente sistema de hidrovias existentes, até então (RODRIGUEZ, 2004, p.9). 
Este processo irá se intensificar a partir do governo de Juscelino Kubitschek, que 
pretendia com a abertura de estradas conquistar o mercado internacional para a nascente indústria de substituição de importações de automóveis, eletrodomésticos, siderurgia etc, que também implantara em seu governo, relegando o trem a um equivocado plano secundário (RODRIGUEZ, 2004, p. 9 e 10). 
Tal processo de substituição, embora não explícito, deixou o sistema ferroviário ―abandonado a sua própria sorte‖, por longos anos, o que explica em grande medida a sua atual degradação física. No entanto, contraditoriamente, 
9 O tamanho da malha ferroviária brasileira, em 1958, quando alcançou sua extensão máxima, era de 37.967 Km. Sofre um decréscimo, desde então. Em contrapartida o sistema rodoviário tem um crescimento considerável em cerca de 40 anos: em 1954, o país apresentava cerca de 1.200 Km de rodovias pavimentadas e em 1989 saltou para 130.000 Km (RODRIGUEZ, 2004 p. 9 e 10)
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este processo massivo de deteriorização, foi em parte freado, a partir da privatização de trechos de ferrovias, empreendidos pelos sucessivos governos neoliberais na década de 1990, nas esferas federal e estaduais10. Tais concessões se deram especialmente nos trechos de transporte de passageiros das regiões metropolitanas nacionais, entre as quais a do Rio de Janeiro. 
No estado do Rio de Janeiro, no contexto das parcerias público-privado neoliberais, foi vencedora na concorrência de concessão do transporte ferroviário a empresa SuperVia. No ano de 1998 obteve a licença para a exploração dos serviços de transporte ferroviário por um período de 50 anos. No entanto, o acordo de concessão não compreendeu todas as linhas operadas até então pela RFFSA (Rede Ferroviária Federal S.A.) e pela Flumitrens (Companhia Estadual de Trens Urbanos). Ficaram de fora os trechos com ―pouco valor de retorno financeiro‖ e, deste modo, o trecho correspondente de responsabilidade da nova companhia compreendia os remanescentes urbanos de antigas companhias: as linhas dos ramais de Deodoro, Santa Cruz e Japeri (da antiga EFCB); o ramal de Belford Roxo (da antiga Compahia Rio D‘ Ouro) e o ramal de Gramacho (da antiga Companhia Estrada de Ferro Lepoldina). 
10 Tal processo foi facilitado em grande medida pelo princípio constitucional da Carta Magna de 1988, que instituiu a descentralização administrativa do governo federal em favor dos estados. Um princípio, que na verdade visava dar maior transparência e poder decisório à administração pública, acabou, no caso dos trens, por colaborar para o aumento do sucateamento e posterior facilitação de sua venda à iniciativa privada. Visando a implantação deste processo de descentralização, foi criada em 1994 a CBTU (Companhia Brasileira de Transportes Urbanos), retirando a administração direta da RFFSA. No caso do Rio, este processo de estadualização se deu de modo bem acelerado, pois em novembro do mesmo ano foi criada a Flumitrens, que preparou o sistema para sua concessão privada, quatro anos depois, incluindo um forte ―enxugamento‖ do quadro de funcionários do meio do programa de demissão voluntária (STAMPA, 2011, p.88-95).
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Ilustração 2: Mapa dos ramais da SuperVia. Fonte: SuperVia/SA. 
Fonte: www.supervia.com.br 
Por outro lado, no âmbito nacional, em 2007 o Governo do, então, Presidente Luiz Inácio Lula da silva (Governo Lula) extinguiu a RFFSA, colocando praticamente um ―ponto final‖ no ideário de alargamento do sistema ferroviário no Brasil11. 
É dentro desta realidade contraditória e segregadora do espaço urbano do Rio de Janeiro que se encontra o objeto desta pesquisa, o trabalho ambulante, que pretendemos detalhar no próximo item, tendo como lócus específico de abordagem o recorte espacial do Ramal de Santa Cruz. 
11 Isto significa dizer que as linhas férreas que não sofreram processo licitatório para concessão privada, foram abandonadas.
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2.3- Trabalho ambulante como elemento integrante da sociabilidade nos trens 
Nesse contexto de instrumentalidade do veículo ferroviário nas periferias urbanas é que gostaríamos de tratar, mais especificamente, as condições de trabalho vivenciadas pelos sujeitos desta pesquisa, a saber, os trabalhadores ambulantes. Particularmente o trabalho ambulante no espaço dos trens do ramal de Santa Cruz, no Rio de Janeiro12. 
Para um passageiro menos assíduo a experiência de andar no trem pode parecer um tanto quanto exótica. A primeira impressão mais marcante é a situação degradante da maior parte das composições e das estações. A superlotação também é um forte realce no retrato do paulatino processo de abandono, conforme já destacado anteriormente. No entanto, é necessário destacar que houve uma sensível melhora nos últimos três anos, em especial com a reforma de algumas estações e principalmente com a compra de 34 novos trens chineses, que começaram a operar, paulatinamente, no decorrer do ano de 2012. 
Estes trens foram comprados pelo governo do estado do Rio de Janeiro a partir de uma licitação, realizada em 2009, na qual saiu ganhadora a empresa China National Machinery Import & Export Corporation13. A aquisição custou US$ 188 milhões, financiados pelo Banco Mundial. 
12 As descrições deste capítulo são, em sua maior parte, fruto da observação feita em campo, desde as excursões preliminares nos trens do Ramal de Santa Cruz, no ano de 2011, bem como na observação mais sistemática, com auxílio de roteiro de observação (Ver anexo), realizada ao longo do ano de 2012. 
13 Interessante notar que, a despeito do discurso privatizante reinante nos sucessivos governos de ideário neoliberal desde a década de 1990 do século passado, o Estado não fica totalmente isento de suas obrigações financeiras junto à empresa durante o período de concessão. O que é de fato privatizado é a exploração dos serviços, tendo como contrapartida a manutenção dos
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Até então existiam apenas 38 trens climatizados: 20 de origem coreana (adquiridos em 2005) e 18 trens elétricos reformados (frutos de uma reforma ocorrida em 2004). O restante dos trens em circulação é composto pelos mais antigos, 26 trens de aço inox, adquiridos na década de 1990, 65 trens de aço inox, sem ar condicionado, datados da década de 1980, e 49 trens de aço carbono, sem ar condicionado, fabricados no Brasil entre as décadas de 1950 e 196014. Estes últimos são os que se encontram em péssimo estado de conservação. 
Cabe ressaltar que esses trens atendem aos cinco ramais15 sob o comando operacional da empresa Super Via: Saracuruna/Gramacho, que segue pelo subúrbio da Penha em direção à cidade de Duque de Caxias; Belford Roxo, que segue pela rota suburbana de Del Castilho em direção as cidades de São João de Meriti e Belford Roxo, ambas na Baixada Fluminense; Japeri, que compartilha a rota dos subúrbios atendidos pelo ramal de Deodoro, mas seguindo em direção à Baixada, servindo as cidades de Nilópolis, Nova Iguaçu, Queimados e, finalmente, Japeri; e Santa Cruz, que segue em paralelo ao ramal de Deodoro e Japeri, mas que diferente dos demais (com a exceção de Deodoro, que finda neste bairro), não segue em direção aos municípios da Baixada Fluminense, mas sim rumo à Zona Oeste da cidade. 
serviços e da pequena infraestrutura. No entanto, para os investimentos de grande monta, o ônus permanece com Estado. Nada mais contraditório para pôr por terra a ideologia do ―privatizar o que dá prejuízo ao Estado‖. Outro elemento a ser registrado é que a aquisição dos novos trens se deu através de financiamento do Banco Mundial, subordinando ainda mais a dívida estatal ao capital internacional. 
14 Fontes da própria SuperVia: HTTP://www.supervia.com.br. Acesso em setembro de 2012. 
15 Sete se considerarmos os ramais de Vila Inhomirim e Guapimirim, no entanto, estes são uma extensão do ramal de Saracuruna, não operando na mesma linha deste por possuírem sistemas de bitolas de trilhos diferentes do restante da rede, exigindo, por sua vez, trens especiais. A SuperVia também opera o teleférico do Alemão, que apesar de não ser um transporte sobre trilhos, faz integração com os trens do ramal de Gramacho (Ver ilustração 2).
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Os novos trens têm capacidade para 1.300 passageiros, além de câmeras internas, bagageiros, televisões de plasma e comunicação direta com o centro de controle operacional16. 
Entretanto, não é demais lembrar que tais investimentos têm como foco principal os eventos que a cidade sediará nos próximos anos: A Copa das Confederações (2013); A Jornada Mundial da Juventude Católica (2013), que terá algumas atividades no bairro de Santa Cruz; a Copa do Mundo de Futebol (2014) e, por fim, os Jogos Olímpicos (2016). 
Nesse sentido, mais do que uma melhoria para a população trabalhadora usuária cotidiana, tais benefícios trazidos pelas reformas no sistema de transporte, incluindo o trem, visam primordialmente à cobertura de tais eventos. No entanto, o discurso oficial costuma justificar o investimento em tais ações como um ―legado‖ para a cidade, portanto, para sua população. 
Outro dado interessante a ser notado e que ilustra bem essa melhoria diferenciada entre os ramais, é que tais benefícios, com a chegada dos trens novos, estão resumidos em sua maioria aos ramais de Deodoro e em menor escala, ao de Santa Cruz (ambas rotas de deslocamentos a serem utilizadas nos eventos supracitados). Por outro lado os trens mais antigos, especialmente os que se encontram em precário estado de conservação, foram redirecionados para os demais ramais que atendem à Baixada Fluminense. 
16 Fontes: http://oglobo.globo.com/rio/depois-de-dois-anos-de-espera-entra-em-operacao-novo- trem-da-supervia-4358867#ixzz2K7QjuagK Acesso em março de 2012. http://www.supervia.com.br/noticia.php?n=chineses-apresentam-primeiro-dos-34-trens- comprados-pelo-estado*&cod=41 Acesso em agosto de 2011.
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Tais elementos são bastante elucidativos para evidenciar o modo como as classes dominantes, no uso de sua influência hegemônica no âmbito do Estado, se apropriam do uso social de um meio de transporte como o trem em favor de seus interesses econômicos. De modo que os benefícios à classe subalterna é uma mera consequência, e não um objetivo principal dos negócios, e, via de regra, em situação de precariedade. 
O segundo elemento marcante é a face sofrida dos passageiros, evidenciando os anos de desgaste de trabalho, que com certeza não é amenizada pelo desconforto da viagem. Não obstante a precariedade do transporte, muitos dormem ―embalados‖ pelo balançar das composições ao passar pelos velhos dormentes17 da estrada de ferro. 
Muitos desses passageiros, para além da jornada de trabalho normal, despendem em média, 3 horas e meia de transporte até o centro da cidade, isso se contarmos somente transporte de trem18. Esses fatores, com certeza, contribuem para a diminuição da qualidade de vida das classes populares usuárias deste precário sistema de transporte. Se vivo estivesse, certamente o poeta Castro Alves faria uma releitura de seu ―navio negreiro‖, que diferente de outrora, não balança sobre as águas do Atlântico, mas sobre os trilhos dos subúrbios metropolitanos. 
Durante a pesquisa pude também experimentar na pele as péssimas condições destes serviços, como: trens sujos, poucas lixeiras, janelas e portas frequentemente quebradas. Observamos também a existência de sistemas de alto-falantes (essenciais para a comunicação do maquinista com os 
17 Estruturas, em geral de madeira, que serve para fixar os trilhos ao chão. 
18 O trem costuma fazer o trajeto de Santa Cruz à estação Central do Brasil em 1h e 45m, quando o trem é parador e 1h e 30m, quando é direto.
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passageiros e a sinalização do lado do respectivo desembarque) constantemente inoperantes. A superlotação19 é uma realidade constante nos horários de maior pico de passageiros em trânsito para o trabalho e para casa. Mas, observamos também as rotineiras avarias dos trens, em decorrência de depreciação técnica ou falta de manutenção, causando com isso muitos transtornos para os passageiros, especialmente nesses horários de pico de movimentação. Com certeza as viagens nos trens urbanos do Rio de Janeiro são um misto de aventura e insegurança social. 
Moisés e Martinez-Alier (1978) ao descreverem as revoltas populares ocorridas na década de 1970, no Rio e em São Paulo, em plena ditadura militar, observaram o descontentamento das massas suburbanas com essa realidade de péssimos serviços públicos de transporte coletivo, em especial os trens, materializada nos constantes atrasos, acidentes, descarrilamentos e mortes. 
O descontentamento em massa manifesto no fenômeno dos ―quebra- quebras‖, mas do que um fato isolado de grupos era uma manifestação coletiva da insatisfação das classes subalternas que sofrem cotidianamente as agruras destes serviços. 
19 ―A superlotação é o problema mais comum nos trens da Supervia. Mas o incômodo em ter oito passageiros, onde cabe quatro, não é apenas a falta de conforto. Segundo o doutor em engenharia de transportes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Fernando Mac Dowell, o número excessivo de pessoas aumenta a chance de acidentes, uma vez que a composição pode ter mais dificuldade para frear, além de ter o vagão abaulado (deformado) por causa do peso, entre outras coisas‖. Disponível em: http://saopaulotremjeito.blogspot.com.br/2011/09/superlotacao-em-trens-da-supervia-rj.html Acesso em 31 de janeiro de 2013.
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Deste modo, observam aqueles pesquisadores que eram pontuais e simbólicos os ―alvos do vandalismo‖: o relógio, o quadro de horários dos trens, as agressões aos agentes da companhia (representantes da empresa, do Estado), e finalmente os próprios trens avariados (1978, p.33-40). 
Diante da incapacidade dos trabalhadores de representar-se e fazerem valer sua reclamação na cena pública, o ―quebra-quebra‖ aparece como única resposta aos constrangimentos diários na vida dos sujeitos que no trabalho, cotidianamente, têm que se desculpar: ―patrão, hoje o trem atrasou‖ (idem, p.27). 
Hoje, estas revoltas mais generalizadas não vêm tendo a mesma expressão, mas o dia-dia do transporte não é isento de descontentamentos20. A despeito de algumas melhorias, a demora dos trens, os atrasos e as avarias dos mesmos ainda são uma constante. Ao perguntar certo dia do trabalho de campo de pesquisa a um passageiro sobre o que ele achava do sistema de trem ele disse: ―Meu filho, aqui a gente vive como gado em direção ao abate! Você já viu quando se abrem as portas do trem na estação da Central? É um passando por cima do outro, disputando meia dúzia de bancos quebrados!‖21 
Outros elementos de precariedade se somam a estes. A maior parte das estações não é provida de banheiros públicos, o que agudiza a precariedade 
20 Em um pequeno levantamento dos eventos, fizemos uma busca na internet utilizando a sentença <Tumulto na SuperVia> da qual encontramos 396 mil registros. Seguem duas reportagens que descrevem eventos mais recentes de ―quebra-quebra‖: http://oglobo.globo.com/rio/atrasos-nos-trens-provocam-tumulto-na-estacao-da-mangueira- 6144293. Acesso em janeiro de 2013. 
http://extra.globo.com/noticias/rio/manha-de-tumulto-em-estacoes-da-supervia-passageiros- ocupam-trilhos-andam-pendurados-nos-trens-promovem-quebra-quebra-3922581.html 
Acesso em janeiro de 2013. 
21 Ao contrário da metodologia usada de abordagem aos vendedores ambulantes, no qual nos utilizamos de questionários semi-estruturados, no caso dos passageiros preferimos a abordagem aleatória sobre várias questões do cotidiano do trem.
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das longas horas despendidas nos deslocamentos casa-trabalho. Muitos, diante da inexistência de tais serviços fazem suas necessidades fisiológicas em áreas das próprias estações: pilastras, debaixo das escadas, canto de paredes ou na própria linha férrea. Contudo, não é raro ver as próprias composições como equipamento sanitário das urgências fisiológicas. 
No entanto, tal quadro precário ao qual é submetido à população acontece à revelia de uma lei estadual sancionada em 2003 (Lei Nº 4131). Passados todos esses anos, somente em 2011 a SuperVia começou a implantar os banheiros22. Até o presente momento só foram instalados em 6 estações de um total 98 (103 se contar as 5 do teleférico do Complexo do Alemão, também administrado pela empresa). 
Outro dado que agrava as condições de vida desta população é o valor gasto para estes deslocamentos diários quando comparados às perdas salariais decorrentes da inflação. 
Em recente pesquisa o IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicada) divulgou que as famílias brasileiras moradoras de áreas urbanas comprometem cerca de 15% da renda mensal com transporte diário, sendo o gasto com transporte privado cinco vezes maior que o montante despendido com transporte público. Metade das famílias, nas capitais, têm despesas com transporte privado, e a outra metade com transporte público. Nos colares 
22 Veja comunicado do início dos serviços pela própria concessionária: http://www.supervia.com.br/noticia.php?n=central-do-brasil-ja-conta-com-banheiros- gratuitos&cod=81 Acesso em agosto de 2011.
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metropolitanos, 67% dos domicílios pesquisados afirmam ter gasto com transporte público23. 
Nesta pesquisa do IPEA foram consideradas duas categorias de transportes: público (serviços de ônibus, ferrovias, metrôs e trens metropolitanos, transporte hidrográfico, táxi, mototáxi e transporte alternativo) e privado (automóveis, motocicletas e caminhonetes, além das bicicletas). O estudo mostra que o deslocamento coletivo mais usado é sistema de ônibus: 78,4% dos gastos são nessa modalidade, entre moradores das capitais. Nos colares metropolitanos esse percentual chega a 88%. O uso do transporte alternativo chega a 11,5% nas cidades interioranas, que é de 5,1% nas capitais e 3,7% nos colares metropolitanos. 
Entre janeiro de 2003 e de 2009, a inflação medida pelo IPCA24 aumentou 41,8%. Os preços da gasolina e do automóvel subiram bem menos: 27,5% e 19%. Em contrapartida, as tarifas cobradas dos usuários de transportes urbanos ficaram 63,2% mais caras (IPEA, 2012, p.5-7). 
A falta de investimentos nos transportes públicos aliada ao aumento de crédito para população faz com que o uso e a procura por transportes individuais cresçam. Ou seja, da maneira como funciona o sistema de transporte no Brasil, penaliza-se o usuário que é obrigado a utilizar, quando 
23 O universo do estudo compreendeu as nove regiões metropolitanas nacionais — São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, Recife, Fortaleza, Salvador e Belém —, que são os grandes centros urbanos que enfrentam atualmente os maiores problemas com trânsito (IPEA, 2012, p.3) 
24 O IPCA/IBGE verifica as variações dos custos com os gastos das pessoas que ganham de um a quarenta salários mínimos nas regiões metropolitanas de Belém, Belo Horizonte, Brasília, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e município de Goiânia. O Sistema Nacional de Preços ao Consumidor. Este índice utiliza, para sua composição de cálculo, os seguintes setores: alimentação e bebidas, habitação, artigos de residência, vestuário, transportes, saúde e cuidados pessoais, despesas pessoais, educação e comunicação. Fonte: http://www.portalbrasil.net/ipca_e.htm Acesso em Fevereiro de 2012.
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pode, um transporte particular, em detrimento do coletivo, aumentando por sua vez, os constantes engarrafamentos típicos das grandes metrópoles. Nesse sentido, evidenciamos na pesquisa que, de fato, a mobilidade urbana é, hoje, um desafio para a qualidade de vida nas cidades. Os trabalhadores tendem ainda a ficar com o lado mais perverso desse caos urbano, como é o caso dos usuários dos trens do ramal de Santa Cruz. 
O terceiro elemento característico, que imediatamente chama atenção nos trens é a atividade dos trabalhadores ambulantes. Primeiramente pelo seu valor numérico, que a depender do horário forma um verdadeiro ―congestionamento‖ de vendedores no interior dos vagões, depois pelas estratégias de venda que estes mesmos empreendem, muitas vezes à base do grito, muito semelhante a dos feirantes de rua25. 
Em sua maioria, esses trabalhadores são homens maduros, mas também encontramos mulheres e jovens. Também, não raro ver a presença de crianças como ambulantes. Algumas vezes verificamos que tais crianças são uma espécie de auxiliares nas vendas dos pais também ambulantes. Outras vezes percebemos que o trabalho era realizado unicamente pela criança, sem a supervisão de familiares. 
Essa feição da pobreza é adensada pela mendicância que é uma prática corrente nos vagões. O apelo emocional é bem marcante na viabilização dos potenciais passageiros colaboradores. É muito comum ver mães com bebês ao colo, aos prantos pedindo dinheiro para compra do ―leite da criança‖. Há 
25 Não existe um número preciso de quantos ambulantes atuam não só no ramal de Santa Cruz, bem como nos demais. Mas segundo as informações do presidente da associação que representa os mesmos, estima-se que este número gira em torno de 1.000. No entanto a sazonalidade é típica desse seguimento de trabalho, podendo aumentar ou diminuir de acordo com a conjuntura social e institucional.
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também os apelos mais discretos, que utilizam pequenos cartões ou bilhetes distribuídos entre os passageiros; pedidos silenciosos, mas não menos dramáticos. 
No entanto, há também a mendicância que não se utiliza da ajuda infantil. Esta é feita mais especificamente pelos idosos e deficientes. É possível ver idosas esmolando a fim de comprar o gás ou o medicamento, deficiente físico (sem as pernas) arrastando-se pelo assoalho dos vagões em troca de algumas moedas, e cegos batendo intermitentemente sua bengala no chão, quando não no pé de alguém, conclamando a atenção dos passageiros: ―Uma esmolinha para o cego, por favor!‖ 
Ambulantes e mendicantes disputam a atenção dos passageiros. Todo esse universo de realidades aparentemente concorrentes de trabalho precário e mendicância, na verdade são faces da experiência comum de subalternidade social da qual também fazem parte os passageiros. 
Outro dado interessante que ajuda a compor este quadro é o fenômeno do pentecostalismo no interior dos trens. Mesmo depois de aprovada na 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio a proibição de cultos e manifestações religiosas no interior de trens, por meio de uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro em 2007, é possível constatar verdadeiros cultos durante a viagem. Estas atividades vêm sendo promovidas pela Cruzada Evangelística Interdenominacional nos Trens das Boas Novas. Segundo Lemos (2011), ao estudar este fenômeno nos trens da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitano), em São Paulo, este grupo pentecostal existe desde 1980 realizando cultos diários no 4º vagão dos trens
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da mesma Companhia, contando com a participação de aproximadamente 300 homens e mulheres. 
A autora destaca que o referido grupo religioso construiu uma ―estratégia de incorporação da cidade do Rio de Janeiro que tem como objetivo dar maior visibilidade e legitimidade ao movimento, dada a clandestinidade com que vem sendo tratado o culto no ambiente do trem‖ (Idem, 2011, p 475). 
No Rio de Janeiro, tais atividades foram proibidas no espaço do trem devido ao incômodo que o culto, religioso causa aos demais passageiros não participantes do culto, o que motivou o Ministério Público do Estado do Rio a impetrar a referida lei26. Todavia, a clandestinidade dos cultos torna essa determinação um ―ato jurídico de papel‖ nos tão largados comboios. 
Voltando especificamente à atividade dos ambulantes foi possível constatar uma infinidade de produtos vendidos. Utensílios em geral (de uso doméstico e pessoal): cortadores de unhas, tesouras, abridores de lata e garrafa, esponjas, controle remotos universais, presilhas de cabelo, CDs e DVDs (geralmente piratas), brinquedos, livretos infantis, lanternas pilhas entre outros. Contudo, a maior parte dos ambulantes comercializa gêneros alimentícios, como: água, refrigerantes, sucos, cerveja, salgados, biscoitos, doces, entre outros. 
A variedade é tanta quanto a cantada pelo compositor e cantor Pedro Luis no seu Rap do Real: 
Um real aí, é um real um real aí, 
26 Interessante notar o aspecto restritivo da atividade religiosa neste espaço, visto que a atividade dos trabalhadores ambulantes também possui restrições legais, conforme detalharemos mais adiante, mas que, pelo menos do ponto de vista dos usuários, são mais toleradas.
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é um real aí, é um real, um real, Vendo pilha, bateria, fita-cassete, biscoito paçoca, doce de abobora, doce-de-coco, rádio-relógio despertador do sono, não vendo é sonho, mas pode pedir, se não tenho sei quem terá. Vendo pano pra cortina. Vendo verso, vendo rima, carta pro rapaz e carta pra menina. Eu vendo provas de amores por minha poesia e fantasia: QUANTO VAI PAGAR? Um real aí, é um real, um real aí, é um real aí, é um real, um real Com quantos reais se faz uma realidade? Preciso muito sonho pra sobreviver numa cidade grande jogo de cintura entre estar esperto e ser honesto há um resto que não é pouca bobagem. Um real aí, é um real, um real aí, é um real aí, é um real, um real. (Pedro Luís & A Parede - Rap Do Real by Pedro Luis & Rodrigo Maranhão) 
Ou ainda a diversidade cantada por Zeca Pagodinho, descrevendo especificamente a realidade dos trens da Central do Brasil, que já no título, Shopping Móvel, anuncia a diversidade deste comércio duplamente ambulante, pois não obstante formado por vendedores que circulam entre vagões, estes mesmos são deslocados sobre os trilhos: 
Tem sempre tudo no trem que sai lá da central Baralho, sorvete de côco, corda pro seu varal Tem canivete, benjamim, tem cotonete, amendoim Sonho de valsa e biscoito integral Tem sempre tudo no trem que sai lá da central Chiclete, picolé do China e guaraná natural Tem agulheiro, paliteiro, desodorante, brigadeiro E um bom calmante quando a gente passa mal E quem quiser pode comprar o shopping móvel é isso aí É promoção desde a Central a Japeri E quem quiser pode comprar um bom pedaço de cuscuz E mastigar desde a Central a Santa Cruz CD pirata da Frank Sinatra a Zeca Pagodinho E até aquele veneno pra rato chamado chumbinho
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Bala de côco, pirulito, suco de frutas no palito Cuscuz, cocada pasteizinhos de palmito Despertador, rádio de pilha ventilador e sapatilha Até peruca é possível se encontrar O pagamento é no cartão, vale-transporte ou refeição Qualquer pessoa, jamais fica sem comprar (Zeca Pagodinho - Shopping Móvel) 
Esta multiplicidade de produtos é vendida pelos ambulantes dos trens com muita criatividade, a ponto de poder causar inveja em qualquer profissional de marketing. Aliás, diversos são os estudos sobre a temática. 
Ostrower (2007) diz que o manejo de recursos retóricos e de estratégias performáticas por parte dos ambulantes decorrem das ambiguidades das atividades frente à formalidade da lei, o que faz com que estes atores sociais sejam frequentemente confundidos com ―pedintes‖, ―malandros‖, ―um-sete-um‖, ―vagabundos‖. Neste contexto, o diferencial de seu discurso de venda, tem uma função especial para permitir driblarem as regras e reelaborarem a moral dentre outras formas de sociabilidade, práticas e saberes (2007, p.6). 
Requena (2010), ao estudar o discurso dos vendedores ambulantes dos trens de São Paulo, ressalta que a publicidade deste trabalho não se encontra em veículos tradicionais como revistas, jornais, panfletos ou outdoors. Mas, nos trejeitos dos trabalhadores, que por meio de uma retórica inventiva cumpre os mesmos objetivos daqueles, ou seja, o de propagarem ideias e, principalmente venderem os produtos. 
Segundo a autora, os discursos dos vendedores, além de revelar um ethos, mostra que ao encenar suas falas, eles criam um novo modelo de publicidade. Muitos focam na retórica nos pontos negativos da mercadoria, ou seja, ―o discurso que desqualifica seu produto (discurso do senso comum) a fim de negá-los e mostrar que seu produto também é bom: ―é barato, mas não está
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vencido, é original, é de qualidade‖ (Idem, p.2). A autora destaca que este novo modelo de publicidade, instaura também um contrato compartilhado entre os parceiros da situação de enunciação – vendedor e cliente, no qual o discurso tem um papel estratégico de conquista do cliente para vender suas mercadorias, inclusive usando a estratégia da emoção: 
Pois sabemos que hoje a falta de emprego atinge uma parte da população que também circula no trem. Os passageiros comprando os produtos antes da fiscalização ―tomar‖ podem assim cooperar com os vendedores garantindo sua sobrevivência, que, indiretamente pode ser a deles também (IBDEM) 
Matos (2006) chama a atenção para este aspecto do apelo emocional, especialmente quando a população usuária dos transportes, igualmente pauperizada se identifica com o vendedor, especialmente quando este é uma criança: 
Vendedores de balas, principalmente os menores, com menos de dez anos de idade, despertam grande atenção dos passageiros. Seja por seu tamanho, pela infância perdida, pela docilidade na voz e no olhar ou pela imagem invertida da idéia de "chefe de família‖ (2006, p.2). 
De fato é empreendida uma relação empática entre esses atores sociais, que não obstante o eventual incômodo causado pelos ambulantes no decorrer dos deslocamentos urbanos, dividem o mesmo espaço coletivo numa relação mutualista. 
A estratégia de marketing ambulante no trem, a construção de uma ―auto- imagem empreendedora‖ e a sociabilidade criada com os ―passageiros patrões‖ é um fato bem marcante nos trens do Rio de Janeiro27. De modo que é impossível desconsiderar o trabalho ambulante na sociabilidade que atravessa as idas e vindas dos trabalhadores urbanos pela cidade. 
27 Um dos vários ―personagens‖ que ilustram tais características está o Gordo chato no trem. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=uBgbQYDfW0c . Acesso em: 1º de janeiro de 2013.
Tcc raphael magnus   no balanço do trem
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  • 1. 2 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS FACULDADE DE SERVIÇO SOCIAL RAPHAEL MAGNUS SILVA ORTIZ NO BALANÇO DO TREM: PERFIL DOS TRABALHADORES AMBULANTES DOS TRENS DO RAMAL DE SANTA CRUZ Rio de Janeiro Março de 2013
  • 2. 3 RAPHAEL MAGNUS SILVA ORTIZ NO BALANÇO DO TREM: PERFIL DOS TRABALHADORES AMBULANTES DOS TRENS DO RAMAL DE SANTA CRUZ Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação apresentado à Faculdade de Serviço Social do Centro de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro para a obtenção do título de Assistente Social Orientadora: Profª. Drª. Rosangela Nair de Carvalho Barbosa Rio de Janeiro Março de 2013
  • 3. 4 NO BALANÇO DO TREM: PERFIL DOS TRABALHADORES AMBULANTES DOS TRENS DO RAMAL DE SANTA CRUZ RAPHAEL MAGNUS SILVA ORTIZ Aprovado em ____/____/_____. BANCA EXAMINADORA _________________________________________________ Rosangela Nair de Carvalho Barbosa (orientadora) Profª. Drª. Adjunta da Faculdade de Serviço Social da UERJ __________________________________________________ Cleier Marconsin Profª. Drª. Adjunta da Faculdade de Serviço Social da UERJ __________________________________________________ Isabel Cristina da Costa Cardoso Profª. Drª. Adjunta da Faculdade de Serviço Social da UERJ CONCEITO FINAL: _____________________
  • 4. 5 À Maria Regina da Silva, minha vó, trabalhadora incansável (in memoriam)
  • 5. 6 “É triste ver este homem, guerreiro menino, Com a barra de seu tempo por sobre seus ombros. Eu vejo que ele berra, eu vejo que ele sangra. A dor que traz no peito, pois ama e ama. Um homem se humilha se castram seu sonho. Seu sonho é sua vida e a vida é trabalho. E sem o seu trabalho, um homem não tem honra. E sem a sua honra, se morre, se mata”. Raimundo Fagner – Guerreiro Menino "Mas pra quem tem pensamento forte O impossível é só questão de opinião”. Chorão- Só os Loucos Sabem
  • 6. 7 RESUMO Esta monografia tem como objeto o trabalho informal dos trabalhadores ambulantes, especificamente os que desenvolvem suas atividades laborativas nos trens do ramal de Santa Cruz no Rio de Janeiro. Temos por objetivo identificar os fatores que levam estes trabalhadores a adotarem esta atividade informal como sua ocupação. Nossa hipótese é que esta opção de trabalho decorre da facilidade com que esses sujeitos, através da atividade ambulante, encontram para adquirir uma renda, constituindo-se uma forma mais rápida de colocação no mercado de trabalho, assumindo assim, como uma estratégia de sobrevivência imediata, para além dos limites que caracterizam seu perfil, tais como a baixa escolaridade, a falta de qualificação e a faixa etária elevada. Para tal, partimos do acumulado teórico sobre o tema, tendo como instrumental metodológico a realização de entrevistas semi-estruturadas, com informantes-chave, bem como os trabalhadores ambulantes a fim de se delinear o perfil de cada um dos tipos de trabalho ambulante desenvolvido no espaço dos trens do ramal de Santa Cruz. Como resultados a pesquisa apresentou um quadro complexo de determinantes e situações que condicionam as escolhas e permanências neste tipo de trabalho. Palavras-chave: Trabalho informal. Trabalho ambulante no trem. Segregação sócio- espacial.
  • 7. 8 SUMÁRIO INTRODUÇÃO......................................................................... 9 Capítulo I AS MÚLTIPLAS FACES DA INFORMALIDADE E AS MUDANÇAS DO MUNDO DO TRABALHO............................ 15 1.1- A informalidade e sua função estratégica no Capitalismo....... 15 1.2- Particularidades da informalidade do trabalho no Brasil......... 25 Capítulo II PENSANDO O TRABALHO INFORMAL NOS TRENS DO RAMAL DE SANTA CRUZ...................................................... 32 2.1- O trem e sua função estratégica na reprodução social.......... 33 2.2- Um transporte pobre para os pobres: o processo de degradação dos trens urbanos do Rio de Janeiro.................. 43 2.3- Trabalho ambulante como elemento integrante da sociabilidade nos trens............................................................ 46 2.4- ―No fio da navalha‖: a insegurança do trabalho ambulante e a possibilidade de organização política.................................. 60 Capítulo III TRAJETÓRIA DE TRABALHO DOS AMBULANTES DOS TRENS DE SANTA CRUZ....................................................... 70 3.1- Caracterização da pesquisa de campo para as entrevistas.... 71 3.2- ―O retrato falado‖ dos ambulantes no trem: trabalho e trajetória de vida...................................................................... 74 3.3- Quem são os trabalhadores ambulantes ligados às empresas?.............................................................................. 86 3.4- Quem são os trabalhadores ambulantes ―soltos‖?................. 109 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................... 143 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................... 147 ANEXOS................................................................................ 154
  • 8. 9 INTRODUÇÃO Esta monografia tem por objetivo apresentar resultados da pesquisa sobre o trabalho informal realizado por trabalhadores ambulantes dos trens do ramal de Santa Cruz, no Rio de Janeiro. Esta pesquisa foi gestada a partir de 2011, com os exercícios propostos na Disciplina de Pesquisa Social sendo enriquecido, posteriormente nas Disciplinas de Oficina de Pesquisa e concretizado nas Disciplinas de Seminário de Trabalho de Conclusão I e Seminário de Trabalho de Conclusão II. Nesse processo, construímos uma dinâmica que possibilitou que aprofundássemos conhecimento sobre o debate contemporâneo acerca da produção acadêmica a respeito do trabalho informal. O interesse pelo tema surgiu da observação aleatória sobre o considerável quantitativo de trabalhadores neste transporte de massa popular, durante nossos eventuais deslocamentos nesse núcleo urbano formado pela cidade do Rio de Janeiro e área metropolitana. Percebemos que ali, além do grande número de pessoas que recorrem a este tipo de trabalho, algumas outras características são peculiares, e foram imediatamente percebidas, como a predominância de uma mão de obra masculina e um perfil etário bastante diversificado. Estas particularidades nos fizeram pensar os motivos que levam esta fração de trabalhadores a optarem por tal atividade. O trabalho de campo foi precedido da devida revisão teórica sobre a produção relativa à temática da informalidade. A fim de ultrapassarmos a aparência do fenômeno do trabalho ambulante no trem, recorremos ao acumulado teórico sobre a
  • 9. 10 temática do trabalho informal, o que possibilitou a reflexão sobre o tema e o estabelecimento das devidas relações entre o dado singular desses trabalhadores nos trens do Rio, sua ligação com o particular deste fenômeno no Brasil. Assim como, a visualização do panorama mais universal do trabalho no mundo, a partir das atuais configurações do capital e suas inferências no mundo do trabalho. Para tanto, a metodologia da pesquisa envolveu levantamento e análise bibliográfica, aplicação de questionários e realização de entrevistas semi- estruturadas. Portanto, contamos com fontes de dados primárias e secundárias. Do confronto desses dados elaboramos reflexão no quadro da tradição crítico-dialética da sociedade, procurando entender o tema dentro do contexto da crítica da sociabilidade capitalista. Escolhemos como amostra para apreciação empírica o trabalho ambulante realizado nos trens do ramal de Santa Cruz, no Rio de Janeiro. A estratégia escolhida para a coleta dos dados foi a de abordagem direta aos ambulantes, por meio da aplicação de questionário, no qual foram colhidas informações objetivas que possibilitem traçar um perfil geral de tais trabalhadores, bem como a captação de percepções acerca do próprio trabalho realizado, entre outras questões correlacionadas à atividade ambulante. Para além desses trabalhadores, outros informantes chaves também foram entrevistados, a fim de que pudéssemos obter informações preliminares acerca das problemáticas que envolviam o trabalho ambulante nos trens, bem como de opiniões ―de fora‖ do núcleo duro da ação ambulante no ramal de Santa Cruz. Conforme se verá, a informalidade é um fenômeno anacrônico no interior da sociedade capitalista, que passa a ser considerado um problema empírico e
  • 10. 11 conceitual somente a partir da década de 1970. Como a massificação do pleno emprego não se tornou uma realidade em todos os países capitalistas, o trabalho informal se fortaleceu como uma realidade latente, especialmente entre os chamados países da periferia, dependentes no sistema mundial. A história mostrou os limites das matrizes liberais burguesas do desenvolvimento geral dos povos, com a incorporação aos benefícios dos avanços do desenvolvimento baseado no crescimento produtivo. Neste sentido, segundo esta perspectiva, a informalidade era um dado que não combinava com os padrões de desenvolvimento capitalista, parecendo algo ―fora do sistema‖, ou um sintoma do ―atraso das nações subdesenvolvidas‖. Assim sendo, a Teoria da Marginalidade será o mote sobre o qual irão surgir os primeiros estudos sobre este fenômeno. A informalidade é muitas vezes apresentada aos trabalhadores como uma alternativa para a geração de renda, diante da agigantada escala de desemprego. Deste modo, ideologicamente, é possível se observar incentivos de cunho liberal para que esta fração da população economicamente ativa constitua o ―seu próprio negócio‖, alimentado-a com a ideia da independência e do protagonismo econômico. No entanto, a realidade esconde a ―outra face desta moeda‖: os grandes sacrifícios pessoais que estão embutidos no trabalho informal. Por outro lado, para além do dado ideológico, e diante da necessidade imediata de sobrevivência, o trabalhador informal necessita garantir o seu sustento e de sua família, fazendo do recurso a este tipo de trabalho uma saída imediata para sua situação.
  • 11. 12 Nesta pesquisa assumimos outra compreensão sobre a interpretação do fenômeno da informalidade. Aqui assumimos o entendimento de que as próprias atividades informais não são estranhas àquelas formais, de modo que não podem ser percebidas sem a sua íntima relação com as formais, uma vez que àquelas, ao contrário do que parece ser, não estão fora da dinâmica de acumulação capitalista. A informalidade é uma ―produção‖ da extensão do capitalismo, e funcional para a mesma (OLIVEIRA, 2003, p.33). Assim, a monografia se propõe a pensar essa dialética no contexto do quadro das novas configurações do mundo do trabalho, em consequência da reestruturação do capital nas últimas décadas, que trouxe mudanças estruturais na sociedade como um todo, desde o centro da economia do capital até sua periferia. Nesse contexto, o Brasil, como nação aspirante a uma economia desenvolvida, reproduz as sequelas deste sistema, acentuando ainda mais as disparidades socioeconômicas entre sua população. No campo do trabalho, o fenômeno da informalidade, que já era presente de forma cultural e institucional no país, agora se sedimenta como opção estruturante da economia, servindo como uma ―alternativa‖ para abarcar uma massa de trabalhadores presente de forma estrutural no desemprego. Assim sendo, a hipótese deste estudo é a de que os fatores que levam os trabalhadores ambulantes dos trens do ramal de Santa Cruz no Rio de Janeiro a adotarem esta atividade como sua ocupação principal decorrem da facilidade com que esses sujeitos, através dela, encontram para adquirir uma renda, constituindo-se uma forma mais rápida de colocação no mercado de trabalho assumindo assim como uma estratégia de sobrevivência imediata. A falta de perspectiva de reinserção no mercado de trabalho formal devido aos vários fatores que compõem o perfil desta
  • 12. 13 população - a baixa escolaridade, a falta de qualificação e a faixa etária elevada ou baixa - tendem a favorecer a inserção nesta atividade informal como sendo, em muitos casos, a única alternativa para esses trabalhadores. Soma-se a isso, a relativa autonomia que estes trabalhadores informais têm sobre o seu trabalho, no que diz respeito ao horário de trabalho e a obtenção de um rendimento maior do que teriam se estivessem empregados formalmente. Aliás, essa relativa e aparente autonomia pode ser considerada fator de retenção e permanência do trabalhador na própria atividade, como uma difícil sina de repetição em cada estação da vida. Estão no trem por falta de emprego e por baixa escolarização, e estando no trem não têm como superar esses limites porque o trabalho é penoso e fadigante. Assim sendo, estruturamos a exposição esta pesquisa da seguinte forma: no primeiro capítulo, apresentamos a revisão teórica acerca da informalidade do trabalho e suas diferentes acepções, da década de 1970 até hoje. Na primeira parte procuraremos demonstrar a funcionalidade estratégica da informalidade ao capitalismo, mostrando que o baixo nível de renda aferido nestes empreendimentos arcaicos representa custo de comercialização dos produtos industrializados e de produtos agropecuários que são postos fora dos custos internos de produção e reforçam a acumulação nas unidades centrais do sistema. Na segunda parte abordaremos as peculiaridades do trabalho informal no Brasil, que diferentemente de outras nações, mesmo antes das grandes mudanças estruturais do mundo do trabalho, já apresentava, desde muito tempo, a concentração de consideráveis contingentes não assalariados em atividades laborativas informais.
  • 13. 14 Em seguida, no segundo capítulo, nos deteremos na especificidade do trabalho ambulante nos trens do ramal de Santa Cruz, no Rio de Janeiro. Inicialmente, faremos um resgate histórico do papel do trem na constituição e desenvolvimento da cidade do Rio de Janeiro e da Região Metropolitana ao redor. Daremos ênfase ao contexto das relações sociais desiguais construídas no processo de urbanização da cidade. A seguir nos deteremos no trabalho dos ambulantes nos trens do ramal de Santa Cruz, descrevendo a sociabilidade criada no interior deste espaço, bem como as origens da organização política dos trabalhadores. Esperamos, através deste capítulo, demonstrar a linha de proximidade da vivência de precariedade social entre os trabalhadores ambulantes e os passageiros dos trens, que coletivamente formam a classe subalterna, que compartilha as precariedades cotidianas da vida e do trabalho na periferia urbana fluminense. No terceiro e último capítulo desta monografia apresentaremos o trabalho ambulante no trem através da análise do perfil de cada um dos tipos de trabalho ambulante desenvolvido no espaço dos trens do ramal de Santa Cruz. Para isso faremos, no início, um breve relato sobre o percurso metodológico empreendido no trabalho de campo, e, logo após, faremos uma síntese das entrevistas realizadas, destacando a vivência particular de cada ambulante com relação à trama maior do trabalho informal na qual estão inseridos. Por fim, descreveremos o perfil tanto dos ambulantes ligados às empresas, como os não ligados às mesmas. Objetivamos neste capítulo, captar as semelhanças e diferenças entre esses diferentes atores sociais, de modo a tornar mais visível as experiências vivenciadas no trabalho ambulante no trem e a sua relação com o contexto estrutural do mundo do trabalho, quando é possível tornar inteligível o fenômeno da informalidade.
  • 14. 15 Capítulo 1: AS MÚLTIPLAS FACES DA INFORMALIDADE E AS MUDANÇAS DO MUNDO DO TRABALHO “Se a aparência e a essência das coisas coincidissem, a ciência seria desnecessária.” MARX, Karl. O capital (livro III, 2º tomo). São Paulo: Abril, 1983, p. 271. Neste capítulo pretendemos situar a temática da informalidade do trabalho, recorrendo a algumas variantes históricas. Em primeiro lugar, procuraremos situar o papel estratégico da informalidade no sistema capitalista. Para tal, remontaremos os antecedentes históricos da construção social do termo, nos idos da década de 1960 do século passado, passando por algumas das vertentes teóricas que versam sobre as questões relativas ao trabalho. Ao final apresentaremos, brevemente, algumas características típicas do trabalho informal. Seguidamente vamos nos deter, especificamente, no trabalho informal no Brasil, procurando evidenciar as suas particularidades e a relação com o contexto mais amplo, no âmbito do capitalismo globalizado. De maneira geral, o que se deseja mostrar neste capítulo é a funcionalidade do trabalho informal no sistema capitalista, na medida em que colabora com o processo de acumulação, ainda que, aparentemente, apresente-se como um elemento anacrônico à sociedade do trabalho assalariado. 1.1- A informalidade do trabalho e sua função estratégica no Capitalismo Iniciamos essa reflexão situando que o tratamento do tema da informalidade deita raízes nos esforços teóricos para explicar as disparidades socioeconômicas entre os países. Alves e Tavares (2006) destacam a influência da teoria da
  • 15. 16 marginalidade, que orientou as políticas de governo dos países da América Latina na década de 1960. Também conhecida como teoria do subdesenvolvimento, a teoria da marginalidade apregoava que o trabalho informal, entendido como ―trabalho de tipo não capitalista‖ eram causas do subdesenvolvimento dos assim chamados países do ―terceiro mundo‖. Para os teóricos dessa corrente ―a urbanização dos países latino-americanos aconteceu sem que ocorressem transformações econômicas capazes de absorver uma crescente oferta de força de trabalho‖ (idem, p 426). O argumento é que o hiato entre os processos de urbanização e industrialização provocariam a permanência de estruturas arcaicas, sobreviventes e coexistentes com as práticas sociais mais tipicamente capitalistas. Tal fenômeno fomentou uma desconcentração da força de trabalho no setor secundário (industrial) e um superdimensionamento desta mesma força no setor terciário (serviços), aumentando, por sua vez as populações sobrantes vivendo em situação de emprego e subemprego (OLIVEIRA, 2003, p. 54-57). Posteriormente, quando os governos latino-americanos se colocaram o dilema de equalizar o desenvolvimento econômico e social, recorreram a novas análises sobre os espaços urbanos, cenários nos quais se concentravam o capital industrial e um crescente contingente populacional. Neste sentido, a Cepal (Comissão Econômica para América Latina)1 encarrega-se de elaborar esta nova análise sobre o subdesenvolvimento econômico. 1 ―Uma das cinco comissões econômicas regionais das Nações Unidas (ONU) criada para monitorar as políticas direcionadas à promoção do desenvolvimento econômico da região latino-americana, assessorar as ações encaminhadas para sua promoção e contribuir para reforçar as relações econômicas dos países da área, tanto entre si como com as demais nações do mundo. Posteriormente, seu trabalho ampliou-se para os países do Caribe e se incorporou o objetivo de promover o desenvolvimento social e sustentável.‖ Disponível em: http://www.cepal.org/cgi- in/getProd.asp?xml=/brasil/noticias/paginas/2/5562/p5562.xml&xsl=/brasil/tpl/p18f.xsl&base=/brasil/tpl/top-bottom.xsl Acesso em 24 de setembro de 2012).
  • 16. 17 Baseadas numa perspectiva estruturalista, os teóricos cepalinos buscaram explicar tal subdesenvolvimento latino-americano, igualmente a partir de uma concepção dualista da realidade, ou seja, para estes, ―a dependência econômica seria a causa da marginalização de amplos setores da população urbana, impedindo a incorporação deles no mercado formal de trabalho‖ (ALVES E TAVARES, 2006, p.426). Em oposição a estas teses, Kowarick (1981), apontava que no decorrer do desenvolvimento do capitalismo, as formas de produção tradicionais, ―as economias de subsistência, o artesanato e a indústria em domicílio‖ (1981, p.61), não foram extintas. Mas ao contrário, foram incorporadas à divisão social do trabalho, alimentando-se dela durante o processo de acumulação. Deste modo, este fenômeno não deveria ser compreendido como algo distinto, mas, na verdade, apresentava-se como ―inerente ao desenvolvimento do capitalismo latino-americano‖ (Ibidem). Assim sendo, o sistema de acumulação capitalista mantêm formas ―tradicionais‖, bem como incorpora ―novas‖ formas de uso da força de trabalho (idem, p. 54), e assim o fazendo produz-se o seu barateamento, tornando-se um elemento positivo para o incremento do processo de acumulação. Para ele, a teoria da marginalidade, de base funcionalista, privilegia a questão do desenvolvimento sobre o viés psicossocial da integração social dos indivíduos, reiterando os ―termos da dualidade estrutural que opõe o ‗tradicional‘ ao ‗moderno‘, o ‗marginal‘ ao ‗integrado‖ (KOWARICK, 1981, p. 17). Outro crítico das teorias da marginalidade e da dependência foi Oliveira (2003). Para ele ―o desenvolvimento era um problema que também dizia respeito às contradições sociais internas‖ (2003, p. 33). Ou seja, para o autor o modo de análise
  • 17. 18 dos ―teóricos do modo de produção subdesenvolvido‖ (ibdem) era insuficiente, pois estes compreendiam a noção de atraso unicamente pelo viés da relação dos países ―subdesenvolvidos‖ latino-americanos com aos desenvolvidos do hemisfério norte. No entanto, segundo Oliveira, é necessário também compreender que o problema desta dependência diz respeito igualmente aos problemas das classes sociais internas dos países. Para o autor um conjunto de fatores deixou de ser percebidos pelos teóricos cepalinos: ―as imbricações entre agricultura de subsistência e sistema financeiro‖ (idem p. 129), de modo que a atrasada agricultura financiava a agricultura atrasada e a industrialização, ―a subordinação da nova classe social urbana, o proletariado, ao Estado, e o ‗transformismo‘ brasileiro‖ que opera uma ―revolução produtiva, sem uma revolução burguesa‖. Tais fatores, segundo o autor conferem um ―caráter ‗produtivo‘ ao atraso‖ (idem p.130-131). Enfatizando tal crítica ao conceito de desenvolvimento tão caro aos cepalinos o autor assim expressa: Penetrado de ambiguidade, o ‗subdesenvolvimento‘ parecia ser um sistema que se move entre sua capacidade de produzir um excedente que é apropriado parcialmente pelo exterior e sua incapacidade de absorver internamente de modo produtivo a outra parte excedente que gera (Idem, p.34). Com a modernização das economias nacionais, na década 1970, evidenciam- se as insuficiências das expectativas dos teóricos do subdesenvolvimento. Pois, a despeito do crescimento econômico, um grande contingente populacional não foi incluído no processo produtivo , bem como a hipótese de supressão das economias típicas não capitalistas, tal como apregoado pelos teóricos cepalinos, não se fez real. Para este autor As atividades não tipicamente capitalistas eram resultantes e consequências do processo de acumulação capitalista, o qual mantinha parte da força de
  • 18. 19 trabalho na reserva, tendo por função pressionar a força de trabalho que estava na ativa (OLIVEIRA, 2003, p.69). Assim sendo, mesmo as relações tipicamente não capitalistas de trabalho colaboram para o aumento dos níveis de exploração e acumulação, na medida em que elas reduzem o custo da reprodução da força de trabalho produtiva, e, consequentemente, para o crescimento da proporção de trabalho não pago. Pode-se então dizer que, longe de parecer algo estranho à própria constituição econômica capitalista, estas ―formas de subsistências na economia periférica urbana‖ são essenciais para a existência do próprio sistema capitalista, que tem em seu próprio eixo funcional a relação de desigualdade das partes. Esses setores que funcionam como satélites das populações nucledas nos subúrbios e, portanto, atendem a populações de baixo poder aquisitivo: por esta forma, os baixos salários dessas populações determinam o nível de ganho desses pseudo-pequenos proprietários (o que parecia uma operação de criação de ―bolsões de subsistência‖ no nível das populações de baixo poder aquisitivo); na verdade, o baixo nível desses ganhos representa custo de comercialização dos produtos industrializados e de produtos agropecuários que são postos fora dos custos internos de produção e reforçam a acumulação nas unidades centrais do sistema (Ibidem, grifo do autor). Alves e Tavares (2006) situam no âmbito dos estudos sobre o problema da empregabilidade, organizados pela OIT2 (Organização Internacional do Trabalho), a elaboração das categorias economia ou trabalho informal. A partir da realização dos estudos sobre o problema do emprego, no Quênia, em 1972. Nesta pesquisa, a OIT classificou dois seguimentos distintos na ordem produtiva: um denominado setor formal, estruturado por unidades produtivas organizadas; e outro, denominado setor informal, formado por unidades produtivas 2 A OIT é uma das instituições da ONU (Organização das Nações Unidas) responsável pelas convenções internacionais acerca do trabalho em termos como: emprego, proteção social, recursos humanos, saúde e segurança no trabalho, entre outros. Disponível em: http://www.onu.org.br/onu-no-brasil/oit/ Acesso em 24 de setembro de 2012).
  • 19. 20 não organizadas, baixo capital e que eram pouco competitivas. Desde então se popularizou o emprego dos termos nas análises econômicas, especialmente no que diz respeito à economia urbana dos países dependentes (ALVES E TAVARES, 2006, p.427). Particularmente as análises e estudos sobre a América Latina, especificamente por meio do Prealc (Programa Regional de Emprego para América Latina e Caribe), no interior da CEPAL, formou-se o entendimento de que as atividades de baixo nível de produtividade, bem como àquelas não reguladas por uma legislação trabalhista seriam pertencentes ao setor informal. Assim sendo, tais análises sobre o conceito de setor informal são vistas especialmente sob a ótica do mercado de trabalho, especificamente no que diz respeito ao emprego e ao subemprego. No entanto, tais análises não faziam referência a estreita ligação entre o setor informal e o funcionamento do sistema econômico. Esta concepção só foi elaborada a partir dos anos de 1980, por Souza (1980) e Cacciamali (1983), que passam a definir o setor informal como ―intersticial e subordinado ao movimento das empresas capitalistas‖ (Idem, p. 428). As atividades informais se ampliam quando do crescimento econômico geral, e se retraem quanto este entra em processo de crise. As características de tal setor eram: 1)O trabalhador vivia de sua força de trabalho e, em alguns casos, utilizava- se do trabalho familiar ou, mais recentemente, subcontratava ajudantes como extensão de seu próprio trabalho; 2) tinha como objetivo a obtenção de renda para consumo individual e familiar, visando manter também sua atividade econômica; essa forma de trabalho não propiciava acumulação ao produtor direto; 3) o proprietário mantinha o domínio sobre a totalidade das etapas que compunham aquela produção (CACCIAMALI apud ALVES E TAVARES, 2006, p.428) Tais características do trabalho informal conformam a vida laboriosa daqueles indivíduos impossibilitados de acumular capital. No entanto, a partir da década de
  • 20. 21 1990, passam a ser incorporados nos estudos sobre a informalidade, também aqueles trabalhadores inseridos nas crescentes ondas de precarizações no mundo do trabalho empreendidas pelas políticas econômicas neoliberais. Assim sendo, ganha maior força nos debates a respeito à relação dessas formas de trabalho tipicamente não capitalistas e a própria acumulação de capital. Diante disso faz-se necessário superar a limitação do conceito de setor informal, circunscrito na ideia de segmento à parte para o de informalidade. Malaguti, caminha nesta direção ao definir que a informalidade é um conceito muito mais amplo que o de setor informal. O autor aborda em sua pesquisa, alguns casos, no qual seria possível constatar situações de trabalho informal por dentro de uma aparente relação de formalidade: O funcionário público que durante o expediente vende peças de roupas, perfumes e sabonetes; o assalariado de uma empresa multinacional que faz horas extras sem recebê-las; o mestre de obras de uma grande empreiteira que trabalha sem os utensílios de proteção etc (2000, p. 99). Malaguti, deste modo, desconstrói a dualidade e a aparente separação entre a formalidade e a informalidade no âmbito das relações de trabalho. Através dos exemplos é possível perceber que até mesmo as relações reguladas pelo mercado de trabalho, por meio das legislações trabalhistas, portanto, formalizadas, podem ser permeadas por situações de informalidade. Deste modo, mesmo a carteira de trabalho assinada – símbolo maior da formalidade- pode ser um mero ―documento de fachada‖ (Ibdem), na medida em que escamoteia relações de trabalho informalizadas em seu interior. Entretanto, o autor continua a problematização da questão ao falar que o inverso também é verdadeiro, ou seja, é possível também verificar elementos de formalidade por dentro do ―setor‖ informal.
  • 21. 22 Uma situação exemplar é a do ambulante que é casado com uma funcionária pública [...] Independentemente do fato desta funcionária ajudar o ambulante em suas vendas, seu contracheque público é fundamental para a obtenção de crédito por parte do ambulante-marido. É através da situação relativamente estável de sua esposa que ele financia suas compras junto aos fornecedores (MALAGUTI, 2000, p.100). Outro elemento importante levantado pelo autor para a constatação do problema é que a informalidade pode ser construída tanto pela empresa ou instituição, quanto pelo empregado ou funcionário (Idem, p. 101). Tais elementos revelam a complexidade do binômio formalidade/informalidade, de modo que, é estabelecida uma espécie de simbiose entre essas duas dimensões, revelando ambas que o conteúdo do trabalho capitalista elucida a sua forma. Deste modo, para efeitos de análise, uma forma não pode ser concebida sem a outra. No entanto, apesar de seu caráter abrangente, o conceito informalidade não é unívoco no debate acadêmico. Autores como Noronha (2003) e Machado da Silva (2003), utilizam-se do termo com algumas reservas, ainda que não proponham outro conceito mais apropriado. Para Noronha (2003) o termo informalidade é carregado de ambiguidades, por não distinguir de imediato do que trata especificamente, pois ele serve para descrever uma ―ampla gama de situações urbanas-industriais‖ (2003, p. 116) muito diversas. Para ele o problema do termo não é especificamente acadêmico, mas institucional. Neste sentido, para o referido autor a economia informal, ou simplesmente a informalidade, é um termo por demais amplo, sendo preferível, para fins de estudo acadêmico o conceito de informalidade do trabalho. É com esta acepção que pretendemos nos referir, de agora em diante, neste presente trabalho. Segundo este autor, as questões do subemprego ou da "informalidade" só podem ser entendidas como resultantes da própria construção da noção de
  • 22. 23 "formalidade", que, por sua vez, está associada às noções de cidadania e de direito social (NORONHA, 2003, p.113). Por outro lado Machado da Silva (2003) chama atenção para outro aspecto que figura no uso contemporâneo do termo informalidade. Segundo ele, dada as presentes mudanças estruturais no mundo do trabalho, o conceito tem sido usado quase como um sinônimo de ―empregabilidade‖, ou seja, como uma alternativa num ambiente em que o processo produtivo encontra-se em retração, e, consequentemente incorporando poucos trabalhadores no círculo do assalariamento. Assim sendo, segundo o autor, o falacioso discurso do ―empreendedorismo‖, vem substituindo a noção de informalidade (2003, p.164-167). Mas segundo o autor o que ocorre é que o debate acerca da empregabilidade por meio do empreendedorismo tira de cena a questão da injustiça que, de certa forma, o antigo debate da informalidade colocava. Outros autores já preferem utilizar-se do conceito de ―processo de informalidade‖, ao conceber que as mudanças estruturais da economia e da sociedade levaram a redefinição da inserção do trabalho no processo de reestruturação das economias em escala mundial, nacional e local. Cacciamali apresenta quatro elementos para se pensar os condicionantes estruturais da economia global, que irão incidir diretamente sobre o processo de informalidade: 1) os processos de reestruturação produtiva; 2) a internacionalização e expansão do mercado financeiros; 3) o aprofundamento da internacionalização e a maior abertura comercial das economias; 4) a desregulamentação dos mercados (CACCIAMALI apud ALVES E TAVARES, 2006, p. 249). Esses eventos diretamente a economia e o emprego, pois geram uma insegurança econômica que impacta negativamente sobre o crescimento econômico, atingindo, consequentemente, o mercado de trabalho.
  • 23. 24 Para a autora duas categorias de trabalhadores fazem parte da informalidade: ―os assalariados sem registro‖, contratados de forma ilegal, portanto, sem as garantias e direitos devidos; e, os ―trabalhadores por conta própria‖, que prestam serviço e, eventualmente, contam com o auxilio familiar ou de outros ajudantes para a obtenção de renda para sua reprodução (idem). Em suma, podemos dizer que uma das consequências mais visíveis das mudanças recentes do trabalho3 resulta aquilo que Havery (1992) denominou ―acumulação flexível‖4, forjando massas crescentes de trabalhadores sem emprego, engrossando as fileiras daquilo que Marx denomina ―exército industrial de reserva‖. Permanecendo nesse quadro de modo cada vez mais constante, e porque não dizer permanentemente, aumentando o nível do desemprego estrutural no quadro da população economicamente ativa. É justamente nessa nova configuração do quadro do mundo do trabalho que localizamos o objeto desta pesquisa, para pensar a subproletarização do trabalho que se manifesta nas ―formas de trabalho precário, parcial, temporário, subcontratado, 'terceirizados', vinculados à 'economia informal', entre tantas modalidades existentes‖ (ANTUNES, 1999, p. 44, grifo nosso). 3 Essas mudanças estão situadas na chamada reestruturação produtiva que foi a resposta dada pelo capital diante da crise iniciada no sistema produtivo a partir dos anos de 1970. Ela consiste numa série de ajustamento dos padrões de produtividade e de qualidade, readequando alguns dos princípios tayloristas/fordistas às novas condições do mercado, bem como introduziu novos formas mais competitivas ao processo produtivo, tal como a implantação da automação, flexibilidade, produção enxuta, qualidade total, descentralização produtiva, etc., derivados do método Toyotista (Havery,1992). 4 ―A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por confronto direto com a rigidez do Fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fortalecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente de inovação comercial, tecnológica e organizacional‖ (Idem, p. 140).
  • 24. 25 Pela sua própria natureza, conforme já visto, o trabalho informal é uma categoria complexa, que pode englobar diversas categorias de trabalhadores com inserções ocupacionais bastante peculiares. O traço comum é a heterogeneidade, e, por isso, Silva (2009) classifica este ―setor‖ em quatro grandes grupos: Os trabalhadores autônomos ou por conta própria, os que vivem dos pequenos empreendimentos domiciliares, os assalariados sem registro em carteira e os ligados aos sistemas de cooperativa. O desafio desta pesquisa é pensar uma experiência de trabalho concreta, aquela dos trabalhadores dos ambulantes dos trens urbanos, ou seja, os trabalhadores autônomos ou por conta própria5. 1.2- Particularidades da informalidade do trabalho no Brasil Ao longo do século XX, o capitalismo consolidou seu padrão de desenvolvimento por meio da massificação do modelo fordista-taylorista. Entretanto, como é característica de sua lógica, a homogeneidade dos seus benefícios, principalmente a incorporação de crescentes massas de trabalhadores no processo de industrialização (a estratégia do pleno emprego associada à incorporação de um 5 Cabe destacar que esta categorização engloba, além dos ambulantes, os trabalhadores sem vínculo empregatício subordinados às empresas – tanto na produção, como é o caso de costureiras, como na distribuição, caso dos vendedores por comissão, marceneiros, pedreiros, pintores, encanadores, entre outros. Segundo o IBGE (2012), esta categoria forma o grupo mais expressivo dos trabalhadores informais, correspondendo a mais de 4/5 do total e 19% das pessoas ocupadas em 2012. Para efeitos metodológicos desagregou a população ocupada em oito categorias: empregados com carteira assinada no setor privado; empregados sem carteira assinada no setor privado; trabalhadores por conta própria; empregadores; trabalhadores domésticos; militares ou funcionários públicos estatutários; empregados com carteira assinada no setor público; e, empregados sem carteira assinada no setor público.
  • 25. 26 número cada vez maior de consumidores), não se estendeu a todos os países de economia capitalista. Dentre os principais motivos deste fenômeno está o enfraquecimento do ―Welfare State‖ nos países centrais, e a sua parcial formação nos de economia periférica. Sobretudo, a partir da crise, iniciada nos anos de 1970, quando o regime de acumulação capitalista começou a dar sinais de esgotamento, através da queda dos lucros, crise do padrão produtivo taylorista/fordista (superprodução) e da grande concentração de capitais (através dos conglomerados monopolistas) (ANTUNES, 2000 p. 29 e 30). Deste modo, o que evidenciamos na pesquisa é que os efeitos da expansão do capital se dão de modo diferenciado em diferentes partes do globo. Assim sendo, o que é realizado em um determinado tempo no centro produtivo (países com economias mais desenvolvidas), reverbera seus efeitos, na periferia do sistema, em momentos distintos. O caso brasileiro parece se encaixar neste aspecto, já que o mercado de trabalho, mesmo em seu auge industrial, nunca alcançou universalmente as massas trabalhadoras. Ainda que com algumas particularidades, conforme veremos adiante, na aurora de sua industrialização tardia, foi preciso organizar e consolidar a massa de trabalhadores conforme os novos padrões de desenvolvimento. Neste sentido, a estratégia usada pelo Estado Novo varguista, na década de 1940, foi a de assegurar a seminal classe trabalhadora brasileira, um conjunto
  • 26. 27 normativo de proteção social vinculada ao status ocupacional6. Com isso criou-se aquilo que Gomes (2002) denomina ―a invenção do trabalhismo‖, ou seja, a criação ideológica de uma nova cultura política a respeito do trabalho, criando um vínculo entre ―a ideia de cidadania e a existência de direitos sociais‖ (2002, p.33), isso possibilitou o afastamento de um duplo perigo: o acirramento das questões sociais advindas do conflito entre capital e trabalho e a ―sedução‖ do discurso comunista suscitado em tal disputa. Para a autora, as conquistas dos direitos sociais, dentre eles os relativos ao trabalho, no caso brasileiro, é muito distinta daquela descrição linear elaborada por Marshall (1967), especificamente referindo-se a experiência inglesa, no qual os direitos civis, políticos e sociais, foram sendo conquistados sucessivamente ao longo dos séculos XVIII, IXI e XX. O Brasil, formado por uma diversidade de atores sociais e com interesses em jogo, tornou a nossa experiência de alcance de cidadania um pouco mais distinta e complexa, segundo a autora Por razões históricas, os direitos sociais, especialmente os do trabalho, assumiram posição estratégica para a vivência da cidadania, o que se reforçou pela fragilidade dos direitos civis e pelo desrespeito aos direitos políticos, infelizmente muito praticado ao longo do século XX (GOMES, 2002, p.12). Com isso, é conformado um novo padrão de acesso aos diretos sociais à classe trabalhadora, uma ―cidadania regulada‖ (SANTOS, 1979 e 1998) fortemente protegida pelo Estado, em função de sua função estratégica ao mercado. 6 Não é demais esclarecer que os direitos sociais relativos ao trabalho, não faz parte de um movimento unilateral de um dos atores que conformam a sociedade brasileira, no caso o Estado, ela também é fruto de lutas que se estabelecem socialmente entre classe trabalhadora, em suas reenvidicações, e o empresariado, na defesa da maximixação de seus lucros. No caso brasileiro, o que se verifica é a antecipação às demandas das classes subalternas, de moda a ―fazer a revolução, antes que o povo a faça‖(GOMES, 1979, p. 47).
  • 27. 28 Entretanto, mesmo a regulamentação desse mercado deixou também de fora os trabalhadores rurais e muitas categorias de trabalhadores urbanos, que viviam sem a formalização da carteira de trabalho. Segundo Noronha (2003), as noções de formalidade e informalidade, se caracterizavam, no Brasil, pelo vínculo empregatício, ou seja, pelo fato de ter ou não carteira de trabalho assinada, pois é ela que comprovava a identidade de trabalhador, e, portanto, a sua cidadania. A constituição de um ―mercado formal‖ de trabalho, no auge do período de crescimento econômico, a década de 1970, atingiu apenas 50% da população economicamente ativa empregada no meio urbano (POCHMANN, 2002). Esse processo conviveu, concomitantemente, com o aumento de formas de trabalho informal em pequenas empresas urbanas de pequeno porte, no campo, e nas inúmeras e precárias formas de trabalho autônomo e doméstico, ―cujos padrões de contratação e assalariamento passavam ao largo da legislação trabalhista e social e de qualquer possibilidade de representação coletiva‖ (COSTA, 2010, p. 171, grifo da autora). Essa realidade se agrava sobremaneira na década de 1990 com as mudanças estruturais na economia e nas instituições do mercado de trabalho. A abertura econômica dos mercados e as privatizações de órgãos públicos, pressionaram o processo de reestruturação produtiva sistêmica, sobretudo no setor secundário, afetando não apenas o nível do emprego, mas também a sua qualidade, com a flexibilização dos vínculos e dos regimes de trabalho. Além desses aspectos político-econômicos, há ainda a necessidade de acrescentar alguns outros aspectos históricos que conformam a estrutura social brasileira no século XX. Chamamos atenção, em particular, para a herança recente
  • 28. 29 de passado escravista, que a despeito da abolição, não incorporou a recém-criada ―mão de obra livre‖ às incipientes estruturas de emprego à época. Para efeito de ilustração, são clássicas as cenas retratadas por artistas como Rugendas e Debret, que captaram a ocupação do espaço da rua pelos negros em sua ―viração‖ no Rio de Janeiro do Século XIX (BATISTA, 2008, p.7-10; FERREIRA e LEMOS, s/d. p.10). Este tipo de atividade desenvolvida, por muitos escravos no período anterior à abolição da escravatura, como escravos de ganho, ou aluguel, permanecerá como uma das principais atividades da mão de obra negra urbana no cenário urbano do Rio de Janeiro, após 1888. Mais ainda, os estudos como o de Mattos (2007) apontam que este mesmo contingente populacional será decisivo nas primeiras lutas de classe, por meio das greves sindicais do início do século XX. Neste sentido, o fenômeno da informalidade, conforme sinalizado, não é algo novo no Brasil. Existindo desde antes da estruturação do mercado de trabalho assalariado e livre. Agora resta saber em que medida tal fenômeno se apresenta posteriormente a esta estruturação e aos movimentos do capital e suas crises cíclicas. A partir da já citada conjuntura internacional da crise do capital, iniciada nos anos de 1970, esse processo se complexifica. Neste sentido, é preciso ter em conta que iniciou-se um processo de reorganização do capital e de seu sistema ideológico e político de dominação, cujos contornos mais evidentes foram o advento do neoliberalismo, com a privatização do Estado, a desregulamentação dos direitos do trabalho e a desmontagem do setor produtivo estatal […]; a isso também seguiu um intenso processo de reestruturação da produção e do trabalho, com vista a dotar o capital do instrumental necessário para tentar repor os patamares de expansão anteriores (ANTUNES, 2000, p.31, grifo do autor) . Associadas a esse processo reativo do capital aliam-se a estruturação de novas formas do domínio técnico científico, bem como as de gerenciamento da
  • 29. 30 força de trabalho. Como aludimos, tal processo tem seu início nos países de economia mais desenvolvida, mas que em seu curso, também incorporavam os de economia periférica, numa relação de dependência e subordinação aos primeiros (Idem, p. 32). Cleps (2009) ilustra bem as consequências destas transformações, em nível nacional, principalmente no que diz respeito ao trabalho informal, objeto desta pesquisa: As atividades econômicas informais estão cada vez mais presentes no cotidiano da sociedade brasileira. Seu crescimento deve-se, entre outras razões, às transformações sócio-econômicas resultantes da adoção de modelos flexíveis de gestão que se refletiram diretamente sobre o mercado de trabalho. Diante do aumento dos índices de desemprego e das baixas remunerações oferecidas no setor formal, a informalidade tem sido, na maioria das vezes, a única alternativa de trabalho para um expressivo contingente de mão-de-obra que se encontra fora dos padrões exigidos pelo mercado de trabalho (CLEPS, 2009 p. 327). Uma das grandes consequências deste quadro é o processo de desasalariamento e desemprego. Pochmann (2006) ao desenvolver estudos sobre este fenômeno descreve que ―entre as décadas de 1940 e 1970 a cada dez postos de trabalho gerados, oito eram empregos assalariados. Entretanto, nos anos 1990, a cada dez empregos criados, somente quatro eram assalariados‖ (2006, p.61). Desta forma há uma gradativa diminuição da participação dos empregos assalariados e com registro, de modo que a maior parte das vagas abertas no mercado de trabalho vem sendo preenchida por ―ocupações sem remuneração, por conta própria, autônomo, trabalho independente, de cooperativa, entre outras‖ (ibdem). Assim sendo, as atividades informais, já praticadas no período anterior a organização do mercado de trabalho livre, continua a coexistir com as formais, reguladas por leis trabalhistas e organizadas pelo Estado. Com o agravante que
  • 30. 31 nesta atual conjuntura político-econômica, tal fenômeno ganha outro vulto, servindo muitas vezes, como uma única alternativa de sobrevivência para um contingente mais expressivo da população. No entanto, conforme dito, as próprias atividades informais não podem ser percebidas sem a sua íntima relação com as formais, uma vez que àquelas, ao contrário do que parece ser, não estão fora do processo de acumulação capitalista, ele é uma ―produção‖ da extensão do capitalismo (OLIVEIRA, 2003 p.33) e funcional para a mesma. Até aqui nos detivemos especificamente às questões relativas às polêmicas conceituais acerca da informalidade. Procuraremos adiante explorar a realidade específica de um tipo de trabalho informal, objeto desta monografia: o trabalho informal dos trabalhadores ambulantes dos trens do Rio de Janeiro. Para isso faremos uma breve recuperação histórica sobre as ferrovias no Rio de Janeiro, bem como procuraremos discorrer sobre a sociabilidade empreendida no interior desse meio de transporte de massa, onde se desenvolve a atividade ambulante.
  • 31. 32 Capítulo 2: O TRABALHO INFORMAL NOS TRENS DO RAMAL DE SANTA CRUZ “A estrada de ferro tritura ilusões, come planícies, bebe descampado e leva dentro dos seus vagões os homens e o gado. Um dia, sem discursos nem sermões, tudo foi confiscado e leiloado, descampado, planícies e vagões, planícies, vagões e descampado. Tudo como laranjas ou limões nas banquetas de um mercado. Tudo pra aumentar confusões, tudo com nevoeiro misturado - e quem comprou os vagões comprou os homens e o gado”. MURALHA, Sidônio. A ESTRADA DE FERRO, in: Os Olhos das criança. São Paulo, Indústria gráfica brasileira: 1963 O capítulo apresenta o trabalho ambulante desenvolvido no interior dos trens dos subúrbios cariocas e da Baixada Fluminense, particularmente sobre o recorte espacial do ramal de Santa Cruz. Inicialmente, faremos um resgate histórico do papel do trem na constituição e desenvolvimento da cidade do Rio de Janeiro e da área mais ampla chamada Região Metropolitana. Enfocaremos esse quadro no contexto das relações sociais desiguais construídas neste processo da urbanização fluminense. Logo após nos deteremos no trabalho dos ambulantes nos trens do ramal de Santa Cruz, descrevendo a sociabilidade criada no interior deste espaço - dividido com diversos atores sociais - bem como as origens da organização política dos trabalhadores. Esperamos, através deste capítulo, demonstrar a linha de proximidade da vivência de precariedade social entre os trabalhadores ambulantes e os passageiros dos trens. Em conjunto, eles formam a classe subalterna, que compartilha as precariedades cotidianas da vida e do trabalho na periferia urbana fluminense.
  • 32. 33 2.1- O trem e sua função estratégica na reprodução econômica e social no Rio de Janeiro Embora a origem do transporte sobre trilhos remonte o século XVI, é no século XVIII, com a revolução industrial inglesa, que ela irá assumir novo vigor. Por meio da manipulação da energia a vapor, foi possível elevar o uso do deslocamento sobre trilhos - até então utilizado com o auxílio de tração animal - a um patamar mais elevado, a de um meio de transporte de massas, de fato. Em 1825 foi inaugurada na Inglaterra, a primeira ferrovia, que ligava a cidade de Darlington ao norte do país. Em 1830, isto é, cinco anos depois, era aberta a ferrovia Liverpool-Manchester, ligando as duas grandes cidades com conglomerados industriais. Esta linha, segundo Rodriguez (2004) a primeira a transportar passageiros, foi ―a precursora da era das ferrovias, pois trouxe conhecimento público as potencialidades de tração a vapor sobre trilhos‖ (2004, p.13). Rapidamente esta nova tecnologia se espalhou pelo mundo, sendo fundamental para a consolidação do imperialismo inglês no século XIX. O Brasil, quando do advento das ferrovias, estava sob o governo regencial de Diogo Antônio Feijó, que procurava de algum modo equacionar o problema das grandes distâncias entre a Corte e as capitais das províncias. A necessidade da construção de estradas de ferro se fez um imperativo. Para tanto, por meio da Lei Feijó, de 31 de outubro de 1835, foi aberta a primeira ―concessão‖ para a criação de uma ferrovia que pudesse ligar o Rio de Janeiro às capitais de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Bahia. Cunha (2002) ressalta que tal lei não atraiu o interesse dos investidores, especialmente os ingleses, que não viram vantagens nas contrapartidas do
  • 33. 34 governo brasileiro. Não obstante, segundo o autor, em alguns estados, entre eles o Rio de Janeiro, algumas iniciativas isoladas de infraestrutura ferroviária foram iniciadas Embora não alcançando seu principal objetivo, o decreto de Feijó contribuiu para que algumas províncias também assumissem a responsabilidade de implantação de ferrovias em seus territórios. Esse foi o caso da Província do Rio de Janeiro, que, através da Lei nº 192, de 9 de maio de 1840, procurou estabelecer uma estrada de ferro entre a Vila de Iguaçu e um ponto da baía de Niterói (CUNHA, 2002, p. 48). No entanto, para o autor, mais do que uma integração nacional, a ferrovia era a real solução logística para o escoamento da produção cafeeira e sua permanente migração para terras cada vez mais afastadas do litoral, em especial, no Vale do Paraíba. Assim, o transporte terrestre, que desde os tempos coloniais fora feito no dorso dos muares, a cada dia se tornava mais caro e penoso. Sendo assim o trem ―o verdadeiro milagre tecnológico, solução nova para um antigo problema‖ (idem, p. 49). Mas apesar dos esforços de Feijó, e, posteriormente do próprio Imperador Dom Pedro II, as experiências de implantação de ferrovias foram marcadas por mais derrotas que vitórias. Mesmo o referido caminho de ferro, descrito por Cunha entre a Vila Iguaçú e a baía de Niterói (atual baía de Guanabara) não se concretizou, devido a seu alto custo e pouca participação de capital investidor (OLIVEIRA, 2004, p. 18). Este quadro só irá se alterar quando da entrada de um importante ator que foi crucial para a implantação de um investimento de tamanha monta: Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá. No ano de 1852 ele recebeu do governo da Província do Rio de Janeiro a concessão para construir uma ferrovia ligando a Corte ao Vale do Paraíba do
  • 34. 35 Sul e em menos de dois anos ele inaugurava o primeiro trecho da Imperial Companhia de Navegação a Vapor e Estrada de Ferro de Petrópolis, ligando o porto de Mauá, em Magé, até a Raiz da Serra. (CUNHA, 2002, p.51). No entanto, é interessante notar que o mesmo fenômeno que provocou o declínio das ferrovias no Brasil, no século XX, conforme veremos no item seguinte, já se fazia presente em sua gênese. A competição com a via rodoviária levou o Barão de Mauá, após sucessivos prejuízos, a sua venda, alguns anos mais tarde. Além disso, conforme destaca Cunha Não é difícil imaginar como se tornava complicado o transbordo das mercadorias dos trens para as carroças e vice-versa. A linha que deveria servir à zona cafeeira, que se situava a oeste, deslocara-se para outra direção. Urgia que se atingisse o Vale do Paraíba o mais depressa possível. Assim surgira a ideia de se construir uma outra ferrovia que, partindo diretamente do centro do Rio de Janeiro, pudesse atingir a zona cafeeira (2002, p. 54) Desta forma, abre-se espaço para a construção da mais nova ferrovia brasileira, a Estrada de Ferro D. Pedro II, em 1858, ligando a Corte à Queimados, num percurso de 48 quilômetros. Esta estrada, que, posteriormente será chamada de Central do Brasil teve um papel muito importante no desenvolvimento do país, pois ―facilitou a circulação de riquezas e de pessoas na medida em que a fronteira econômica se interiorizava‖ (RODRIGUES, 2004, p.20). A ferrovia contava inicialmente com 5 estações: Corte (no Campo de Santana), Cascadura, Maxambomba (Nova Iguaçú) e Pouso dos Queimados (Queimados). Rodriguez destaca que no projeto original do traçado, o trecho inicial tinha previsto como estação final a freguesia de Nossa Senhora de Belém e Menino Deus (Japeri), mas devido a um surto de malária que vitimou 5.000 empregados chineses que trabalhavam na construção da referida
  • 35. 36 estação, a linha não chegou até Queimados, em sua inauguração (idem, p.20 e 21). É curiosa a utilização de mão de obra estrangeira nesta obra, dada a inexistência de mão de obra livre no país até então. Abreu (1997) irá destacar esta relação contraditória entre as produções arcaicas, de base escravista, e a formação desses novos projetos, essencialmente capitalistas, que aqui se introduziam. A cidade do Rio de Janeiro do século XIX ―passa a ser movida por duas lógicas distintas (escravista e capitalista), e os conflitos gerados por esse movimento irão se refletir claramente no seu espaço urbano‖ (1997, p. 28). A partir de 1861, foi inaugurado o serviço de trens de subúrbios para o transporte de passageiros, pois até aquele momento a estrada servia exclusivamente ao escoamento da produção cafeeira do Vale do Paraíba. Tal modalidade de transporte era ofertada entre as estações da Corte à Cascadura, compreendendo as estações de São Cristovão, São Francisco Xavier e Engenho Novo (RODRIGUES, 2004, p.21). Este serviço ferroviário possibilitou uma rápida ocupação por parte da população das freguesias suburbanas atravessadas pela linha férrea. No entanto, conforme destaca Weid (1994, p.1 e 2) ele não foi o único responsável por esta expansão. Há de se acrescentar a esta ―revolução do transporte urbano‖ (ABREU, 1997, p.37) o papel complementar dos bondes.
  • 36. 37 Ilustração 1: Mapa da rede da EFCB em 1969, no auge de sua extensão. No detalhe as linhas do centro, que atendiam os subúrbios cariocas. Entre elas o atual ramal de Santa Cruz, que na época tinha seu fim em Mangaratiba Fonte: Acervo Revista Ferroviária.
  • 37. 38 Aliada ao maior investimento da Estrada de Ferro D. Pedro II, em 1870, o serviço de bondes, iniciado em 1868, começou a se consolidar, através da implantação de inúmeras companhias que concorriam no uso do espaço urbano. O transporte de massa permitiu o desafogo do centro, onde se concentravam tanto os ricos quanto os pobres. A ampliação do sistema de transporte permitiu o início do processo de segregação social (Villaça, 1997, p.6). Segundo o autor, por meio do processo de segregação social, as classes dominantes controlaram a produção do espaço urbano, tanto pelo seu poder econômico, quanto pelo controle sobre dinâmicas do Estado, bem como da construção ideológica sobre o espaço. Deste modo, possibilitaram o paulatino processo de ―expulsão‖ das camadas populares do centro urbano do Rio em direção às periferias da cidade e da Baixada Fluminense, em especial das áreas limítrofes às linhas férreas7. Neste contexto de disputa e controle do espaço urbano, há de se destacar a estratégia de domínio econômico de uma empresa, sobre o controle dos serviços públicos: a Tramway Light and Power (atual grupo Light). Esta companhia iniciou sua operação no Brasil em 1899, instalando-se, primeiramente em São Paulo, com objetivo de geração de energia elétrica, a partir da matriz hídrica. Em pouco tempo, também obteve concessão para a 7 O auge desse processo de reformulação do espaço urbano se dará nos primeiros decênios do século XX, com a chamada Reforma Passos que promoveu grandes obras na infraestrutura urbana da cidade do Rio, com a construção de vários edifícios, segundo os ditames da ―belle époque‖ francesa, bem como a abertura de largas avenidas, em especial a Central (atual Rio Branco). Tudo isso com o custo social da política do ―bota à baixo‖, que promoveu a demolição de vários cortiços que serviam de habitação para a população trabalhadora urbana na cidade. O pano de fundo ideológico era a saúde pública da cidade, mas, na verdade, o que estava em jogo era o interesse econômico e a disputa pelo espaço e seu valor enquanto localização.
  • 38. 39 execução de serviço de exploração de transportes ferro-carris por tração elétrica, bem como comprou as ações da Companhia de Água e Luz de São Paulo. Por meio da lógica de obtenção de lucratividade tanto na geração da energia elétrica, quanto na execução dos serviços terminais, dependentes de tal energia, a companhia conseguiu grande acúmulo de capital, em especial, através de sua estratégia de formação de oligopólio, que lhe conferiu o apelido de ―polvo canadense‖ (WEID, 2003). Em pouco tempo, a Tramway Light and Power chega ao Rio, até então a capital da República e um centro urbano muito mais importante que São Paulo naquele momento. Entretanto, A situação na Capital Federal era muito diferente da encontrada em São Paulo. A presença do poder central era muito forte, havia correntes políticas mais definidas além de animosidades e antagonismos que poderiam ser descarregados na proposta estrangeira, canalizando o sentimento nacionalista facilmente explorado pelos concorrentes. Para atuar nos serviços públicos da Capital, os empresários canadenses deveriam se entender, ao mesmo tempo, com o poder federal e o municipal. Além de precisarem recorrer ao governo estadual, pois era quem poderia atribuir concessões para o uso da força hidráulica de cachoeiras quando o rio tivesse todo o curso no território do estado (idem, p. 3). Deste modo, a Companhia conseguiu transitar em meio a esse cenário político complexo - inicialmente através da concessão de geração de energia elétrica, em 1904, mas, paulatinamente, em ritmo bem mais lento do que o empregado em São Paulo -, espalhando os seus ―tentáculos‖ sobre os demais serviços públicos da cidade do Rio. Segundo Oliveira (2012, p.4) a Light tinha interesse na operação das atividades de transporte viário de bondes, utilizando energia das termoelétricas existentes na cidade para eletrificar as linhas das principais companhias que
  • 39. 40 operavam na Zona Norte e no Centro8. Mas para isso foi preciso comprar as concessões das empresas que operavam esses serviços. Entre as empresas assimiladas pela Ligth a época estavam: Cia. Belga Societé Anonyme Du Gaz, responsável pelo serviço de iluminação pública da capital federal, bem como inúmeras empresas de transportes coletivos sobre trilhos, como: a Cia Jardim Botânico, que dominava os transportes na zona sul e orla marítima; a Cia. São Cristovão, que servia a Cidade Nova e a zona portuária; a Cia. de Carris Urbanos, que circulava no centro; e a Cia. Vila Isabel, pertencente ao grupo alemão Siemens & Halske Aktien Gesellschaft, que tinha o controle da área da Tijuca, zona norte (idem, p.22-27). Neste sentido, os bondes, conforme destaca Abreu não só vieram a atender uma demanda já existente como, em atendendo a essa demanda, passaram a ter influência direta, não apenas sobre o padrão de ocupação de grande parte da cidade, como também sobre o padrão de acumulação do capital que aí circulava, tanto nacional como estrangeiro. O capital nacional, proveniente de grande parte dos lucros da aristocracia cafeeira, dos comerciantes e financistas, passou cada vez mais a ser aplicado em propriedades imóveis nas áreas servidas pelas linhas de bonde. O capital estrangeiro, por sua vez, teve condições de se multiplicar, pois controlava as decisões sobre as áreas que seriam servidas por bondes, além de ser responsável pela provisão de infra-estrutura urbana. Os dois, entretanto, nem sempre atuavam separadamente, aliando seus esforços em muitas instâncias, quando esta associação era desejada, ou mesmo inevitável, como no caso da criação de novos bairros (1997, p.36). Assim sendo, tanto os bondes como os trens deflagraram a conturbada relação centro-periferia urbana no Rio de Janeiro. Por meio dela, aprofundou- se a distância social com o deslocamento das classes populares em direção à zona oeste da cidade, por meio do trem, e o deslocamento das classes dominantes na direção da zona sul, por meio dos bondes. Abreu citando 8 Os bondes das companhias que operavam até então eram movidos por tração animal de cavalos ou burros (idem, p. 36; OLIVEIRA, 2012, p.9).
  • 40. 41 Santos ressalta os aspectos contraditórios desses transportes na constituição da cidade: Trem e bondes foram, sem dúvida, indutores do desenvolvimento urbano do Rio. Mas o caráter de massa destes meios de transporte tem de ser relativizado, como também devem ser relativizados os seus papéis frente ao ambiente urbano. É que trem, bondes e, mais tarde, ônibus (e os sistemas viários correspondentes) só vieram "coisificar "um sistema urbano preexistente, ou pelo menos um sis- tema de organização do espaço urbano, cujas premissas já estavam prontas em termos de representação ideológica do espaço e que apenas esperavam os meios de concretização. Em outras palavras, o bonde fez a zona sul, porque as razões de ocupação seletiva da área já eram "realidade" ... Já o trem veio responder a uma necessidade de localização de pessoas de baixa renda e de atividades menos nobres (SANTOS apud ABREU, 1997, p.37). Lúcio Kowarick (2000) denomina esse processo desigual de acesso e construção do espaço urbano de espoliação urbana. Ou seja, a reprodução das desigualdades, funcionais ao próprio processo social capitalista repercutem também na construção do espaço urbano. E o sistema de transporte é um instrumento desses dramas sociais. O autor destaca que tais desigualdades, que têm sua origem no mundo do trabalho, não se resumem a elas. A este fator somam-se uma série de outras dimensões da vida que fazem com que aumente a situação de desigualdade. A este conjunto de fatores ele denomina espoliação urbana que pode ser definida como A somatória de extorsões que se opera pela inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo, que juntamente ao acesso a terra e a moradia apresentam-se como socialmente necessários para a reprodução dos trabalhadores e aguçam ainda mais a dilapidação decorrente da exploração do trabalho, ou pior, da falta desta (KOWARICK, 2000 p. 22). Neste sentido, a noção de espoliação está intimamente ligada à acumulação do capital e à expropriação do trabalhador.
  • 41. 42 No entanto, esta espoliação também decorre de um processo de lutas sociais entre vários atores sociais pela conquista de suas demandas em relação ao ―acesso à terra, habitação e bens de consumo coletivo‖ (idem, p. 23). Daí o papel estratégico do Estado, para o aumento ou diminuição do ―processo de especulação imobiliária e segregação social‖. Os investimentos públicos ou a falta deles fazem aumentar ou diminuir a valorização da terra em determinado espaço urbano. Estes processos diferenciados de valorização do espaço aumentam o elemento contraditório da espoliação urbana, na medida em que algumas zonas só podem ser ocupadas por seguimentos populacionais de maior poder aquisitivo. Nestas regiões são ricas as estruturas e equipamentos públicos. Em contrapartida, as regiões menos valorizadas, são as que são ocupadas pelos seguimentos mais pauperizados, mas que, no entanto, sofrem pela falta de estabelecimentos mais básicos, essenciais à subsistência (idem, p.27 e 28). Tais elementos desiguais da ocupação do espaço urbano se manifestam na vida dos atores abordados nesta pesquisa. É curioso notar neste sentido que quanto mais distante do centro - em especial seguindo a direção à zona oeste da cidade do Rio, tomando o caminho dos subúrbios, nos ramais do trem de Deodoro e Santa Cruz - mais a estratificação social e os elementos que compõem a segregação social e a espoliação urbana se fazem presentes. Nos próximos itens exploraremos um pouco mais os efeitos desta condição na vida dos trabalhadores.
  • 42. 43 2.2- Um transporte pobre para os pobre: o processo de degradação dos trens urbanos do Rio de Janeiro A despeito da rica história dos trens e de seu papel fundamental na formação social e econômica brasileira nos séculos XIX e XX, conforme anteriormente exposto, houve uma paulatina substituição deste meio de transporte, pela matriz rodoviária. Pelo que pudemos apurar na pesquisa, tal fato se explica mais por uma opção econômica do que uma mera substituição de tecnologia novecentista, pela modernidade do automóvel, própria do século XX. Com o advento da indústria automobilística, com forte lobby norte americano, o Estado brasileiro, no seu inicial processo de industrialização, na década de 1940, privilegiou a expansão da malha rodoviária nacional em detrimento das ferrovias9 e até do incipiente sistema de hidrovias existentes, até então (RODRIGUEZ, 2004, p.9). Este processo irá se intensificar a partir do governo de Juscelino Kubitschek, que pretendia com a abertura de estradas conquistar o mercado internacional para a nascente indústria de substituição de importações de automóveis, eletrodomésticos, siderurgia etc, que também implantara em seu governo, relegando o trem a um equivocado plano secundário (RODRIGUEZ, 2004, p. 9 e 10). Tal processo de substituição, embora não explícito, deixou o sistema ferroviário ―abandonado a sua própria sorte‖, por longos anos, o que explica em grande medida a sua atual degradação física. No entanto, contraditoriamente, 9 O tamanho da malha ferroviária brasileira, em 1958, quando alcançou sua extensão máxima, era de 37.967 Km. Sofre um decréscimo, desde então. Em contrapartida o sistema rodoviário tem um crescimento considerável em cerca de 40 anos: em 1954, o país apresentava cerca de 1.200 Km de rodovias pavimentadas e em 1989 saltou para 130.000 Km (RODRIGUEZ, 2004 p. 9 e 10)
  • 43. 44 este processo massivo de deteriorização, foi em parte freado, a partir da privatização de trechos de ferrovias, empreendidos pelos sucessivos governos neoliberais na década de 1990, nas esferas federal e estaduais10. Tais concessões se deram especialmente nos trechos de transporte de passageiros das regiões metropolitanas nacionais, entre as quais a do Rio de Janeiro. No estado do Rio de Janeiro, no contexto das parcerias público-privado neoliberais, foi vencedora na concorrência de concessão do transporte ferroviário a empresa SuperVia. No ano de 1998 obteve a licença para a exploração dos serviços de transporte ferroviário por um período de 50 anos. No entanto, o acordo de concessão não compreendeu todas as linhas operadas até então pela RFFSA (Rede Ferroviária Federal S.A.) e pela Flumitrens (Companhia Estadual de Trens Urbanos). Ficaram de fora os trechos com ―pouco valor de retorno financeiro‖ e, deste modo, o trecho correspondente de responsabilidade da nova companhia compreendia os remanescentes urbanos de antigas companhias: as linhas dos ramais de Deodoro, Santa Cruz e Japeri (da antiga EFCB); o ramal de Belford Roxo (da antiga Compahia Rio D‘ Ouro) e o ramal de Gramacho (da antiga Companhia Estrada de Ferro Lepoldina). 10 Tal processo foi facilitado em grande medida pelo princípio constitucional da Carta Magna de 1988, que instituiu a descentralização administrativa do governo federal em favor dos estados. Um princípio, que na verdade visava dar maior transparência e poder decisório à administração pública, acabou, no caso dos trens, por colaborar para o aumento do sucateamento e posterior facilitação de sua venda à iniciativa privada. Visando a implantação deste processo de descentralização, foi criada em 1994 a CBTU (Companhia Brasileira de Transportes Urbanos), retirando a administração direta da RFFSA. No caso do Rio, este processo de estadualização se deu de modo bem acelerado, pois em novembro do mesmo ano foi criada a Flumitrens, que preparou o sistema para sua concessão privada, quatro anos depois, incluindo um forte ―enxugamento‖ do quadro de funcionários do meio do programa de demissão voluntária (STAMPA, 2011, p.88-95).
  • 44. 45 Ilustração 2: Mapa dos ramais da SuperVia. Fonte: SuperVia/SA. Fonte: www.supervia.com.br Por outro lado, no âmbito nacional, em 2007 o Governo do, então, Presidente Luiz Inácio Lula da silva (Governo Lula) extinguiu a RFFSA, colocando praticamente um ―ponto final‖ no ideário de alargamento do sistema ferroviário no Brasil11. É dentro desta realidade contraditória e segregadora do espaço urbano do Rio de Janeiro que se encontra o objeto desta pesquisa, o trabalho ambulante, que pretendemos detalhar no próximo item, tendo como lócus específico de abordagem o recorte espacial do Ramal de Santa Cruz. 11 Isto significa dizer que as linhas férreas que não sofreram processo licitatório para concessão privada, foram abandonadas.
  • 45. 46 2.3- Trabalho ambulante como elemento integrante da sociabilidade nos trens Nesse contexto de instrumentalidade do veículo ferroviário nas periferias urbanas é que gostaríamos de tratar, mais especificamente, as condições de trabalho vivenciadas pelos sujeitos desta pesquisa, a saber, os trabalhadores ambulantes. Particularmente o trabalho ambulante no espaço dos trens do ramal de Santa Cruz, no Rio de Janeiro12. Para um passageiro menos assíduo a experiência de andar no trem pode parecer um tanto quanto exótica. A primeira impressão mais marcante é a situação degradante da maior parte das composições e das estações. A superlotação também é um forte realce no retrato do paulatino processo de abandono, conforme já destacado anteriormente. No entanto, é necessário destacar que houve uma sensível melhora nos últimos três anos, em especial com a reforma de algumas estações e principalmente com a compra de 34 novos trens chineses, que começaram a operar, paulatinamente, no decorrer do ano de 2012. Estes trens foram comprados pelo governo do estado do Rio de Janeiro a partir de uma licitação, realizada em 2009, na qual saiu ganhadora a empresa China National Machinery Import & Export Corporation13. A aquisição custou US$ 188 milhões, financiados pelo Banco Mundial. 12 As descrições deste capítulo são, em sua maior parte, fruto da observação feita em campo, desde as excursões preliminares nos trens do Ramal de Santa Cruz, no ano de 2011, bem como na observação mais sistemática, com auxílio de roteiro de observação (Ver anexo), realizada ao longo do ano de 2012. 13 Interessante notar que, a despeito do discurso privatizante reinante nos sucessivos governos de ideário neoliberal desde a década de 1990 do século passado, o Estado não fica totalmente isento de suas obrigações financeiras junto à empresa durante o período de concessão. O que é de fato privatizado é a exploração dos serviços, tendo como contrapartida a manutenção dos
  • 46. 47 Até então existiam apenas 38 trens climatizados: 20 de origem coreana (adquiridos em 2005) e 18 trens elétricos reformados (frutos de uma reforma ocorrida em 2004). O restante dos trens em circulação é composto pelos mais antigos, 26 trens de aço inox, adquiridos na década de 1990, 65 trens de aço inox, sem ar condicionado, datados da década de 1980, e 49 trens de aço carbono, sem ar condicionado, fabricados no Brasil entre as décadas de 1950 e 196014. Estes últimos são os que se encontram em péssimo estado de conservação. Cabe ressaltar que esses trens atendem aos cinco ramais15 sob o comando operacional da empresa Super Via: Saracuruna/Gramacho, que segue pelo subúrbio da Penha em direção à cidade de Duque de Caxias; Belford Roxo, que segue pela rota suburbana de Del Castilho em direção as cidades de São João de Meriti e Belford Roxo, ambas na Baixada Fluminense; Japeri, que compartilha a rota dos subúrbios atendidos pelo ramal de Deodoro, mas seguindo em direção à Baixada, servindo as cidades de Nilópolis, Nova Iguaçu, Queimados e, finalmente, Japeri; e Santa Cruz, que segue em paralelo ao ramal de Deodoro e Japeri, mas que diferente dos demais (com a exceção de Deodoro, que finda neste bairro), não segue em direção aos municípios da Baixada Fluminense, mas sim rumo à Zona Oeste da cidade. serviços e da pequena infraestrutura. No entanto, para os investimentos de grande monta, o ônus permanece com Estado. Nada mais contraditório para pôr por terra a ideologia do ―privatizar o que dá prejuízo ao Estado‖. Outro elemento a ser registrado é que a aquisição dos novos trens se deu através de financiamento do Banco Mundial, subordinando ainda mais a dívida estatal ao capital internacional. 14 Fontes da própria SuperVia: HTTP://www.supervia.com.br. Acesso em setembro de 2012. 15 Sete se considerarmos os ramais de Vila Inhomirim e Guapimirim, no entanto, estes são uma extensão do ramal de Saracuruna, não operando na mesma linha deste por possuírem sistemas de bitolas de trilhos diferentes do restante da rede, exigindo, por sua vez, trens especiais. A SuperVia também opera o teleférico do Alemão, que apesar de não ser um transporte sobre trilhos, faz integração com os trens do ramal de Gramacho (Ver ilustração 2).
  • 47. 48 Os novos trens têm capacidade para 1.300 passageiros, além de câmeras internas, bagageiros, televisões de plasma e comunicação direta com o centro de controle operacional16. Entretanto, não é demais lembrar que tais investimentos têm como foco principal os eventos que a cidade sediará nos próximos anos: A Copa das Confederações (2013); A Jornada Mundial da Juventude Católica (2013), que terá algumas atividades no bairro de Santa Cruz; a Copa do Mundo de Futebol (2014) e, por fim, os Jogos Olímpicos (2016). Nesse sentido, mais do que uma melhoria para a população trabalhadora usuária cotidiana, tais benefícios trazidos pelas reformas no sistema de transporte, incluindo o trem, visam primordialmente à cobertura de tais eventos. No entanto, o discurso oficial costuma justificar o investimento em tais ações como um ―legado‖ para a cidade, portanto, para sua população. Outro dado interessante a ser notado e que ilustra bem essa melhoria diferenciada entre os ramais, é que tais benefícios, com a chegada dos trens novos, estão resumidos em sua maioria aos ramais de Deodoro e em menor escala, ao de Santa Cruz (ambas rotas de deslocamentos a serem utilizadas nos eventos supracitados). Por outro lado os trens mais antigos, especialmente os que se encontram em precário estado de conservação, foram redirecionados para os demais ramais que atendem à Baixada Fluminense. 16 Fontes: http://oglobo.globo.com/rio/depois-de-dois-anos-de-espera-entra-em-operacao-novo- trem-da-supervia-4358867#ixzz2K7QjuagK Acesso em março de 2012. http://www.supervia.com.br/noticia.php?n=chineses-apresentam-primeiro-dos-34-trens- comprados-pelo-estado*&cod=41 Acesso em agosto de 2011.
  • 48. 49 Tais elementos são bastante elucidativos para evidenciar o modo como as classes dominantes, no uso de sua influência hegemônica no âmbito do Estado, se apropriam do uso social de um meio de transporte como o trem em favor de seus interesses econômicos. De modo que os benefícios à classe subalterna é uma mera consequência, e não um objetivo principal dos negócios, e, via de regra, em situação de precariedade. O segundo elemento marcante é a face sofrida dos passageiros, evidenciando os anos de desgaste de trabalho, que com certeza não é amenizada pelo desconforto da viagem. Não obstante a precariedade do transporte, muitos dormem ―embalados‖ pelo balançar das composições ao passar pelos velhos dormentes17 da estrada de ferro. Muitos desses passageiros, para além da jornada de trabalho normal, despendem em média, 3 horas e meia de transporte até o centro da cidade, isso se contarmos somente transporte de trem18. Esses fatores, com certeza, contribuem para a diminuição da qualidade de vida das classes populares usuárias deste precário sistema de transporte. Se vivo estivesse, certamente o poeta Castro Alves faria uma releitura de seu ―navio negreiro‖, que diferente de outrora, não balança sobre as águas do Atlântico, mas sobre os trilhos dos subúrbios metropolitanos. Durante a pesquisa pude também experimentar na pele as péssimas condições destes serviços, como: trens sujos, poucas lixeiras, janelas e portas frequentemente quebradas. Observamos também a existência de sistemas de alto-falantes (essenciais para a comunicação do maquinista com os 17 Estruturas, em geral de madeira, que serve para fixar os trilhos ao chão. 18 O trem costuma fazer o trajeto de Santa Cruz à estação Central do Brasil em 1h e 45m, quando o trem é parador e 1h e 30m, quando é direto.
  • 49. 50 passageiros e a sinalização do lado do respectivo desembarque) constantemente inoperantes. A superlotação19 é uma realidade constante nos horários de maior pico de passageiros em trânsito para o trabalho e para casa. Mas, observamos também as rotineiras avarias dos trens, em decorrência de depreciação técnica ou falta de manutenção, causando com isso muitos transtornos para os passageiros, especialmente nesses horários de pico de movimentação. Com certeza as viagens nos trens urbanos do Rio de Janeiro são um misto de aventura e insegurança social. Moisés e Martinez-Alier (1978) ao descreverem as revoltas populares ocorridas na década de 1970, no Rio e em São Paulo, em plena ditadura militar, observaram o descontentamento das massas suburbanas com essa realidade de péssimos serviços públicos de transporte coletivo, em especial os trens, materializada nos constantes atrasos, acidentes, descarrilamentos e mortes. O descontentamento em massa manifesto no fenômeno dos ―quebra- quebras‖, mas do que um fato isolado de grupos era uma manifestação coletiva da insatisfação das classes subalternas que sofrem cotidianamente as agruras destes serviços. 19 ―A superlotação é o problema mais comum nos trens da Supervia. Mas o incômodo em ter oito passageiros, onde cabe quatro, não é apenas a falta de conforto. Segundo o doutor em engenharia de transportes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Fernando Mac Dowell, o número excessivo de pessoas aumenta a chance de acidentes, uma vez que a composição pode ter mais dificuldade para frear, além de ter o vagão abaulado (deformado) por causa do peso, entre outras coisas‖. Disponível em: http://saopaulotremjeito.blogspot.com.br/2011/09/superlotacao-em-trens-da-supervia-rj.html Acesso em 31 de janeiro de 2013.
  • 50. 51 Deste modo, observam aqueles pesquisadores que eram pontuais e simbólicos os ―alvos do vandalismo‖: o relógio, o quadro de horários dos trens, as agressões aos agentes da companhia (representantes da empresa, do Estado), e finalmente os próprios trens avariados (1978, p.33-40). Diante da incapacidade dos trabalhadores de representar-se e fazerem valer sua reclamação na cena pública, o ―quebra-quebra‖ aparece como única resposta aos constrangimentos diários na vida dos sujeitos que no trabalho, cotidianamente, têm que se desculpar: ―patrão, hoje o trem atrasou‖ (idem, p.27). Hoje, estas revoltas mais generalizadas não vêm tendo a mesma expressão, mas o dia-dia do transporte não é isento de descontentamentos20. A despeito de algumas melhorias, a demora dos trens, os atrasos e as avarias dos mesmos ainda são uma constante. Ao perguntar certo dia do trabalho de campo de pesquisa a um passageiro sobre o que ele achava do sistema de trem ele disse: ―Meu filho, aqui a gente vive como gado em direção ao abate! Você já viu quando se abrem as portas do trem na estação da Central? É um passando por cima do outro, disputando meia dúzia de bancos quebrados!‖21 Outros elementos de precariedade se somam a estes. A maior parte das estações não é provida de banheiros públicos, o que agudiza a precariedade 20 Em um pequeno levantamento dos eventos, fizemos uma busca na internet utilizando a sentença <Tumulto na SuperVia> da qual encontramos 396 mil registros. Seguem duas reportagens que descrevem eventos mais recentes de ―quebra-quebra‖: http://oglobo.globo.com/rio/atrasos-nos-trens-provocam-tumulto-na-estacao-da-mangueira- 6144293. Acesso em janeiro de 2013. http://extra.globo.com/noticias/rio/manha-de-tumulto-em-estacoes-da-supervia-passageiros- ocupam-trilhos-andam-pendurados-nos-trens-promovem-quebra-quebra-3922581.html Acesso em janeiro de 2013. 21 Ao contrário da metodologia usada de abordagem aos vendedores ambulantes, no qual nos utilizamos de questionários semi-estruturados, no caso dos passageiros preferimos a abordagem aleatória sobre várias questões do cotidiano do trem.
  • 51. 52 das longas horas despendidas nos deslocamentos casa-trabalho. Muitos, diante da inexistência de tais serviços fazem suas necessidades fisiológicas em áreas das próprias estações: pilastras, debaixo das escadas, canto de paredes ou na própria linha férrea. Contudo, não é raro ver as próprias composições como equipamento sanitário das urgências fisiológicas. No entanto, tal quadro precário ao qual é submetido à população acontece à revelia de uma lei estadual sancionada em 2003 (Lei Nº 4131). Passados todos esses anos, somente em 2011 a SuperVia começou a implantar os banheiros22. Até o presente momento só foram instalados em 6 estações de um total 98 (103 se contar as 5 do teleférico do Complexo do Alemão, também administrado pela empresa). Outro dado que agrava as condições de vida desta população é o valor gasto para estes deslocamentos diários quando comparados às perdas salariais decorrentes da inflação. Em recente pesquisa o IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicada) divulgou que as famílias brasileiras moradoras de áreas urbanas comprometem cerca de 15% da renda mensal com transporte diário, sendo o gasto com transporte privado cinco vezes maior que o montante despendido com transporte público. Metade das famílias, nas capitais, têm despesas com transporte privado, e a outra metade com transporte público. Nos colares 22 Veja comunicado do início dos serviços pela própria concessionária: http://www.supervia.com.br/noticia.php?n=central-do-brasil-ja-conta-com-banheiros- gratuitos&cod=81 Acesso em agosto de 2011.
  • 52. 53 metropolitanos, 67% dos domicílios pesquisados afirmam ter gasto com transporte público23. Nesta pesquisa do IPEA foram consideradas duas categorias de transportes: público (serviços de ônibus, ferrovias, metrôs e trens metropolitanos, transporte hidrográfico, táxi, mototáxi e transporte alternativo) e privado (automóveis, motocicletas e caminhonetes, além das bicicletas). O estudo mostra que o deslocamento coletivo mais usado é sistema de ônibus: 78,4% dos gastos são nessa modalidade, entre moradores das capitais. Nos colares metropolitanos esse percentual chega a 88%. O uso do transporte alternativo chega a 11,5% nas cidades interioranas, que é de 5,1% nas capitais e 3,7% nos colares metropolitanos. Entre janeiro de 2003 e de 2009, a inflação medida pelo IPCA24 aumentou 41,8%. Os preços da gasolina e do automóvel subiram bem menos: 27,5% e 19%. Em contrapartida, as tarifas cobradas dos usuários de transportes urbanos ficaram 63,2% mais caras (IPEA, 2012, p.5-7). A falta de investimentos nos transportes públicos aliada ao aumento de crédito para população faz com que o uso e a procura por transportes individuais cresçam. Ou seja, da maneira como funciona o sistema de transporte no Brasil, penaliza-se o usuário que é obrigado a utilizar, quando 23 O universo do estudo compreendeu as nove regiões metropolitanas nacionais — São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, Recife, Fortaleza, Salvador e Belém —, que são os grandes centros urbanos que enfrentam atualmente os maiores problemas com trânsito (IPEA, 2012, p.3) 24 O IPCA/IBGE verifica as variações dos custos com os gastos das pessoas que ganham de um a quarenta salários mínimos nas regiões metropolitanas de Belém, Belo Horizonte, Brasília, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e município de Goiânia. O Sistema Nacional de Preços ao Consumidor. Este índice utiliza, para sua composição de cálculo, os seguintes setores: alimentação e bebidas, habitação, artigos de residência, vestuário, transportes, saúde e cuidados pessoais, despesas pessoais, educação e comunicação. Fonte: http://www.portalbrasil.net/ipca_e.htm Acesso em Fevereiro de 2012.
  • 53. 54 pode, um transporte particular, em detrimento do coletivo, aumentando por sua vez, os constantes engarrafamentos típicos das grandes metrópoles. Nesse sentido, evidenciamos na pesquisa que, de fato, a mobilidade urbana é, hoje, um desafio para a qualidade de vida nas cidades. Os trabalhadores tendem ainda a ficar com o lado mais perverso desse caos urbano, como é o caso dos usuários dos trens do ramal de Santa Cruz. O terceiro elemento característico, que imediatamente chama atenção nos trens é a atividade dos trabalhadores ambulantes. Primeiramente pelo seu valor numérico, que a depender do horário forma um verdadeiro ―congestionamento‖ de vendedores no interior dos vagões, depois pelas estratégias de venda que estes mesmos empreendem, muitas vezes à base do grito, muito semelhante a dos feirantes de rua25. Em sua maioria, esses trabalhadores são homens maduros, mas também encontramos mulheres e jovens. Também, não raro ver a presença de crianças como ambulantes. Algumas vezes verificamos que tais crianças são uma espécie de auxiliares nas vendas dos pais também ambulantes. Outras vezes percebemos que o trabalho era realizado unicamente pela criança, sem a supervisão de familiares. Essa feição da pobreza é adensada pela mendicância que é uma prática corrente nos vagões. O apelo emocional é bem marcante na viabilização dos potenciais passageiros colaboradores. É muito comum ver mães com bebês ao colo, aos prantos pedindo dinheiro para compra do ―leite da criança‖. Há 25 Não existe um número preciso de quantos ambulantes atuam não só no ramal de Santa Cruz, bem como nos demais. Mas segundo as informações do presidente da associação que representa os mesmos, estima-se que este número gira em torno de 1.000. No entanto a sazonalidade é típica desse seguimento de trabalho, podendo aumentar ou diminuir de acordo com a conjuntura social e institucional.
  • 54. 55 também os apelos mais discretos, que utilizam pequenos cartões ou bilhetes distribuídos entre os passageiros; pedidos silenciosos, mas não menos dramáticos. No entanto, há também a mendicância que não se utiliza da ajuda infantil. Esta é feita mais especificamente pelos idosos e deficientes. É possível ver idosas esmolando a fim de comprar o gás ou o medicamento, deficiente físico (sem as pernas) arrastando-se pelo assoalho dos vagões em troca de algumas moedas, e cegos batendo intermitentemente sua bengala no chão, quando não no pé de alguém, conclamando a atenção dos passageiros: ―Uma esmolinha para o cego, por favor!‖ Ambulantes e mendicantes disputam a atenção dos passageiros. Todo esse universo de realidades aparentemente concorrentes de trabalho precário e mendicância, na verdade são faces da experiência comum de subalternidade social da qual também fazem parte os passageiros. Outro dado interessante que ajuda a compor este quadro é o fenômeno do pentecostalismo no interior dos trens. Mesmo depois de aprovada na 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio a proibição de cultos e manifestações religiosas no interior de trens, por meio de uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro em 2007, é possível constatar verdadeiros cultos durante a viagem. Estas atividades vêm sendo promovidas pela Cruzada Evangelística Interdenominacional nos Trens das Boas Novas. Segundo Lemos (2011), ao estudar este fenômeno nos trens da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitano), em São Paulo, este grupo pentecostal existe desde 1980 realizando cultos diários no 4º vagão dos trens
  • 55. 56 da mesma Companhia, contando com a participação de aproximadamente 300 homens e mulheres. A autora destaca que o referido grupo religioso construiu uma ―estratégia de incorporação da cidade do Rio de Janeiro que tem como objetivo dar maior visibilidade e legitimidade ao movimento, dada a clandestinidade com que vem sendo tratado o culto no ambiente do trem‖ (Idem, 2011, p 475). No Rio de Janeiro, tais atividades foram proibidas no espaço do trem devido ao incômodo que o culto, religioso causa aos demais passageiros não participantes do culto, o que motivou o Ministério Público do Estado do Rio a impetrar a referida lei26. Todavia, a clandestinidade dos cultos torna essa determinação um ―ato jurídico de papel‖ nos tão largados comboios. Voltando especificamente à atividade dos ambulantes foi possível constatar uma infinidade de produtos vendidos. Utensílios em geral (de uso doméstico e pessoal): cortadores de unhas, tesouras, abridores de lata e garrafa, esponjas, controle remotos universais, presilhas de cabelo, CDs e DVDs (geralmente piratas), brinquedos, livretos infantis, lanternas pilhas entre outros. Contudo, a maior parte dos ambulantes comercializa gêneros alimentícios, como: água, refrigerantes, sucos, cerveja, salgados, biscoitos, doces, entre outros. A variedade é tanta quanto a cantada pelo compositor e cantor Pedro Luis no seu Rap do Real: Um real aí, é um real um real aí, 26 Interessante notar o aspecto restritivo da atividade religiosa neste espaço, visto que a atividade dos trabalhadores ambulantes também possui restrições legais, conforme detalharemos mais adiante, mas que, pelo menos do ponto de vista dos usuários, são mais toleradas.
  • 56. 57 é um real aí, é um real, um real, Vendo pilha, bateria, fita-cassete, biscoito paçoca, doce de abobora, doce-de-coco, rádio-relógio despertador do sono, não vendo é sonho, mas pode pedir, se não tenho sei quem terá. Vendo pano pra cortina. Vendo verso, vendo rima, carta pro rapaz e carta pra menina. Eu vendo provas de amores por minha poesia e fantasia: QUANTO VAI PAGAR? Um real aí, é um real, um real aí, é um real aí, é um real, um real Com quantos reais se faz uma realidade? Preciso muito sonho pra sobreviver numa cidade grande jogo de cintura entre estar esperto e ser honesto há um resto que não é pouca bobagem. Um real aí, é um real, um real aí, é um real aí, é um real, um real. (Pedro Luís & A Parede - Rap Do Real by Pedro Luis & Rodrigo Maranhão) Ou ainda a diversidade cantada por Zeca Pagodinho, descrevendo especificamente a realidade dos trens da Central do Brasil, que já no título, Shopping Móvel, anuncia a diversidade deste comércio duplamente ambulante, pois não obstante formado por vendedores que circulam entre vagões, estes mesmos são deslocados sobre os trilhos: Tem sempre tudo no trem que sai lá da central Baralho, sorvete de côco, corda pro seu varal Tem canivete, benjamim, tem cotonete, amendoim Sonho de valsa e biscoito integral Tem sempre tudo no trem que sai lá da central Chiclete, picolé do China e guaraná natural Tem agulheiro, paliteiro, desodorante, brigadeiro E um bom calmante quando a gente passa mal E quem quiser pode comprar o shopping móvel é isso aí É promoção desde a Central a Japeri E quem quiser pode comprar um bom pedaço de cuscuz E mastigar desde a Central a Santa Cruz CD pirata da Frank Sinatra a Zeca Pagodinho E até aquele veneno pra rato chamado chumbinho
  • 57. 58 Bala de côco, pirulito, suco de frutas no palito Cuscuz, cocada pasteizinhos de palmito Despertador, rádio de pilha ventilador e sapatilha Até peruca é possível se encontrar O pagamento é no cartão, vale-transporte ou refeição Qualquer pessoa, jamais fica sem comprar (Zeca Pagodinho - Shopping Móvel) Esta multiplicidade de produtos é vendida pelos ambulantes dos trens com muita criatividade, a ponto de poder causar inveja em qualquer profissional de marketing. Aliás, diversos são os estudos sobre a temática. Ostrower (2007) diz que o manejo de recursos retóricos e de estratégias performáticas por parte dos ambulantes decorrem das ambiguidades das atividades frente à formalidade da lei, o que faz com que estes atores sociais sejam frequentemente confundidos com ―pedintes‖, ―malandros‖, ―um-sete-um‖, ―vagabundos‖. Neste contexto, o diferencial de seu discurso de venda, tem uma função especial para permitir driblarem as regras e reelaborarem a moral dentre outras formas de sociabilidade, práticas e saberes (2007, p.6). Requena (2010), ao estudar o discurso dos vendedores ambulantes dos trens de São Paulo, ressalta que a publicidade deste trabalho não se encontra em veículos tradicionais como revistas, jornais, panfletos ou outdoors. Mas, nos trejeitos dos trabalhadores, que por meio de uma retórica inventiva cumpre os mesmos objetivos daqueles, ou seja, o de propagarem ideias e, principalmente venderem os produtos. Segundo a autora, os discursos dos vendedores, além de revelar um ethos, mostra que ao encenar suas falas, eles criam um novo modelo de publicidade. Muitos focam na retórica nos pontos negativos da mercadoria, ou seja, ―o discurso que desqualifica seu produto (discurso do senso comum) a fim de negá-los e mostrar que seu produto também é bom: ―é barato, mas não está
  • 58. 59 vencido, é original, é de qualidade‖ (Idem, p.2). A autora destaca que este novo modelo de publicidade, instaura também um contrato compartilhado entre os parceiros da situação de enunciação – vendedor e cliente, no qual o discurso tem um papel estratégico de conquista do cliente para vender suas mercadorias, inclusive usando a estratégia da emoção: Pois sabemos que hoje a falta de emprego atinge uma parte da população que também circula no trem. Os passageiros comprando os produtos antes da fiscalização ―tomar‖ podem assim cooperar com os vendedores garantindo sua sobrevivência, que, indiretamente pode ser a deles também (IBDEM) Matos (2006) chama a atenção para este aspecto do apelo emocional, especialmente quando a população usuária dos transportes, igualmente pauperizada se identifica com o vendedor, especialmente quando este é uma criança: Vendedores de balas, principalmente os menores, com menos de dez anos de idade, despertam grande atenção dos passageiros. Seja por seu tamanho, pela infância perdida, pela docilidade na voz e no olhar ou pela imagem invertida da idéia de "chefe de família‖ (2006, p.2). De fato é empreendida uma relação empática entre esses atores sociais, que não obstante o eventual incômodo causado pelos ambulantes no decorrer dos deslocamentos urbanos, dividem o mesmo espaço coletivo numa relação mutualista. A estratégia de marketing ambulante no trem, a construção de uma ―auto- imagem empreendedora‖ e a sociabilidade criada com os ―passageiros patrões‖ é um fato bem marcante nos trens do Rio de Janeiro27. De modo que é impossível desconsiderar o trabalho ambulante na sociabilidade que atravessa as idas e vindas dos trabalhadores urbanos pela cidade. 27 Um dos vários ―personagens‖ que ilustram tais características está o Gordo chato no trem. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=uBgbQYDfW0c . Acesso em: 1º de janeiro de 2013.