1. Unidades de Conservação, Turismo e Inclusão Social:
O caso da RESEX Marinha do Delta do Parnaíba
Flávia Ferreira de Mattos
Psicóloga, Mestre de Ciências Sociais em Agricultura, Desenvolvimento e Sociedade
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - CPDA/UFRRJ.
Resumo
Este trabalho tem como objetivo apresentar os estudos sobre o modo de vida local e a percepção dos
moradores com relação à chegada do turismo na ilha das Canárias, pertencente à Reserva
Extrativista Marinha do Delta do Parnaíba para refletir sobre os impasses e desafios para o
desenvolvimento do ecoturismo de base comunitária nesta unidade de conservação. O estudo foi
realizado a partir de levantamento bibliográfico e documental, e também a partir da pesquisa de
campo na localidade (povoados do Passarinho e de Canárias) realizada em momentos distintos
(2002 e 2005). Esta região passou a ser considerada área potencial e prioritária para o
desenvolvimento do Ecoturismo no Brasil (EMBRATUR/IEB, 2002). Como base metodológica se
privilegiou a abordagem qualitativa. O estudo aponta certa vulnerabilidade dos moradores da RESEX
Marinha do Delta do Parnaíba com relação à intensificação do turismo na região. As iniciativas locais
revelam estratégias imediatistas sem planejamento e visão a longo prazo. A valorização da ilha das
Canárias no cenário turístico do delta do Parnaíba vem gerando transformações no espaço
comunitário, parte deste reconhecido tradicionalmente como pertencente a São José. Os programas
dirigidos ao Ecoturismo ainda não investem na perspectiva comunitária e pouco incluem os
moradores na formulação das políticas dirigidas a região. A inexistência de uma estratégia clara de
integração da RESEX Marinha do Delta do Parnaíba com a dinâmica local e com os programas de
Ecoturismo gera dissonâncias e impasses, reproduzindo a situação de exclusão de sua população.
1
2. Introdução
Num passado recente o “Ecoturismo” no Brasil revelava um cenário marcado por contradições
conceituais, práticas incompatíveis, desarticulações setoriais e exclusão social, refletindo opções
políticas clássicas de desenvolvimento (Irving, 2001). Hoje, a situação não é tão caótica quanto no
passado, alguns avanços já são notados, o que não significa que não existam grandes desafios a
serem enfrentados.
A partir da última década, principalmente, se observa uma tendência em considerar o
ecoturismo como estratégia de desenvolvimento aliada a conservação. Nesta tendência, se destaca a
valorização da atividade ecoturística em áreas protegidas. A interface ecoturismo/unidades de
conservação é facilmente compreendida uma vez que estas áreas concentram necessariamente os
aspectos e atrativos valorizados no ecoturismo e também concretizam uma estratégia global para a
conservação. Conforme destaca IRVING (2002)
“A utilização de áreas protegidas para o ecoturismo reflete algumas tendências
globais, entre as quais, o crescimento da consciência ambiental, em razão dos níveis
crescentes de degradação da base dos recursos naturais, incluindo a destruição de
ecossistemas de alta relevância para a preservação da biodiversidade global, e o
processo de reencontro do homem com sua própria essência, abandonada pela
sociedade de consumo, e profundamente afetado pelo fenômeno da globalização” (p.
48).
O ecoturismo em unidades de conservação de uso sustentável, em particular, as Reservas
Extrativistas (RESEX) e Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS), e o envolvimento com as
populações tradicionais, além de um diferencial no produto ecoturístico, passou a representar uma
alternativa econômica e uma ferramenta para a conservação (Coutinho, 2000).
Como se pode notar, algumas iniciativas de políticas públicas vêm fomentando esta nova
visão. Em 2002, foi lançado pelo IBAMA, o Programa Estratégico de Incentivo ao Ecoturismo nas
Reservas Extrativistas e recentemente, a Secretaria de extrativismo e desenvolvimento rural
sustentável, do Ministério do Meio Ambiente, vem desenvolvendo ações integradas relacionadas ao
ecoturismo e turismo sustentável em parceria com o Ministério do Turismo, apoiando o ordenamento
das atividades no país, com foco nas áreas naturais protegidas. Entre os objetivos programáticos
desta iniciativa está a “Carteira de Projetos de Ecoturismo de base comunitária”, que tem por objetivo
2
3. o fomento da participação das comunidades moradoras nas áreas de interesse, além da salvaguarda
do patrimônio natural1.
Algumas experiências de ecoturismo de base comunitária também despontaram a partir de
iniciativas locais. Entre elas o ecoturismo realizado nas RESEXs de Curralinho e Pedras Negras, no
Estado de Rondônia (Coutinho, 2000); na RDS Mamirauá, no Estado do Amazonas (Bannerman,
2001) e na comunidade da Prainha do Canto Verde, no Ceará (Mendonça, 2004), para citar alguns
exemplos.
No entanto, como afirma IRVING (2001), ainda hoje o modo de vida, o patrimônio natural,
histórico e cultural das comunidades tradicionais são pouco conhecidos para efeito de planejamento.
Além disso, é preciso refletir sobre a autonomia das próprias comunidades em decidirem que
trajetórias pretendem seguir e de que forma seria possível encontrar caminhos para assegurar os
benefícios e a melhoria da qualidade de vida condizente com seus valores, desejos e aspirações.
Neste contexto, o debate sobre a participação dessas comunidades no processo de tomada
de decisões vem sendo realizado, uma vez que historicamente estas populações permaneceram
alijadas desses processos e nem sempre recebem os benefícios anunciados ou estão presentes na
gestão desses espaços protegidos. Esta reflexão está intimamente ligada ao fortalecimento dos
movimentos sócio-ambientais e também se vincula a uma revisão crítica e pró-ativa da academia,
com base na reflexão sobre sustentabilidade ecológica, eqüidade e inclusão social e objetiva
influenciar uma revisão das práticas políticas no Brasil.
Uma importante questão expressa por Irving (2001), que observa as características dos
projetos de desenvolvimento no Brasil ao longo dos últimos anos, diz respeito à fragilidade da
organização e participação de determinadas comunidades no planejamento de estratégias para
desenvolvimento local. Como assinala a autora (2001):
"Um dos pontos reconhecidos de maior fragilidade nas iniciativas em andamento se
refere ao compromisso de engajamento (dos atores locais) e o compromisso de
conservação ambiental no processo de planejamento do Ecoturismo em áreas de
elevado valor ecológico ou Unidades de Conservação".(p. 50).
Lima (1997), a partir da experiência da implantação da Reserva de Desenvolvimento
Sustentável Mamirauá, no Estado do Amazonas, observa que a diversidade social implica na
necessidade de se conhecer em profundidade as formas de reprodução social, para que se
desenvolvam modelos de participação, manejo e preservação, específicos para cada situação. Neste
sentido, a autora assinala que:
1
I Workshop Virtual de Turismo e Desenvolvimento Social, promovido pelo Instituto Virtual de Turismo – IVT, realizado em agosto de 2007.
Disponível em: http://www.ivt.net/ivt/default.aspx , acesso em 02 de fevereiro de 2008.
3
4. "O envolvimento das populações locais em unidades de conservação não deve seguir
um modelo muito rígido. Ao contrário as experiências precisam ser construídas no
decorrer de um processo de interação contínua com a população, ajustando as
demandas e costumes locais à intenção de se construir um sistema de uso sustentado
do ambiente, que combinado com a preservação da biodiversidade, garanta uma
melhoria da qualidade de vida da população". (p. 311)
É necessário ressaltar que semelhante a RDS, as Reservas Extrativistas também investem na
parceria ecológica com as populações locais e apresentam como fundamento a participação de seus
moradores na gestão da área. Porém, a dificuldade de implantação das Unidades de Conservação na
realidade brasileira, a complexidade de operacionalização do ecoturismo devido aos diferentes
grupos de interesses envolvidos e as nuances características das práticas políticas, constituem
grandes desafios na atualidade e incentivam, sobretudo, a investigação das bases em que estão
sendo construídas as relações com as populações extrativistas locais nas parcerias existentes.
Para esta reflexão se utiliza o enfoque de desenvolvimento local, que vem influenciando as
estratégias para o ecoturismo e é entendido por Carestiato (2000) como:
"Um modelo de desenvolvimento que permite a construção de poder endógeno para
que uma dada comunidade possa autogerir-se, desenvolvendo seu potencial sócio-
econômico, preservando o seu patrimônio ambiental e superando as suas limitações
na busca contínua da qualidade de vida de seus indivíduos". (p. 27)
Segundo essa perspectiva, o desenvolvimento, a partir do enfoque local, além de
circunscrever a questão no espaço de inserção de um grupo social com suas especificidades,
valoriza o envolvimento comunitário, está alicerçado em relações horizontais e na noção de
empoderamento das comunidades, valores que, segundo Irving (2002), constituem a garantia ética de
sustentabilidade em projetos de desenvolvimento.
É neste cenário de análise que se inserem as comunidades que habitam tradicionalmente a
ilha das Canárias, e que a partir de 2000 passaram a estar circunscritos na RESEX Marinha do Delta
do Parnaíba e, mais intensamente, a partir da última década, passaram a sofrer o impacto da
valorização da região do Delta do Parnaíba no cenário turístico.
4
5. Visitando o contexto local
O Delta do Parnaíba é uma importante área da zona costeira brasileira, caracterizado por ser
o único delta “em mar aberto” das Américas. Formado por cinco barras (Igaraçú, Canárias, Caju,
Carrapato ou Melancieira e Tutóia), a partir do rio Parnaíba, divisor natural dos Estados do Piauí e
Maranhão é composto por mais de 75 ilhas, classificadas como ilhas de aluvião, que se formam em
águas calmas (Savaget, 2002). É uma área extremamente dinâmica do ponto de vista geomorfológico
e, sob a ótica ecológica, se caracteriza pela presença de endemismos e alta biodiversidade. É ainda,
uma das áreas mais produtivas do caranguejo-uçá. Recentemente vem se consolidando como
destino turístico.
Em meados do século XVIII o Delta do Parnaíba presenciou o ciclo da carne-seca e a partir do
século XX a exploração agroextrativista da carnaúba (ZEE do baixo Parnaíba, 2002). Há alguns anos
a região passou a enfrentar um grave problema socioambiental: o aumento do número de pessoas
dedicadas à cata do caranguejo-ucá, somados a um maior esforço, ocasionando sua excessiva
exploração. Este fenômeno ocorreu principalmente pela facilidade de sua comercialização, devido,
sobretudo, ao mercado existente, nas praias de Fortaleza, capital do Estado do Ceará, onde o seu
consumo passou a ser valorizado. A personalidade que comprava o caranguejo da região, conhecida
no delta como pioneira e desbravadora deste ramo é o “Chico do Caranguejo”. Localidades próximas
à ilha das Canárias, como a cidade de Barreirinha e Carnaubeiras, se consolidaram como centro em
que a atividade se instalou com tamanha força. A extração excessiva deste animal passou a ser
motivo de preocupação de ambientalistas e dos órgãos ambientais devido ao desequilíbrio gerado no
meio natural. Esta situação fortaleceu a demanda urgente do estabelecimento de medidas de
controle, que culminou como a criação da RESEX Marinha do Delta do Parnaíba, como forma de
alcançar este objetivo, levando em conta os habitantes locais.
A Reserva Extrativista Marinha do Delta do Parnaíba, composta de algumas ilhas do delta
compreende os municípios de Ilha Grande (PI) e Araióses e Água Doce (MA) e abrange uma área de
aproximadamente 275,6 quilômetros quadrados (ZEE, 2002). Esta unidade de conservação de uso
sustentável foi criada em 2000, onde se destaca a ilha das Canárias, segunda maior do Delta, com 5
povoados (Canárias, Passarinho, Caiçara, Torto e Morro do Meio) e aproximadamente 3.000
habitantes, que vivem em sua maioria basicamente da pesca, da cata do caranguejo e da agricultura
em pequena escala. A RESEX Marinha do Delta está sobreposta a outra unidade de conservação de
uso sustentável, a Área de Proteção Ambiental do Delta do Parnaíba, que abrange parte dos Estados
do MA, PI e CE, com área aproximada de 3.031 quilômetros quadrados (ZEE, 2002). Além da APA e
da RESEX presentes no Delta do Parnaíba, a Ilha do Caju, também se enquadra como uma categoria
de unidades de conservação descrita no SNUC. Trata-se da Reserva Particular do Patrimônio Natural
5
6. Ilha do Caju, que se destaca pela presença da Pousada Ecológica Ilha do Caju 2, o que veio fomentar
o interesse para o incremento do ecoturismo na região.
Tendo em vista as peculiaridades apresentadas sobre a região do Delta do Parnaíba na
atualidade: seu expressivo acervo natural, a presença de áreas protegidas e populações tradicionais,
o crescente aumento do interesse turístico pela região e a formulação de políticas para o
desenvolvimento do ecoturismo, pretende-se aprofundar a investigação a partir da análise da
dinâmica dos habitantes locais.
Objetivos
O estudo teve como objetivo a compreensão da dinâmica local e a busca do olhar dos
moradores da ilha das Canárias (em especial, dos povoados de Canárias e do Passarinho), suas
inquietações, medos e expectativas ao longo dos últimos anos, tendo em vista a chegada do turismo
na ilha das Canárias e as novas estratégias de desenvolvimento da região dirigidas ao Ecoturismo.
Buscou-se compreender as seguintes questões: Qual o histórico de ocupação da ilha das
Canárias? Como vivem os moradores da RESEX ao longo dos anos? Qual a leitura que estes fazem
da chegada do turismo na ilha? De que maneira a chegada do turismo tenciona a vida do habitante
local? De que maneira eles se inserem na construção das políticas de (eco)turismo dirigidas ao Delta
do Parnaíba?
Constituem, portanto, objetivos desse estudo: Sistematizar informações sobre o modo de vida
local; compreender os significados locais, ou seja, a percepção dos moradores com relação à
chegada e intensificação do turismo na ilha das Canárias; analisar de que maneira as populações
locais se situam frente às políticas de (eco)turismo dirigidas a região do Delta do Parnaíba.
Metodologia
Este estudo foi realizado a partir de levantamento bibliográfico e documental, e também, a
partir da pesquisa de campo na localidade realizada em momentos distintos: o primeiro momento, em
2002, que resultou no estudo monográfico de conclusão do curso de psicologia da UFRJ, realizado
enquanto participava como monitora do Programa Melhores Práticas para o Ecoturismo - MPE
(FUNBIO)3 na região; o segundo, em 2005, que resultou na dissertação de mestrado pela UFRRJ.
Em ambas as ocasiões se privilegiou a abordagem qualitativa como base metodológica. Foram
realizadas entrevistas a partir de um roteiro previamente planejado com tópicos e perguntas abertas,
do tipo semi-estruturado, de maneira a tornar possível a percepção de outros aspectos. O foco das
entrevistas foram os moradores dos povoados de Canárias e do Passarinho, residentes na ilha das
Canárias e, também, o responsável do órgão ambiental gestor da RESEX, o IBAMA. Além das
2
A pousada Ecológica Ilha do Caju está entre os destinos do Roteiro de Charme.
3
FUNBIO - Fundo Brasileiro para Biodiversidade.
6
7. entrevistas, o tempo de convívio no cotidiano na localidade permitiu realizar a “observação
participante”4.
Canárias é o maior povoado da ilha, com cerca de mais de 1.200 habitantes, e o mais próximo
ao Porto dos Tatus e também o povoado que passou a sofrer a influência direta do turismo. Já o
Passarinho, com média de 300 habitantes, situa-se mais ao interior da ilha e embora seja o povoado
com maior proximidade a Canárias, não apresenta esta influência.
Uma breve retrospectiva do turismo no Delta do Parnaíba
A partir da década de oitenta e, mais intensamente na década de noventa do século passado,
traduzindo a tendência pela procura de ambientes naturais, o Delta do Parnaíba, passou a ser
explorado turisticamente por algumas operadoras de turismo na região. Os passeios ao “Delta do
Parnaíba” passaram a ser oferecidos por estas agências, sendo realizados normalmente em grandes
embarcações, a partir do Porto das Barcas, no município de Parnaíba ou, eventualmente, do Porto
dos Tatus, no município de Ilha Grande de Santa Isabel (PI). No trajeto realizado ao longo dos rios
Iguaraçú e Parnaíba, passando ao longo da ilha das Canárias e demais ilhas do delta, os turistas têm
a oportunidade de apreciar a região, tomar banho na praia dos Poldros e passear nas dunas do Morro
Branco, nas duas paradas estratégicas5.
Como destino de grande potencial turístico, o Delta do Parnaíba passou a ser integrado nas
estratégias governamentais de desenvolvimento desse setor, ao lado de outros importantes destinos,
como o Parque Nacional da Serra da Capivara, o Parque Nacional de Sete Cidades, no Estado do
Piauí e entre destinos já consolidados, como os Lençóis Maranhenses (MA) e Jericoacoara (CE). Em
2001, a EMBRATUR6 e o IEB7 lançaram o Programa Pólos de Ecoturismo e o Delta do Parnaíba foi
indicado como uma das regiões prioritárias para o desenvolvimento da atividade. No estudo do
Zoneamento- Ecológico-Econômico – ZEE do baixo Parnaíba, apresentado em 2002, também se
considerou o ecoturismo como a melhor opção para que a região retome o ciclo de desenvolvimento.
Neste mesmo ano, o Programa Melhores Práticas para o Ecoturismo – MPE/FUNBIO, atuante na
região, realizou a oficina de Planejamento Estratégico para o Pólo Delta do Parnaíba, com o objetivo
de apresentar os trabalhos de planejamento realizados para o Pólo. O Programa, bem como a oficina,
foram promovidos pela Secretaria de Políticas para o Desenvolvimento Sustentável do Ministério do
Meio Ambiente. Uma reunião pública também foi realizada para a instalação do Comitê Gestor Local
do Pólo Ecoturístico Delta do Parnaíba, envolvendo entidades locais no processo de “gestão
participativa” do Pólo.
4
Em 2002, permanência de 4 meses na região com visitas aos povoados e em 2005, de 30 dias de permanência nos povoados.
5
Ao longo do passeio são servidos frutas, uma caranguejada e o almoço. Esses passeios duram em média 8 horas e no ano 2002 e
custavam aproximadamente R$ 30,00 por pessoa.
6
Instituto Brasileiro de Turismo.
7
Instituto de Ecoturismo do Brasil.
7
8. Sob a ótica geográfica, a região do “Delta do Parnaíba” se encontra entre os “Lençóis
Maranhenses”, no lado Maranhense e, o complexo turístico do litoral oeste do Ceará, o que fortalece
a sua inserção como destino turístico integrado a essas duas outras regiões. Desta forma, com o
passar dos anos e o crescente aumento do fluxo turístico na região, os habitantes tradicionais das
ilhas do delta, passaram a ter que conviver com certa “espetacularização” deste ambiente. E em
muitos casos, deles próprios.
Entre os diversos municípios que compõem a região, Araióses, no Maranhão e Parnaíba, no
Piauí, disputam para si, no cenário turístico e nas políticas de desenvolvimento, um lugar por
excelência, o “portão” de entrada para o “Delta do Parnaíba”. O lado maranhense se sente em
desvantagem quanto aos benefícios gerados pelo turismo, apesar de abranger a maior parte do delta.
Recentemente, empreendimentos hoteleiros de grande porte se dirigem à região do Delta do
Parnaíba, como foi possível constatar na consulta de um site, que disponibilizou informações sobre
esta intenção8.
A chegada do turismo na ilha das Canárias
Em 2002 foi observado o início de visitas sistemáticas na Ilha das Canárias (inserida na área
da RESEX), em particular, a chegada semanal de grupos de turistas de origem holandesa, levados
por guias de uma agência de turismo de Parnaíba, e também, o início da construção de uma pousada
a beira-rio.
A constatação da problemática local com a chegada dos primeiros indícios de turismo nas
comunidades do delta, a falta de dados sistematizados e instrumentos de manejo da referida Unidade
de Conservação, bem como a incerteza com relação ao papel assumido por essas comunidades,
inspirou a investigação para o aprofundamento da questão, apresentando o morador local como
protagonista deste cenário.
Assim, no intuito de refletir sobre a participação dos moradores da Reserva Extrativista
Marinha do Delta do Parnaíba, buscou-se compreender a dinâmica local com relação ao turismo
existente; a percepção dos moradores locais com a chegada do turismo na ilha e sua inserção nos
programas de Ecoturismo dirigidos a região.
Aspectos das comunidades da RESEX Marinha do Delta do Parnaíba
O contexto geográfico da ilha das Canárias permite que os povoados realizem atividades
diversificadas em seus territórios – tanto voltadas para a terra, quanto voltadas para o rio. Em cada
período da história é possível perceber uma variação na intensidade das atividades exercidas. No
entanto, em diferentes relatos é possível registrar que existe a predominância de uma atividade que
8
Cf. Hochheimer Imperatori Arquitetura. Disponível em < www.hiarq.com.br > acesso em 17 de novembro de 2005.
8
9. os diferencia e que confere certa identidade aos diferentes povoados da Ilha das Canárias. Enquanto
os moradores de Canárias se reconheçam mais com pescadores, no Passarinho, o predomínio no
trabalho na roça, aliado a pesca caracterizou, desde a sua origem, o modo de sobrevivência dos
moradores e, mais recentemente, a cata do caranguejo, é também praticada por um grupo de
pessoas. Embora o aparecimento do mercado de caranguejo no delta do Parnaíba tenha se dado
entre os anos 80 e 90, no povoado do Passarinho, a organização dos moradores para atender este
mercado veio mais tarde. Conforme os relatos locais, a atividade da cata do caranguejo, no
Passarinho, é considerada relevante “de uns seis anos pra cá”, relata um morador no ano 2005. Da
mesma forma que o peixe, a ostra e o sururu, o caranguejo, quando retirado do mangue, servia
apenas para o próprio consumo familiar. Os relatos que seguem ilustram esta observação.
“A época que eles começaram foi lá pelos anos 70/80. Porque aqui na nossa
comunidade o pessoal vivia só da pesca e de trabalhar na roça. Não tinha os
“catadores de caranguejo” como eles chamam (risos). Tinha em outros lugares como
nos Tatus, no Morro da Mariana, mas aqui mesmo na comunidade nossa não tinha”.
(antigo morador do Passarinho)
E ainda,
“Quando pegava caranguejo, pegava pra comer, não sabe? Mas não tiravam as
compras como hoje não... mas pra vender não tinha, não tinha compra de
caranguejo..., só veio a ter certos tempos pra cá”. (antiga moradora do Passarinho)
Para os moradores locais esta atividade é marcada pelo esforço físico empregado e por isso
costuma ser menos apreciada entre os próprios do lugar. Por outro lado, é uma atividade que garante
uma rentabilidade imediata. Neste povoado a cata do caranguejo é organizada por um morador local
que possui um barco a motor e compra a produção local, transporta e revende a outros
atravessadores. A turma, como são conhecidos os grupos de catadores, no Passarinho, possuía, em
2005, aproximadamente 15 integrantes, que afirmavam manter a fidelidade ao comprador local.
Em Canárias, a realidade local é mais complexa, conjugando várias atividades. Além da
pesca, existem moradores que conjugam outras atividades como a roça, a criação de gado
(vaqueiro), e também, atividades ligadas ao comércio e à prestação de serviços públicos (professor,
agentes de saúde, auxiliar da escola, entre outros), são também atividades registradas nesta
localidade.
9
10. No povoado das Canárias, além da presença de apossamentos recentes (pessoas que foram
morar na ilha), dos apossamentos pertencentes a membros de famílias tradicionais locais e os
apossamentos pertencentes a figuras externas à comunidade, existe uma forma peculiar de
apropriação do território que pode ser incluída na categoria de “terras de uso comum”, com referencia
a igreja católica. Em Canárias, parte da terra é reconhecida como pertencente a São José 9. Andrade
(2003) observa as categorias de entendimento que definem as chamadas “terras de santo” ou “terras
de santíssima”.
“Terras que o grupo não apenas chama de terras de santíssima – e aqui não
estamos diante de pura terminologia, mas de categorias de entendimento, de
categorias que definem princípios de territorialidade, que organizam sistemas de
apropriação dos recursos da natureza, de categorias que fundamentam a identidade
étnica desses grupos – mas que vive, em suas práticas e em suas representações
como terras de santíssimo” (p. 39)
No Passarinho, não há relatos de incidência de terra de Santo, como nomeada em Canárias.
Neste povoado, grande parte das terras é ocupada por pessoas que não possuem titulação da terra,
mas possuem o seu cercado. É também caracterizada por inúmeros espaços de uso comum, como
as lagoas, as cacimbas e os espaços de pesca, a área de lazer (campo de futebol) e também a igreja.
Conforme Almeida (2006), nestas situações de apossamentos, prepondera a adoção de um “sistema
de uso comum da terra”, onde o seu controle não é exercido livre e individualmente por um grupo
doméstico determinado, mas sim através de normas específicas instituídas para além do código legal
vigente e acatadas de maneira consensual, nos meandros das relações sociais estabelecidas entre
vários grupos familiares de pequenos produtores diretos que compõem uma unidade social.
O que se observa, ao percorrer esses dois povoados é uma multiplicidade de arranjos locais
de domínio e acesso aos recursos naturais, formalizados do ponto de vista comunitário, invisíveis do
ponto de vista técnico e ignorados do ponto de vista legal.
Há também que se destacar que em toda a ilha não existe tratamento sanitário. A água para o
consumo é retirada das cacimbas e o lixo produzido é queimado ou enterrado. Dados do PSF (2006)
revelam um índice elevado de doenças parasitológicas entre os moradores, principalmente nas
crianças.
9
De acordo com os moradores do povoado das Canárias, no passado houve uma divisão das terras feita pelos próprios moradores. Nesta
divisão uma área foi destinada à igreja católica, sendo reconhecida como pertencente a São José. Nesta área, onde se encontra a maioria
dos domicílios, não se compra ou vende o terreno.
10
11. Percepções locais com relação ao turismo
O recorte no tempo, com relação aos períodos de pesquisa realizados na localidade, em 2002
e em 2005, permitiu observar modificações nas percepções com relação à chegada do turismo na ilha
e a construção de uma pousada.
Com relação à pousada10, construída por pessoas vindas do Estado de São Paulo em
sociedade com um “filho da terra”, que viveu 15 anos neste Estado, as impressões se transformaram
significativamente. Em 2002, a expectativa circulava em torno das promessas com relação aos
benefícios que poderia trazer para o povoado. Um abaixo assinado foi feito apoiando a construção e
a permissão da moradora representante da igreja católica, responsável pela ordenação do território
pertencente a São José, foi dada. Entre os benefícios prometidos na obtenção do consentimento e
esperados pela população foram citados: oportunidade de trabalho, escola e até mesmo a tão
sonhada chegada da luz11.
Com relação à chegada do turismo na ilha e em particular, ao grupo de origem holandesa,
algumas percepções tiveram destaque. Entre elas: muitos moradores não consideravam a ilha um
atrativo para os turistas, desconhecendo os motivos que os atraiam. Para eles, o importante eram as
praias e não o povoado. Estes grupos, levados à ilha por guias de agências de turismo de Parnaíba,
percorriam o interior da ilha, tiravam fotos, filmavam e, frequentemente, arremessavam “bom-bons”
(balas) às crianças, que se aglomeravam para também observá-los. Quando perguntados sobre os
benefícios e prejuízos com relação à visitação, muitos se manifestaram indiferentes, em alguns casos
demonstrando estranhamento com relação à língua falada por eles e o biótipo e, também,
desconforto com relação à forma com que as crianças se comportavam.
Por outro lado, foi possível observar também algumas iniciativas isoladas demonstrando
interesse em beneficiar-se com a chegada do turismo. Entre elas: uma moradora, proprietária de um
bar, que passou a oferecer alimentação e abrigar em uma casa pessoas que decidiam pernoitar na
ilha; um proprietário de um bar, que diante do público estrangeiro, passou a estudar a língua inglesa,
no intuito de se comunicar com os visitantes; algumas reuniões promovidas pela enfermeira do
Programa de Saúde da Família, com o intuito de fomentar a organização do artesanato; alguns bares
surgindo na beira da praia.
Ainda em 2002, relatos apontavam para a chegada de pessoas vindas de outras regiões que
propunham aos moradores investirem em construções e reformas com interesse em explorar o
turismo na ilha.
Em 2005, o cenário do turismo no povoado de Canárias estava fortalecido. A pousada, estava
funcionando e o fluxo de turista se intensificou, mas a frustração dos moradores com relação a este
10
A construção de uma pousada no povoado de Canárias na beira do rio Parnaíba, entendida como um marco simbólico e concreto da
chegada do turismo na ilha, foi um fato motivador para a realização da pesquisa em 2002.
11
A luz chegou para os povoados da ilha das Canárias em 2005, quando foram contemplados pelo Programa do Governo Federal, “Luz
para todos”.
11
12. empreendimento turístico era visível, pois a pousada apenas havia beneficiado os proprietários de
origem paulista, que inclusive, desfizeram a sociedade com o elo local, o morador nascido no
povoado.
Outras mudanças também puderam ser observadas: outros empreendimentos destinados ao
turismo (bar-restaurante) e residências foram construídos a beira-rio e alguns jovens da comunidade
foram instruídos a acompanhar os visitantes e lhes mostrarem o lugar. Em troca recebem gorjeta,
como forma de pagamento, conforme relata um jovem morador imbuído desta função, ao discorrer,
também, sobre os interesses peculiares do público estrangeiro que visita a ilha (saber o nome dos
pássaros e plantas e etc).
Portanto, em Canárias, já é notória a transição nas atividades dos moradores com vistas a
beneficiarem-se a partir do turismo. Este fato vem acompanhado de outras propostas de investimento
externo para o incremento local, o que vem alterando a configuração sócio-espacial do povoado.
Já no povoado do Passarinho, o turismo ainda é visto como algo distante e não pertencente à
dinâmica local, como um dia também foi o povoado de Canárias. Resta saber até quando.
Reflexões finais e contribuições para o debate
Embora a região do dDelta do Parnaíba se constitua com grande potencialidade para o
desenvolvimento do Ecoturismo, muitas questões ainda precisam ser equacionadas para o
afloramento efetivo da atividade como possibilidade para a RESEX. O primeiro aspecto diz respeito à
própria relação dos moradores com os mediadores da unidade de conservação.
Lustosa (2005), que realizou pesquisa sobre as representações sociais do grupo de catadores
de caranguejo do delta do Parnaíba, percebeu o descrédito que os moradores demonstram nas
instituições político-burocráticas em geral, como o Estado e suas estruturas de administração,
especialmente nas ações implementadas pelo IBAMA. Como foi relatado pelos próprios moradores,
na pesquisa realizada por esta autora, algumas iniciativas propostas pelo IBAMA, e demais órgãos
que atuam na localidade, entre eles, o SEBRAE, a EMBRAPA e o Banco do Nordeste não tiveram
continuidade, ou mesmo não deram certo, como no caso da criação de ostras, incentivada como
renda alternativa à comercialização do caranguejo, e que, no entanto, não obteve mercado
consumidor. Em sua pesquisa foi identificado que por mais que existam esforços por parte do órgão
ambiental, no sentido de organizar os moradores de maneira a participarem da co-gestão da RESEX,
não é obtido êxito.
Nesta mesma pesquisa, Lustosa (2005), considera a importância das culturas tradicionais e
da participação comunitária nos processos decisórios, mas não aponta as formas tradicionais de uso
e ocupação do território ao considerar que não houve conflitos de ordem fundiária com a criação da
RESEX. Conforme a autora,
12
13. “A categoria Reserva Extrativista, sendo mais restritiva quanto ao uso dos recursos
ambientais do que a Área de Proteção Ambiental, não encontrou nenhum
impedimento legal para a sua criação, e tampouco enfrentou conflitos de ordem
fundiária, pois a dominialidade da área é da União sob responsabilidade do IBAMA,
não havendo assim dispêndios financeiros para fins de desapropriação na ocasião de
sua criação” (pág 75).
Ao contrário desta colocação, a presente pesquisa tentou identificar, do ponto de vista local, a
complexidade dos processos sociais no universo da RESEX.
Ao contrário os preceitos que definem esta modalidade de UC, a RESEX do Delta foi criada
sem a efetiva participação dos habitantes dessa área. Quando entrevistados em 2002, grande parte
dos moradores desconhecia os objetivos e o papel necessário para criação e implantação da RESEX
Marinha do Delta do Parnaíba. Foi observado também certa vulnerabilidade diante da intensificação
do turismo na localidade, em conseqüência da valorização da região no cenário (eco)turístico e o
surgimento de propostas externas para o uso do espaço local (Mattos, 2003). Esta constatação
sugeriu observar que por mais que algumas categorias de Unidades de Conservação tragam em si a
legitimação das populações locais, o modo como estas estão sendo replicadas no território nacional,
nem sempre é fruto de uma efetiva parceria de diálogo e construção.
A hipótese interpretada na presente pesquisa é que a negligencia do histórico das formas
tradicionais de ocupação do espaço comunitário na criação da RESEX criou obstáculos e
resistências, aflorou diferentes formas de conflitos intracomunitários e contribuiu com passivos com
relação à atuação do órgão ambiental, gerando estagnação nos processos de organização para a co-
gestão da RESEX. Um boicote silencioso diante de uma proposta que não foi internalizada, não é
reconhecida de maneira ampla e possui dificuldade de se legitimar diante da população local.
BENSUSAN (2006) observa as dificuldades relacionadas aos títulos de propriedade no país,
entre elas, os vários títulos existentes para uma mesma terra e o apossamento tradicional das
diversas populações – como seringueiros, remanescentes de quilombo, castanheiros, ribeirinhos,
entre outros – que, como afirma esta autora, deve ser respeitado e integrado às políticas de
conservação e desenvolvimento. Conforme ressalta, conhecer e lidar com a questão fundiária é parte
importante para o estabelecimento e gestão exitosa de uma área protegida (Bensusan, 2006).
No caso das Reservas Extrativistas, a posse da terra é coletiva fundamentada na exploração
sustentável dos bens naturais. O IBAMA repassa e/ou outorga o Contrato de Concessão de Direito
Real de Uso dos recursos naturais às populações tradicionais (Lustosa, 2005). No entanto, ao mesmo
tempo em que se impõe a necessidade de respeito à cultura e construção coletiva de alternativas de
desenvolvimento, utiliza-se uma concepção tecno-econômica em que se ignora os problemas
13
14. humanos da identidade, da comunidade, da solidariedade, e da cultura (Morin e Kern, 2003 apud
Cunha e Loureiro, 2006)
No caso da RESEX do Delta do Parnaíba, a redefinição de regras de uso e acesso aos
recursos naturais, vem suscitando diferentes posturas e entendimentos com relação aos efeitos da
criação da RESEX, uma vez que as regras anteriormente exercidas foram suspensas e ainda não
foram construídas e internalizadas outras de caráter conservacionista.
Na tentativa de reconstituição do histórico do domínio da terra no povoado do Passarinho, foi
observado que a ocupação da área foi feita por duas famílias, e até hoje o povoado é dividido entre o
lado dos Brancos (da família Cardoso) e o lado dos Adrião. Com o passar dos anos grande parte das
terras foram compradas por “coronéis”, que passaram a cobrar a “renda” dos moradores pela a
produção. Como afirmam, antes na proporção 4:1 e mais tarde passando para 10:1, ou seja, a cada
10 sacas de arroz, uma se destinava ao “dono” da terra.
Na pesquisa de campo realizada em 2005 foi observado que os representantes do IBAMA
tentavam explicar aos moradores que as terras eras deles próprios, pois a área havia se tornado uma
RESEX. No entanto, alguns moradores ainda mantinham as antigas relações e pagavam a “renda” ao
suposto dono da terra, pois como alegavam, havia o combinado. Por outro lado, foi observado, no
povoado de Canárias, que alguns moradores se diziam possuidores de terras, alegando terem
pagado impostos rurais durante muitos anos e queixavam-se de suas terras estarem sendo
apropriada por outros moradores sem nenhum regulamento, inclusive destruindo áreas consideradas
de conservação no antigo sistema. Segundo este antigo morador, nascido no povoado, anteriormente
a criação da RESEX se impunha o respeito e portanto havia a regularização no uso de determinadas
áreas. Com a criação da RESEX e o IBAMA anunciando que a terra “é dos moradores”, o que
significa um avanço do ponto de vista do histórico da política ambiental brasileira12, muitos se
sentiram no direito de plantar e derrubar árvores onde bem quisessem. Um efeito colateral de uma
medida que se pretende conservacionista.
O que se observa é que embora os habitantes da RESEX sejam considerados uma
“população tradicional” e, portanto, vivam intimamente ligados à manutenção dos recursos naturais e
estabeleçam entre si relações compadrio, confiança, ajuda mútua e apresentem-se circunscritos a
códigos e valores perpetuados pela tradição através da oralidade, esta população não é homogênia.
As diferenciações podem ser percebidas, como neste exemplo, pela existência de hierarquias sociais
entre os moradores de um mesmo povoado, fundada em diferentes critérios, como a anterioridade da
família na localidade ou laços de amizade, e também, nas diferenças entre os diferentes povoados
que foram incluídos na RESEX.
12
A criação das áreas protegidas no Brasil seguiu um modelo preservacionista, que excluía a presença humana desses territórios. No
entanto, o fortalecimento dos movimentos socioambientais contribuiu para a formulação de novos modelos de proteção, com caráter
inclusivo, a partir da reflexão sobre a superação da dicotomia sociedade X natureza, imposta nos modelos existentes até então. Para um
aprofundamento deste tema consultar (MEDEIROS, IRVING e GARAY, 2004).
14
15. Um outro aspecto que caracteriza a dinâmica local e interfere de maneira negativa para a
gestão da RESEX é o fato de que grande parte da área da RESEX ser, supostamente, de domínio do
então Prefeito do Município de Araióses, conhecido como Zé Tude.
Embora o órgão ambiental afirme que a área sempre foi de domínio da União, e, portanto, não
exista proprietário, o que se observa na área da RESEX é uma sucessão de domínios da terra e dos
recursos naturais pertencentes a moradores locais e pessoas de outras regiões, que exercem o seu
poder na localidade. Não existe, portanto, um entendimento sobre esta questão, o que vem
suscitando conflitos de interesses e resistências para uma efetiva gestão.
O projeto de criação da RESEX esbarra nos interesses particulares da figura político-
administrativa do Município, mas também, desconsidera o fato de que parte da terra do povoado de
Canárias é pertencente à igreja católica, doada aos moradores, como relatam os representantes
católicos do povoado. Nesta área, reconhecida como de São José, a apropriação do espaço é feita
de maneira coletiva, administrada localmente por uma moradora representante da igreja, que herdou
de seu tio esta responsabilidade, anteriormente exercida por ele.
Considera-se que a apreensão do modo de vida dos habitantes locais, de suas percepções e
formas de representar o território constituam elemento fundamental para a compreensão da dinâmica
e dos conflitos presentes nas unidades de conservação desta natureza.
Há que se considerar que o Ecoturismo, como estratégia para o desenvolvimento local, só
alcançará frutos se os moradores se tornarem protagonistas na construção de uma proposta coletiva
e de maneira integrada com as políticas que se configuram na região do Delta do Parnaíba. Até o
momento da pesquisa, os programas de desenvolvimento do Ecoturismo presentes na região, entre
eles, a iniciativa “Melhores Práticas para o Ecoturismo” MPE/FUNBIO e o Programa Pólos de
Ecoturismo, pouco investiram na parceria com os habitantes dos povoados das ilhas do delta e se
tornaram superficiais do ponto de vista do desenvolvimento local.
A questão é que para uma postura pró-ativa é preciso enfrentar os conflitos aflorados por uma
conduta homogeneizadora da proposta ambiental, que encobriu as diferenças intra e inter
comunitárias e suas expressões e acaba distanciando o público alvo da proposta de engajamento e
co-gestão da área.
A questão é urgente, pois enquanto não se soluciona os entraves de co-gestão da RESEX,
onde o “Ecoturismo de base comunitária” poderia ser vislumbrado, o turismo de massa, realizado de
maneira desordenada, continua chegando à ilha das Canárias assim como a especulação do espaço,
gerando uma situação insustentável a médio e longo prazo.
Nos últimos anos, com a chegada da luz na ilha, algumas iniciativas mais recentes de
organização comunitária começaram a aparecer, principalmente no povoado das Canárias,
influenciada por uma funcionária da saúde, que atua na localidade e se tornou referência para a
15
16. mobilização comunitária, fomentando o associativismo e atuando em campanhas de educação
ambiental13.
Faz-se necessário fortalecer os canais de diálogo e mediação entre as demais comunidades e
o órgão ambiental co-gestor da RESEX, e destes, com os demais espaços de articulação, a fim de
tornar visível o caso das populações do Delta do Parnaíba e aproximá-los de exemplos de iniciativas
sustentáveis de turismo em curso em âmbito nacional e internacional. O “Ecoturismo de base
comunitária” é uma possibilidade que merece ser amadurecida e priorizada nas estratégias de
desenvolvimento da região do Delta do Parnaíba. No atual momento ainda encontra obstáculo nos
entraves da gestão da RESEX, mas apresenta no afloramento da diversidade social dos habitantes
do delta e no reconhecimento dos conflitos e tensões, a possibilidade de um caminho rumo ao
protagonismo.
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FERNANDES-PINTO, E. CORDEIRO, A. BARBOSA, S. Criação de Reservas extrativistas e sua
importância estratégica frente aos conflitos ambientais brasileiros. In: Áreas protegidas e Inclusão
13
Estas iniciativas mais recentes de organização podem ser alvo de estudos futuros e necessitam ser fortalecidos levando-se em conta as
disputas, conflitos e diversidade social presente na RESEX.
16
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