SlideShare ist ein Scribd-Unternehmen logo
1 von 304
Downloaden Sie, um offline zu lesen
FFOOGGEE,, NNIICCKKYY,, FFOOGGEE!!
Nicky Cruz
e Jamie Buckingham
Título original em inglês: Run Baby Run
Tradução de Adiel de Almeida Oliveira
6ª.edição, 1980
Editora Betânia
Digitalizado, revisado e formatado por SusanaCap
PPrree ffáá cc ii oo
QUANDO TOMEI A INICIATIVA de realizar este
projeto, Cath erin e Marsh all com en tou qu e escrever u m
livro deste tipo é com o ter u m filh o. Eu teria de viver
com ele, até que nascesse.
Neste caso, n ão fu i só eu qu em teve de viver com
ele, m as a m in h a fam ília e tam bém a Igreja Batista do
Tabern ácu lo qu e eu estava pastorean do. Sofreram
com igo todos os ataqu es de m al-estar m atu tin o, todas
as dores de parto, e até m esm o u n s dois alarm es falsos.
Mas, tan to m in h a fam ília com o a igreja, com preen deram
qu e este livro era con cebido pelo Espírito San to, escrito
com oração e lágrim as, e deveria ser pu blicado para a
glória de Deu s. A igreja praticam en te libertou -m e de
todas as obrigações, até term in á-lo; além disso, vários
dos membros ajudaram no trabalho de datilografia.
Con tu do, os padrin h os do livro foram J oh n e
Tibby Sh erril e os editores da revista Gu ideposts. A
recom en dação e a con fian ça de J oh n deram in ício ao
projeto, e n o seu térm in o, foi a crítica do casal Sh erril
qu e n os deu a visão fin al da h istória violen ta, m as
empolgante, da vida de Nicky Cruz.
Os m éritos da m ovim en tação da h istória em si
cabem , porém , a Patsy Higgin s, qu e ofereceu volu n -
tariam en te os seu s serviços para a glória de Deu s. Ela
viveu e sen tiu o m an u scrito com o crítica, editora e
datilógrafa — revelan do u m talen to para cortar e
reescrever, que só pode ter sido dado por Deus.
O livro em si qu ebra u m a das regras básicas da
literatu ra. Term in a abru ptam en te. Não h á u m fin al
apoteótico ou bem elaborado. Cada vez qu e eu en -
trevistava Nicky Cru z, ele relatava u m a experiên cia n ova
e fan tástica, m aterial qu e daria para ou tro livro — talvez
para vários. Portanto, Foge, Nicky, Foge! é a história, tão
exata, qu an to possível, dos prim eiros vin te e n ove an os
da vida de u m m oço, cu jos dias m ais áu reos ain da estão
no futuro.
Jamie Buckingham
Eau Gallie, Flórida
IInn tt rroo dd uu çç ãã oo
A HISTÓRIA DE NICKY CRUZ é notável. Tem todos
os elem en tos de tragédia, violên cia e in teresse, além do
m aior de todos os in gredien tes, o poder do evan gelh o de
Jesus Cristo.
Os prim eiros capítu los form am u m cen ário obs-
curo e ten ebroso para o eletrizan te desen lace desta
h istória. Portan to, n ão desan im e com a atm osfera u m
tanto sangrenta da primeira metade do livro.
Nicky é jovem , e está atu alm en te cau san do u m
grande impacto sobre um bom número de outros jovens,
n os Estados Un idos. A popu lação adu lta já n ão pode
m ais ign orar a m ocidade, com os trem en dos problem as
do sécu lo vin te. A ju ven tu de bu sca u m propósito n a
vida. Não está en am orada de n ossos esclerosados tabu s
sociais. Qu er sin ceridade n a religião, h on estidade n a
política, e ju stiça para os desprivilegiados da
sociedade O aspecto en coraja-dor, n o qu e diz respeito a
esses m ilh ões de “garotos” (qu e em 1970 u ltrapassaram
o n ú m ero da popu lação adu lta), é qu e eles estão
desesperadam en te procu ran do solu ções para seu s
problem as. Em con tatos com cen ten as de estu dan tes de
n ossas u n iversidades, fiqu ei trem en dam en te
im pression ado com a bu sca qu e estão em preen den do,
procu ran do a verdade, a realidade e solu ções h on estas.
Algu n s joven s de n ossas favelas estão an siosos para ter
u m con tato h on esto com a sociedade, e com razão.
Algu n s deles são in flu en ciados por defen sores da
violência e da força bruta, e são facilmente atraídos para
o redem oin h o dos distú rbios de ru a, in cên dios e
pilh agem . Foge, Nicky, Foge! é u m exem plo n otável de
qu e essa m ocidade in satisfeita pode en con trar u m
sign ificado e u m propósito para a vida, n a pessoa de
Cristo.
Em n ossas cam pan h as, qu ase a m etade dos ou -
vin tes tem m en os de vin te e cin co an os. Não vão às
cam pan h as para zom bar, m as para u m a bu sca sin cera
da verdade e de objetivos para a vida. Cen ten as deles
atendem ao chamado de Cristo.
Foge, Nicky, Foge! é u m a h istória em ocion an te!
Min h a esperan ça é qu e ela seja m u ito lida, e qu e m u itos
leitores ven h am a con h ecer o Cristo qu e tran sform ou o
coração vazio e in satisfeito de Nicky Cru z e fez dele u m a
epopéia cristã de nossa era.
Billy Graham
PPrree ââ mm bbuu lloo
A HISTÓRIA DE NICKY é, possivelm en te, a m ais
dram ática do m ovim en to Pen tecostal, m as n ão é a
ú n ica. Nicky é u m vivido represen tan te de vasto n ú m ero
de pessoas qu e, n as ú ltim as décadas, têm sido
libertadas do crim e, do álcool, dos n arcóticos, da
prostitu ição, do h om ossexu alism o, e de qu ase todo tipo
de perversão e degen eração qu e o h om em con h ece.
Tratam en to psicológico, cu idados m édicos e con selh os
espirituais n ão con segu iram in flu en ciar essas pessoas.
Elas, porém , foram libertas de su a escravidão de m odo
in esperado e m aravilh oso, pelo poder do Espírito San to,
e levadas a u m a vida de serviço ú til, e, algu m as vezes,
de profu n da oração. É m u ito n atu ral descon fiar-se de
tran sform ações radicais e repen tin as. Porém n ão h á
razão teológica para se su speitar delas. A graça de Deu s
pode apossar-se de u m h om em e tran sform á-lo, n u m
abrir e fechar de olhos, de pecador em santo. “Porque eu
vos afirmo que destas pedras Deus pode suscitar filhos a
Abraão.” (Lu cas 3:8.) O esforço h u m an o n ão pode
produ zir tais tran sform ações, n em n a própria pessoa
n em em ou trem , porqu e a n atu reza exige tem po para se
desen volver, gradu alm en te; m as Deu s pode fazer em u m
instante o que leva anos e anos para o homem realizar.
Con versões assim ocorreram n a h istória do cris-
tian ism o, desde o prin cípio. Zaqu eu , Maria Madalen a (a
pen iten te de Lu cas 7:37), o “bom ladrão”, o apóstolo
Pau lo, e m esm o Mateu s, o discípu lo, são os prim eiros de
u m a lon ga lista. Con tu do, o m aior n ú m ero de tais
con versões está ten do lu gar h oje em dia, em relação ao
chamado “Movim en to Pen tecostal”, o qu e é, creio eu ,
sem preceden tes. Qu al o sign ificado deste fato
extraordinário?
Ten h o m editado m u ito sobre isto, e o qu e m e vem
à m en te com freqü ên cia é a parábola das bodas (Mateu s
22:1-14). Qu an do as pessoas con vidadas n ão
apareceram , o sen h or disse a seu servo: “Sai depressa
para as ru as e becos da cidade e traze para aqu i os
pobres, os aleijados, os cegos e os coxos.” (Lu cas 14:21.)
Qu an do n em aqu ilo foi su ficien te, o servo foi en viado
u m a vez m ais, desta vez para os cam in h os e atalh os,
com a ordem : “Obriga a todos a en trar, para qu e fiqu e
ch eia a m in h a casa.” Creio qu e isto é o qu e estam os
ven do acon tecer h oje. Os “convidados” à m esa do
Sen h or, isto é, os qu e “n asceram n o cristian ism o”, os
ju stos, os m em bros legítim os da sociedade, já
dem on straram sobejam en te qu e são in dign os. Eles “vão
à igreja”, m as n a verdade n ão têm participado do
banquete propiciado pelo Rei. É por isto que a Igreja, em
lu gar de ser u m corpo vivo e u m a testem u n h a
desafiadora, m u itas vezes se assem elh a a u m in ú til
clube religioso.
Todavia, en qu an to os dou tores da lei discu tem
qu al o n ovo vocabu lário qu e fará ressu scitar Deu s
(porqu e tu do o qu e con h ecem a respeito dele são
palavras), e qu e n ovos sím bolos farão com qu e a litu rgia
ten h a m ais sign ificado (porqu e tu do o qu e en xergam n a
religião é a parte h u m an a), Deu s está reu n in do, em
silên cio, n ovos con vidados para o seu ban qu ete. Recebe
alegrem en te aqu eles qu e, segu n do os padrões h u m an os,
são espiritu al e m oralm en te pobres, aleijados, cegos e
coxos. Pelo poder do seu Espírito, está m esm o
“forçando-os” a en trar, arran can do-os das ru as da
degradação e dos atalhos da perversão.
Nicky Cru z e os m ilh ares qu e se lh e assem elh am
n ão são apen as exem plos com oven tes do am or fiel do
Bom Pastor, m as são tam bém sin ais dos tem pos, qu e
faríam os bem em discern ir. São u m sin al en corajador de
qu e Deu s está agin do com u m poder n ovo em n ossa
época, para qu e n ão ten h am os m edo de proclamar
ou sadam en te o evan gelh o a todos. Por ou tro lado,
tam bém são u m sin al de advertên cia a todos os qu e,
pelos seu s h ábitos religiosos, pelo seu m in istério
sagrado, ou por qu alqu er ou tra razão, seja ela qu al for,
ju lgam ter u m lu gar m arcado à m esa do ban qu ete.
“Porqu e vos declaro qu e n en h u m daqu eles h om en s qu e
foram con vidados provará a m in h a ceia.” (Lu cas 14:24.)
Porque “está pron ta a festa, m as os con vidados n ão
eram dignos”. (Mateus 22:8.)
Prof. Edward D. O'Connor, C.S.C.
Universidade de Notre Dame
Estados Unidos
Capítulo 1
NNIINNGGUUÉÉMM MMEE QQUUEERR
“SEGUREM ESSE GAROTO MALUCO!” gritou
alguém.
A porta do qu adrim otor da Pan Am erican m al
acabara de se abrir, e eu já m e precipitava escada
abaixo, em direção ao prédio do Aeroporto Idlewild, em
Nova York. Estávam os a 4 de jan eiro de 1955, e o ven to
frio fazia arder minhas faces.
Algu m as h oras an tes, m eu pai m e colocara n o
avião em San J u an : u m rapazin h o porto-riquenho,
rebelde e am argu rado. Fora en tregu e aos cu idados do
piloto; h aviam -m e recom en dado qu e perm an ecesse n o
avião até a ch egada de m eu irm ão, Fran k. Porém,
qu an do a porta abriu , fu i o prim eiro a sair, corren do
selvagemente pela pista de concreto.
Três fu n cion ários do aeroporto se aproxim aram de
m im , cercan do-m e, em pu rran do-m e con tra a cerca de
correntes de aço, ao lado do portão. O ven to cortan te
zu n ia através da m in h a rou pa tropical e leve, en qu an to
eu procu rava escapar. Um policial agarrou -m e pelo
braço, e os fu n cion ários voltaram ao seu trabalh o. Para
m im aqu ilo era u m a brin cadeira; olh ei para o gu arda e
sorri.
“Porto-riqu en h o lou co! Qu e diabo você preten de
fazer?”
Meu sorriso su m iu qu an do n otei ódio em su a voz.
Su as boch ech as gordas estavam verm elh as de frio, e os
olh os lacrim ejavam devido ao ven to. Um toco de cigarro
apagado estava esqu ecido en tre seu s lábios balofos.
Ódio! Sen ti-o circu lar por todo o m eu corpo. O m esm o
ódio qu e eu tivera con tra m eu pai e m in h a m ãe, con tra
m eu s professores e os gu ardas em Porto Rico. ódio!
Ten tei libertar-m e, m as ele m e pren deu com u m a férrea
chave de braço.
“Venh a, garoto, vam os voltar ao avião.” Olh ei para
ele e dei uma cusparada.
“Porco!” rosn ou . “Porco su jo!” Ele afrou xou a
pressão sobre o meu braço e tentou segurar-me por trás,
pela gola do casaco. Mergu lh an do por baixo do seu
braço, deslizei pelo portão aberto qu e levava para o
edifício do aeroporto.
Atrás de m im , ou vi gritos e pisadas rápidas. Corri
pelo lon go corredor desvian do-m e, à esqu erda e à direita
das pessoas qu e se dirigiam aos aviões. De repen te,
achei-m e em u m gran de salão. Descobrin do u m a porta
de saída, zuni pelo salão e saí para a rua.
Um gran de ôn ibu s estava parado ju n to ao m eio-
fio, com a porta aberta e o m otor ligado. A fila estava
en tran do. Com algu m as em pu rradas, con segu i en trar
tam bém . O m otorista m e agarrou pelo om bro e pediu o
dinheiro da passagem . En colh i os om bros e respon di-lhe
em espan h ol. Ele m e pôs para fora rispidam en te,
ocu pado dem ais para perder tem po com u m rapazin h o
tolo qu e m al com preen dia in glês. Qu an do ele desviou a
aten ção para u m a sen h ora qu e estava rem exen do n a
bolsa, baixei a cabeça e esgu eirei-m e por detrás dela,
atravessei a porta e pen etrei n o ôn ibu s lotado. Dan do
u m a olh adela por sobre o om bro, para ter a certeza de
que ele não me vira, dirigi-me à parte traseira do ônibus,
e sentei-me junto a uma janela.
Qu an do o coletivo deu a partida, vi o gu arda
gordu ch o e m ais dois soldados sair ofegan tes pela porta
lateral do aeroporto, e olh ar em todas as direções. Não
pude resistir à tentação de bater na vidraça, acenar para
eles e sorrir através do vidro.
Afu n dan do n o ban co, apoiei os joelh os n as costas
do assen to da fren te e apertei o n ariz con tra o vidro frio
e sujo da janela.
O ôn ibu s atravessou com dificu ldade o tráfego
in ten so de Nova York, em direção ao cen tro da cidade.
Lá fora h avia n eve e lam a pelas ru as e calçadas. Eu
sem pre im agin ara qu e a n eve era bran ca e bon ita, com o
n os con tos de fadas. Mas aqu ela era parda, com o
m in gau su jo. Min h a respiração em baçou a vidraça.
Afastei-m e u m pou co e passei o dedo n ela. Era u m
m u n do diferen te, in teiram en te diferen te do qu e eu
acabara de abandonar.
Min h a m en te voltou ao dia an terior, qu an do eu
parara n o m orro dian te de m in h a casa. Lem brei-m e da
gram a verde qu e m eu s pés am assavam , salpicada dos
pon tin h os de cor clara, das pequ en in as flores
cam pestres. O cam po descia n u m declive su ave, até a
vila, lá em baixo. Lem brei-m e da brisa fresca qu e
soprava con tra m in h a face, e do calor do sol em m inhas
costas bronzeadas e nuas.
Porto Rico é u m a bela terra de sol e de crian ças
descalças. É u m a terra em qu e os h om en s n ão u sam
camisa, e as m u lh eres cam in h am pregu içosam en te sob
u m sol cau stican te. Os son s dos tam bores de aço e das
gu itarras ou vem -se n oite e dia. É u m a terra de can tigas,
flores, crianças sorridentes e água azul refulgente.
Mas é também uma terra de feitiçaria e macumba,
de su perstição religiosa e de m u ita ign orân cia. De n oite,
os son s dos tam bores da m acu m ba ressoam n as
m on tan h as cobertas de palm eiras, en qu an to feiticeiros
exercem o seu ofício, oferecen do sacrifícios e dan çan do
com serpentes à luz de fogueiras bruxuleantes.
Meu s pais eram espíritas. Gan h avam a vida ex-
pu lsan do dem ôn ios e estabelecen do u m su posto con tato
com espíritos de mortos. Papai era um dos homens mais
tem idos da ilh a. Com m ais de l,80m de altu ra, seu s
en orm es om bros en cu rvados h aviam levado os ilh éu s a
se referirem a ele com o “O Gran de” Ele fora ferido
du ran te a Segu n da Gu erra Mu n dial e recebia u m a
pen são do govern o. Mas, com o h avia dezessete m en in os
e u m a m en in a n a fam ília, depois da gu erra ele recorreu
ao espiritismo para ganhar a vida.
Mam ãe trabalh ava com papai com o “médium”.
Nossa casa era sede de toda sorte de reu n iões de
m acu m ba, sessões e feitiçaria. Cen ten as de pessoas
vin h am de toda a ilh a para participar das sessões
espíritas.
Nossa casa en orm e, n o alto da colin a, era ligada
por u m a trilh a sin u osa e estreita à pequ en a vila m o-
dorren ta de Las Piedras, escon dida n o vale, lá em baixo.
Os aldeões su biam pela trilh a a qu alqu er h ora do dia ou
da n oite, para ir à “Casa do Feiticeiro”. Eles ten tavam
falar com espíritos dos m ortos, tomavam parte em atos
de feitiçaria, e pediam a papai para libertá-los de
demônios.
Papai era o ch efe m as h avia ou tros m édiu n s qu e
se u tilizavam de n ossa casa para sede de su as ati-
vidades. Algu n s perm an eciam ali sem an as segu idas, às
vezes in vocan do espíritos, às vezes expu lsan do
demônios.
Havia u m a m esa com prida n a sala da fren te, ao
redor da qu al o povo se assen tava, qu an do estava
ten tan do se com u n icar com os espíritos dos m ortos.
Papai era m u ito en ten dido n o assu n to, e tin h a u m a
biblioteca de m agia e espiritism o, sem igu al, n aqu ela
parte da ilha.
Certa m an h ã, dois h om en s trou xeram u m a se-
n h ora pertu rbada à n ossa casa. Eu e m eu irm ão Gen e
esgueiramo-n os da cam a, olh am os por u m a fresta da
porta, e vim os qu an do eles a esten deram sobre a m esa
gran de. O seu corpo trem ia e gem idos escapavam de
seu s lábios; os h om en s se postaram u m de cada lado da
m esa, segu ran do-a. Mam ãe ficou aos pés dela, com os
olh os ergu idos para o teto, repetin do palavras
estran h as. Papai foi à cozin h a e voltou com u m a
pequ en a u rn a preta ch eia de in cen so a fu m egar. Trazia
tam bém u m gran de sapo qu e colocou sobre o estôm ago
agitado da m u lh er. Depois, su spen den do a u rn a sobre a
cabeça dela, aspergiu pó de in cen so sobre seu corpo
convulso.
Nós trem íam os de m edo; ele m an dou qu e os es-
píritos m au s saíssem da m u lh er e en trassem n o sapo.
De repen te, a m u lh er jogou a cabeça para trás e soltou
u m grito agu do. O sapo saltou do seu estôm ago e
espatifou-se con tra a soleira da porta. Im ediatam en te,
ela com eçou a dar pon tapés e, sacudindo-se, libertou -se
dos h om en s qu e a segu ravam , rolou da m esa e caiu
pesadam en te n o ch ão. Picou baban do e m orden do a
lín gu a e os lábios; san gu e m istu rado com espu m a
escorria pelos cantos de sua boca.
Mais tarde aqu ietou -se e ficou im óvel. Papai de-
clarou qu e ela estava cu rada e os h om en s lh e deram
din h eiro. Eles pegaram o corpo in con scien te e se foram ,
agradecen do a papai e ch am an do-o repetidam en te de
“Grande Milagreiro”.
Min h a in fân cia foi ch eia de tem or e sobressaltos.
O fato de sermos uma família grande significava que mui
pou ca aten ção era dada in dividu alm en te a cada filh o.
Eu tin h a raiva de papai e m am ãe, e tin h a m edo da
macumba que era realizada todas as noites.
No verão anterior à época que eu devia entrar para
a escola papai tran cou -m e, u m dia, n o pom bal. J á era
noite e ele m e apan h ara rou ban do din h eiro da bolsa de
m am ãe. Procu rei correr, m as ele esticou o braço e m e
agarrou pela n u ca: “Não adian ta correr, m olequ e. Você
roubou; agora vai me pagar.”
“Eu te odeio”, gritei.
Ele m e levan tou do ch ão, sacu din do m e dian te de
si “Vou en sin á-lo a falar assim com seu pai”, disse en tre
den tes. Colocan do-m e debaixo do braço com o se eu
fosse u m saco de farin h a, atravessou o qu in tal escu ro,
dirigindo-se ao pombal. Escutei o ruído de suas mãos ao
abrir a porta. “Para dentro”, rosnou ele. “Você vai ficar aí
com os pombos, até aprender.”
Atirou-m e porta aden tro, e fech ou -a atrás de m im ,
deixando-m e em total escu ridão. Ou vi o trin co sen do
colocado no lugar, e a voz de papai, abafada, através das
fen das da parede: “E n ada de jan tar.” Ou vi seu s passos
se diminuindo na distância, de volta para casa.
Eu estava petrificado de terror. Martelava a porta
com os pu n h os. Ch u tava-a fren eticam en te, gritan do e
chorando. De repente, a casinhola encheu-se do barulho
de asas: os pássaros, assu stados, h aviam acordado;
repetidas vezes, ch ocaram -se con tra o m eu corpo.
Apertei as m ãos con tra o rosto e gritei h istericam en te,
en qu an to as pom bas se arrem etiam con tra as paredes, e
bicavam ferozm en te m eu rosto e pescoço. Caí atu rdido
n o ch ão im u n do, e en terrei a cabeça n os braços,
ten tan do proteger os olh os e tapar os ou vidos para n ão
ou vir o som das asas qu e volteavam sobre m in h a
cabeça.
Parecia qu e u m a etern idade se passara, qu an do a
porta abriu , e papai m e fez ficar de pé e arrastou -me
para o qu in tal. “Da próxim a vez, você vai lem brar-se de
n ão rou bar e de n ão respon der com in solên cia qu an do
for apan h ado”, disse ele asperam en te: “Agora, tom e u m
banho e vá para a cama.”
Ch orei n aqu ela n oite até dorm ir; depois, son h ei
com pássaros esvoaçan tes qu e se ch ocavam con tra m eu
corpo.
Meu s ressen tim en tos con tra papai e m am ãe rea-
vivaram-se n o an o segu in te, qu an do en trei para a
escola. Eu odiava qu alqu er au toridade. Mais tarde,
qu an do já tin h a oito an os, rebelei-m e de u m a vez con tra
m eu s pais. Foi em u m a tarde qu en te de verão. Mam ãe e
vários ou tros “médiuns” estavam sen tados à gran de
m esa da sala, tom an do café. Eu m e can sara de brin car
com m eu irm ão e en trara n a sala, brin can do com u m a
pequ en a bola, baten do-a n o assoalh o. Um dos m édiu n s
disse à m am ãe: “O Nicky é u m m en in o bon ito. Parece
com você. Deve orgulhar-se dele.”
Mam ãe olh ou séria para m im e com eçou a ba-
lançar-se n a cadeira, para a fren te e para trás. Seu s
olh os reviraram , a pon to de aparecer som en te o bran co.
Esten deu os braços para a fren te, sobre a m esa. Seu s
dedos ficaram du ros e trem iam e ela levan tou
vagarosam en te os braços sobre a cabeça e com eçou a
falar em tom de can toch ão: “Este... n ão... m eu ... filh o.
Não, Nicky n ão. Ele n u n ca foi m eu . Ele é filh o do m aior
de todos os bru xos. Lú cifer. Não, m eu n ão... n ão, m eu
não... Pilho de Satanás, filho do diabo.”
Larguei a bola, que rolou pela sala afora. Encostei-
m e à parede, e m am ãe con tin u ou em tran se; su a voz se
levan tava e baixava, en qu an to ela falava com o em
responso: “Não, m eu n ão, n ão, m eu , n ão... a m ão de
Lú cifer sobre a su a vida... o dedo de Satan ás está n a
su a vida... o dedo de Satan ás toca n a su a alm a... a
m arca da besta n o seu coração... Não, m eu n ão, m eu
não.”
Observei qu e lágrim as corriam pelas su as faces.
De repen te, voltou -se para m im com os olh os ar-
regalados e gritou com voz esgan içada: “Sai, DIABO!
Para lon ge de m im . Deixa-m e, DIABO! Lon ge! Lon ge!
Longe!”
Eu estava petrificado de terror. Corri para o m eu
qu arto e jogu ei-m e sobre a cam a. Pen sam en tos
passavam pela m in h a m en te com o rios can alizados em
u m a gargan ta estreita. “Não sou filh o dela... filh o de
Satan ás... ela n ão m e am a... Nin gu ém m e qu er.
Ninguém me quer.”
En tão as lágrim as vieram , e eu com ecei a ch orar e
a solu çar. A dor qu e sen tia n o peito era in su portável, e
esmurrei a cama até ficar exausto.
O velh o ódio se agitou den tro de m im , a con su mir
m in h a alm a, com o a on da da m aré avan ça sobre u m
recife de coral. Sen ti qu e odiava m in h a m ãe. Pu xa, com o
a odiava! Eu qu eria feri-la, tortu rá-la, vin gar-me.
Empurrei a porta e saí correndo e gritando até a sala. Os
m édiu n s ain da estavam ali com m am ãe. Esm u rrei a
m esa e gritei. Estava tão fru strado pelo ódio qu e
gaguejava e as palavras não saíam direito: “Eu — eu... t-
te o-o-odeio.” Apon tava u m dedo trêm u lo para m in h a
mãe e gritava: “Vo-vo-você me paga. Você me paga.”
Dois de m eu s irm ãos m ais n ovos estavam à porta
olh an do, cu riosos. Em pu rrei-os para o lado e corri para
os fu n dos da casa. Mergu lh an do escada abaixo, virei-me
e arrastei-m e para baixo da varan da e ch egu ei ao can to
escu ro e frio on de eu sem pre m e escon dia. Abaixado sob
a escada, no meio daquela poeira seca, ouvi as mulheres
rin do e m ais alta do qu e as ou tras, a voz de m in h a m ãe
ecoan do através do assoalh o rach ado: “Viram , eu bem
disse que ele é filho de Satanás.”
Com o sen ti ódio dela. Qu eria destru í-la, m as n ão
sabia com o. Esm u rran do a poeira, gritei de desespero,
m eu corpo sacu din do-se em solu ços, con vu lsivos. “Eu te
odeio. Eu te odeio. Eu te odeio”, gritei. Mas n in gu ém m e
ou viu . Nin gu ém se im portou . No m eu desespero pegava
mancheias de pó e atirava fu riosam en te em todas as
direções. A poeira assen tava em m eu rosto
transformando-se em pequ en os riach os su jos ao
misturar-se com as lágrimas.
Mais tarde o fren esi acalm ou -se e fiqu ei em si-
lên cio. Ou vi as crian ças brin can do n o qu in tal. Um
garoto estava can tan do u m a m ú sica qu e falava de
passarin h os e borboletas m as eu m e sen tia isolado,
solitário... Tortu rado pelo ódio e pela persegu ição e
obcecado pelo m edo. Ou vi a porta do pom bal fech ar-se e
as ru idosas passadas de papai qu e vin h a dos fu n dos da
casa; ele com eçou a su bir os degrau s da escada.
Paran do, olh ou para as trevas, por en tre as rach adu ras
das tábu as dos degrau s. “O qu e está fazen do aí em
baixo, m en in o?” Fiqu ei em silên cio, com a esperan ça de
qu e n ão m e recon h ecesse. Ele en colh eu os om bros e
con tin u ou su bin do a escada, e en trou deixan do a porta
bater atrás de si. Ninguém me quer, pensei.
Ou vi m ais risadas den tro da casa, qu an do a voz
de baixo profu n do de m eu pai u n iu -se à das m u lh eres.
Eu sabia que eles ainda estavam rindo de mim.
On das de ódio m e in vadiram ou tra vez. Lágrimas
rolaram pelo m eu rosto, e com ecei a gritar de n ovo. “Eu
te odeio, m am ãe! Eu te odeio. Eu te odeio.” Min h a voz
ecoou no vácuo sob a casa.
Ch egan do a u m au ge de em oção, caí de costas n a
poeira, e rolei de um lado para o outro — a poeira cobria
m eu corpo. Exau sto, fech ei os olh os e ch orei, até cair
num sono agitado.
O sol já tin h a se escon dido n o m ar, qu an do des-
pertei e m e arrastei para fora, sain do de baixo da
varan da. A areia ain da ran gia em m eu s den tes, e o m eu
corpo estava coberto de su jeira. Os sapos coaxavam . Os
grilos can tavam . Eu sen tia o orvalh o ú m ido e frio sob
meus pés descalços.
Papai abriu a porta dos fu n dos, e u m jato de lu z
am arela projetou -se on de m e ach ava, ao pé da escada.
“Porco!” gritou ele. “O qu e você estava fazen do tan to
tem po debaixo da casa? Veja com o está. Não qu erem os
porcos por aqui. Vá se lavar e venha jantar.”
Obedeci. Porém , m editan do en qu an to m e lavava
debaixo da bica, ch egu ei à con clu são de qu e h averia de
odiar etern am en te. Com preen di qu e n u n ca m ais am aria
de n ovo .. a n in gu ém . E n u n ca m ais ch oraria... n u n ca.
Medo, su jeira e ódio para o filh o de Satan ás. Foi qu an do
comecei a fugir.
Mu itas fam ílias porto-riqu en h as têm o costu m e de
m an dar seu s filh os para Nova York, qu an do estes
alcan çam idade su ficien te para cu idar de si. Seis dos
m eu s irm ãos m ais velh os já h aviam deixado a ilh a,
mudando-se para Nova York. Todos estavam casados e
procurando construir vida nova.
Eu , porém , era m u ito n ovo para ir. Não obstan te,
n os cin co an os segu in tes m eu s pais ch egaram à
con clu são de qu e n ão era possível qu e eu perm an ecesse
em Porto Rico. Torn ara-m e rebelde n a escola. Estava
sem pre procu ran do briga, prin cipalm en te com crian ças
m en ores do qu e eu . Um dia atirei u m a pedra n a cabeça
de u m a m en in a. Fiqu ei olh an do, com u m sen tim en to de
prazer, o san gu e qu e gotejava através de seu cabelo. A
menina estava gritando e chorando, e eu ali, rindo.
Meu pai esbofeteou -m e aqu ela n oite até m in h a
boca sangrar. “Sangue por sangue”, gritou ele.
Com prei u m a espingarda “pica-pau” para m atar
passarin h os. Mas, para m im , m atá-los n ão era o
suficiente. Gostava de mutilar seus corpos. Meus irmãos
se afastavam de mim, por causa do meu estranho desejo
de ver sangue.
Qu an do estava n o oitavo an o, tive u m a briga com
o professor de artes m an u ais. Era u m h om em alto e
m agro qu e gostava de assobiar para as m oças. Um dia,
na classe, eu o chamei de “negro”. A sala ficou silenciosa
e os ou tros rapazes se esgu eiraram para trás das
máquinas da oficina, sentindo a tensão no ar.
O professor cam in h ou pela classe, até o lu gar
on de eu estava, ao lado de u m torn o. “Sabe o qu e m ais,
rapaz? Você é pretensioso.”
Respon di com in solên cia: “Descu lpe, n egro, eu
acho que não sou.”
An tes qu e pu desse safar-m e, ele m e bateu com o
lon go braço ossu do e sen ti a carn e dos m eu s lábios
esmagar-se con tra os den tes com a violên cia do golpe.
Sen ti o gosto do san gu e qu e escorria pela m in h a boca e
pelo meu queixo.
Avan cei para ele, bran din do os braços. O pro-
fessor era u m h om em feito en qu an to eu pesava m enos
de cin qü en ta qu ilos. Eu estava ch eio de ódio e a vista do
sangue fez-me explodir. Esticando os braços e colocando
as m ãos con tra a m in h a testa ele m e con servou à
distância, enquanto eu dava murros no ar.
Com preen den do a in u tilidade dos m eu s esforços,
fugi. “Você vai ver, n egro”, gritei. “Vou à polícia. Espera
para ver.” Saí correndo da sala de aula.
Ele correu atrás de m im , ch am an do-me: “Espere.
Eu sinto muito.” Mas, não voltei.
Não fui à polícia. Em lugar disso, dirigi-me a papai
e lh e disse qu e o professor ten tara m e m atar. Ele ficou
fu rioso. Correu ao qu arto e depois saiu com su a en orm e
pistola n o cin to. “Vam os garoto. Vou m atar u m
valentão.”
Voltam os à escola. Eu tin h a dificu ldade em
acom pan h ar os passos lon gos de papai e qu ase pre-
cisava correr para alcançá-lo. Meu coração saltava ao
pen sar n a sen sação de ver aqu ele professor alto
encolher-se de medo sob a fúria de meu pai.
Mas, o professor n ão estava n a sala de au la.
“Espera aqu i, m en in o”, disse papai. “Eu vou con versar
com o diretor, e resolver isto.” Senti medo, mas esperei.
Papai dem orou m u ito tem po n o escritório do
diretor. Qu an do saiu , cam in h ou depressa em m in h a
direção, e m e sacu diu pelo braço. “Mu ito bem , rapaz,
você tem algumas explicações a dar. Vamos para casa.”
Voltam os de n ovo através da pequ en a vila, e pela
trilh a sin u osa, até em casa. Ele m e pu xava atrás de si,
preso pelo braço. “Men tiroso su jo”, disse-m e já defron te
da casa. Levan tou a m ão para esbofetear-m e, m as
con segu i sair fora do seu alcan ce, e corri ladeira abaixo.
“Está certo... Fu ja, m olequ e!” gritou . “Você h á de voltar
para casa e quando voltar, eu vou lhe mostrar...”
Voltei para casa; mas só três dias depois. A polícia
pegou-m e an dan do n a beira de u m a estrada qu e levava
às m on tan h as, n o in terior. Rogu ei-lh es qu e m e
soltassem, m as devolveram -m e ao m eu pai. E ele
cumpriu a sua promessa.
Eu sabia qu e precisava fu gir ou tra vez. E m ais
ou tra. Fu giria para tão lon ge qu e n in gu ém seria capaz
de m e trazer de volta. Nos dois an os qu e se seguiram,
fugi cinco vezes. Todas as vezes a polícia me encontrou e
m e levou de volta para casa. Fin alm en te, sem m ais
esperan ça, papai e m am ãe escreveram para m eu irm ão
Fran k, pergu n tan do-lh e se poderia receber-m e para
m orar em su a com pan h ia. Fran k con cordou , e eles
traçaram os planos para a minha ida.
Na m an h ã em qu e viajei, as crian ças se
en fileiraram n a varan da à fren te da casa. Mam ãe m e
apertou ao peito. Havia lágrim as em seu s olh os qu an do
ela ten tou falar, porém n ão saiu palavra n en h u m a. Eu
n ão tin h a por ela sen tim en to de qu alqu er espécie.
Pegan do m in h a pequ en a m ala, virei as costas,
carran cu do, e dirigi-m e à velh a cam in h on eta on de papai
me esperava. Não olhei para trás.
Levam os qu aren ta e cin co m in u tos para ch egar ao
aeroporto de San J u an , on de papai m e deu a passagem
e en fiou em m in h a m ão u m a n ota de dez dólares
dobrada. “Telefon e para Fran k logo qu e ch egar a Nova
York”, disse ele. “O piloto vai tom ar con ta de você até ele
chegar.”
Ficou de pé olh an do para m im du ran te lon go
tem po, bem m ais alto do qu e eu , en qu an to u m cach o do
seu cabelo grisalh o e on du lado era agitado pela brisa
qu en te. É provável qu e eu parecesse pequ en o e patético
a seu s olh os, parado ali n a estrada, com a m aleta n a
m ão. Seu s lábios trem eram qu an do esten deu a m ão
para apertar a m in h a. En tão, repen tin am en te, en volveu -
me em seu s lon gos braços e apertou o m eu corpo m agro
contra o seu.
Escutei-o solu çar só u m a vez: “Hijo m io”
(filho meu).
Soltando-m e, ele disse rapidam en te: “Seja u m
bom m en in o, passarin h o.” Virei-m e, e saí corren do;
galgu ei as escadas do en orm e avião, e sen tei-m e ju n to a
uma janela.
Lá fora vi a figura magra e solitária de meu pai, “O
Grande”, en costado n a cerca. Ele levan tou a m ão u m a
vez, com o se fosse acen ar, m as pareceu en vergonhar-se,
e voltou , an dan do depressa, para ju n to da velh a
caminhoneta.
Por que será que ele me chamara de “passarinho”?
Recordei o m om en to qu an do, m u itos an os atrás,
sen tado n os degrau s da gran de varan da, papai m e
chamara daquela forma.
Estava sen tado em u m a cadeira de balan ço, fu -
m an do o seu cach im bo, qu an do m e con tou a len da de
u m pássaro qu e n ão tin h a pés, e por isso voava
con tin u am en te. Papai olh ou -m e som brio, e disse: “Esse
passarin h o é você, Nicky. Você n ão tem descan so. Com o
u m passarin h o, você está sem pre fu gindo.” Men eou a
cabeça vagarosamente, e levantou os olhos para os céus,
sopran do fu m aça n as trepadeiras, qu e su biam até o
telhado da varanda.
“Esse passarin h o é pequ en in o e m u ito leve. Não
pesa m ais do qu e u m a pen a. Ele é levado pelas cor-
ren tes de ar, e dorm e ao ven to. Está sem pre fu gin do.
Fu gin do de gaviões, de águ ias, de coru jas. Aves de
rapin a. Ele se escon de colocan do-se en tre elas e o sol.
Se elas voarem acim a dele, poderão vê-lo, em con traste
com a terra escu ra. Mas as su as pequ en as asas são
tran sparen tes, com o a águ a clara da lagoa. En qu an to
ele perm an ece n o alto, elas n ão con segu em vê-lo, e
assim ele nunca descansa.”
Papai recostou -se e soltou u m a baforada de fu -
maça azul. “Mas, como é que ele come?” perguntei.
“Ele com e ao ven to”, respon deu papai. Falava
vagarosam en te, com o se tivesse visto a avezin h a. “Ele
apan h a in setos e borboletas. Não tem pern as... n em
pés... está sempre se movendo.”
Fiqu ei fascin ado com a estória. “E n os dias ch u -
vosos?” perguntei-lhe. “O qu e acon tece qu an do o sol n ão
brilh a? Com o é, en tão, qu e ele escapa dos seu s
inimigos?”
“Nos dias feios, Nicky”, disse papai, “ele voa tão
alto qu e n in gu ém pode vê-lo. A ú n ica h ora em qu e pára
de voar — o ú n ico m om en to em qu e pára de fu gir — a
ú n ica vez qu e vem à terra — é qu an do m orre. Pois, u m a
vez que toca o solo, não pode mais fugir”
Papai m e deu u m tapin h a n o traseiro e m e tocou
de casa. “Vá agora, passarin h o. Fu ja, voe. Seu pai o
chamará quando já não for hora de correr.”
Literalmente voei pelo campo gramado, batendo os
braços com o u m pássaro qu e ten tasse alçar vôo.
Con tu do, por algu m a razão, parece qu e n ão con seguia
ganhar suficiente velocidade para subir.
Os m otores do avião tossiram , soltaram fu m aça
n egra, e en traram em fu n cion am en to. Fin alm en te, eu ia
voar. Estava a caminho...
O ôn ibu s parou . Lá fora, as lu zes brilh an tes e os
an ú n cios lu m in osos m u lticoloridos acen diam e
apagavam n a pen u m bra fria. Um h om em qu e estava do
ou tro lado levan tou -se para descer. Segu i-o até a porta,
e saím os. As portas se fech aram atrás de m im , e o
ôn ibu s partiu . Fiqu ei ali n a calçada... sozin h o n o m eio
de oito milhões de pessoas.
Apan h ei u m pu n h ado de n eve su ja e tirei a crosta
qu e a cobria. Ali estava: n eve pu ra e brilh an te. Desejei
colocá-la n a boca e com ê-la Porém , ao olh ar bem ,
pequ en as m an ch as n egras com eçaram a aparecer n a
su perfície. Com preen di qu e o ar estava ch eio de fu ligem
das ch am in és e qu e a n eve estava tom an do o aspecto de
queijo fresco pulverizado com pimenta-do-reino.
J ogu ei a n eve para o lado. Não fazia diferen ça. Eu
estava livre.
Vagu eei pela cidade dois dias. En con trei u m ca-
saco velh o jogado em u m a lata de lixo. As m an gas
cobriam as m in h as m ãos, e a barra varria a calçada. Os
botões tin h am sido arran cados e os bolsos rasgados,
m as ele m e aqu ecia. Aqu ela n oite eu dorm i n o m etrô,
encolhido em um banco.
No fim do segu n do dia, m eu en tu siasm o esfriara .
Eu estava com fom e... e com frio. Em du as ocasiões,
ten tei falar com algu ém , pedin do aju da. O prim eiro
h om em sim plesm en te ign orou -m e. Con tin u ou an dan do,
com o se eu n ão estivesse ali. O segu n do em pu rrou -me
con tra a parede: “Caia fora, seu . Não pon h a essas m ãos
gordu ren tas em m im .” Piqu ei com m edo. Ten tava
im pedir qu e o pân ico su bisse do estôm ago para a
garganta.
Naqu ela n oite, percorri de n ovo as ru as da cidade,
o paletó com prido varren do a calçada e a pequ en a m ala
segu ra firm em en te em m in h a m ão. Pessoas passavam
por m im , e m e olh avam , m as n in gu ém parecia im portar-
se comigo. Apenas olhavam e continuavam andando.
Nessa m esm a n oite gastei os dez dólares qu e
papai m e dera. En trei em u m pequ en o restau ran te e
pedi u m cach orro-qu en te, apon tan do para a figu ra de
u m , qu e estava depen du rada acim a do balcão. En goli-o
sofregam en te e in diqu ei qu e desejava ou tro. O h om em
sacu diu a cabeça n egativam en te e esten deu a m ão.
En fiei a m ão n o bolso e tirei a n ota am arfan h ada.
Lim pan do as m ãos em u m a toalh a, ele abriu a n ota,
alisou-a, e m eteu -a n o bolso do aven tal su jo. Trou xe-me
en tão ou tro cach orro-qu en te e u m a terrin a de feijão com
carn e. Qu an do term in ei, procu rei-o, m as ele h avia
desaparecido n a cozin h a. Pegu ei a m ala e voltei para a
ru a fria. Acabara de ter m eu prim eiro en con tro com a
esperteza am erican a. Com o iria saber qu e u m cach orro-
quente americano não custa cinco dólares?
Descen do a ru a, parei em fren te a u m a igreja. Um
pesado portão de ferro, tran cado com u m cadeado, fora
colocado dian te das portas. Parei dian te do gran de
edifício de pedra cin zen ta e observei a torre qu e
apon tava para o céu . As frias paredes de pedra e os
escu ros vitrais estavam fora do m eu alcan ce, protegidos
pela cerca de ferro. A estátu a de u m h om em de rosto
sim pático e olh os tristes espiava através do portão
fech ado. Os seu s braços estavam esten didos e cobertos
de n eve, m as ele estava tran cado lá den tro, e eu aqu i
fora.
Arrastei-m e ru a abaixo... an dan do... an dan do sem
parar.
O pân ico voltava fu rtivam en te. Era qu ase m eia-
n oite, e eu trem ia n ão só de frio, m as tam bém de m edo.
Tin h a esperan ça de qu e algu ém parasse e m e
pergu n tasse em qu e poderia m e aju dar. Nem sei o qu e
teria dito, se algu ém parasse e oferecesse aju da. Mas eu
me sentia sozinho, com medo, e perdido...
A m u ltidão apressada foi em bora e m e deixou .
Nu n ca pen sei qu e u m a pessoa pu desse sen tir solidão n o
m eio de u m m ilh ão de pessoas. Para m im , solidão era
perder-se n a floresta ou em u m a ilh a deserta. Porém ,
essa era a pior das solidões. Vi pessoas bem vestidas,
voltan do do teatro para su as casas... velh os ven den do
jorn ais e fru tas em pequ en as ban cas qu e ficavam
abertas a n oite toda... policiais patru lh an do, aos pares...
calçadas ch eias de pessoas apressadas. Ao olh ar para
seu s rostos, elas tam bém pareciam solitárias. Nin guém
ria. Ninguém de rosto alegre. Todos apressados.
Sentei-m e n a calçada e abri m in h a pequ en a m ala.
En con trei u m pedaço de papel dobrado, com o n ú m ero
do telefon e de Fran k, escrito por m am ãe. De repen te,
sen ti algo em pu rran do-m e por trás. Era u m cach orro
velh o, felpu do qu e en costava o focin h o n o en orm e
casaco qu e cobria m eu corpo m agro. Rodeei seu pescoço
com o braço, e pu xei-o para m im . Ele lam beu m eu rosto
e eu enterrei a cabeça no seu pelo sarnento.
Não sei qu an to tem po fiqu ei ali sen tado, trem en do
e afagan do o cão. Qu an do olh ei para cim a, vi os pés e
pernas de dois policiais uniformizados. As suas galochas
estavam m olh adas e su jas. O cach orro sarn en to
pressen tiu o perigo, e saiu corren do, desaparecendo
num beco.
Um dos gu ardas bateu n o m eu om bro com a
pon ta do cassetete. “O qu e é qu e você está fazen do aqu i
sen tado, n o m eio da n oite?” pergu n tou ele. A su a face
parecia estar cem qu ilôm etros acim a. Com dificu ldade
procu rei explicar, em m eu in glês de pé qu ebrado, qu e
estava perdido.
Um deles m u rm u rou algo para o ou tro, e se foi. O
qu e ficara ajoelh ou -se ao m eu lado, n a calçada su ja.
“Posso ajudá-lo, garoto?”
Acen ei qu e sim e tirei o pedaço de papel com o
n om e e n ú m ero do telefon e de Fran k. “Irmão”, disse-lhe,
mostrando o papel.
Ele sacudiu a cabeça ao olhar para a escrita quase
ilegível. “É aí que você mora, garoto?”
Eu n ão sabia respon der e apen as disse: “Irmão”.
Ele acen ou qu e sim , levan tou -m e pelo braço, e dirigim o-
n os a u m a cabin e telefôn ica atrás de u m a ban ca de
jorn ais. Pescou u m n íqu el n o bolso e discou o n ú m ero.
Qu an do a voz son olen ta de Fran k respon deu , ele m e
en tregou o fon e. Em m en os de u m a h ora eu estava a
salvo, no apartamento de meu irmão.
A sopa qu en te qu e tom ei já n a casa de Fran k
estava gostosa, e a cam a lim pa, deliciosa. Na m an h ã
seguin te Fran k m e con tou qu e eu deveria ficar com ele,
qu e ele cu idaria de m im e m e poria n a escola. Algo
den tro de m im , porém , m e dizia qu e eu n ão ficaria ali.
Começara a fugir, e agora nada me faria parar.
Capítulo 2
NNAA SS EELLVVAA DDOO QQUUAADDRROO--
NNEEGGRROO
FIQUEI DOIS MESES COM FRANK, apren den do a
m an obrar o in glês. Porém n ão era feliz, e as ten sões
internas estavam me perturbando muito.
Fran k, logo n a prim eira sem an a, m atricu lou -me
n o gin ásio. A escola era qu ase in teiram en te de n egros e
porto-riqu en h os. Era dirigida m ais com o u m
reform atório do qu e com o escola pú blica. Os professores
e adm in istradores passavam a m aior parte do tem po
tentando manter a disciplina, de forma que pouco tempo
restava para o en sin o. Era u m lu gar selvagem , ch eio de
brigas, de im oralidade e de con stan te batalh a con tra os
que tinham autoridade.
Todas as escolas do Brooklin têm represen tan tes
de pelo m en os du as ou três gan gs. Estas gan gs são
qu adrilh as form adas por rapazes e garotas qu e vivem
em u m certo bairro. Algu m as vezes as gan gs são
inimigas, o qu e in variavelm en te cria con flitos, qu an do
são colocadas na mesma sala de aula.
Aqu ilo era u m a experiên cia n ova para m im . Todo
dia n a escola tin h a de h aver u m a briga n os corredores
ou em u m a das salas de au la. Eu m e en costava à
parede, com m edo de qu e algu m dos rapazes m aiores
m e batesse. Depois da au la, sem pre h avia u m a briga n o
pátio, e alguém saía ferido e perdendo sangue.
Fran k costu m ava advertir-m e, para n ão an dar
pelas ru as à n oite. “As qu adrilh as, Nicky. As qu adrilhas
podem te m atar. Eles saem com o m atilh as de lobos,
du ran te a n oite, e m atam qu alqu er pessoa qu e n ão
conheçam.”
Ele m e recom en dou qu e viesse direto da escola
para casa, todas as tardes, e ficasse n o apartam en to, e
me conservasse à distância das gangs.
Logo fiqu ei saben do tam bém qu e as qu adrilh as
n ão eram a ú n ica coisa qu e eu deveria tem er. Havia
tam bém os “pequenos”. Eram terríveis m olequ es de n ove
e dez an os qu e peram bu lavam pelas ru as à tarde e à
n oitin h a, ou qu e brin cavam dian te dos pardieiros em
que moravam.
Tive m eu prim eiro en con tro com os “pequenos”
qu an do voltava da escola para casa certo dia, logo n a
prim eira sem an a. Um a gan g de cerca de dez m eninos
en tre oito e dez an os in vestiu con tra m im , sain do de u m
portão.
“Ei, garotos, olhem por onde andam.”
Um dos meninos deu um rodopio e disse: “Vá para
o inferno!”
Ou tro veio por trás e abaixou -se. An tes qu e m e
desse conta do que estava acontecendo, vi-me estatelado
de costas n a calçada. Ten tei levan tar-m e, m as u m dos
garotos agarrou m eu pé e com eçou a pu xar. Gritavam e
riam o tempo todo.
Perdi a calm a e dei u m soco n o qu e estava m ais
próxim o, jogan do-o n a calçada. Naqu ele m om en to, ou vi
u m a m u lh er gritar. Olh ei para cim a, e vi-a debru çada
n u m a jan ela n o qu arto an dar. “Afaste-se de m eu filh o,
porco nojento, ou eu te mato.”
Naquele m om en to, n ão h avia n ada qu e eu dese-
jasse mais do que afastar-me de seu filho. Mas os outros
m en in os estavam avan çan do. Um deles atirou u m a
garrafa de refrigeran te n a m in h a direção. Ela acertou n a
calçada, perto do m eu om bro, fazen do ch over vidro n o
meu rosto.
A m u lh er estava gritan do ain da m ais: “Não se
m eta com os m eu s m en in os! Socorro! Socorro! Ele está
matando meu filho!”
De repente, outra mulher apareceu em uma porta,
com u m a vassou ra n a m ão. Era gorda e bam boleava ao
correr; tin h a a cara m ais feia qu e eu já vi. Ela en trou n o
m eio da qu adrilh a de garotos, com a vassou ra levan tada
acim a de su a cabeça. Ten tei rolar n o ch ão, fu gin do dela,
m as era tarde — a vassou ra acertou em ch eio n as
minhas costas. Rolei de novo e ela me acertou no alto da
cabeça. Ela estava gritan do. Percebi en tão qu e várias
ou tras m u lh eres estavam debru çadas n as jan elas,
gritan do, e ch am an do a polícia. A m u lh er gorda m e
golpeou pela terceira vez, an tes qu e eu pu desse pôr-me
de pé e com eçar a correr. Ou vi-a dizer, atrás de m im :
“Se você aparecer por aqu i de n ovo, ju dian do de n ossas
crianças, nós te matamos.”
Na tarde segu in te, ao voltar da escola para casa,
escolhi um caminho diferente.
Um a sem an a m ais tarde tive o prim eiro en con tro
com u m a gan g. Voltava da escola e parara em u ma
praça para ver u m h om em qu e tin h a u m papagaio. Eu
estava dançando ao redor dele, rindo e conversando com
o pássaro, qu an do o h om em su bitam en te perdeu o
in teresse, apertou o papagaio con tra o peito e foi sain do.
Olh ei ao redor, e vi cerca de qu in ze rapazes n u m
sem icírcu lo em torn o de m im . Não eram “pequenos”. Ao
con trário, eram bem “grandes”, n a m aioria, m aiores do
que eu.
Rapidam en te form aram u m círcu lo pon do-m e n o
m eio e u m dos rapazes disse: “Ei, m olequ e, de qu e é qu e
você está rindo?”
Apon tei para o h om em do papagaio, qu e en tão
fu gia da praça. “Pu xa, eu estava rin do daqu ele papagaio
bacana.”
“Escu te, você m ora aqu i por perto?” pergu n tou o
rapaz, com olhar ameaçador.
Sen ti qu e algo estava errado, e com ecei a gagu ejar
u m pou co: “Eu-eu m oro com m eu irm ão, n o fim desta
rua.”
“Você pen sa qu e só porqu e m ora n o fim desta ru a,
pode en trar n a n ossa praça e rir com o u m a h ien a, h ein ?
É o qu e você pen sa? Não sabe qu e está n os dom ín ios
dos Bish ops, rapaz? Nós n ão perm itim os qu e estran h os
en trem em n ossos dom ín ios, prin cipalm en te paspalh os
que riem como hienas.”
Olh ei para eles, e percebi qu e falavam sério. An tes
qu e eu pu desse respon der, o rapaz de olh ar du ro tirou
u m a faca do bolso e, pression an do u m botão, abriu -a,
m ostran do u m a lâm in a relu zen te de dezessete
centímetros.
“Sabe o qu e vou fazer?” disse ele. “Vou cortar a
su a gargan ta e deixar você san grar, com o o an im al qu e
ri como você.”
“Ei, ra-ra-rapaz”, gagu ejei. “O qu e é qu e h á de
errado comigo? Por que é que você quer me esfaquear?”
“Porqu e n ão gosto da su a cara, só isso”, disse ele.
Apon tou a faca para o m eu estôm ago, e com eçou a
andar em minha direção.
“Vam os, paizin h o. Deixe-o. Esse m en in o acaba de
ch egar de Porto Rico. Não con h ece as regras”, falou
outro membro da quadrilha, um moreninho espigado.
“Certo, m as u m dia vai saber. E é m elh or qu e n ão
pise n o dom ín io dos Bish ops.” Com u m sorriso de
escárnio, ele recuou.
Viraram-se e foram em bora. Corri para o apar-
tamento e passei o resto da tarde pensando.
No dia segu in te, n a escola, algu n s m en in os ou -
viram falar do in ciden te da praça. Descobri qu e o rapaz
qu e tirara a faca ch am ava-se Roberto. Naqu ela tarde,
du ran te a au la de edu cação física, estávam os jogan do
beisebol. Roberto derru bou -m e de propósito. Todos os
outros meninos começaram a gritar:
“Dá nele, Nicky. Bate nele. Mostre que ele não é de
n ada, qu an do n ão está com u m a faca n a m ão. Vam os,
Nicky, nós estamos com você. Dá nele!';
“Está bem ”, disse eu , “vam os ver se você é bom de
briga.” Levantei-me e limpei a roupa.
Tomamos posição um diante do outro, e os demais
m en in os form aram u m gran de círcu lo à n ossa volta.
Ouvi-os gritar: “Lu tem ! Lu tem !” e percebi qu e o círcu lo
aumentava.
Roberto riu , porqu e eu tom ara a posição tradi-
cion al de pu gilista, com as m ãos dian te do rosto. El?
encurvou-se u m pou co e tam bém levan tou os pu n h os
fech ados, desajeitadam en te. Era óbvio qu e n ão estava
acostu m ado a lu tar daqu ela form a. Dan cei em direção a
ele, e an tes qu e pu desse m over-se, acertei-lh e u m soco
de esqu erda. O san gu e espirrou de seu n ariz e ele deu
u m passo para trás, olh an do-m e su rpreso. Avan cei de
novo.
De repen te, ele baixou a cabeça e carregou con tra
m im com o u m tou ro, acertan do-m e n o estôm ago e
jogando-m e de costas n o ch ão. Ten tei levan tar-m e, m as
ele m e ch u tou com seu s sapatos pon tu dos. Rolei para o
lado, e ele pu lou sobre m in h as costas e pu xou -m e a
cabeça para trás, en terran do deliberada-m en te os dedos
nos meus olhos.
Fiqu ei pen san do qu e os ou tros m en in os iriam m e
aju dar, ou pelo m en os apartar a briga, m as se lim itaram
a ficar ali, torcendo.
Eu n ão sabia brigar daqu ela form a. Todas as
m in h as brigas h aviam sido segu n do as regras do boxe,
m as pen sei qu e aqu ele rapaz iria m e m atar, se n ão
fizesse algo. Agarrei as su as m ãos e tirei-as dos m eu s
olh os, en terran do os m eu s den tes n o seu dedo. Ele
gritou de dor e saiu de cima de mim.
De u m pu lo fiqu ei de pé e tom ei n ovam en te po-
sição de pu gilista. Ele levan tou -se vagarosam en te,
segu ran do a m ão ferida. Dan cei em su a direção e
acertei-lh e dois socos de esqu erda n o rosto. Eu o ferira,
e avan cei para socá-lo de n ovo, qu an do ele m e agarrou
pela cin tu ra, pren den do m eu s braços ao lado do corpo.
Usan do a cabeça com o u m bate-estacas, ele com eçou a
dar-m e cabeçadas n o rosto. Meu n ariz com eçou a
san grar e fiqu ei cego de dor. Fin alm en te ele m e soltou e
m e deu dois socos, e eu caí n o pó do pátio da escola.
Sen ti qu e ele m e deu u m pon tapé, qu an do ch egou u m
professor que o afastou de mim.
Naqu ela n oite qu an do fu i para casa, Fran k gritou
comigo. “Eles vão m atar você, Nicky. Eu lh e disse para
ficar lon ge das qu adrilh as. Eles vão m atar você.” Min h a
face estava m u ito ferida e m eu n ariz parecia estar
quebrado. Eu sabia, porém, que daí para frente ninguém
m ais levaria van tagem sobre m im . Eu era capaz de lu tar
tão deslealm en te com o eles — e até m ais. Da próxim a
vez estaria preparado .
A “próxim a vez” foi várias sem an as m ais tarde. As
au las tin h am term in ado, e eu ia descen do pelo corredor,
em direção à porta. Percebi qu e algu n s alu n os estavam
m e segu in do. Dei u m a olh ada por sobre o om bro. Atrás
de m im h avia cin co garotos n egros e u m a m en in a. Sabia
qu e era com u m h aver brigas feias en tre rapazes porto-
riqu en h os e n egros. Com ecei a an dar m ais depressa,
mas percebi que eles também apressavam o passo.
Sain do pela porta, eu descia u m corredor qu e
dava para a ru a. Os garotos de cor m e cercaram , e u m
deles, u m gran dão, m e em pu rrou con tra a parede.
Derru bei os livros, e ou tro rapaz ch u tou -os corredor
abaixo, e eles caíram numa vala cheia de água suja.
Olh ei ao redor, porém n ão vi n in gu ém qu e pu -
desse ch am ar em m eu socorro. “O qu e você está fazen do
n estes dom ín ios, rapaz?” pergu n tou o gran dalhão. “Você
não sabe que isto aqui é nosso?”
“Essa n ão! Isto é dom ín io da escola. Não pertence
a quadrilha alguma”, disse eu.
“Não ban qu e o espertin h o com igo, m en in o, n ão
gosto de você.”
Colocou a m ão con tra o m eu peito e m e apertou
con tra a parede. Naqu ele m om en to ou vi u m cliqu e e
percebi que era o ruído de um canivete automático.
Qu ase todos os rapazes an davam com u m desses.
Eles preferiam u sar u m tipo de can ivete de pressão, qu e
é operado com o au xílio de u m a m ola. Qu an do u m
pequ en o botão de lado é apertado, a m ola solta-se e a
lâmina se abre.
O rapagão colocou a arm a con tra m eu peito,
pican do os botões da m in h a cam isa com a pon ta afiada
e fina.
“Olha o que vou fazer, espertinho”, disse ele. “Você
é n ovo n esta escola, e n ós fazem os todos os n ovatos n os
pagarem para receber proteção de n ós. É u m bom
n egócio. Você n os paga vin te e cin co cen tavos por dia e
nós garantimos que ninguém te amola.”
Um dos outros rapazes deu uma risadinha forçada
e disse: “Sim , m eu ch apa; da m esm a form a, n ós
garantimos que não amolamos você, também.”
Todos os outros rapazes riram.
En tão eu disse: “Ah , é? E qu em m e prova qu e
m esm o qu e eu dê vin te e cin co cen tavos para vocês
todos os dias, vocês não judiarão de mim?”
“Ningu ém prova, m en in o in teligen te. Você apenas
nos dá o dinheiro, de qualquer forma. Se não dá, morre”,
respondeu ele.
“Está bem . En tão é m elh or qu e vocês m e m atem
agora m esm o. Porqu e se vocês n ão m atarem , eu voltarei
m ais tarde e m atarei vocês u m por u m .” Pu de perceber
qu e os ou tros ficaram u m pou co am edron tados . O
rapagão qu e tin h a a faca con tra o m eu peito,
n atu ralm en te, pen sava qu e eu era destro. Por isso, n ão
esperava qu e fosse agarrá-lo com a m ão esqu erda. Torci
a su a m ão, afastan do-a do m eu peito, o fiz girar sobre si
mesmo e dobrei-lhe o braço por detrás das costas.
Ele deixou cair a faca e eu apan h ei-a do ch ão.
Senti-me bem como ela na mão. Coloquei-a contra a sua
gargan ta, pression an do-a a pon to de m arcar a pele, sem
furá-la.
Em pu rrei o seu rosto con tra a parede com a faca
n o lado da su a gargan ta, logo abaixo da orelh a. A
m ocin h a com eçou a gritar, com receio de qu e eu fosse
matá-lo.
Virei-m e para ela e disse: “Ei, bon eca, eu con h eço
você. Sei on de é a su a casa. Hoje à n oite vou até lá e te
mato; quer?”
Ela gritou m ais alto e agarrou o braço de u m dos
ou tros rapazes, com eçan do a pu xá-lo para lon ge: “Foge!
Foge!” gritava ela. “Esse cara é louco. Foge!”
Eles fu giram , in clu sive o rapagão qu e estivera
preso con tra a parede. Deixei qu e se fosse, saben do qu e
eles poderiam ter-me matado, se tivessem tentado.
Desci pela calçada até on de os livros estavam jo-
gados n a águ a. Apan h ei-os e sacu di-os. Ain da tin h a o
pu n h al n a m ão. Fiqu ei parado m u ito tem po, abrin do e
fech an do a lâm in a. Era o prim eiro “canivete de pressão”
qu e segu rava em m in h a m ão. Ach ei delicioso m an ejá-lo.
Deixei-o cair n o bolso do paletó e fu i para casa.
“Daqu ela h ora em dian te, seria m elh or qu e eles
pen sassem du as vezes an tes de se en roscarem com o
Nicky”, pensei.
Logo espalh ou -se o boato de qu e eu era terrível.
Aqu ilo fez de m im u m a isca atraen te para qu alqu er
rapaz qu e qu isesse brigar. Ch egu ei à con clu são de qu e
algo drástico acon teceria: era apen as u m a qu estão de
tempo. Mas, estava preparado.
A explosão fin al veio dois m eses depois de eu ter
com eçado a estu dar. A professora acabara de
estabelecer a ordem n a classe e estava fazen do a
ch am ada. Um rapaz de cor ch egou atrasado. Veio
gin gan do e tin h a u m sorriso cín ico n os lábios. Havia
u m a lin da garota porto-riqu en h a sen tada n a ú ltim a
fileira. Ele curvou-se e beijou-a no pescoço.
Ela afastou -se dele e sen tou -se ereta n a carteira.
Ele deu a volta e beijou -a n a boca; ao m esm o tem po
ten tan do acariciá-la. Ela pu lou do lu gar e com eçou a
gritar.
Os ou tros alu n os estavam rin do e gritan do: “Va-
mos, rapaz, larga brasa!”
Dei u m a olh adela para a professora. Ela pôs-se a
descer en tre as fileiras, m as u m latagão levan tou -se
dian te dela e disse: “Ora, professora, a sen h ora n ão vai
qu erer estragar a festa, vai?” A professora en carou o
rapaz qu e era m ais alto do qu e ela, e recu ou para a su a
mesa, enquanto a classe urrava, divertindo-se.
A esta altu ra, o rapaz tin h a a garota presa con tra
a parede, e ten tava beijar lh e a boca. Ela gritava e
tentava afastá-lo.
Ele fin alm en te desistiu e deixou -se cair pesada-
m ente no seu lugar.
A professora limpou a garganta e começou de novo
a fazer a chamada.
Algo estalara den tro de m im . Levan tei-m e da
carteira e dirigi-m e aos fu n dos da classe. A garota
sen tara de n ovo e solu çava, en qu an to a professora fazia
a chamada.
Cheguei por trás do rapaz, qu e agora estava
sen tado n a carteira, lim pan do as u n h as. Pegu ei u m a
pesada cadeira de m adeira qu e estava n o fim do cor-
redor e disse: “Ei, olh e, garotão, eu ten h o u m a coisa
para você.”
Qu an do ele virou -se para olh ar, dei-lh e u m a
cadeirada n o alto da cabeça. Ele afu n dou n a carteira,
en qu an to o san gu e escorria de u m profu n do corte n a
cabeça.
A professora saiu corren do da classe e voltou em
u m segu n do com o diretor. Ele agarrou -m e pelo braço e
m e em pu rrou corredor a fora, para seu escritório. Fiqu ei
sen tado lá en qu an to ele ch am ava u m a am bu lân cia, e
tom ava providên cias para qu e algu ém cu idasse do rapaz
ferido.
Virou-se para m im . Depois de dizer tu do o qu e
ou vira a m eu respeito, n os ú ltim os dois m eses, isto é, as
con fu sões em qu e eu estivera m etido, pediu -m e u m a
explicação do qu e acon tecera n a classe. Con tei-lhe
exatam en te o qu e h ou vera. Disse-lh e qu e o rapaz estava
se aproveitan do da garota porto-riqu en h a, e qu e a
professora n ada fizera para im pedi-lo. Por isso eu m e
colocara a seu lado.
En qu an to falava, pu de ver o seu rosto se aver-
m elh ar. Fin alm en te, ele se levan tou e disse: “Está bom ,
já agü en tei essas brigas até on de pu de. Vocês vêm aqu i
e pen sam qu e podem agir da m esm a form a qu e agem
n as ru as. Pen so qu e já é h ora de dar u m exem plo, e
qu em sabe se a au toridade será m ais respeitada aqu i
den tro. Não estou para m e sen tar aqu i todos os dias e
ver vocês se m atan do e m en tin do depois, para explicar o
que não tem explicação. Vou chamar a polícia.”
Pus-m e de pé: “Sen h or, a polícia vai m e pôr n a
cadeia.”
“Espero qu e sim ”, disse o diretor. “Pelo m en os o
resto desses m on stros qu e h á aqu i apren derão a
respeitar a autoridade.”
“Ch am e a polícia”, disse eu ; ao m esm o tem po,
en costei n a porta trem en do de m edo e de raiva, “e
qu an do eu sair da cadeia, voltarei, e u m dia pego o
senhor sozinho e o mato.”
Meus dentes rangiam enquanto falava.
O diretor ficou bran co. Su a face em palideceu e ele
pensou durante um momento.
“Está bem, Cruz. Vou deixar você ir desta vez. Mas
n u n ca m ais qu ero vê-lo n esta escola. Não m e im porta
on de você vai; para m im , pode ir para o in fern o; m as
n u n ca m ais deixe qu e eu veja a su a cara aqu i por perto.
Qu ero qu e saia daqu i corren do, e n ão pare en qu an to
não estiver fora das minhas vistas. Compreendeu?”
Eu compreendi. E saí... correndo.
Capítulo 3
SS OOZZIINNHHOO
UMA VIDA MOTIVADA pelo ódio e pelo tem or n ão
tem lu gar para m ais n ada a n ão ser o próprio ego. Eu
odiava a todo m u n do, in clu sive Fran k. Ele represen tava
a au toridade, e qu an do com eçou a reclam ar porqu e eu
n ão ia m ais à escola e ficava fora até tarde da n oite,
resolvi deixá-lo.
“Nicky”, disse ele, “Nova York é u m a selva. O povo
qu e vive aqu i, vive pela lei da selva. Só os fortes
sobrevivem. Na verdade, você ainda não viu nada, Nicky.
Moro aqu i h á cin co an os e sei. Este lu gar está ch eio de
prostitu tas, viciados em n arcóticos, ébrios e assassin os.
Esses in divídu os podem m atar você, n in gu ém vai saber
qu e está m orto, até qu e algu m m alan dro tropece n o seu
corpo em decomposição, sob um monte de lixo.”
Fran k tin h a razão. Mas eu n ão podia m ais ficar
ali. Estava in sistin do para qu e eu voltasse à escola, e eu
sabia qu e tin h a de ten tar viver por m in h a con ta,
sozinho.
“Nicky, n ão posso forçar você a voltar para a
escola. Mas se você não fizer isso, está perdido.”
“Mas o diretor m e expu lsou . Ele disse para eu n ão
voltar nunca mais.”
“Não ten h o n ada a ver com isso. Se qu iser viver
aqui, tem de voltar. Você precisa estudar.”
“Se pen sa qu e vou voltar, está lou co, Fran k.”
Respon di com m au s m odos. “Se ten tar m e obrigar, eu te
mato.”
“Nicky, você é meu irm ão. Isto n ão é coisa qu e se
fale. Mam ãe e papai m e disseram para tom ar con ta de
você e n ão vou deixar qu e fale assim . Ou você vai para a
escola, ou sai daqu i. Vá em bora, se qu iser. Mas você
voltará, porqu e n ão tem on de ir. Mas se ficar, vai para a
escola e é só.”
Isso foi n a sexta-feira de m an h ã, an tes de Fran k
sair para o trabalh o. Naqu ela tarde deixei u m bilhete
sobre a m esa da cozin h a, dizen do-lh e qu e fora
con vidado por algu n s am igos para ficar com eles du -
ran te u m a sem an a. Eu n ão tin h a am igos, todavia n ão
podia ficar mais com Frank.
Naqu ela n oite, vagu eei por Bedford-Stuyvesant,
u m bairro de Brooklin , procu ran do lu gar para ficar.
Dirigi-m e a algu n s rapazes qu e estavam parados n u ma
esquina. “Algu ém sabe on de eu posso en con trar u m
quarto para morar?”
Um deles virou se e olh ou para m im , tiran do
baforadas de u m cigarro. “Sim”, disse ele, apon tan do
com o polegar sobre o om bro, n a direção da Escola de
Brooklin. “O m eu velh o é zelador daqu eles
apartam en tos, do ou tro lado da ru a. Fale com ele, qu e
encontrará u m lu gar para você. Lá está ele sen tado n a
escada, jogan do baralh o com aqu eles ou tros caras. Ele é
o que está bêbado.” Todos os outros rapazes riram.
O prédio a qu e o rapaz se referira perten cia ao
projeto Fort Green e, n o coração de u m dos m aiores
conju n tos residen ciais do m u n do. Mais de trin ta m il
pessoas viviam n os altos edifícios, sen do qu e a m aioria
era de n egros e porto-riqu en h os. O Con ju n to
Habitacion al de Fort Green e vai desde a Av. Park até a
Av. Lafayette, e a Praça Washington fica no centro.
Encaminhei-m e para o gru po de h om en s e per-
gu n tei ao zelador se h avia u m qu arto para alu gar. Ele
tirou os olh os das cartas e gru n h iu : “Sim , tem u m . Por
quê?”
Hesitei e gagu ejei: “Bem , porqu e eu preciso de u m
lugar para morar.”
“Tem qu in ze pacotes aí?” pergu n tou , cu spin do
fumo na direção de meus pés.
“Bem, não, agora não, mas...”
“En tão n ão tem qu arto”, disse ele, e voltou ao
baralh o. Os ou tros h om en s n em se dign aram a levantar
os olhos.
“Mas posso conseguir o dinheiro”, argumentei.
“Olh e, garoto, qu an do você pu der m ostrar-me
qu in ze pacotes adian tados, o qu arto é seu . Não m e
im porta com o vai con segu i-los. Rou be de algu m a velh a,
n ão m e im porto. Mas até qu e você ten h a o din h eiro, n ão
meta mais o nariz aqui, você está me enchendo.”
Voltei para a Av. Lafayette: passei por Papa
J oh n 's, Casa de Carn e Harry, Bar Paradise, Sh ery's, Th e
Esqu ire, Bar Valh al, e Ren dezvou s do Lin coln . Paran do
ao lado do ú ltim o, en trei em u m beco, procurando
descobrir como conseguir dinheiro.
Sabia qu e se ten tasse assaltar algu ém e fosse
apan h ado, iria para a cadeia, m as estava desesperado.
Dissera a Fran k qu e só voltaria depois de u m a sem an a.
Um quarto custava dinheiro, e eu não tinha um centavo.
Eram qu ase dez h oras da n oite, e o ven to de in vern o
estava frio de rach ar. Recu ei para a escu ridão do beco, e
vi pessoas passan do n a calçada. Tirei o pu n h al do bolso
e apertei o botão. A lâm in a abriu -se com u m estalido.
En costei a pon ta con tra a palm a da m ão. Min h a m ão
trem ia ao pen sar com o iria praticar o rou bo. Seria
m elh or em pu rrá-los para o beco? Eu deveria esfaqu eá-
los, ou apenas amedrontá-los? E se gritassem?...
Meu s pen sam en tos foram in terrom pidos por du as
pessoas qu e con versavam n a en trada do beco. Um velh o
bêbedo fez parar u m rapaz de u n s dezen ove an os, qu e
levava u m en orm e saco de m antim en tos. O velh o pedia-
lh e u n s trocados para tom ar café. Ou vi o rapaz,
ten tan do escapar, dizer ao bêbedo qu e n ão tin h a
dinheiro.
Atravessou-m e a m en te o pen sam en to de qu e o
velh o, provavelm en te, estava com o bolso ch eio de
din h eiro m en digado e rou bado. Não ou saria gritar
pedin do socorro, se eu o rou basse. Logo qu e o rapaz se
fosse eu o puxaria para o beco e tiraria o dinheiro dele.
O rapaz estava pou san do o saco de m an tim en tos
n o ch ão. En fiou a m ão n o bolso e en con trou u m a
m oeda. O velh o resm u n gou u m agradecim en to e foi
embora.
“Diacho”, pensei comigo. “Que faço agora?”
Naqu ele in stan te o rapaz derru bou o saco de
m an tim en tos. Du as m açãs rolaram pela calçada. Ele
curvou-se para apan h á-las, e eu o pu xei para o beco,
apertando-o con tra o m u ro. Am bos estávam os m orren do
de m edo, m as eu tin h a a van tagem da su rpresa. Ele
ficou petrificado qu an do eu levan tei a faca dian te do seu
nariz.
“Não qu ero m ach u car você, m as preciso de di-
n h eiro. Estou desesperado. Dê-m e din h eiro. J á! De-
pressa! Tudo o que tem, antes que o mate.”
Min h a m ão trem ia tan to qu e eu tive m edo de
deixar cair a faca.
“Por favor, por favor. Leve tu do, m as n ão m e
mate”, rogou o rapaz. Tirou a carteira do bolso e ten tou
passá-la para m im , m as derru bou -a. Ele trem ia m ais do
qu e eu . Ch u tei a carteira ain da m ais para o fu n do do
beco. “Caia fora”, disse eu . “Corra, h om em , corra! E se
parar de correr an tes do segu n do qu arteirão, é u m
homem morto.”
Olh ou para m im , com os olh os arregalados de
terror, e com eçou a correr. Tropeçou n os
m an tim en tos e estatelou -se n a calçada, n a en trada do
beco. Cam balean do, levan tou -se ou tra vez, e m eio de
gatin h as, m eio em pé, saiu corren do ru a abaixo. Logo
qu e virou a esqu in a, pegu ei a carteira e corri com todas
as forças n a direção oposta. Em ergin do da escu ridão em
De Kalb, saltei a cerca de corren te qu e cerca o parqu e, e
corri pela gram a alta, em direção às árvores.
Escondendo-m e por trás de u m aterro, parei para tom ar
fôlego e perm itir qu e o m eu coração acelerado se
acalm asse. Abrin do a carteira, con tei dezen ove dólares.
Era u m a sen sação agradável ter as n otas n a m ão. Atirei
a carteira n o m eio da gram a alta, e con tei o din h eiro
outra vez, antes de dobrá-lo e colocá-lo no bolso.
Nada m al, pen sei. As qu adrilh as estão m atan do
vagabu n dos por m en os de u m dólar, e eu conseguira
dezen ove n a prim eira ten tativa. Afin al de con tas, as
coisas não iam assim tão mal.
Mas o sen tim en to de au tocon fian ça n ão rem oveu
todo o medo e permaneci escondido detrás dos arbustos,
até depois da m eia-n oite. A essa altu ra, já era tarde
demais para ir procu rar o qu arto; voltei en tão ao lu gar
on de h avia com etido o rou bo. Algu ém já ju n tara todos
os m an tim en tos qu e h aviam caído, com exceção de u m a
caixa de bolachas, que estava toda amassada. Apanhei a
caixa e sacu di-a, fazen do com qu e os pedaços e o farelo
caíssem n a calçada. Recon stitu í o acon tecido em m eu s
pen sam en tos, e sorri. Eu devia tê-lo cortado, só para ver
como era, pensei. Da próxima vez, vou fazer isto.
Dirigi-m e para a en trada do m etrô, perto de Papa
J oh n , e pegu ei o prim eiro trem qu e ch egou . Passei a
n oite n o m etrô, e n o dia segu in te, logo cedo, estava de
volta à Rua Fort Greene para alugar o quarto.
O zelador subiu comigo três lances de escadas. O quarto
tin h a jan elas para a ru a qu e ficava defron te à Escola
Técn ica de Brooklin . Era pequ en o, com rach adu ras n o
forro. O zelador disse-me que havia um banheiro comum
n o segu n do an dar, e qu e eu podia regu lar o sistem a de
aqu ecim en to com a m açan eta do radiador de aço.
Entregou-m e a ch ave, e disse-m e qu e o alu gu el ven cia
todo sábado, u m a sem an a adian tado. A porta fech ou -se
atrás dele. Escu tei seu s passos soan do pesadam en te
escada abaixo.
Voltei-m e e olh ei o qu arto. Havia du as cam as de
solteiro, u m a cadeira, u m a m esin h a, u m lavatório e u m
pequ en o gu arda-rou pa. In do à jan ela, olh ei a ru a, lá
em baixo. O trân sito, logo cedin h o, m ovia-se com u m
zu m bido n a Av. Lafayette, n o fim do qu arteirão. Do
ou tro lado da ru a ergu ia-se a Escola Técn ica de
Brooklin . Ocu pava todo o qu arteirão e im pedia a visão
de qu alqu er ou tro pan oram a, m as n ão fazia m u ita
diferença. Pelo menos, eu estava por conta própria.
Naqu ela m an h ã, dei a prim eira volta pela vizi-
n h an ça. Descen do as escadas do pardieiro, vi u m rapaz
sair cam balean do de debaixo da escada. Su a face estava
pálida com o u m len çol, e seu s olh os profundamente
en covados. O paletó su jo e esfarrapado caía de u m dos
om bros, e as su as calças ficaram com a bragu ilh a
aberta, depois dele ter u rin ado atrás do radiador. Não
sabia dizer se estava bêbedo ou dopado. Parei n o
patamar e fiquei a observá-lo, enquanto saía pela porta e
descia os degrau s extern os. Debru çou -se sobre o
corrimão e vomitou na calçada. Um grupo de “pequenos”
irrom peu por u m a porta lateral do prim eiro an dar e
correu para fora, ign oran do com pletam en te su a
presen ça. O cara parou de vom itar e deixou -se cair n o
último degrau, olhando inexpressivamente para a rua.
Passei por ele e desci para a calçada. Sobre a
minha cabeça ouvi uma janela abrir-se e olhei para cima
exatam en te a tem po de desviar-m e rapidam en te de u m a
avalan ch e de lixo qu e era jogada do terceiro an dar. Em
ou tra porta, logo adian te, u m dos “pequenos” estava
agach ado n a pen u m bra, debaixo da escada, u san do
u m a en trada de porão com o latrin a. Estrem eci, m as
disse a m im m esm o qu e acabaria m e acostu m an do com
aquilo.
Por trás do edifício de apartam en tos h avia u m
terren o baldio, ch eio de espin h eiros e m ato qu e ch e-
gavam à altura da cintura. Algumas árvores esqueléticas
esticavam seu s galh os desn u dos para o céu cin zen to. A
prim avera com eçara, m as as árvores pareciam
relu tan tes em fazer brotar n ovos reben tos e en fren tar
ou tro verão do gu eto (Gu eto: Nom e dado a u m a área
pobre de cidade gran de, em qu e h abitam pessoas de
u m a m esm a raça ou cor. N. dos E.). Ch u tei u m a lata de
cerveja vazia — o terren o estava ch eio delas. Caixas
velh as de papelão, jorn ais e caixas qu ebradas estavam
espalh ados n o m eio do m ato crescido. Um a cerca de
aram e toda estragada, esten dia-se através do lote, até
ou tro edifício de apartam en tos qu e fazia fren te com a
Ru a St. Edward. Olh an do para trás, vi o m eu prédio, e
algu m as das jan elas do prim eiro an dar tapadas com
tábu as ou com folh as de zin co, para resgu ardar os
apartam en tos do ven to frio. Dois prédios além , eu vi as
faces redon das de u n s n egrin h os pequ en os, com seu s
n arizes apertados con tra a vidraça su ja, observan do-me
chutar o lixo. Eles m e fizeram pen sar em an im aizin h os
en gaiolados, an sian do pela liberdade, m as com m edo de
aventurar-se fora da gaiola, tem erosos de serem feridos
ou m ortos. Parte da jan ela estava qu ebrada e em seu
lugar haviam posto folhas de papelão manchado de umi-
dade. Con tei cin co faces am edron tadas. Possivelm en te
h avia m ais cin co n o pequ en o apartam en to de três
cômodos.
Dei a volta, e retorn ei à fren te do apartam en to. O
apartam en to do porão, debaixo do n ú m ero 54, estava
vago. O portão de ferro estava aberto. Ch u tei-o e en trei
O ch eiro de u rin a, excrem en tos, vin h o, fu m o e graxa era
maior do que eu podia suportar. Saí depressa prendendo
a respiração. Pelo m en os eu tin h a u m qu arto n o terceiro
andar.
Com ecei a descer pela calçada. As prostitu tas
constituíam u m a cen a patética. As m u lh eres bran cas
exerciam o seu com ércio do lado direito da ru a e
ocu pavam u m prédio de apartam en tos a u m qu arteirão
do meu. As mulheres de cor “trabalhavam” do outro lado
da ru a, e viviam perto da en trada do m etrô. Eram todas
viciadas em n arcóticos. Picavam por ali, vestidas com
casacos su jos, em gru pos. Algu m as bocejavam ou
porqu e estavam doen tes, ou porqu e precisavam de u m
“estimulante”, u m a picada de h eroín a, logo de m an h ã,
para animá-las.
Dois m eses se passaram e eu ain da n ão m e acos-
tu m ara com Nova York. Lá em Porto Rico vira gravu ras
da estátua da Liberdade e do edifício das Nações Unidas,
m as aqu i, n esta área pobre, só h avia edifícios de
apartam en tos até perder de vista, ch eios de carn e
h u m an a. Cada jan ela sim bolizava u m a família,
am on toada em qu artos m in ú scu los, levan do u m a vida
m iserável. Pen sei n o jardim zoológico de San J u an , on de
os u rsos an davam len tam en te, e os m acacos
tagarelavam detrás das grades. Eles se espojavam n a
su a própria im u n dície. Com iam carn e estragada ou
alface m u rch a. Lu tavam u n s con tra os ou tros, e a ú n ica
vez em qu e con cordavam era qu an do se reu n iam para
rech açar u m in tru so. Os an im ais n ão foram feitos para
viver desta form a, só com u m a floresta pin tada n a
parede de trás da jau la, a recordar-lhes o lu gar on de
deveriam estar. Nem as pessoas. Mas aqu i, n os gu etos,
elas vivem assim.
Parei n o m eio-fio, n a esqu in a da Av. Myrtle, es-
peran do o sin al abrir. Sobre m in h a cabeça u m trem
ru giu e m atraqu eou , cobrin do os qu e estavam em baixo
com u m a cam ada fin a de fu ligem e poeira. As ru as
estavam cobertas com u m a m istu ra lam acen ta de n eve,
su jeira e sal, qu e o povo atravessava qu an do o sin al
abria.
Nos fu n dos dos prédios de apartam en tos os varais
iam de u m a sacada a ou tra, de u m a ch am in é a ou tra.
As cam isas azu is e calças cáqu i drapejavam ao ven to
gélido. Rou pas de baixo qu e u m a vez h aviam sido
bran cas agora eram de u m cin zen to en cardido, devido à
con stan te exposição ao ar polu ído. O sábado
am an h ecera. Os lojistas abriam as pesadas grades de
ferro defron te às lojas. Em m u itos qu arteirões n ão h avia
loja que não tivesse uma grade de ferro em forma de tela
ou barras de ferro, para protegê-la das qu adrilh as qu e
por ali vagueavam à noite.
Os apartam en tos eram , porém , o qu e m ais m e
deprim ia. Havia evidên cias de ten tativas an êm icas dos
ocu pan tes, procu ran do algu m a form a de iden tidade,
acim a da selva de con creto e dos precipícios de tijolos.
Mas era u m esforço desesperado à sem elh an ça de u m
h om em qu e está se en terran do em areia m ovediça, qu e
tateia às bordas do lodaçal com dedos frem en tes,
procu ran do u m a raiz qu e seja, agarran do-se a ela
desesperadam en te, en qu an to é arrastado para o fu n do,
com a raiz qu ase esm agada n as m ãos apertadas em
desespero.
Um vaso de cerâm ica, su jo, com flores, en feitava o
baten te de u m a jan ela coberta de fu ligem . Um gerân io
mal cuidado apoiava-se contra o vidro.
Ocasion alm en te, via u m apartam en to com esca-
das pin tadas de cores vivas, e às vezes os u m brais de
u m a jan ela estavam pin tados, aparecen do assim em
flagran te con traste com as pedras escu ras. Em ou tro
local u m a jardin eira im provisada, feita com a m adeira
rústica de um engradado, aparecia dependurada de uma
jan ela im u n da. Nela, algu m as flores artificiais
desafiavam o ven to de in vern o, cobertas da fu ligem qu e
saía de m ilh ares de ch am in és ergu idas por toda a
cidade.
Eu ch egara à Ru a St. Edward, e parara defron te à
biblioteca Walt Wh itm an , perto do Distrito Policial. Do
ou tro lado da ru a h avia u m en orm e edifício de
apartam en tos de doze an dares, qu e cobria u m
quarteirão inteiro. Suas seiscentas janelas davam para
a ru a, cada u m a represen tan do u m estado m iserável de
h u m an idade, trem en do por trás das vidraças De u m a
das jan elas pen dia u m trapo esfarrapado, ou trora de
cores brilh an tes, agora desbotado devido às in tem péries.
A m aior parte das jan elas' n ão tin h a ven ezian as ou
cortinas — estavam ali, arregaladas com o os olh os de
um cadáver congelado, deitado na rua.
Voltei sobre os m eu s passos, em direção à Praça
Wash in gton . O qu e h á de errado com este povo, aqu i
n este lu gar im u n do? pen sei. Por qu e vive assim ? Não h á
qu in tais. Nem gram a. Nem espaços abertos. Nem
árvores. Eu n ão sabia qu e u m a vez qu e algu ém m u da
para u m a daqu elas gaiolas de con creto, fica prision eiro
dela. Não há escapatória na selva de asfalto.
Naqu ela tarde, desci ru a abaixo de n ovo. Eu
n otara qu e h avia u m a espécie de parqu e de diversões e
espetácu los, n o pátio qu e h avia atrás da Igreja Católica
de St. Mich ael e St. Edward n a esqu in a das ru as
Au bu rn e St. Edward. Era u m a qu erm esse. Ch egu ei às
qu atro h oras. A m ú sica do alto-falan te ressoava n o
volu m e m áxim o. Ain da tin h a u m pou co de din h eiro qu e
restara do fu rto, e o pen sam en to de u m a qu erm esse
fazia m eu san gu e form igar. Na porta, n otei u m gru po de
rapazes em volta de u m tocador de realejo. Vestiam
blu sões n egros, com dois M verm elh os costu rados n as
costas. A m ú sica do realejo era qu ase su focada pelo
baru lh o qu e os rapazes estavam fazen do, baten do
palmas e dançando no meio da calçada.
No cen tro do gru po estava u m rapaz de cabelos
negros, bem magro, mais ou menos da minha idade. Seu
rosto bon ito abria-se n u m sorriso, en qu an to ele
sapateava, em ritmo acelerado. Com as mãos na cintura,
ele girava ao ritm o da m ú sica. Repen tin am en te seu s
olhos negros encontraram os meus. Parou de repente e o
sorriso foi in stan tan eam en te su bstitu ído por u m olh ar
duro e frio.
“Ei, cara, o qu e é qu e você está fazen do n este
território? Aqu i é dom ín io dos Mau -Mau s. Nós n ão
queremos nenhum quadrado rondando por aqui.”
Devolvi-lh e o olh ar du ro, e percebi qu e os ou tros
rapazes de blu são preto h aviam , silen ciosam en te, for-
m ado u m pequ en o círcu lo ao n osso redor. O rapaz
bon ito, de olh os frios com o o aço, en cam in h ou -se para
m im e m e em pu rrou com o peito, rin do: “Qu al a su a
“turma”, moleque?”
“Não ten h o tu rm a”, respon di. “Vim aqu i para
entrar na quermesse. É crime?”
Um rapaz do grupo avançou para mim.
“Ei, m eu ch apa, você sabe o qu e é isto?” disse ele,
bran din do u m a faca aberta. “Isto é u m pu n h al, cara.
Isso vai cortar su a barriga. Qu ero ver você a ban car o
espertinho comigo! Eu não sou mole como o Israel.”
O rapaz a qu em ele ch am ara de Israel fez sin al
para o ou tro afastar-se, e con tin u ou : “Sabe, u m qu a-
drado pode ser m orto n u m in stan te. Pode ser qu e eu o
mate. Agora, se você quer viver, é melhor pinicar .”
Eu estava com raiva, e pu s a m ão n o bolso, pro-
cu ran do m in h a faca, m as ch egu ei à con clu são de qu e a
m in h a desvan tagem era m u ito gran de. Não qu eria
portar-m e com o covarde, m as sabia qu e h averia ou tra
oportu n idade para dem on strar m in h a coragem . Assen ti
com a cabeça e voltei ru a acim a, em direção à Praça
Wash in gton , e ao m eu qu arto. Atrás de m im pu de ou vir
a qu adrilh a rin do e apu pan do: “Isto é qu e é falar, Israel.
Aquele pirralho aprendeu a lição, desta vez. Vai fazer frio
no inferno antes que ele ponha o nariz aqui de novo.”
Eu estava zan gado e fru strado. Passan do por
baixo do pon tilh ão do trem n a Av. Myrtle, en trei n a
praça e sen tei-m e em u m ban co. Não n otei qu e u m
garoto de cerca de treze an os m e segu ira. Virei-m e e
olh ei para ele, qu e riu e sen tou -se n o ban co, ao m eu
lado.
“Eles lh e fizeram passar u m aperto, n ão?” disse
ele.
“O qu e você está pen san do?” pergu n tei. “Eu dou
em todos eles, m as seria u m bobo se tosse lu tar con tra
todos de uma só vez.”
“Rapaz, as qu adrilh as aqu i são du ron as”, disse o
m en in o, tiran do do bolso da cam isa u m cigarro feito em
casa. “Matam a gente se não concordar com eles.”
Acendeu o cigarro e notou que eu o observava.
“Você fu m a m acon h a?” pergu n tou . Men eei a
cabeça, embora soubesse do que estava falando.
“Qu er experim en tar? Ten h o m ais u m . É bárbaro,
bicho.”
“Claro”, respon di. Recu ara u m a vez n aqu ela tarde,
e não queria recuar de novo.
Ele en fiou a m ão n o bolso da cam isa e tirou u m
cigarro dobrado e am arfan h ado. Estava dobrado em
am bas as pon tas, e m an ch ado lateralm en te, on de ele
lambera o papel para colá-lo.
“É preciso tragar”, disse o rapaz. “Se n ão, ele se
apaga.”
Ele acen deu o cigarro e com ecei a fu m ar cu ida-
dosamente .
“Não”, riu o menino, “é assim.”
Deu u m trago profu n do n o cigarro e in alou va-
garosamente a fumaça para os pulmões.
“Pu xa, com o isto é bom ! Se você der baforadas, ele
se qu eim a e você n ão aproveita. Você precisa tragar,
meu chapa!”
Eu traguei. Tinha um gosto estranhamente doce, e
um cheiro forte.
“O qu e acon tece?” pergu n tei, com eçan do a sen tir
os efeitos atordoantes da erva.
“Meu ch apa, isto faz a gen te voar”, respon deu o
rapaz. “Faz a gen te rir u m bocado. Faz a gen te ach ar
qu e é o m elh or dan çarin o, m elh or n am orador, m elhor
lutador. Todos aqueles rapazes lá na quermesse estavam
fumando a erva. Você não viu como os
olh os deles estavam verm elh os? A gen te pode
saber se eles estão “altos”, observan do o brilh o dos
olhos.”
“Onde é que você consegue isto?”
“Ah, é fácil. Tem umas cem bocas de fumo aqui na
vizin h an ça. A m aior parte dos rapazes pode con segu i-la
para você. Eles con segu em de con tatos m ais
im portan tes. Cu ba, México. Eu ? Meu velh o tem u m a
plan tação de m acon h a n o fu n do do qu in tal. Nosso
qu in tal está ch eio de m ato. Nin gu ém vai lá, e o m eu
velh o plan tou algu m as sem en tes n o m eio do m ato. Nós
tem os u m as m u das, para o gasto. Não é tão boa com o
outros tipos de mercadoria, mas é de graça.”
“Qu an to cu sta, a gen te com pran do n u m a boca de
fumo?” pergu n tei, procu ran do apren der o vocabu lário e
u m pou co em baraçado pelo fato de u m m en in o de treze
anos saber mais do que eu.
“Alguns “pacaus” custam um dólar. Algumas vezes
a gen te en con tra a seten ta e cin co cen tavos, m as é
m elh or com prar u m a lata. É com o u m a pequ en a lata de
fu m o. Dessa form a a gen te pode fazer os próprios
“pacaus” por qu aren ta cen tavos, m ais ou m en os. Mas,
precisa ter cu idado. Algu n s caras podem qu erer tapear
você. Eles m istu ram orégan o com a m acon h a, e assim a
gen te n ão com pra a erva pu ra. Sem pre é bom provar
antes de pagar, pois certamente eles quererão tapear.”
Eu term in ara de fu m ar o m eu “pacau”, e esticara
as pern as para a fren te, descan san do a cabeça n as
costas do ban co. Não parecia estar sen tin do o ven to frio,
e a ton tu ra desaparecera, deixan do-m e u m a sen sação
de estar flutuando em uma nuvem de sonho.
Voltei-m e para olh ar o garoto. Ele estava sen tado
no banco, com a cabeça nas mãos.
“Pensei que esta droga devia fazer a gente feliz. Por
que você não está rindo?”
“Rapaz, por qu e é qu e eu vou rir?” disse ele. “Meu
velh o é u m beberrão. Só qu e ele n ão é m eu verdadeiro
pai. Ele veio m orar com m in h a m ãe n o an o passado. Pra
te con tar a verdade, eu n em sei qu em é o m eu velh o.
Esse h om em bate n a m in h a m ãe o tem po todo. Na
sem an a passada ten tei tirá-lo de cim a dela e ele deu
u m a garrafada n a m in h a cara, qu ebran do-m e dois
dentes. Joguei um despertador nele, que pegou nas suas
costas. Então minha mãe, minha própria mãe me xingou
e disse para eu me mandar... que eu não tinha direito de
m ach u car o seu h om em . Agora eu estou m oran do n a
ru a, esperan do a h ora de poder m atá-lo. Não faço parte
de n en h u m a qu adrilh a. Não estou u n ido a n in gu ém .
Estou só esperan do pegar aqu ele vagabu n do sozin h o,
para m atá-lo. Tam bém n ão gosto m ais de m in h a m ãe.
Que motivo tenho para sorrir?”
Nenhuma vez levantou a cabeça enquanto falava.
“Esse é o m esm o h om em qu e plan tou a m acon h a
no fundo do quintal?” perguntei.
“É. Ele também é traficante. Meu chapa, espera só
eu o pegar sozinho. Vou furá-lo — atravessá-lo com uma
faca.” Ele olhou para cima, o rosto contorcido e cansado.
Parecia m ais a face de u m m acaco velh o, do qu e a de
um rapazinho de treze anos.
“E o seu velh o, ele tam bém é u m pau dágu a?”
“Não, eu sou de sorte. Eu n em m esm o ten h o u m velh o
ou uma velha”, menti. “Sou sozinho.”
O m en in o levan tou a cabeça: “É, agora eu tam -
bém; espero.”
Depois, an im an do-se, acrescen tou : “Bem, “ciao”.
Tom e cu idado com as qu adrilh as. Eles te m atam , se te
pegarem na rua durante a noite!”
“Ei, e o qu e você m e diz dessas qu adrilh as?
Quantas são?”
“Centenas”, disse ele. “Rapaz, h á tan tas qu e a
gente nem pode contar.”
“O que é que eles fazem?”
“Brigam , m eu ch apa; o qu e m ais? Estão sem pre
saindo para lu tar con tra ou tra gan g, ou en tão ficam
perto de casa para defen der seu s dom ín ios con tra al-
guma gang invasora. Quando não estão combatendo uns
com os ou tros, estão com baten do com a polícia. Usam
tudo o que podem para brigar. Carregam facas, porretes,
pistolas, revólveres, soqu eiras de bron ze, rifles,
espin gardas de can o serrado, baion etas, tacos de
beisebol, garrafas qu ebradas, tijolos, pedras, corren tes
de bicicleta... rapaz, qu alqu er coisa qu e você pen sar,
eles u sam para m atar. Ch egam a afiar a pon ta do
guarda-ch u va, pôr pregos n os sapatos, e algu m as das
qu adrilh as dos italian os carregam n avalh as, e colocam
lâm in as de barbear en tre os dedos, qu an do vão dar
socos. Fiqu e por aqu i, e você vai ver. É por isto qu e n ão
m e u n o a eles. Eu só an do pelos becos e ru as escu ras, e
fico lon ge deles. Mas você vai apren der; fica por aí, qu e
você aprende.”
Ele se levan tou e foi an dan do sem destin o pela
praça, desaparecen do n o crepú scu lo. Voltei ao n ú mero
54 da Fort Greene. Já estava ficando escuro.
Capítulo 4
BBAATTIISS MMOO DDEE SS AANNGGUUEE
VÁRIAS SEMANAS MAIS TARDE, saí de m eu
apartam en to por volta de oito da n oite, e fu i até Papa
J oh n 's, n u m a esqu in a da Av. Lafayette. Um m oço porto-
riqu en h o ch am ado Tico estava en costado n a parede do
edifício, fu m an do. Eu já m e en con trara com ele u m a ou
duas vezes, e sabia que era perito na faca.
Ele olh ou para m im e disse: “Ei, Nicky, você
gostaria de ir a u m a “festinha”? Vou apresen tá-lo ao
Carlos, presidente da gang.”
Eu tin h a ou vido falar dessas “festinhas”, m as
n u n ca fora con vidado, por isso aceitei pressu roso o seu
con vite, e acom pan h ei-o por u m a ru a tran sversal;
en tram os em u m porão debaixo de u m lan ce de escadas
de um edifício de apartamentos.
Tive dificu ldade em acostu m ar os olh os com a
pen u m bra. Um qu ebra-lu z estava aceso a u m can to. Um
pou co de claridade en trava pelas jan elas, e u m
pouquinho, pela porta, vinda das luzes da rua, lá fora.
Qu an do en trei n o salão, pu de ver figu ras agar-
radas u m as às ou tras, dan çan do ao som de m ú sica
su ave. Su as cabeças caíam n o om bro u m a da ou tra,
enquan to os pés m oviam -se em com passo com a m ú sica
lenta. Um dos rapazes agarrou uma garrafa de vinho por
trás das costas do seu par, e cam baleou ao m esm o
tem po qu e rodeava o pescoço da m oça com o braço e
tomava um longo trago da garrafa.
Vários rapazes se ach avam sen tados dian te de
u m a pequ en a m esa, jogan do baralh o e fu m an do m a-
con h a, com o vim a saber m ais tarde. Um a garrafa de
vinho fora colocada no meio da mesa.
Bem ao fu n do do salão, lon ge da lâm pada, dois
casais estavam deitados n u m a esteira. Um casal estava
aparen tem en te dorm in do, u m n os braços do ou tro.
En qu an to eu ain da os observava, levan taram , e saíram
tropeçando por uma porta lateral.
Tico olh ou para m im e piscou . “Há u m a cam a ali.
Eles podem fazer amor quando quiserem.”
Um m on te de revistas com figu ras de m u lh eres
nuas e semi-nuas estava no chão, aos meus pés.
“Então, isto é uma “festinha”, pensei.
Tico agarrou m eu braço e em pu rrou -m e salão
adentro. “Ei, tu rm a, este é u m am igo m eu . Vam os fazê-
lo sentir-se em casa.”
Um a garota lou ra su rgiu das trevas perto da por-
ta, e me agarrou pelo braço. Estava com um suéter preto
apertado, u m a saia verm elh a, e descalça. Coloqu ei a
m ão ao redor da su a cin tu ra e disse: “Ei, bon eca, qu er
dançar comigo?”
“Com o se ch am a?” pergu n tou . An tes qu e eu
pu desse respon der, Tico falou : “Seu n om e é Nicky. Ele é
m eu am igo e é u m cara m u ito bom de briga. Pode ser
que entre na nossa turma.”
A garota deslizou à m in h a fren te e ficou bem perto
de mim.
“Tá bom , Nicky, se você é tão bom de briga, vam os
ver se é bom também para dançar.”
Dan çam os u m pou co e depois param os para ver
dois rapazes fazer o jogo da “galinha” com uma faca. Um
dos rapazes estava de pé con tra a parede, e o ou tro
atirava uma faca em direção aos seus pés. O objetivo era
espetar a faca tão perto quanto possível, sem acertar nos
pés. Se o rapaz recuasse, ele era um “galinha”.
Surpreendi-m e desejan do qu e ele ferisse o rapaz.
A idéia de ver san gu e m e excitava. Ali de pé, com ecei a
rir in teriorm en te, esperan do qu e ele errasse, e
machucasse o outro.
A lou ra de su éter n egro m e pu xou pelo braço:
“Ven h a com igo. Qu ero qu e você con h eça u m cara qu e é
muito importante.”
Segui-a até u m a sala ao lado. Um porto-riquenho
alto e esbelto estava estirado n u m a cadeira, com as
pern as sobre u m a m esin h a à su a fren te. Um a garota
estava sen tada a cavalo em seu colo, en costada n ele, e
ele soprava fumaça através do cabelo dela e sorria.
“Ei!” gritou para n ós. “Vocês n ão têm edu cação?
Não sabem qu e n ão podem en trar aqu i sem pedir
licen ça? Vocês podem m e pegar fazen do algu m a coisa
qu e n ão qu ero qu e n in gu ém veja.” Riu , virou -se de lado,
e deu tapin h as n os qu adris da garota com am bas as
mãos.
Olh an do para m im , ele pergu n tou : “Qu em é esse
cara?”
A lou ra respon deu : “É m eu am igo Nicky. Veio com
Tico. Tico disse que ele é bom de briga.”
O rapaz alto tirou a garota do colo e olh ou
carran cu do para m im . Depois arregan h ou os den tes
num sorriso e estendeu a mão.
“Toca aqu i, Nicky. Meu n om e é Carlos. Presidente
dos Mau-Maus.”
Cu idadosam en te en costei m in h a m ão aberta n a
su a e pu xei-a para trás, escorregan do a palm a con tra a
dele. Esta é a maneira de cumprimentar das quadrilhas.
Ou vira falar dos Mau -Mau s. Eles tom aram esse
n om e em prestado dos san gu in ários selvagen s da África.
Já os vira nas ruas, com seus blusões de couro com dois
M verm elh os costu rados às costas. Usavam ch apéu s
alpin os extravagan tes, m u itos dos qu ais en feitados com
fósforos de m adeira. Qu ase todos carregavam ben galas e
u savam sapatos pon tu dos e podiam m atar u m h om em a
pontapés em questão de segundos.
Carlos acen ou com a cabeça para o can to da sala
e eu recon h eci o rapaz qu e vira n a qu erm esse. “Aqu ele é
Israel, vice-presidente dos Mau-Maus.” O rosto de Israel,
ao olh ar para m im , estava in expressivo. Seu s profu n dos
olh os n egros pareciam qu erer perscru tar m in h a alm a,
deixando-me embaraçado.
Descobri m ais tarde qu e o presiden te e o vice-
presiden te estão qu ase sem pre ju n tos. Protegem -se u m
ao outro no caso de um dos dois ser atacado.
“Quantos anos, Nicky?” perguntou Carlos.
“Dezesseis”, respondi.
“Sabe brigar?”
“Claro.”
“Está disposto a brigar com qu alqu er u m , até com
a polícia?”
“Claro”, respondi outra vez.
“Ei, você já “furou” alguém ?”
“Não”, repliquei pesaroso, mas falando a verdade.
“Alguém já tentou “furá-lo” ?”
“Já”, respondi.
“É ?”, disse Carlos, dem on stran do ren ovado in -
teresse. “E o que foi que você fez com o cara?”
“Nada”, disse eu , “m as vou fazer. Só estou es-
peran do pegá-lo de n ovo, e qu an do isso acon tecer, vou
matá-lo.”
Israel in terrom peu -nos: “Escu te, m eu ch apa, se
você qu er en trar para a n ossa gan g, precisa ser como
n ós. Som os os m ais du rões. Até a polícia tem m edo da
gen te. Mas n ão qu erem os “bolhas”. Para en trar para a
nossa quadrilha, não pode ser “bolha”. Tá certo? Se você
bancar o “galinha”, nós cortamos e matamos você.”
Eu sabia qu e Israel estava falan do a verdade, pois
já ou vira con tar de rapazes qu e tin h am sido m ortos por
su as próprias qu adrilh as, por terem den u n ciado u m
colega de gang.
Carlos, en tão falou : “Du as coisas, rapaz: se você
en trar para os Mau -Mau s, é para toda a vida. Nin guém
pede dem issão. Segu n do, se a polícia te pegar e você der
o serviço, n ós acertam os você qu an do sair da cadeia, ou
en tram os n a cadeia e acertam os você lá. O fato é qu e
acertamos.”
Israel m ostrou u m sorriso escarn in h o n o rosto
simpático: “Qu e tal, m en in o, você ain da qu er en trar n a
turma?”
“Dêem-m e três dias”, disse eu . “Se eu en trar para
a sua gang quero ir até o fim.”
“Tá bom , m eu ch apa”, disse Carlos, “tem três dias
para pensar. No fim desse prazo, volte aqui. Quero saber
su a decisão.” Ele ain da estava m eio deitado n a cadeira
com as pern as sobre a m esa. Atraíra a garota para si,
ou tra vez, e estava com a m ão esqu erda sob a su a saia,
ao redor dos quadris.
Virei-m e para sair, e Carlos disse: “Ei, Nicky, eu
m e esqu eci de lh e dizer: se você con tar a algu ém ... a
qu alqu er pessoa... on de estam os, eu o m ato an tes de
você dizer “ai”. Morou?”
“Morei”, respondi. E eu sabia que ele falava sério.
Lá fora, n a ru a, in terrogu ei Tico: “O qu e é qu e
você ach a, Tico? Ach a qu e eu devo en trar para os Mau -
Maus?”
Tico apenas encolheu os ombros.
“É u m n egócio bom , cara. Se en trar, eles tom am
con ta de você. Se n ão en trar, eles são capazes de m atá-
lo por n ão ter en trado. Você n ão tem m u ita escolh a
agora. Além disto, você vai ter qu e en trar para u m a
quadrilha, para continuar vivo por aqui.”
“Qu e é qu e você ach a de Carlos ?” pergu n tei, “que
tipo de sujeito é ele?”
“É cem por cen to. Não fala m u ito, m as qu an do
fala, todo m u n do escu ta. Ele é o ch efe, e todos sabem
disso.”
“É verdade qu e o presiden te escolh e a garota qu e
quiser?” perguntei.
“É”, disse Tico. “Tem u m as seten ta e cin co garotas
em n ossa gan g e o presiden te escolh e qu alqu er u m a
delas. Cada dia é u m a diferen te, se qu iser. Rapaz, elas
gostam disso. Você sabe, n am orar o presiden te é ser
im portan te. Elas brigam para ver qu em vai divertir-se
com ele. E isto n ão é tu do. A qu adrilh a cu ida do
presiden te. Ele tem a parte do leão em tu do o qu e
roubamos — o qu e geralm en te dá para ele pagar o
alu gu el, a com ida e as rou pas. Ser presiden te é u m alto
negócio.”
“Ei, Tico, se você é tão bom de faca, por qu e você
não é o presidente ?”
“Eu n ão, m eu ch apa. O presiden te n ão briga m u i-
to. Ele tem de ficar para trás e fazer os plan os. Eu gosto
é de brigar. Não quero ser presidente.”
“É disso tam bém qu e eu gosto”, pen sei. “Prefiro
brigar... brigar.”
Tico foi para o Papa J oh n 's ou tra vez, e eu voltei
para o n .° 54 de Fort Green e. Sen tia o san gu e ferver n as
veias ao im agin ar o qu e m e esperava. As “festinhas”, as
garotas... Porém , acim a de tu do, as brigas. Eu n ão teria
m ais de brigar sozin h o. Poderia ferir tan to qu an to
qu isesse, sem ser ferido. Meu coração com eçou a bater
m ais depressa. Talvez eu tivesse a ch an ce de esfaqu ear
algu ém . Qu ase qu e já podia en xergar o san gu e
escorren do pelas m in h as m ãos e pin gan do n a ru a. Fiz
m ovim en tos com as m ãos, golpean do o ar, en qu an to
an dava, com o se estivesse com u m a faca atacan do e
ferin do figu ras im agin árias n a escu ridão. Dissera a
Carlos qu e resolveria em três dias, m as já m e decidira.
Tu do o qu e qu eria era qu e algu ém m e desse u m pu n h al
e um revólver.
Duas noites mais tarde, voltei à sede da quadrilha.
Entrei, e Carlos veio me encontrar na porta.
“Ei, Nicky, você ch egou bem n a h ora. Há ou tro
rapaz qu e deseja en trar para os Mau -Mau s. Qu er ver o
ritual de iniciação ?”
Eu n ão tin h a idéia do qu e fosse u m a in iciação,
m as qu eria assistir. Carlos con tin u ou: “Mas qu em sabe
se você veio para dizer qu e n ão qu er en trar para a gan g,
hein?”
“Não”, repliqu ei. “Vim para dizer qu e qu ero en trar.
Qu ero brigar. Ach o qu e sou tão du rão com o qu alqu er de
vocês, e luto melhor do que a maioria dos outros.”
“Bom”, disse Carlos, “você pode assistir, e depois
será a su a vez. Tem os du as m an eiras de saber se o cara
é covarde. Ou ele fica im óvel en qu an to cin co dos n ossos
rapazes m ais fortes o su rram , ou en costa n a parede
esperan do a faca. Se fu gir de qu alqu er u m a das provas,
n ão pode en trar para a qu adrilh a. Este rapaz diz qu e é
du rão. Vam os ver se é m esm o. E depois verem os se você
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167
Foge, nicky, foge167

Weitere ähnliche Inhalte

Andere mochten auch

Fórum de Gestão Estratégica de Riscos para Auditoria
Fórum de Gestão Estratégica de Riscos para AuditoriaFórum de Gestão Estratégica de Riscos para Auditoria
Fórum de Gestão Estratégica de Riscos para Auditoriavan_bretas
 
Ataque y destrucción del oppidum de Monte Bernorio
Ataque y destrucción del oppidum de Monte BernorioAtaque y destrucción del oppidum de Monte Bernorio
Ataque y destrucción del oppidum de Monte BernorioHistoria de Cantabria
 
THiiiNK! Design architectural and design images, photos, sketches, models, pl...
THiiiNK! Design architectural and design images, photos, sketches, models, pl...THiiiNK! Design architectural and design images, photos, sketches, models, pl...
THiiiNK! Design architectural and design images, photos, sketches, models, pl...THiiiNK! Design
 
Startup Marketing Club - Email Marketing - March 2014
Startup Marketing Club - Email Marketing - March 2014Startup Marketing Club - Email Marketing - March 2014
Startup Marketing Club - Email Marketing - March 2014Lari Numminen
 
ICANN 52: Universal Acceptance
ICANN 52: Universal AcceptanceICANN 52: Universal Acceptance
ICANN 52: Universal AcceptanceICANN
 
Educomunicación. Capacidades emocionales de la comunicación audiovisual.
Educomunicación. Capacidades emocionales de la comunicación audiovisual.Educomunicación. Capacidades emocionales de la comunicación audiovisual.
Educomunicación. Capacidades emocionales de la comunicación audiovisual.soyelreylearn
 
Monitoramento e Comportamento do Consumidor
Monitoramento e Comportamento do ConsumidorMonitoramento e Comportamento do Consumidor
Monitoramento e Comportamento do ConsumidorTarcízio Silva
 
Office depot duales studium
Office depot duales studiumOffice depot duales studium
Office depot duales studiumodface
 
Aditya Engineering College,India
Aditya Engineering College,IndiaAditya Engineering College,India
Aditya Engineering College,IndiaSantosh Bhagat
 
PROMO NEWS FEGEMU - abril 2014
PROMO NEWS FEGEMU -  abril 2014PROMO NEWS FEGEMU -  abril 2014
PROMO NEWS FEGEMU - abril 2014Suministros Herco
 
Lauren Babrée acting resume
Lauren Babrée acting resumeLauren Babrée acting resume
Lauren Babrée acting resumeLauren Babree
 

Andere mochten auch (18)

celicalia_PRESS nº7
celicalia_PRESS nº7celicalia_PRESS nº7
celicalia_PRESS nº7
 
Fórum de Gestão Estratégica de Riscos para Auditoria
Fórum de Gestão Estratégica de Riscos para AuditoriaFórum de Gestão Estratégica de Riscos para Auditoria
Fórum de Gestão Estratégica de Riscos para Auditoria
 
Ataque y destrucción del oppidum de Monte Bernorio
Ataque y destrucción del oppidum de Monte BernorioAtaque y destrucción del oppidum de Monte Bernorio
Ataque y destrucción del oppidum de Monte Bernorio
 
Caracterízación de EAD
Caracterízación de EADCaracterízación de EAD
Caracterízación de EAD
 
mla
mlamla
mla
 
THiiiNK! Design architectural and design images, photos, sketches, models, pl...
THiiiNK! Design architectural and design images, photos, sketches, models, pl...THiiiNK! Design architectural and design images, photos, sketches, models, pl...
THiiiNK! Design architectural and design images, photos, sketches, models, pl...
 
Startup Marketing Club - Email Marketing - March 2014
Startup Marketing Club - Email Marketing - March 2014Startup Marketing Club - Email Marketing - March 2014
Startup Marketing Club - Email Marketing - March 2014
 
ICANN 52: Universal Acceptance
ICANN 52: Universal AcceptanceICANN 52: Universal Acceptance
ICANN 52: Universal Acceptance
 
Educomunicación. Capacidades emocionales de la comunicación audiovisual.
Educomunicación. Capacidades emocionales de la comunicación audiovisual.Educomunicación. Capacidades emocionales de la comunicación audiovisual.
Educomunicación. Capacidades emocionales de la comunicación audiovisual.
 
8. Nike Lab Stores
8. Nike Lab Stores8. Nike Lab Stores
8. Nike Lab Stores
 
Monitoramento e Comportamento do Consumidor
Monitoramento e Comportamento do ConsumidorMonitoramento e Comportamento do Consumidor
Monitoramento e Comportamento do Consumidor
 
Office depot duales studium
Office depot duales studiumOffice depot duales studium
Office depot duales studium
 
Aditya Engineering College,India
Aditya Engineering College,IndiaAditya Engineering College,India
Aditya Engineering College,India
 
Arauto junho 2010
Arauto  junho 2010Arauto  junho 2010
Arauto junho 2010
 
Pac 4 8
Pac 4 8Pac 4 8
Pac 4 8
 
PROMO NEWS FEGEMU - abril 2014
PROMO NEWS FEGEMU -  abril 2014PROMO NEWS FEGEMU -  abril 2014
PROMO NEWS FEGEMU - abril 2014
 
Airbus Letter of Recommendation
Airbus Letter of RecommendationAirbus Letter of Recommendation
Airbus Letter of Recommendation
 
Lauren Babrée acting resume
Lauren Babrée acting resumeLauren Babrée acting resume
Lauren Babrée acting resume
 

Ähnlich wie Foge, nicky, foge167

A fraude do código da vince
A fraude do código da vinceA fraude do código da vince
A fraude do código da vincemaome
 
Evolução na fé ou invencionice adventista
Evolução na fé ou invencionice adventistaEvolução na fé ou invencionice adventista
Evolução na fé ou invencionice adventistaMarcelo Santos
 
Jesus e o evangelho á luz da psicologia profunda divaldo franco
Jesus e o evangelho á luz da psicologia profunda  divaldo francoJesus e o evangelho á luz da psicologia profunda  divaldo franco
Jesus e o evangelho á luz da psicologia profunda divaldo francoHelio Cruz
 
Jornal Balada da União
Jornal Balada da UniãoJornal Balada da União
Jornal Balada da UniãoLili Nabais
 
Lacan, jacques. o_seminário,_livro_2._o_eu_na_teoria_de_freud_e_na_técnica_da...
Lacan, jacques. o_seminário,_livro_2._o_eu_na_teoria_de_freud_e_na_técnica_da...Lacan, jacques. o_seminário,_livro_2._o_eu_na_teoria_de_freud_e_na_técnica_da...
Lacan, jacques. o_seminário,_livro_2._o_eu_na_teoria_de_freud_e_na_técnica_da...Fca Xavier
 
Herculano pires o mistério do ser ante a dor e a morte
Herculano pires   o mistério do ser ante a dor e a morteHerculano pires   o mistério do ser ante a dor e a morte
Herculano pires o mistério do ser ante a dor e a morteClaudia Ruzicki Kremer
 
Jornal A Família Católica, 27 edição. agosto 2015
Jornal A Família Católica, 27 edição. agosto 2015Jornal A Família Católica, 27 edição. agosto 2015
Jornal A Família Católica, 27 edição. agosto 2015Thiago Guerino
 
Estudo do livro Roteiro lição 24
Estudo do livro Roteiro lição 24Estudo do livro Roteiro lição 24
Estudo do livro Roteiro lição 24Candice Gunther
 
Folha de São Pedro - O Jornal da Paróquia de São Pedro (Salvador-BA) - Julho ...
Folha de São Pedro - O Jornal da Paróquia de São Pedro (Salvador-BA) - Julho ...Folha de São Pedro - O Jornal da Paróquia de São Pedro (Salvador-BA) - Julho ...
Folha de São Pedro - O Jornal da Paróquia de São Pedro (Salvador-BA) - Julho ...ParoquiaDeSaoPedro
 
Folha de São Pedro - O Jornal da Paróquia de São Pedro (Salvador-BA) - Novemb...
Folha de São Pedro - O Jornal da Paróquia de São Pedro (Salvador-BA) - Novemb...Folha de São Pedro - O Jornal da Paróquia de São Pedro (Salvador-BA) - Novemb...
Folha de São Pedro - O Jornal da Paróquia de São Pedro (Salvador-BA) - Novemb...ParoquiaDeSaoPedro
 
COMO SER SANTO? Militão Neto
COMO SER SANTO? Militão NetoCOMO SER SANTO? Militão Neto
COMO SER SANTO? Militão NetoPaulo David
 

Ähnlich wie Foge, nicky, foge167 (20)

A fraude do código da vince
A fraude do código da vinceA fraude do código da vince
A fraude do código da vince
 
Dg nos bastidores_do_reino
Dg nos bastidores_do_reinoDg nos bastidores_do_reino
Dg nos bastidores_do_reino
 
Espiral 47
Espiral 47Espiral 47
Espiral 47
 
Evolução na fé ou invencionice adventista
Evolução na fé ou invencionice adventistaEvolução na fé ou invencionice adventista
Evolução na fé ou invencionice adventista
 
Espiral 27
Espiral 27Espiral 27
Espiral 27
 
Co 2009 Ir Isabel
Co 2009   Ir  IsabelCo 2009   Ir  Isabel
Co 2009 Ir Isabel
 
Jesus e o evangelho á luz da psicologia profunda divaldo franco
Jesus e o evangelho á luz da psicologia profunda  divaldo francoJesus e o evangelho á luz da psicologia profunda  divaldo franco
Jesus e o evangelho á luz da psicologia profunda divaldo franco
 
Jornal Balada da União
Jornal Balada da UniãoJornal Balada da União
Jornal Balada da União
 
Torturado por sua fé
Torturado por sua féTorturado por sua fé
Torturado por sua fé
 
Jornal outubro 2015
Jornal outubro 2015Jornal outubro 2015
Jornal outubro 2015
 
Caio fábio nephilim
Caio fábio   nephilimCaio fábio   nephilim
Caio fábio nephilim
 
Lacan, jacques. o_seminário,_livro_2._o_eu_na_teoria_de_freud_e_na_técnica_da...
Lacan, jacques. o_seminário,_livro_2._o_eu_na_teoria_de_freud_e_na_técnica_da...Lacan, jacques. o_seminário,_livro_2._o_eu_na_teoria_de_freud_e_na_técnica_da...
Lacan, jacques. o_seminário,_livro_2._o_eu_na_teoria_de_freud_e_na_técnica_da...
 
Manual católico
Manual católicoManual católico
Manual católico
 
Herculano pires o mistério do ser ante a dor e a morte
Herculano pires   o mistério do ser ante a dor e a morteHerculano pires   o mistério do ser ante a dor e a morte
Herculano pires o mistério do ser ante a dor e a morte
 
Jornal A Família Católica, 27 edição. agosto 2015
Jornal A Família Católica, 27 edição. agosto 2015Jornal A Família Católica, 27 edição. agosto 2015
Jornal A Família Católica, 27 edição. agosto 2015
 
Quem ou o que e o anticristo?
Quem ou o que e o anticristo?Quem ou o que e o anticristo?
Quem ou o que e o anticristo?
 
Estudo do livro Roteiro lição 24
Estudo do livro Roteiro lição 24Estudo do livro Roteiro lição 24
Estudo do livro Roteiro lição 24
 
Folha de São Pedro - O Jornal da Paróquia de São Pedro (Salvador-BA) - Julho ...
Folha de São Pedro - O Jornal da Paróquia de São Pedro (Salvador-BA) - Julho ...Folha de São Pedro - O Jornal da Paróquia de São Pedro (Salvador-BA) - Julho ...
Folha de São Pedro - O Jornal da Paróquia de São Pedro (Salvador-BA) - Julho ...
 
Folha de São Pedro - O Jornal da Paróquia de São Pedro (Salvador-BA) - Novemb...
Folha de São Pedro - O Jornal da Paróquia de São Pedro (Salvador-BA) - Novemb...Folha de São Pedro - O Jornal da Paróquia de São Pedro (Salvador-BA) - Novemb...
Folha de São Pedro - O Jornal da Paróquia de São Pedro (Salvador-BA) - Novemb...
 
COMO SER SANTO? Militão Neto
COMO SER SANTO? Militão NetoCOMO SER SANTO? Militão Neto
COMO SER SANTO? Militão Neto
 

Foge, nicky, foge167

  • 1. FFOOGGEE,, NNIICCKKYY,, FFOOGGEE!! Nicky Cruz e Jamie Buckingham Título original em inglês: Run Baby Run Tradução de Adiel de Almeida Oliveira 6ª.edição, 1980 Editora Betânia Digitalizado, revisado e formatado por SusanaCap
  • 2. PPrree ffáá cc ii oo QUANDO TOMEI A INICIATIVA de realizar este projeto, Cath erin e Marsh all com en tou qu e escrever u m livro deste tipo é com o ter u m filh o. Eu teria de viver com ele, até que nascesse. Neste caso, n ão fu i só eu qu em teve de viver com ele, m as a m in h a fam ília e tam bém a Igreja Batista do Tabern ácu lo qu e eu estava pastorean do. Sofreram com igo todos os ataqu es de m al-estar m atu tin o, todas as dores de parto, e até m esm o u n s dois alarm es falsos. Mas, tan to m in h a fam ília com o a igreja, com preen deram qu e este livro era con cebido pelo Espírito San to, escrito com oração e lágrim as, e deveria ser pu blicado para a glória de Deu s. A igreja praticam en te libertou -m e de todas as obrigações, até term in á-lo; além disso, vários dos membros ajudaram no trabalho de datilografia. Con tu do, os padrin h os do livro foram J oh n e Tibby Sh erril e os editores da revista Gu ideposts. A recom en dação e a con fian ça de J oh n deram in ício ao projeto, e n o seu térm in o, foi a crítica do casal Sh erril qu e n os deu a visão fin al da h istória violen ta, m as empolgante, da vida de Nicky Cruz. Os m éritos da m ovim en tação da h istória em si cabem , porém , a Patsy Higgin s, qu e ofereceu volu n - tariam en te os seu s serviços para a glória de Deu s. Ela viveu e sen tiu o m an u scrito com o crítica, editora e datilógrafa — revelan do u m talen to para cortar e reescrever, que só pode ter sido dado por Deus. O livro em si qu ebra u m a das regras básicas da literatu ra. Term in a abru ptam en te. Não h á u m fin al apoteótico ou bem elaborado. Cada vez qu e eu en -
  • 3. trevistava Nicky Cru z, ele relatava u m a experiên cia n ova e fan tástica, m aterial qu e daria para ou tro livro — talvez para vários. Portanto, Foge, Nicky, Foge! é a história, tão exata, qu an to possível, dos prim eiros vin te e n ove an os da vida de u m m oço, cu jos dias m ais áu reos ain da estão no futuro. Jamie Buckingham Eau Gallie, Flórida IInn tt rroo dd uu çç ãã oo A HISTÓRIA DE NICKY CRUZ é notável. Tem todos os elem en tos de tragédia, violên cia e in teresse, além do m aior de todos os in gredien tes, o poder do evan gelh o de Jesus Cristo. Os prim eiros capítu los form am u m cen ário obs- curo e ten ebroso para o eletrizan te desen lace desta h istória. Portan to, n ão desan im e com a atm osfera u m tanto sangrenta da primeira metade do livro. Nicky é jovem , e está atu alm en te cau san do u m grande impacto sobre um bom número de outros jovens, n os Estados Un idos. A popu lação adu lta já n ão pode m ais ign orar a m ocidade, com os trem en dos problem as do sécu lo vin te. A ju ven tu de bu sca u m propósito n a vida. Não está en am orada de n ossos esclerosados tabu s sociais. Qu er sin ceridade n a religião, h on estidade n a política, e ju stiça para os desprivilegiados da sociedade O aspecto en coraja-dor, n o qu e diz respeito a esses m ilh ões de “garotos” (qu e em 1970 u ltrapassaram o n ú m ero da popu lação adu lta), é qu e eles estão desesperadam en te procu ran do solu ções para seu s problem as. Em con tatos com cen ten as de estu dan tes de n ossas u n iversidades, fiqu ei trem en dam en te im pression ado com a bu sca qu e estão em preen den do,
  • 4. procu ran do a verdade, a realidade e solu ções h on estas. Algu n s joven s de n ossas favelas estão an siosos para ter u m con tato h on esto com a sociedade, e com razão. Algu n s deles são in flu en ciados por defen sores da violência e da força bruta, e são facilmente atraídos para o redem oin h o dos distú rbios de ru a, in cên dios e pilh agem . Foge, Nicky, Foge! é u m exem plo n otável de qu e essa m ocidade in satisfeita pode en con trar u m sign ificado e u m propósito para a vida, n a pessoa de Cristo. Em n ossas cam pan h as, qu ase a m etade dos ou - vin tes tem m en os de vin te e cin co an os. Não vão às cam pan h as para zom bar, m as para u m a bu sca sin cera da verdade e de objetivos para a vida. Cen ten as deles atendem ao chamado de Cristo. Foge, Nicky, Foge! é u m a h istória em ocion an te! Min h a esperan ça é qu e ela seja m u ito lida, e qu e m u itos leitores ven h am a con h ecer o Cristo qu e tran sform ou o coração vazio e in satisfeito de Nicky Cru z e fez dele u m a epopéia cristã de nossa era. Billy Graham PPrree ââ mm bbuu lloo A HISTÓRIA DE NICKY é, possivelm en te, a m ais dram ática do m ovim en to Pen tecostal, m as n ão é a ú n ica. Nicky é u m vivido represen tan te de vasto n ú m ero de pessoas qu e, n as ú ltim as décadas, têm sido libertadas do crim e, do álcool, dos n arcóticos, da prostitu ição, do h om ossexu alism o, e de qu ase todo tipo de perversão e degen eração qu e o h om em con h ece. Tratam en to psicológico, cu idados m édicos e con selh os espirituais n ão con segu iram in flu en ciar essas pessoas. Elas, porém , foram libertas de su a escravidão de m odo
  • 5. in esperado e m aravilh oso, pelo poder do Espírito San to, e levadas a u m a vida de serviço ú til, e, algu m as vezes, de profu n da oração. É m u ito n atu ral descon fiar-se de tran sform ações radicais e repen tin as. Porém n ão h á razão teológica para se su speitar delas. A graça de Deu s pode apossar-se de u m h om em e tran sform á-lo, n u m abrir e fechar de olhos, de pecador em santo. “Porque eu vos afirmo que destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão.” (Lu cas 3:8.) O esforço h u m an o n ão pode produ zir tais tran sform ações, n em n a própria pessoa n em em ou trem , porqu e a n atu reza exige tem po para se desen volver, gradu alm en te; m as Deu s pode fazer em u m instante o que leva anos e anos para o homem realizar. Con versões assim ocorreram n a h istória do cris- tian ism o, desde o prin cípio. Zaqu eu , Maria Madalen a (a pen iten te de Lu cas 7:37), o “bom ladrão”, o apóstolo Pau lo, e m esm o Mateu s, o discípu lo, são os prim eiros de u m a lon ga lista. Con tu do, o m aior n ú m ero de tais con versões está ten do lu gar h oje em dia, em relação ao chamado “Movim en to Pen tecostal”, o qu e é, creio eu , sem preceden tes. Qu al o sign ificado deste fato extraordinário? Ten h o m editado m u ito sobre isto, e o qu e m e vem à m en te com freqü ên cia é a parábola das bodas (Mateu s 22:1-14). Qu an do as pessoas con vidadas n ão apareceram , o sen h or disse a seu servo: “Sai depressa para as ru as e becos da cidade e traze para aqu i os pobres, os aleijados, os cegos e os coxos.” (Lu cas 14:21.) Qu an do n em aqu ilo foi su ficien te, o servo foi en viado u m a vez m ais, desta vez para os cam in h os e atalh os, com a ordem : “Obriga a todos a en trar, para qu e fiqu e ch eia a m in h a casa.” Creio qu e isto é o qu e estam os ven do acon tecer h oje. Os “convidados” à m esa do Sen h or, isto é, os qu e “n asceram n o cristian ism o”, os ju stos, os m em bros legítim os da sociedade, já dem on straram sobejam en te qu e são in dign os. Eles “vão à igreja”, m as n a verdade n ão têm participado do
  • 6. banquete propiciado pelo Rei. É por isto que a Igreja, em lu gar de ser u m corpo vivo e u m a testem u n h a desafiadora, m u itas vezes se assem elh a a u m in ú til clube religioso. Todavia, en qu an to os dou tores da lei discu tem qu al o n ovo vocabu lário qu e fará ressu scitar Deu s (porqu e tu do o qu e con h ecem a respeito dele são palavras), e qu e n ovos sím bolos farão com qu e a litu rgia ten h a m ais sign ificado (porqu e tu do o qu e en xergam n a religião é a parte h u m an a), Deu s está reu n in do, em silên cio, n ovos con vidados para o seu ban qu ete. Recebe alegrem en te aqu eles qu e, segu n do os padrões h u m an os, são espiritu al e m oralm en te pobres, aleijados, cegos e coxos. Pelo poder do seu Espírito, está m esm o “forçando-os” a en trar, arran can do-os das ru as da degradação e dos atalhos da perversão. Nicky Cru z e os m ilh ares qu e se lh e assem elh am n ão são apen as exem plos com oven tes do am or fiel do Bom Pastor, m as são tam bém sin ais dos tem pos, qu e faríam os bem em discern ir. São u m sin al en corajador de qu e Deu s está agin do com u m poder n ovo em n ossa época, para qu e n ão ten h am os m edo de proclamar ou sadam en te o evan gelh o a todos. Por ou tro lado, tam bém são u m sin al de advertên cia a todos os qu e, pelos seu s h ábitos religiosos, pelo seu m in istério sagrado, ou por qu alqu er ou tra razão, seja ela qu al for, ju lgam ter u m lu gar m arcado à m esa do ban qu ete. “Porqu e vos declaro qu e n en h u m daqu eles h om en s qu e foram con vidados provará a m in h a ceia.” (Lu cas 14:24.) Porque “está pron ta a festa, m as os con vidados n ão eram dignos”. (Mateus 22:8.) Prof. Edward D. O'Connor, C.S.C. Universidade de Notre Dame Estados Unidos
  • 7. Capítulo 1 NNIINNGGUUÉÉMM MMEE QQUUEERR “SEGUREM ESSE GAROTO MALUCO!” gritou alguém. A porta do qu adrim otor da Pan Am erican m al acabara de se abrir, e eu já m e precipitava escada abaixo, em direção ao prédio do Aeroporto Idlewild, em Nova York. Estávam os a 4 de jan eiro de 1955, e o ven to frio fazia arder minhas faces. Algu m as h oras an tes, m eu pai m e colocara n o avião em San J u an : u m rapazin h o porto-riquenho, rebelde e am argu rado. Fora en tregu e aos cu idados do piloto; h aviam -m e recom en dado qu e perm an ecesse n o avião até a ch egada de m eu irm ão, Fran k. Porém, qu an do a porta abriu , fu i o prim eiro a sair, corren do selvagemente pela pista de concreto. Três fu n cion ários do aeroporto se aproxim aram de m im , cercan do-m e, em pu rran do-m e con tra a cerca de correntes de aço, ao lado do portão. O ven to cortan te zu n ia através da m in h a rou pa tropical e leve, en qu an to eu procu rava escapar. Um policial agarrou -m e pelo braço, e os fu n cion ários voltaram ao seu trabalh o. Para m im aqu ilo era u m a brin cadeira; olh ei para o gu arda e sorri. “Porto-riqu en h o lou co! Qu e diabo você preten de fazer?” Meu sorriso su m iu qu an do n otei ódio em su a voz. Su as boch ech as gordas estavam verm elh as de frio, e os olh os lacrim ejavam devido ao ven to. Um toco de cigarro apagado estava esqu ecido en tre seu s lábios balofos.
  • 8. Ódio! Sen ti-o circu lar por todo o m eu corpo. O m esm o ódio qu e eu tivera con tra m eu pai e m in h a m ãe, con tra m eu s professores e os gu ardas em Porto Rico. ódio! Ten tei libertar-m e, m as ele m e pren deu com u m a férrea chave de braço. “Venh a, garoto, vam os voltar ao avião.” Olh ei para ele e dei uma cusparada. “Porco!” rosn ou . “Porco su jo!” Ele afrou xou a pressão sobre o meu braço e tentou segurar-me por trás, pela gola do casaco. Mergu lh an do por baixo do seu braço, deslizei pelo portão aberto qu e levava para o edifício do aeroporto. Atrás de m im , ou vi gritos e pisadas rápidas. Corri pelo lon go corredor desvian do-m e, à esqu erda e à direita das pessoas qu e se dirigiam aos aviões. De repen te, achei-m e em u m gran de salão. Descobrin do u m a porta de saída, zuni pelo salão e saí para a rua. Um gran de ôn ibu s estava parado ju n to ao m eio- fio, com a porta aberta e o m otor ligado. A fila estava en tran do. Com algu m as em pu rradas, con segu i en trar tam bém . O m otorista m e agarrou pelo om bro e pediu o dinheiro da passagem . En colh i os om bros e respon di-lhe em espan h ol. Ele m e pôs para fora rispidam en te, ocu pado dem ais para perder tem po com u m rapazin h o tolo qu e m al com preen dia in glês. Qu an do ele desviou a aten ção para u m a sen h ora qu e estava rem exen do n a bolsa, baixei a cabeça e esgu eirei-m e por detrás dela, atravessei a porta e pen etrei n o ôn ibu s lotado. Dan do u m a olh adela por sobre o om bro, para ter a certeza de que ele não me vira, dirigi-me à parte traseira do ônibus, e sentei-me junto a uma janela. Qu an do o coletivo deu a partida, vi o gu arda gordu ch o e m ais dois soldados sair ofegan tes pela porta lateral do aeroporto, e olh ar em todas as direções. Não pude resistir à tentação de bater na vidraça, acenar para eles e sorrir através do vidro.
  • 9. Afu n dan do n o ban co, apoiei os joelh os n as costas do assen to da fren te e apertei o n ariz con tra o vidro frio e sujo da janela. O ôn ibu s atravessou com dificu ldade o tráfego in ten so de Nova York, em direção ao cen tro da cidade. Lá fora h avia n eve e lam a pelas ru as e calçadas. Eu sem pre im agin ara qu e a n eve era bran ca e bon ita, com o n os con tos de fadas. Mas aqu ela era parda, com o m in gau su jo. Min h a respiração em baçou a vidraça. Afastei-m e u m pou co e passei o dedo n ela. Era u m m u n do diferen te, in teiram en te diferen te do qu e eu acabara de abandonar. Min h a m en te voltou ao dia an terior, qu an do eu parara n o m orro dian te de m in h a casa. Lem brei-m e da gram a verde qu e m eu s pés am assavam , salpicada dos pon tin h os de cor clara, das pequ en in as flores cam pestres. O cam po descia n u m declive su ave, até a vila, lá em baixo. Lem brei-m e da brisa fresca qu e soprava con tra m in h a face, e do calor do sol em m inhas costas bronzeadas e nuas. Porto Rico é u m a bela terra de sol e de crian ças descalças. É u m a terra em qu e os h om en s n ão u sam camisa, e as m u lh eres cam in h am pregu içosam en te sob u m sol cau stican te. Os son s dos tam bores de aço e das gu itarras ou vem -se n oite e dia. É u m a terra de can tigas, flores, crianças sorridentes e água azul refulgente. Mas é também uma terra de feitiçaria e macumba, de su perstição religiosa e de m u ita ign orân cia. De n oite, os son s dos tam bores da m acu m ba ressoam n as m on tan h as cobertas de palm eiras, en qu an to feiticeiros exercem o seu ofício, oferecen do sacrifícios e dan çan do com serpentes à luz de fogueiras bruxuleantes. Meu s pais eram espíritas. Gan h avam a vida ex- pu lsan do dem ôn ios e estabelecen do u m su posto con tato com espíritos de mortos. Papai era um dos homens mais tem idos da ilh a. Com m ais de l,80m de altu ra, seu s
  • 10. en orm es om bros en cu rvados h aviam levado os ilh éu s a se referirem a ele com o “O Gran de” Ele fora ferido du ran te a Segu n da Gu erra Mu n dial e recebia u m a pen são do govern o. Mas, com o h avia dezessete m en in os e u m a m en in a n a fam ília, depois da gu erra ele recorreu ao espiritismo para ganhar a vida. Mam ãe trabalh ava com papai com o “médium”. Nossa casa era sede de toda sorte de reu n iões de m acu m ba, sessões e feitiçaria. Cen ten as de pessoas vin h am de toda a ilh a para participar das sessões espíritas. Nossa casa en orm e, n o alto da colin a, era ligada por u m a trilh a sin u osa e estreita à pequ en a vila m o- dorren ta de Las Piedras, escon dida n o vale, lá em baixo. Os aldeões su biam pela trilh a a qu alqu er h ora do dia ou da n oite, para ir à “Casa do Feiticeiro”. Eles ten tavam falar com espíritos dos m ortos, tomavam parte em atos de feitiçaria, e pediam a papai para libertá-los de demônios. Papai era o ch efe m as h avia ou tros m édiu n s qu e se u tilizavam de n ossa casa para sede de su as ati- vidades. Algu n s perm an eciam ali sem an as segu idas, às vezes in vocan do espíritos, às vezes expu lsan do demônios. Havia u m a m esa com prida n a sala da fren te, ao redor da qu al o povo se assen tava, qu an do estava ten tan do se com u n icar com os espíritos dos m ortos. Papai era m u ito en ten dido n o assu n to, e tin h a u m a biblioteca de m agia e espiritism o, sem igu al, n aqu ela parte da ilha. Certa m an h ã, dois h om en s trou xeram u m a se- n h ora pertu rbada à n ossa casa. Eu e m eu irm ão Gen e esgueiramo-n os da cam a, olh am os por u m a fresta da porta, e vim os qu an do eles a esten deram sobre a m esa gran de. O seu corpo trem ia e gem idos escapavam de seu s lábios; os h om en s se postaram u m de cada lado da
  • 11. m esa, segu ran do-a. Mam ãe ficou aos pés dela, com os olh os ergu idos para o teto, repetin do palavras estran h as. Papai foi à cozin h a e voltou com u m a pequ en a u rn a preta ch eia de in cen so a fu m egar. Trazia tam bém u m gran de sapo qu e colocou sobre o estôm ago agitado da m u lh er. Depois, su spen den do a u rn a sobre a cabeça dela, aspergiu pó de in cen so sobre seu corpo convulso. Nós trem íam os de m edo; ele m an dou qu e os es- píritos m au s saíssem da m u lh er e en trassem n o sapo. De repen te, a m u lh er jogou a cabeça para trás e soltou u m grito agu do. O sapo saltou do seu estôm ago e espatifou-se con tra a soleira da porta. Im ediatam en te, ela com eçou a dar pon tapés e, sacudindo-se, libertou -se dos h om en s qu e a segu ravam , rolou da m esa e caiu pesadam en te n o ch ão. Picou baban do e m orden do a lín gu a e os lábios; san gu e m istu rado com espu m a escorria pelos cantos de sua boca. Mais tarde aqu ietou -se e ficou im óvel. Papai de- clarou qu e ela estava cu rada e os h om en s lh e deram din h eiro. Eles pegaram o corpo in con scien te e se foram , agradecen do a papai e ch am an do-o repetidam en te de “Grande Milagreiro”. Min h a in fân cia foi ch eia de tem or e sobressaltos. O fato de sermos uma família grande significava que mui pou ca aten ção era dada in dividu alm en te a cada filh o. Eu tin h a raiva de papai e m am ãe, e tin h a m edo da macumba que era realizada todas as noites. No verão anterior à época que eu devia entrar para a escola papai tran cou -m e, u m dia, n o pom bal. J á era noite e ele m e apan h ara rou ban do din h eiro da bolsa de m am ãe. Procu rei correr, m as ele esticou o braço e m e agarrou pela n u ca: “Não adian ta correr, m olequ e. Você roubou; agora vai me pagar.” “Eu te odeio”, gritei.
  • 12. Ele m e levan tou do ch ão, sacu din do m e dian te de si “Vou en sin á-lo a falar assim com seu pai”, disse en tre den tes. Colocan do-m e debaixo do braço com o se eu fosse u m saco de farin h a, atravessou o qu in tal escu ro, dirigindo-se ao pombal. Escutei o ruído de suas mãos ao abrir a porta. “Para dentro”, rosnou ele. “Você vai ficar aí com os pombos, até aprender.” Atirou-m e porta aden tro, e fech ou -a atrás de m im , deixando-m e em total escu ridão. Ou vi o trin co sen do colocado no lugar, e a voz de papai, abafada, através das fen das da parede: “E n ada de jan tar.” Ou vi seu s passos se diminuindo na distância, de volta para casa. Eu estava petrificado de terror. Martelava a porta com os pu n h os. Ch u tava-a fren eticam en te, gritan do e chorando. De repente, a casinhola encheu-se do barulho de asas: os pássaros, assu stados, h aviam acordado; repetidas vezes, ch ocaram -se con tra o m eu corpo. Apertei as m ãos con tra o rosto e gritei h istericam en te, en qu an to as pom bas se arrem etiam con tra as paredes, e bicavam ferozm en te m eu rosto e pescoço. Caí atu rdido n o ch ão im u n do, e en terrei a cabeça n os braços, ten tan do proteger os olh os e tapar os ou vidos para n ão ou vir o som das asas qu e volteavam sobre m in h a cabeça. Parecia qu e u m a etern idade se passara, qu an do a porta abriu , e papai m e fez ficar de pé e arrastou -me para o qu in tal. “Da próxim a vez, você vai lem brar-se de n ão rou bar e de n ão respon der com in solên cia qu an do for apan h ado”, disse ele asperam en te: “Agora, tom e u m banho e vá para a cama.” Ch orei n aqu ela n oite até dorm ir; depois, son h ei com pássaros esvoaçan tes qu e se ch ocavam con tra m eu corpo. Meu s ressen tim en tos con tra papai e m am ãe rea- vivaram-se n o an o segu in te, qu an do en trei para a escola. Eu odiava qu alqu er au toridade. Mais tarde,
  • 13. qu an do já tin h a oito an os, rebelei-m e de u m a vez con tra m eu s pais. Foi em u m a tarde qu en te de verão. Mam ãe e vários ou tros “médiuns” estavam sen tados à gran de m esa da sala, tom an do café. Eu m e can sara de brin car com m eu irm ão e en trara n a sala, brin can do com u m a pequ en a bola, baten do-a n o assoalh o. Um dos m édiu n s disse à m am ãe: “O Nicky é u m m en in o bon ito. Parece com você. Deve orgulhar-se dele.” Mam ãe olh ou séria para m im e com eçou a ba- lançar-se n a cadeira, para a fren te e para trás. Seu s olh os reviraram , a pon to de aparecer som en te o bran co. Esten deu os braços para a fren te, sobre a m esa. Seu s dedos ficaram du ros e trem iam e ela levan tou vagarosam en te os braços sobre a cabeça e com eçou a falar em tom de can toch ão: “Este... n ão... m eu ... filh o. Não, Nicky n ão. Ele n u n ca foi m eu . Ele é filh o do m aior de todos os bru xos. Lú cifer. Não, m eu n ão... n ão, m eu não... Pilho de Satanás, filho do diabo.” Larguei a bola, que rolou pela sala afora. Encostei- m e à parede, e m am ãe con tin u ou em tran se; su a voz se levan tava e baixava, en qu an to ela falava com o em responso: “Não, m eu n ão, n ão, m eu , n ão... a m ão de Lú cifer sobre a su a vida... o dedo de Satan ás está n a su a vida... o dedo de Satan ás toca n a su a alm a... a m arca da besta n o seu coração... Não, m eu n ão, m eu não.” Observei qu e lágrim as corriam pelas su as faces. De repen te, voltou -se para m im com os olh os ar- regalados e gritou com voz esgan içada: “Sai, DIABO! Para lon ge de m im . Deixa-m e, DIABO! Lon ge! Lon ge! Longe!” Eu estava petrificado de terror. Corri para o m eu qu arto e jogu ei-m e sobre a cam a. Pen sam en tos passavam pela m in h a m en te com o rios can alizados em u m a gargan ta estreita. “Não sou filh o dela... filh o de Satan ás... ela n ão m e am a... Nin gu ém m e qu er.
  • 14. Ninguém me quer.” En tão as lágrim as vieram , e eu com ecei a ch orar e a solu çar. A dor qu e sen tia n o peito era in su portável, e esmurrei a cama até ficar exausto. O velh o ódio se agitou den tro de m im , a con su mir m in h a alm a, com o a on da da m aré avan ça sobre u m recife de coral. Sen ti qu e odiava m in h a m ãe. Pu xa, com o a odiava! Eu qu eria feri-la, tortu rá-la, vin gar-me. Empurrei a porta e saí correndo e gritando até a sala. Os m édiu n s ain da estavam ali com m am ãe. Esm u rrei a m esa e gritei. Estava tão fru strado pelo ódio qu e gaguejava e as palavras não saíam direito: “Eu — eu... t- te o-o-odeio.” Apon tava u m dedo trêm u lo para m in h a mãe e gritava: “Vo-vo-você me paga. Você me paga.” Dois de m eu s irm ãos m ais n ovos estavam à porta olh an do, cu riosos. Em pu rrei-os para o lado e corri para os fu n dos da casa. Mergu lh an do escada abaixo, virei-me e arrastei-m e para baixo da varan da e ch egu ei ao can to escu ro e frio on de eu sem pre m e escon dia. Abaixado sob a escada, no meio daquela poeira seca, ouvi as mulheres rin do e m ais alta do qu e as ou tras, a voz de m in h a m ãe ecoan do através do assoalh o rach ado: “Viram , eu bem disse que ele é filho de Satanás.” Com o sen ti ódio dela. Qu eria destru í-la, m as n ão sabia com o. Esm u rran do a poeira, gritei de desespero, m eu corpo sacu din do-se em solu ços, con vu lsivos. “Eu te odeio. Eu te odeio. Eu te odeio”, gritei. Mas n in gu ém m e ou viu . Nin gu ém se im portou . No m eu desespero pegava mancheias de pó e atirava fu riosam en te em todas as direções. A poeira assen tava em m eu rosto transformando-se em pequ en os riach os su jos ao misturar-se com as lágrimas. Mais tarde o fren esi acalm ou -se e fiqu ei em si- lên cio. Ou vi as crian ças brin can do n o qu in tal. Um garoto estava can tan do u m a m ú sica qu e falava de passarin h os e borboletas m as eu m e sen tia isolado,
  • 15. solitário... Tortu rado pelo ódio e pela persegu ição e obcecado pelo m edo. Ou vi a porta do pom bal fech ar-se e as ru idosas passadas de papai qu e vin h a dos fu n dos da casa; ele com eçou a su bir os degrau s da escada. Paran do, olh ou para as trevas, por en tre as rach adu ras das tábu as dos degrau s. “O qu e está fazen do aí em baixo, m en in o?” Fiqu ei em silên cio, com a esperan ça de qu e n ão m e recon h ecesse. Ele en colh eu os om bros e con tin u ou su bin do a escada, e en trou deixan do a porta bater atrás de si. Ninguém me quer, pensei. Ou vi m ais risadas den tro da casa, qu an do a voz de baixo profu n do de m eu pai u n iu -se à das m u lh eres. Eu sabia que eles ainda estavam rindo de mim. On das de ódio m e in vadiram ou tra vez. Lágrimas rolaram pelo m eu rosto, e com ecei a gritar de n ovo. “Eu te odeio, m am ãe! Eu te odeio. Eu te odeio.” Min h a voz ecoou no vácuo sob a casa. Ch egan do a u m au ge de em oção, caí de costas n a poeira, e rolei de um lado para o outro — a poeira cobria m eu corpo. Exau sto, fech ei os olh os e ch orei, até cair num sono agitado. O sol já tin h a se escon dido n o m ar, qu an do des- pertei e m e arrastei para fora, sain do de baixo da varan da. A areia ain da ran gia em m eu s den tes, e o m eu corpo estava coberto de su jeira. Os sapos coaxavam . Os grilos can tavam . Eu sen tia o orvalh o ú m ido e frio sob meus pés descalços. Papai abriu a porta dos fu n dos, e u m jato de lu z am arela projetou -se on de m e ach ava, ao pé da escada. “Porco!” gritou ele. “O qu e você estava fazen do tan to tem po debaixo da casa? Veja com o está. Não qu erem os porcos por aqui. Vá se lavar e venha jantar.” Obedeci. Porém , m editan do en qu an to m e lavava debaixo da bica, ch egu ei à con clu são de qu e h averia de odiar etern am en te. Com preen di qu e n u n ca m ais am aria
  • 16. de n ovo .. a n in gu ém . E n u n ca m ais ch oraria... n u n ca. Medo, su jeira e ódio para o filh o de Satan ás. Foi qu an do comecei a fugir. Mu itas fam ílias porto-riqu en h as têm o costu m e de m an dar seu s filh os para Nova York, qu an do estes alcan çam idade su ficien te para cu idar de si. Seis dos m eu s irm ãos m ais velh os já h aviam deixado a ilh a, mudando-se para Nova York. Todos estavam casados e procurando construir vida nova. Eu , porém , era m u ito n ovo para ir. Não obstan te, n os cin co an os segu in tes m eu s pais ch egaram à con clu são de qu e n ão era possível qu e eu perm an ecesse em Porto Rico. Torn ara-m e rebelde n a escola. Estava sem pre procu ran do briga, prin cipalm en te com crian ças m en ores do qu e eu . Um dia atirei u m a pedra n a cabeça de u m a m en in a. Fiqu ei olh an do, com u m sen tim en to de prazer, o san gu e qu e gotejava através de seu cabelo. A menina estava gritando e chorando, e eu ali, rindo. Meu pai esbofeteou -m e aqu ela n oite até m in h a boca sangrar. “Sangue por sangue”, gritou ele. Com prei u m a espingarda “pica-pau” para m atar passarin h os. Mas, para m im , m atá-los n ão era o suficiente. Gostava de mutilar seus corpos. Meus irmãos se afastavam de mim, por causa do meu estranho desejo de ver sangue. Qu an do estava n o oitavo an o, tive u m a briga com o professor de artes m an u ais. Era u m h om em alto e m agro qu e gostava de assobiar para as m oças. Um dia, na classe, eu o chamei de “negro”. A sala ficou silenciosa e os ou tros rapazes se esgu eiraram para trás das máquinas da oficina, sentindo a tensão no ar. O professor cam in h ou pela classe, até o lu gar on de eu estava, ao lado de u m torn o. “Sabe o qu e m ais, rapaz? Você é pretensioso.” Respon di com in solên cia: “Descu lpe, n egro, eu
  • 17. acho que não sou.” An tes qu e pu desse safar-m e, ele m e bateu com o lon go braço ossu do e sen ti a carn e dos m eu s lábios esmagar-se con tra os den tes com a violên cia do golpe. Sen ti o gosto do san gu e qu e escorria pela m in h a boca e pelo meu queixo. Avan cei para ele, bran din do os braços. O pro- fessor era u m h om em feito en qu an to eu pesava m enos de cin qü en ta qu ilos. Eu estava ch eio de ódio e a vista do sangue fez-me explodir. Esticando os braços e colocando as m ãos con tra a m in h a testa ele m e con servou à distância, enquanto eu dava murros no ar. Com preen den do a in u tilidade dos m eu s esforços, fugi. “Você vai ver, n egro”, gritei. “Vou à polícia. Espera para ver.” Saí correndo da sala de aula. Ele correu atrás de m im , ch am an do-me: “Espere. Eu sinto muito.” Mas, não voltei. Não fui à polícia. Em lugar disso, dirigi-me a papai e lh e disse qu e o professor ten tara m e m atar. Ele ficou fu rioso. Correu ao qu arto e depois saiu com su a en orm e pistola n o cin to. “Vam os garoto. Vou m atar u m valentão.” Voltam os à escola. Eu tin h a dificu ldade em acom pan h ar os passos lon gos de papai e qu ase pre- cisava correr para alcançá-lo. Meu coração saltava ao pen sar n a sen sação de ver aqu ele professor alto encolher-se de medo sob a fúria de meu pai. Mas, o professor n ão estava n a sala de au la. “Espera aqu i, m en in o”, disse papai. “Eu vou con versar com o diretor, e resolver isto.” Senti medo, mas esperei. Papai dem orou m u ito tem po n o escritório do diretor. Qu an do saiu , cam in h ou depressa em m in h a direção, e m e sacu diu pelo braço. “Mu ito bem , rapaz, você tem algumas explicações a dar. Vamos para casa.”
  • 18. Voltam os de n ovo através da pequ en a vila, e pela trilh a sin u osa, até em casa. Ele m e pu xava atrás de si, preso pelo braço. “Men tiroso su jo”, disse-m e já defron te da casa. Levan tou a m ão para esbofetear-m e, m as con segu i sair fora do seu alcan ce, e corri ladeira abaixo. “Está certo... Fu ja, m olequ e!” gritou . “Você h á de voltar para casa e quando voltar, eu vou lhe mostrar...” Voltei para casa; mas só três dias depois. A polícia pegou-m e an dan do n a beira de u m a estrada qu e levava às m on tan h as, n o in terior. Rogu ei-lh es qu e m e soltassem, m as devolveram -m e ao m eu pai. E ele cumpriu a sua promessa. Eu sabia qu e precisava fu gir ou tra vez. E m ais ou tra. Fu giria para tão lon ge qu e n in gu ém seria capaz de m e trazer de volta. Nos dois an os qu e se seguiram, fugi cinco vezes. Todas as vezes a polícia me encontrou e m e levou de volta para casa. Fin alm en te, sem m ais esperan ça, papai e m am ãe escreveram para m eu irm ão Fran k, pergu n tan do-lh e se poderia receber-m e para m orar em su a com pan h ia. Fran k con cordou , e eles traçaram os planos para a minha ida. Na m an h ã em qu e viajei, as crian ças se en fileiraram n a varan da à fren te da casa. Mam ãe m e apertou ao peito. Havia lágrim as em seu s olh os qu an do ela ten tou falar, porém n ão saiu palavra n en h u m a. Eu n ão tin h a por ela sen tim en to de qu alqu er espécie. Pegan do m in h a pequ en a m ala, virei as costas, carran cu do, e dirigi-m e à velh a cam in h on eta on de papai me esperava. Não olhei para trás. Levam os qu aren ta e cin co m in u tos para ch egar ao aeroporto de San J u an , on de papai m e deu a passagem e en fiou em m in h a m ão u m a n ota de dez dólares dobrada. “Telefon e para Fran k logo qu e ch egar a Nova York”, disse ele. “O piloto vai tom ar con ta de você até ele chegar.” Ficou de pé olh an do para m im du ran te lon go
  • 19. tem po, bem m ais alto do qu e eu , en qu an to u m cach o do seu cabelo grisalh o e on du lado era agitado pela brisa qu en te. É provável qu e eu parecesse pequ en o e patético a seu s olh os, parado ali n a estrada, com a m aleta n a m ão. Seu s lábios trem eram qu an do esten deu a m ão para apertar a m in h a. En tão, repen tin am en te, en volveu - me em seu s lon gos braços e apertou o m eu corpo m agro contra o seu. Escutei-o solu çar só u m a vez: “Hijo m io” (filho meu). Soltando-m e, ele disse rapidam en te: “Seja u m bom m en in o, passarin h o.” Virei-m e, e saí corren do; galgu ei as escadas do en orm e avião, e sen tei-m e ju n to a uma janela. Lá fora vi a figura magra e solitária de meu pai, “O Grande”, en costado n a cerca. Ele levan tou a m ão u m a vez, com o se fosse acen ar, m as pareceu en vergonhar-se, e voltou , an dan do depressa, para ju n to da velh a caminhoneta. Por que será que ele me chamara de “passarinho”? Recordei o m om en to qu an do, m u itos an os atrás, sen tado n os degrau s da gran de varan da, papai m e chamara daquela forma. Estava sen tado em u m a cadeira de balan ço, fu - m an do o seu cach im bo, qu an do m e con tou a len da de u m pássaro qu e n ão tin h a pés, e por isso voava con tin u am en te. Papai olh ou -m e som brio, e disse: “Esse passarin h o é você, Nicky. Você n ão tem descan so. Com o u m passarin h o, você está sem pre fu gindo.” Men eou a cabeça vagarosamente, e levantou os olhos para os céus, sopran do fu m aça n as trepadeiras, qu e su biam até o telhado da varanda. “Esse passarin h o é pequ en in o e m u ito leve. Não pesa m ais do qu e u m a pen a. Ele é levado pelas cor- ren tes de ar, e dorm e ao ven to. Está sem pre fu gin do.
  • 20. Fu gin do de gaviões, de águ ias, de coru jas. Aves de rapin a. Ele se escon de colocan do-se en tre elas e o sol. Se elas voarem acim a dele, poderão vê-lo, em con traste com a terra escu ra. Mas as su as pequ en as asas são tran sparen tes, com o a águ a clara da lagoa. En qu an to ele perm an ece n o alto, elas n ão con segu em vê-lo, e assim ele nunca descansa.” Papai recostou -se e soltou u m a baforada de fu - maça azul. “Mas, como é que ele come?” perguntei. “Ele com e ao ven to”, respon deu papai. Falava vagarosam en te, com o se tivesse visto a avezin h a. “Ele apan h a in setos e borboletas. Não tem pern as... n em pés... está sempre se movendo.” Fiqu ei fascin ado com a estória. “E n os dias ch u - vosos?” perguntei-lhe. “O qu e acon tece qu an do o sol n ão brilh a? Com o é, en tão, qu e ele escapa dos seu s inimigos?” “Nos dias feios, Nicky”, disse papai, “ele voa tão alto qu e n in gu ém pode vê-lo. A ú n ica h ora em qu e pára de voar — o ú n ico m om en to em qu e pára de fu gir — a ú n ica vez qu e vem à terra — é qu an do m orre. Pois, u m a vez que toca o solo, não pode mais fugir” Papai m e deu u m tapin h a n o traseiro e m e tocou de casa. “Vá agora, passarin h o. Fu ja, voe. Seu pai o chamará quando já não for hora de correr.” Literalmente voei pelo campo gramado, batendo os braços com o u m pássaro qu e ten tasse alçar vôo. Con tu do, por algu m a razão, parece qu e n ão con seguia ganhar suficiente velocidade para subir. Os m otores do avião tossiram , soltaram fu m aça n egra, e en traram em fu n cion am en to. Fin alm en te, eu ia voar. Estava a caminho... O ôn ibu s parou . Lá fora, as lu zes brilh an tes e os an ú n cios lu m in osos m u lticoloridos acen diam e
  • 21. apagavam n a pen u m bra fria. Um h om em qu e estava do ou tro lado levan tou -se para descer. Segu i-o até a porta, e saím os. As portas se fech aram atrás de m im , e o ôn ibu s partiu . Fiqu ei ali n a calçada... sozin h o n o m eio de oito milhões de pessoas. Apan h ei u m pu n h ado de n eve su ja e tirei a crosta qu e a cobria. Ali estava: n eve pu ra e brilh an te. Desejei colocá-la n a boca e com ê-la Porém , ao olh ar bem , pequ en as m an ch as n egras com eçaram a aparecer n a su perfície. Com preen di qu e o ar estava ch eio de fu ligem das ch am in és e qu e a n eve estava tom an do o aspecto de queijo fresco pulverizado com pimenta-do-reino. J ogu ei a n eve para o lado. Não fazia diferen ça. Eu estava livre. Vagu eei pela cidade dois dias. En con trei u m ca- saco velh o jogado em u m a lata de lixo. As m an gas cobriam as m in h as m ãos, e a barra varria a calçada. Os botões tin h am sido arran cados e os bolsos rasgados, m as ele m e aqu ecia. Aqu ela n oite eu dorm i n o m etrô, encolhido em um banco. No fim do segu n do dia, m eu en tu siasm o esfriara . Eu estava com fom e... e com frio. Em du as ocasiões, ten tei falar com algu ém , pedin do aju da. O prim eiro h om em sim plesm en te ign orou -m e. Con tin u ou an dan do, com o se eu n ão estivesse ali. O segu n do em pu rrou -me con tra a parede: “Caia fora, seu . Não pon h a essas m ãos gordu ren tas em m im .” Piqu ei com m edo. Ten tava im pedir qu e o pân ico su bisse do estôm ago para a garganta. Naqu ela n oite, percorri de n ovo as ru as da cidade, o paletó com prido varren do a calçada e a pequ en a m ala segu ra firm em en te em m in h a m ão. Pessoas passavam por m im , e m e olh avam , m as n in gu ém parecia im portar- se comigo. Apenas olhavam e continuavam andando. Nessa m esm a n oite gastei os dez dólares qu e
  • 22. papai m e dera. En trei em u m pequ en o restau ran te e pedi u m cach orro-qu en te, apon tan do para a figu ra de u m , qu e estava depen du rada acim a do balcão. En goli-o sofregam en te e in diqu ei qu e desejava ou tro. O h om em sacu diu a cabeça n egativam en te e esten deu a m ão. En fiei a m ão n o bolso e tirei a n ota am arfan h ada. Lim pan do as m ãos em u m a toalh a, ele abriu a n ota, alisou-a, e m eteu -a n o bolso do aven tal su jo. Trou xe-me en tão ou tro cach orro-qu en te e u m a terrin a de feijão com carn e. Qu an do term in ei, procu rei-o, m as ele h avia desaparecido n a cozin h a. Pegu ei a m ala e voltei para a ru a fria. Acabara de ter m eu prim eiro en con tro com a esperteza am erican a. Com o iria saber qu e u m cach orro- quente americano não custa cinco dólares? Descen do a ru a, parei em fren te a u m a igreja. Um pesado portão de ferro, tran cado com u m cadeado, fora colocado dian te das portas. Parei dian te do gran de edifício de pedra cin zen ta e observei a torre qu e apon tava para o céu . As frias paredes de pedra e os escu ros vitrais estavam fora do m eu alcan ce, protegidos pela cerca de ferro. A estátu a de u m h om em de rosto sim pático e olh os tristes espiava através do portão fech ado. Os seu s braços estavam esten didos e cobertos de n eve, m as ele estava tran cado lá den tro, e eu aqu i fora. Arrastei-m e ru a abaixo... an dan do... an dan do sem parar. O pân ico voltava fu rtivam en te. Era qu ase m eia- n oite, e eu trem ia n ão só de frio, m as tam bém de m edo. Tin h a esperan ça de qu e algu ém parasse e m e pergu n tasse em qu e poderia m e aju dar. Nem sei o qu e teria dito, se algu ém parasse e oferecesse aju da. Mas eu me sentia sozinho, com medo, e perdido... A m u ltidão apressada foi em bora e m e deixou . Nu n ca pen sei qu e u m a pessoa pu desse sen tir solidão n o m eio de u m m ilh ão de pessoas. Para m im , solidão era
  • 23. perder-se n a floresta ou em u m a ilh a deserta. Porém , essa era a pior das solidões. Vi pessoas bem vestidas, voltan do do teatro para su as casas... velh os ven den do jorn ais e fru tas em pequ en as ban cas qu e ficavam abertas a n oite toda... policiais patru lh an do, aos pares... calçadas ch eias de pessoas apressadas. Ao olh ar para seu s rostos, elas tam bém pareciam solitárias. Nin guém ria. Ninguém de rosto alegre. Todos apressados. Sentei-m e n a calçada e abri m in h a pequ en a m ala. En con trei u m pedaço de papel dobrado, com o n ú m ero do telefon e de Fran k, escrito por m am ãe. De repen te, sen ti algo em pu rran do-m e por trás. Era u m cach orro velh o, felpu do qu e en costava o focin h o n o en orm e casaco qu e cobria m eu corpo m agro. Rodeei seu pescoço com o braço, e pu xei-o para m im . Ele lam beu m eu rosto e eu enterrei a cabeça no seu pelo sarnento. Não sei qu an to tem po fiqu ei ali sen tado, trem en do e afagan do o cão. Qu an do olh ei para cim a, vi os pés e pernas de dois policiais uniformizados. As suas galochas estavam m olh adas e su jas. O cach orro sarn en to pressen tiu o perigo, e saiu corren do, desaparecendo num beco. Um dos gu ardas bateu n o m eu om bro com a pon ta do cassetete. “O qu e é qu e você está fazen do aqu i sen tado, n o m eio da n oite?” pergu n tou ele. A su a face parecia estar cem qu ilôm etros acim a. Com dificu ldade procu rei explicar, em m eu in glês de pé qu ebrado, qu e estava perdido. Um deles m u rm u rou algo para o ou tro, e se foi. O qu e ficara ajoelh ou -se ao m eu lado, n a calçada su ja. “Posso ajudá-lo, garoto?” Acen ei qu e sim e tirei o pedaço de papel com o n om e e n ú m ero do telefon e de Fran k. “Irmão”, disse-lhe, mostrando o papel. Ele sacudiu a cabeça ao olhar para a escrita quase
  • 24. ilegível. “É aí que você mora, garoto?” Eu n ão sabia respon der e apen as disse: “Irmão”. Ele acen ou qu e sim , levan tou -m e pelo braço, e dirigim o- n os a u m a cabin e telefôn ica atrás de u m a ban ca de jorn ais. Pescou u m n íqu el n o bolso e discou o n ú m ero. Qu an do a voz son olen ta de Fran k respon deu , ele m e en tregou o fon e. Em m en os de u m a h ora eu estava a salvo, no apartamento de meu irmão. A sopa qu en te qu e tom ei já n a casa de Fran k estava gostosa, e a cam a lim pa, deliciosa. Na m an h ã seguin te Fran k m e con tou qu e eu deveria ficar com ele, qu e ele cu idaria de m im e m e poria n a escola. Algo den tro de m im , porém , m e dizia qu e eu n ão ficaria ali. Começara a fugir, e agora nada me faria parar. Capítulo 2 NNAA SS EELLVVAA DDOO QQUUAADDRROO-- NNEEGGRROO FIQUEI DOIS MESES COM FRANK, apren den do a m an obrar o in glês. Porém n ão era feliz, e as ten sões internas estavam me perturbando muito. Fran k, logo n a prim eira sem an a, m atricu lou -me n o gin ásio. A escola era qu ase in teiram en te de n egros e porto-riqu en h os. Era dirigida m ais com o u m reform atório do qu e com o escola pú blica. Os professores e adm in istradores passavam a m aior parte do tem po tentando manter a disciplina, de forma que pouco tempo restava para o en sin o. Era u m lu gar selvagem , ch eio de brigas, de im oralidade e de con stan te batalh a con tra os
  • 25. que tinham autoridade. Todas as escolas do Brooklin têm represen tan tes de pelo m en os du as ou três gan gs. Estas gan gs são qu adrilh as form adas por rapazes e garotas qu e vivem em u m certo bairro. Algu m as vezes as gan gs são inimigas, o qu e in variavelm en te cria con flitos, qu an do são colocadas na mesma sala de aula. Aqu ilo era u m a experiên cia n ova para m im . Todo dia n a escola tin h a de h aver u m a briga n os corredores ou em u m a das salas de au la. Eu m e en costava à parede, com m edo de qu e algu m dos rapazes m aiores m e batesse. Depois da au la, sem pre h avia u m a briga n o pátio, e alguém saía ferido e perdendo sangue. Fran k costu m ava advertir-m e, para n ão an dar pelas ru as à n oite. “As qu adrilh as, Nicky. As qu adrilhas podem te m atar. Eles saem com o m atilh as de lobos, du ran te a n oite, e m atam qu alqu er pessoa qu e n ão conheçam.” Ele m e recom en dou qu e viesse direto da escola para casa, todas as tardes, e ficasse n o apartam en to, e me conservasse à distância das gangs. Logo fiqu ei saben do tam bém qu e as qu adrilh as n ão eram a ú n ica coisa qu e eu deveria tem er. Havia tam bém os “pequenos”. Eram terríveis m olequ es de n ove e dez an os qu e peram bu lavam pelas ru as à tarde e à n oitin h a, ou qu e brin cavam dian te dos pardieiros em que moravam. Tive m eu prim eiro en con tro com os “pequenos” qu an do voltava da escola para casa certo dia, logo n a prim eira sem an a. Um a gan g de cerca de dez m eninos en tre oito e dez an os in vestiu con tra m im , sain do de u m portão. “Ei, garotos, olhem por onde andam.” Um dos meninos deu um rodopio e disse: “Vá para
  • 26. o inferno!” Ou tro veio por trás e abaixou -se. An tes qu e m e desse conta do que estava acontecendo, vi-me estatelado de costas n a calçada. Ten tei levan tar-m e, m as u m dos garotos agarrou m eu pé e com eçou a pu xar. Gritavam e riam o tempo todo. Perdi a calm a e dei u m soco n o qu e estava m ais próxim o, jogan do-o n a calçada. Naqu ele m om en to, ou vi u m a m u lh er gritar. Olh ei para cim a, e vi-a debru çada n u m a jan ela n o qu arto an dar. “Afaste-se de m eu filh o, porco nojento, ou eu te mato.” Naquele m om en to, n ão h avia n ada qu e eu dese- jasse mais do que afastar-me de seu filho. Mas os outros m en in os estavam avan çan do. Um deles atirou u m a garrafa de refrigeran te n a m in h a direção. Ela acertou n a calçada, perto do m eu om bro, fazen do ch over vidro n o meu rosto. A m u lh er estava gritan do ain da m ais: “Não se m eta com os m eu s m en in os! Socorro! Socorro! Ele está matando meu filho!” De repente, outra mulher apareceu em uma porta, com u m a vassou ra n a m ão. Era gorda e bam boleava ao correr; tin h a a cara m ais feia qu e eu já vi. Ela en trou n o m eio da qu adrilh a de garotos, com a vassou ra levan tada acim a de su a cabeça. Ten tei rolar n o ch ão, fu gin do dela, m as era tarde — a vassou ra acertou em ch eio n as minhas costas. Rolei de novo e ela me acertou no alto da cabeça. Ela estava gritan do. Percebi en tão qu e várias ou tras m u lh eres estavam debru çadas n as jan elas, gritan do, e ch am an do a polícia. A m u lh er gorda m e golpeou pela terceira vez, an tes qu e eu pu desse pôr-me de pé e com eçar a correr. Ou vi-a dizer, atrás de m im : “Se você aparecer por aqu i de n ovo, ju dian do de n ossas crianças, nós te matamos.” Na tarde segu in te, ao voltar da escola para casa,
  • 27. escolhi um caminho diferente. Um a sem an a m ais tarde tive o prim eiro en con tro com u m a gan g. Voltava da escola e parara em u ma praça para ver u m h om em qu e tin h a u m papagaio. Eu estava dançando ao redor dele, rindo e conversando com o pássaro, qu an do o h om em su bitam en te perdeu o in teresse, apertou o papagaio con tra o peito e foi sain do. Olh ei ao redor, e vi cerca de qu in ze rapazes n u m sem icírcu lo em torn o de m im . Não eram “pequenos”. Ao con trário, eram bem “grandes”, n a m aioria, m aiores do que eu. Rapidam en te form aram u m círcu lo pon do-m e n o m eio e u m dos rapazes disse: “Ei, m olequ e, de qu e é qu e você está rindo?” Apon tei para o h om em do papagaio, qu e en tão fu gia da praça. “Pu xa, eu estava rin do daqu ele papagaio bacana.” “Escu te, você m ora aqu i por perto?” pergu n tou o rapaz, com olhar ameaçador. Sen ti qu e algo estava errado, e com ecei a gagu ejar u m pou co: “Eu-eu m oro com m eu irm ão, n o fim desta rua.” “Você pen sa qu e só porqu e m ora n o fim desta ru a, pode en trar n a n ossa praça e rir com o u m a h ien a, h ein ? É o qu e você pen sa? Não sabe qu e está n os dom ín ios dos Bish ops, rapaz? Nós n ão perm itim os qu e estran h os en trem em n ossos dom ín ios, prin cipalm en te paspalh os que riem como hienas.” Olh ei para eles, e percebi qu e falavam sério. An tes qu e eu pu desse respon der, o rapaz de olh ar du ro tirou u m a faca do bolso e, pression an do u m botão, abriu -a, m ostran do u m a lâm in a relu zen te de dezessete centímetros. “Sabe o qu e vou fazer?” disse ele. “Vou cortar a
  • 28. su a gargan ta e deixar você san grar, com o o an im al qu e ri como você.” “Ei, ra-ra-rapaz”, gagu ejei. “O qu e é qu e h á de errado comigo? Por que é que você quer me esfaquear?” “Porqu e n ão gosto da su a cara, só isso”, disse ele. Apon tou a faca para o m eu estôm ago, e com eçou a andar em minha direção. “Vam os, paizin h o. Deixe-o. Esse m en in o acaba de ch egar de Porto Rico. Não con h ece as regras”, falou outro membro da quadrilha, um moreninho espigado. “Certo, m as u m dia vai saber. E é m elh or qu e n ão pise n o dom ín io dos Bish ops.” Com u m sorriso de escárnio, ele recuou. Viraram-se e foram em bora. Corri para o apar- tamento e passei o resto da tarde pensando. No dia segu in te, n a escola, algu n s m en in os ou - viram falar do in ciden te da praça. Descobri qu e o rapaz qu e tirara a faca ch am ava-se Roberto. Naqu ela tarde, du ran te a au la de edu cação física, estávam os jogan do beisebol. Roberto derru bou -m e de propósito. Todos os outros meninos começaram a gritar: “Dá nele, Nicky. Bate nele. Mostre que ele não é de n ada, qu an do n ão está com u m a faca n a m ão. Vam os, Nicky, nós estamos com você. Dá nele!'; “Está bem ”, disse eu , “vam os ver se você é bom de briga.” Levantei-me e limpei a roupa. Tomamos posição um diante do outro, e os demais m en in os form aram u m gran de círcu lo à n ossa volta. Ouvi-os gritar: “Lu tem ! Lu tem !” e percebi qu e o círcu lo aumentava. Roberto riu , porqu e eu tom ara a posição tradi- cion al de pu gilista, com as m ãos dian te do rosto. El? encurvou-se u m pou co e tam bém levan tou os pu n h os
  • 29. fech ados, desajeitadam en te. Era óbvio qu e n ão estava acostu m ado a lu tar daqu ela form a. Dan cei em direção a ele, e an tes qu e pu desse m over-se, acertei-lh e u m soco de esqu erda. O san gu e espirrou de seu n ariz e ele deu u m passo para trás, olh an do-m e su rpreso. Avan cei de novo. De repen te, ele baixou a cabeça e carregou con tra m im com o u m tou ro, acertan do-m e n o estôm ago e jogando-m e de costas n o ch ão. Ten tei levan tar-m e, m as ele m e ch u tou com seu s sapatos pon tu dos. Rolei para o lado, e ele pu lou sobre m in h as costas e pu xou -m e a cabeça para trás, en terran do deliberada-m en te os dedos nos meus olhos. Fiqu ei pen san do qu e os ou tros m en in os iriam m e aju dar, ou pelo m en os apartar a briga, m as se lim itaram a ficar ali, torcendo. Eu n ão sabia brigar daqu ela form a. Todas as m in h as brigas h aviam sido segu n do as regras do boxe, m as pen sei qu e aqu ele rapaz iria m e m atar, se n ão fizesse algo. Agarrei as su as m ãos e tirei-as dos m eu s olh os, en terran do os m eu s den tes n o seu dedo. Ele gritou de dor e saiu de cima de mim. De u m pu lo fiqu ei de pé e tom ei n ovam en te po- sição de pu gilista. Ele levan tou -se vagarosam en te, segu ran do a m ão ferida. Dan cei em su a direção e acertei-lh e dois socos de esqu erda n o rosto. Eu o ferira, e avan cei para socá-lo de n ovo, qu an do ele m e agarrou pela cin tu ra, pren den do m eu s braços ao lado do corpo. Usan do a cabeça com o u m bate-estacas, ele com eçou a dar-m e cabeçadas n o rosto. Meu n ariz com eçou a san grar e fiqu ei cego de dor. Fin alm en te ele m e soltou e m e deu dois socos, e eu caí n o pó do pátio da escola. Sen ti qu e ele m e deu u m pon tapé, qu an do ch egou u m professor que o afastou de mim. Naqu ela n oite qu an do fu i para casa, Fran k gritou comigo. “Eles vão m atar você, Nicky. Eu lh e disse para
  • 30. ficar lon ge das qu adrilh as. Eles vão m atar você.” Min h a face estava m u ito ferida e m eu n ariz parecia estar quebrado. Eu sabia, porém, que daí para frente ninguém m ais levaria van tagem sobre m im . Eu era capaz de lu tar tão deslealm en te com o eles — e até m ais. Da próxim a vez estaria preparado . A “próxim a vez” foi várias sem an as m ais tarde. As au las tin h am term in ado, e eu ia descen do pelo corredor, em direção à porta. Percebi qu e algu n s alu n os estavam m e segu in do. Dei u m a olh ada por sobre o om bro. Atrás de m im h avia cin co garotos n egros e u m a m en in a. Sabia qu e era com u m h aver brigas feias en tre rapazes porto- riqu en h os e n egros. Com ecei a an dar m ais depressa, mas percebi que eles também apressavam o passo. Sain do pela porta, eu descia u m corredor qu e dava para a ru a. Os garotos de cor m e cercaram , e u m deles, u m gran dão, m e em pu rrou con tra a parede. Derru bei os livros, e ou tro rapaz ch u tou -os corredor abaixo, e eles caíram numa vala cheia de água suja. Olh ei ao redor, porém n ão vi n in gu ém qu e pu - desse ch am ar em m eu socorro. “O qu e você está fazen do n estes dom ín ios, rapaz?” pergu n tou o gran dalhão. “Você não sabe que isto aqui é nosso?” “Essa n ão! Isto é dom ín io da escola. Não pertence a quadrilha alguma”, disse eu. “Não ban qu e o espertin h o com igo, m en in o, n ão gosto de você.” Colocou a m ão con tra o m eu peito e m e apertou con tra a parede. Naqu ele m om en to ou vi u m cliqu e e percebi que era o ruído de um canivete automático. Qu ase todos os rapazes an davam com u m desses. Eles preferiam u sar u m tipo de can ivete de pressão, qu e é operado com o au xílio de u m a m ola. Qu an do u m pequ en o botão de lado é apertado, a m ola solta-se e a lâmina se abre.
  • 31. O rapagão colocou a arm a con tra m eu peito, pican do os botões da m in h a cam isa com a pon ta afiada e fina. “Olha o que vou fazer, espertinho”, disse ele. “Você é n ovo n esta escola, e n ós fazem os todos os n ovatos n os pagarem para receber proteção de n ós. É u m bom n egócio. Você n os paga vin te e cin co cen tavos por dia e nós garantimos que ninguém te amola.” Um dos outros rapazes deu uma risadinha forçada e disse: “Sim , m eu ch apa; da m esm a form a, n ós garantimos que não amolamos você, também.” Todos os outros rapazes riram. En tão eu disse: “Ah , é? E qu em m e prova qu e m esm o qu e eu dê vin te e cin co cen tavos para vocês todos os dias, vocês não judiarão de mim?” “Ningu ém prova, m en in o in teligen te. Você apenas nos dá o dinheiro, de qualquer forma. Se não dá, morre”, respondeu ele. “Está bem . En tão é m elh or qu e vocês m e m atem agora m esm o. Porqu e se vocês n ão m atarem , eu voltarei m ais tarde e m atarei vocês u m por u m .” Pu de perceber qu e os ou tros ficaram u m pou co am edron tados . O rapagão qu e tin h a a faca con tra o m eu peito, n atu ralm en te, pen sava qu e eu era destro. Por isso, n ão esperava qu e fosse agarrá-lo com a m ão esqu erda. Torci a su a m ão, afastan do-a do m eu peito, o fiz girar sobre si mesmo e dobrei-lhe o braço por detrás das costas. Ele deixou cair a faca e eu apan h ei-a do ch ão. Senti-me bem como ela na mão. Coloquei-a contra a sua gargan ta, pression an do-a a pon to de m arcar a pele, sem furá-la. Em pu rrei o seu rosto con tra a parede com a faca n o lado da su a gargan ta, logo abaixo da orelh a. A m ocin h a com eçou a gritar, com receio de qu e eu fosse
  • 32. matá-lo. Virei-m e para ela e disse: “Ei, bon eca, eu con h eço você. Sei on de é a su a casa. Hoje à n oite vou até lá e te mato; quer?” Ela gritou m ais alto e agarrou o braço de u m dos ou tros rapazes, com eçan do a pu xá-lo para lon ge: “Foge! Foge!” gritava ela. “Esse cara é louco. Foge!” Eles fu giram , in clu sive o rapagão qu e estivera preso con tra a parede. Deixei qu e se fosse, saben do qu e eles poderiam ter-me matado, se tivessem tentado. Desci pela calçada até on de os livros estavam jo- gados n a águ a. Apan h ei-os e sacu di-os. Ain da tin h a o pu n h al n a m ão. Fiqu ei parado m u ito tem po, abrin do e fech an do a lâm in a. Era o prim eiro “canivete de pressão” qu e segu rava em m in h a m ão. Ach ei delicioso m an ejá-lo. Deixei-o cair n o bolso do paletó e fu i para casa. “Daqu ela h ora em dian te, seria m elh or qu e eles pen sassem du as vezes an tes de se en roscarem com o Nicky”, pensei. Logo espalh ou -se o boato de qu e eu era terrível. Aqu ilo fez de m im u m a isca atraen te para qu alqu er rapaz qu e qu isesse brigar. Ch egu ei à con clu são de qu e algo drástico acon teceria: era apen as u m a qu estão de tempo. Mas, estava preparado. A explosão fin al veio dois m eses depois de eu ter com eçado a estu dar. A professora acabara de estabelecer a ordem n a classe e estava fazen do a ch am ada. Um rapaz de cor ch egou atrasado. Veio gin gan do e tin h a u m sorriso cín ico n os lábios. Havia u m a lin da garota porto-riqu en h a sen tada n a ú ltim a fileira. Ele curvou-se e beijou-a no pescoço. Ela afastou -se dele e sen tou -se ereta n a carteira. Ele deu a volta e beijou -a n a boca; ao m esm o tem po ten tan do acariciá-la. Ela pu lou do lu gar e com eçou a gritar.
  • 33. Os ou tros alu n os estavam rin do e gritan do: “Va- mos, rapaz, larga brasa!” Dei u m a olh adela para a professora. Ela pôs-se a descer en tre as fileiras, m as u m latagão levan tou -se dian te dela e disse: “Ora, professora, a sen h ora n ão vai qu erer estragar a festa, vai?” A professora en carou o rapaz qu e era m ais alto do qu e ela, e recu ou para a su a mesa, enquanto a classe urrava, divertindo-se. A esta altu ra, o rapaz tin h a a garota presa con tra a parede, e ten tava beijar lh e a boca. Ela gritava e tentava afastá-lo. Ele fin alm en te desistiu e deixou -se cair pesada- m ente no seu lugar. A professora limpou a garganta e começou de novo a fazer a chamada. Algo estalara den tro de m im . Levan tei-m e da carteira e dirigi-m e aos fu n dos da classe. A garota sen tara de n ovo e solu çava, en qu an to a professora fazia a chamada. Cheguei por trás do rapaz, qu e agora estava sen tado n a carteira, lim pan do as u n h as. Pegu ei u m a pesada cadeira de m adeira qu e estava n o fim do cor- redor e disse: “Ei, olh e, garotão, eu ten h o u m a coisa para você.” Qu an do ele virou -se para olh ar, dei-lh e u m a cadeirada n o alto da cabeça. Ele afu n dou n a carteira, en qu an to o san gu e escorria de u m profu n do corte n a cabeça. A professora saiu corren do da classe e voltou em u m segu n do com o diretor. Ele agarrou -m e pelo braço e m e em pu rrou corredor a fora, para seu escritório. Fiqu ei sen tado lá en qu an to ele ch am ava u m a am bu lân cia, e tom ava providên cias para qu e algu ém cu idasse do rapaz ferido.
  • 34. Virou-se para m im . Depois de dizer tu do o qu e ou vira a m eu respeito, n os ú ltim os dois m eses, isto é, as con fu sões em qu e eu estivera m etido, pediu -m e u m a explicação do qu e acon tecera n a classe. Con tei-lhe exatam en te o qu e h ou vera. Disse-lh e qu e o rapaz estava se aproveitan do da garota porto-riqu en h a, e qu e a professora n ada fizera para im pedi-lo. Por isso eu m e colocara a seu lado. En qu an to falava, pu de ver o seu rosto se aver- m elh ar. Fin alm en te, ele se levan tou e disse: “Está bom , já agü en tei essas brigas até on de pu de. Vocês vêm aqu i e pen sam qu e podem agir da m esm a form a qu e agem n as ru as. Pen so qu e já é h ora de dar u m exem plo, e qu em sabe se a au toridade será m ais respeitada aqu i den tro. Não estou para m e sen tar aqu i todos os dias e ver vocês se m atan do e m en tin do depois, para explicar o que não tem explicação. Vou chamar a polícia.” Pus-m e de pé: “Sen h or, a polícia vai m e pôr n a cadeia.” “Espero qu e sim ”, disse o diretor. “Pelo m en os o resto desses m on stros qu e h á aqu i apren derão a respeitar a autoridade.” “Ch am e a polícia”, disse eu ; ao m esm o tem po, en costei n a porta trem en do de m edo e de raiva, “e qu an do eu sair da cadeia, voltarei, e u m dia pego o senhor sozinho e o mato.” Meus dentes rangiam enquanto falava. O diretor ficou bran co. Su a face em palideceu e ele pensou durante um momento. “Está bem, Cruz. Vou deixar você ir desta vez. Mas n u n ca m ais qu ero vê-lo n esta escola. Não m e im porta on de você vai; para m im , pode ir para o in fern o; m as n u n ca m ais deixe qu e eu veja a su a cara aqu i por perto. Qu ero qu e saia daqu i corren do, e n ão pare en qu an to não estiver fora das minhas vistas. Compreendeu?”
  • 35. Eu compreendi. E saí... correndo. Capítulo 3 SS OOZZIINNHHOO UMA VIDA MOTIVADA pelo ódio e pelo tem or n ão tem lu gar para m ais n ada a n ão ser o próprio ego. Eu odiava a todo m u n do, in clu sive Fran k. Ele represen tava a au toridade, e qu an do com eçou a reclam ar porqu e eu n ão ia m ais à escola e ficava fora até tarde da n oite, resolvi deixá-lo. “Nicky”, disse ele, “Nova York é u m a selva. O povo qu e vive aqu i, vive pela lei da selva. Só os fortes sobrevivem. Na verdade, você ainda não viu nada, Nicky. Moro aqu i h á cin co an os e sei. Este lu gar está ch eio de prostitu tas, viciados em n arcóticos, ébrios e assassin os. Esses in divídu os podem m atar você, n in gu ém vai saber qu e está m orto, até qu e algu m m alan dro tropece n o seu corpo em decomposição, sob um monte de lixo.” Fran k tin h a razão. Mas eu n ão podia m ais ficar ali. Estava in sistin do para qu e eu voltasse à escola, e eu sabia qu e tin h a de ten tar viver por m in h a con ta, sozinho. “Nicky, n ão posso forçar você a voltar para a escola. Mas se você não fizer isso, está perdido.” “Mas o diretor m e expu lsou . Ele disse para eu n ão voltar nunca mais.” “Não ten h o n ada a ver com isso. Se qu iser viver aqui, tem de voltar. Você precisa estudar.” “Se pen sa qu e vou voltar, está lou co, Fran k.”
  • 36. Respon di com m au s m odos. “Se ten tar m e obrigar, eu te mato.” “Nicky, você é meu irm ão. Isto n ão é coisa qu e se fale. Mam ãe e papai m e disseram para tom ar con ta de você e n ão vou deixar qu e fale assim . Ou você vai para a escola, ou sai daqu i. Vá em bora, se qu iser. Mas você voltará, porqu e n ão tem on de ir. Mas se ficar, vai para a escola e é só.” Isso foi n a sexta-feira de m an h ã, an tes de Fran k sair para o trabalh o. Naqu ela tarde deixei u m bilhete sobre a m esa da cozin h a, dizen do-lh e qu e fora con vidado por algu n s am igos para ficar com eles du - ran te u m a sem an a. Eu n ão tin h a am igos, todavia n ão podia ficar mais com Frank. Naqu ela n oite, vagu eei por Bedford-Stuyvesant, u m bairro de Brooklin , procu ran do lu gar para ficar. Dirigi-m e a algu n s rapazes qu e estavam parados n u ma esquina. “Algu ém sabe on de eu posso en con trar u m quarto para morar?” Um deles virou se e olh ou para m im , tiran do baforadas de u m cigarro. “Sim”, disse ele, apon tan do com o polegar sobre o om bro, n a direção da Escola de Brooklin. “O m eu velh o é zelador daqu eles apartam en tos, do ou tro lado da ru a. Fale com ele, qu e encontrará u m lu gar para você. Lá está ele sen tado n a escada, jogan do baralh o com aqu eles ou tros caras. Ele é o que está bêbado.” Todos os outros rapazes riram. O prédio a qu e o rapaz se referira perten cia ao projeto Fort Green e, n o coração de u m dos m aiores conju n tos residen ciais do m u n do. Mais de trin ta m il pessoas viviam n os altos edifícios, sen do qu e a m aioria era de n egros e porto-riqu en h os. O Con ju n to Habitacion al de Fort Green e vai desde a Av. Park até a Av. Lafayette, e a Praça Washington fica no centro. Encaminhei-m e para o gru po de h om en s e per-
  • 37. gu n tei ao zelador se h avia u m qu arto para alu gar. Ele tirou os olh os das cartas e gru n h iu : “Sim , tem u m . Por quê?” Hesitei e gagu ejei: “Bem , porqu e eu preciso de u m lugar para morar.” “Tem qu in ze pacotes aí?” pergu n tou , cu spin do fumo na direção de meus pés. “Bem, não, agora não, mas...” “En tão n ão tem qu arto”, disse ele, e voltou ao baralh o. Os ou tros h om en s n em se dign aram a levantar os olhos. “Mas posso conseguir o dinheiro”, argumentei. “Olh e, garoto, qu an do você pu der m ostrar-me qu in ze pacotes adian tados, o qu arto é seu . Não m e im porta com o vai con segu i-los. Rou be de algu m a velh a, n ão m e im porto. Mas até qu e você ten h a o din h eiro, n ão meta mais o nariz aqui, você está me enchendo.” Voltei para a Av. Lafayette: passei por Papa J oh n 's, Casa de Carn e Harry, Bar Paradise, Sh ery's, Th e Esqu ire, Bar Valh al, e Ren dezvou s do Lin coln . Paran do ao lado do ú ltim o, en trei em u m beco, procurando descobrir como conseguir dinheiro. Sabia qu e se ten tasse assaltar algu ém e fosse apan h ado, iria para a cadeia, m as estava desesperado. Dissera a Fran k qu e só voltaria depois de u m a sem an a. Um quarto custava dinheiro, e eu não tinha um centavo. Eram qu ase dez h oras da n oite, e o ven to de in vern o estava frio de rach ar. Recu ei para a escu ridão do beco, e vi pessoas passan do n a calçada. Tirei o pu n h al do bolso e apertei o botão. A lâm in a abriu -se com u m estalido. En costei a pon ta con tra a palm a da m ão. Min h a m ão trem ia ao pen sar com o iria praticar o rou bo. Seria m elh or em pu rrá-los para o beco? Eu deveria esfaqu eá- los, ou apenas amedrontá-los? E se gritassem?...
  • 38. Meu s pen sam en tos foram in terrom pidos por du as pessoas qu e con versavam n a en trada do beco. Um velh o bêbedo fez parar u m rapaz de u n s dezen ove an os, qu e levava u m en orm e saco de m antim en tos. O velh o pedia- lh e u n s trocados para tom ar café. Ou vi o rapaz, ten tan do escapar, dizer ao bêbedo qu e n ão tin h a dinheiro. Atravessou-m e a m en te o pen sam en to de qu e o velh o, provavelm en te, estava com o bolso ch eio de din h eiro m en digado e rou bado. Não ou saria gritar pedin do socorro, se eu o rou basse. Logo qu e o rapaz se fosse eu o puxaria para o beco e tiraria o dinheiro dele. O rapaz estava pou san do o saco de m an tim en tos n o ch ão. En fiou a m ão n o bolso e en con trou u m a m oeda. O velh o resm u n gou u m agradecim en to e foi embora. “Diacho”, pensei comigo. “Que faço agora?” Naqu ele in stan te o rapaz derru bou o saco de m an tim en tos. Du as m açãs rolaram pela calçada. Ele curvou-se para apan h á-las, e eu o pu xei para o beco, apertando-o con tra o m u ro. Am bos estávam os m orren do de m edo, m as eu tin h a a van tagem da su rpresa. Ele ficou petrificado qu an do eu levan tei a faca dian te do seu nariz. “Não qu ero m ach u car você, m as preciso de di- n h eiro. Estou desesperado. Dê-m e din h eiro. J á! De- pressa! Tudo o que tem, antes que o mate.” Min h a m ão trem ia tan to qu e eu tive m edo de deixar cair a faca. “Por favor, por favor. Leve tu do, m as n ão m e mate”, rogou o rapaz. Tirou a carteira do bolso e ten tou passá-la para m im , m as derru bou -a. Ele trem ia m ais do qu e eu . Ch u tei a carteira ain da m ais para o fu n do do beco. “Caia fora”, disse eu . “Corra, h om em , corra! E se parar de correr an tes do segu n do qu arteirão, é u m
  • 39. homem morto.” Olh ou para m im , com os olh os arregalados de terror, e com eçou a correr. Tropeçou n os m an tim en tos e estatelou -se n a calçada, n a en trada do beco. Cam balean do, levan tou -se ou tra vez, e m eio de gatin h as, m eio em pé, saiu corren do ru a abaixo. Logo qu e virou a esqu in a, pegu ei a carteira e corri com todas as forças n a direção oposta. Em ergin do da escu ridão em De Kalb, saltei a cerca de corren te qu e cerca o parqu e, e corri pela gram a alta, em direção às árvores. Escondendo-m e por trás de u m aterro, parei para tom ar fôlego e perm itir qu e o m eu coração acelerado se acalm asse. Abrin do a carteira, con tei dezen ove dólares. Era u m a sen sação agradável ter as n otas n a m ão. Atirei a carteira n o m eio da gram a alta, e con tei o din h eiro outra vez, antes de dobrá-lo e colocá-lo no bolso. Nada m al, pen sei. As qu adrilh as estão m atan do vagabu n dos por m en os de u m dólar, e eu conseguira dezen ove n a prim eira ten tativa. Afin al de con tas, as coisas não iam assim tão mal. Mas o sen tim en to de au tocon fian ça n ão rem oveu todo o medo e permaneci escondido detrás dos arbustos, até depois da m eia-n oite. A essa altu ra, já era tarde demais para ir procu rar o qu arto; voltei en tão ao lu gar on de h avia com etido o rou bo. Algu ém já ju n tara todos os m an tim en tos qu e h aviam caído, com exceção de u m a caixa de bolachas, que estava toda amassada. Apanhei a caixa e sacu di-a, fazen do com qu e os pedaços e o farelo caíssem n a calçada. Recon stitu í o acon tecido em m eu s pen sam en tos, e sorri. Eu devia tê-lo cortado, só para ver como era, pensei. Da próxima vez, vou fazer isto. Dirigi-m e para a en trada do m etrô, perto de Papa J oh n , e pegu ei o prim eiro trem qu e ch egou . Passei a n oite n o m etrô, e n o dia segu in te, logo cedo, estava de volta à Rua Fort Greene para alugar o quarto. O zelador subiu comigo três lances de escadas. O quarto
  • 40. tin h a jan elas para a ru a qu e ficava defron te à Escola Técn ica de Brooklin . Era pequ en o, com rach adu ras n o forro. O zelador disse-me que havia um banheiro comum n o segu n do an dar, e qu e eu podia regu lar o sistem a de aqu ecim en to com a m açan eta do radiador de aço. Entregou-m e a ch ave, e disse-m e qu e o alu gu el ven cia todo sábado, u m a sem an a adian tado. A porta fech ou -se atrás dele. Escu tei seu s passos soan do pesadam en te escada abaixo. Voltei-m e e olh ei o qu arto. Havia du as cam as de solteiro, u m a cadeira, u m a m esin h a, u m lavatório e u m pequ en o gu arda-rou pa. In do à jan ela, olh ei a ru a, lá em baixo. O trân sito, logo cedin h o, m ovia-se com u m zu m bido n a Av. Lafayette, n o fim do qu arteirão. Do ou tro lado da ru a ergu ia-se a Escola Técn ica de Brooklin . Ocu pava todo o qu arteirão e im pedia a visão de qu alqu er ou tro pan oram a, m as n ão fazia m u ita diferença. Pelo menos, eu estava por conta própria. Naqu ela m an h ã, dei a prim eira volta pela vizi- n h an ça. Descen do as escadas do pardieiro, vi u m rapaz sair cam balean do de debaixo da escada. Su a face estava pálida com o u m len çol, e seu s olh os profundamente en covados. O paletó su jo e esfarrapado caía de u m dos om bros, e as su as calças ficaram com a bragu ilh a aberta, depois dele ter u rin ado atrás do radiador. Não sabia dizer se estava bêbedo ou dopado. Parei n o patamar e fiquei a observá-lo, enquanto saía pela porta e descia os degrau s extern os. Debru çou -se sobre o corrimão e vomitou na calçada. Um grupo de “pequenos” irrom peu por u m a porta lateral do prim eiro an dar e correu para fora, ign oran do com pletam en te su a presen ça. O cara parou de vom itar e deixou -se cair n o último degrau, olhando inexpressivamente para a rua. Passei por ele e desci para a calçada. Sobre a minha cabeça ouvi uma janela abrir-se e olhei para cima exatam en te a tem po de desviar-m e rapidam en te de u m a
  • 41. avalan ch e de lixo qu e era jogada do terceiro an dar. Em ou tra porta, logo adian te, u m dos “pequenos” estava agach ado n a pen u m bra, debaixo da escada, u san do u m a en trada de porão com o latrin a. Estrem eci, m as disse a m im m esm o qu e acabaria m e acostu m an do com aquilo. Por trás do edifício de apartam en tos h avia u m terren o baldio, ch eio de espin h eiros e m ato qu e ch e- gavam à altura da cintura. Algumas árvores esqueléticas esticavam seu s galh os desn u dos para o céu cin zen to. A prim avera com eçara, m as as árvores pareciam relu tan tes em fazer brotar n ovos reben tos e en fren tar ou tro verão do gu eto (Gu eto: Nom e dado a u m a área pobre de cidade gran de, em qu e h abitam pessoas de u m a m esm a raça ou cor. N. dos E.). Ch u tei u m a lata de cerveja vazia — o terren o estava ch eio delas. Caixas velh as de papelão, jorn ais e caixas qu ebradas estavam espalh ados n o m eio do m ato crescido. Um a cerca de aram e toda estragada, esten dia-se através do lote, até ou tro edifício de apartam en tos qu e fazia fren te com a Ru a St. Edward. Olh an do para trás, vi o m eu prédio, e algu m as das jan elas do prim eiro an dar tapadas com tábu as ou com folh as de zin co, para resgu ardar os apartam en tos do ven to frio. Dois prédios além , eu vi as faces redon das de u n s n egrin h os pequ en os, com seu s n arizes apertados con tra a vidraça su ja, observan do-me chutar o lixo. Eles m e fizeram pen sar em an im aizin h os en gaiolados, an sian do pela liberdade, m as com m edo de aventurar-se fora da gaiola, tem erosos de serem feridos ou m ortos. Parte da jan ela estava qu ebrada e em seu lugar haviam posto folhas de papelão manchado de umi- dade. Con tei cin co faces am edron tadas. Possivelm en te h avia m ais cin co n o pequ en o apartam en to de três cômodos. Dei a volta, e retorn ei à fren te do apartam en to. O apartam en to do porão, debaixo do n ú m ero 54, estava vago. O portão de ferro estava aberto. Ch u tei-o e en trei
  • 42. O ch eiro de u rin a, excrem en tos, vin h o, fu m o e graxa era maior do que eu podia suportar. Saí depressa prendendo a respiração. Pelo m en os eu tin h a u m qu arto n o terceiro andar. Com ecei a descer pela calçada. As prostitu tas constituíam u m a cen a patética. As m u lh eres bran cas exerciam o seu com ércio do lado direito da ru a e ocu pavam u m prédio de apartam en tos a u m qu arteirão do meu. As mulheres de cor “trabalhavam” do outro lado da ru a, e viviam perto da en trada do m etrô. Eram todas viciadas em n arcóticos. Picavam por ali, vestidas com casacos su jos, em gru pos. Algu m as bocejavam ou porqu e estavam doen tes, ou porqu e precisavam de u m “estimulante”, u m a picada de h eroín a, logo de m an h ã, para animá-las. Dois m eses se passaram e eu ain da n ão m e acos- tu m ara com Nova York. Lá em Porto Rico vira gravu ras da estátua da Liberdade e do edifício das Nações Unidas, m as aqu i, n esta área pobre, só h avia edifícios de apartam en tos até perder de vista, ch eios de carn e h u m an a. Cada jan ela sim bolizava u m a família, am on toada em qu artos m in ú scu los, levan do u m a vida m iserável. Pen sei n o jardim zoológico de San J u an , on de os u rsos an davam len tam en te, e os m acacos tagarelavam detrás das grades. Eles se espojavam n a su a própria im u n dície. Com iam carn e estragada ou alface m u rch a. Lu tavam u n s con tra os ou tros, e a ú n ica vez em qu e con cordavam era qu an do se reu n iam para rech açar u m in tru so. Os an im ais n ão foram feitos para viver desta form a, só com u m a floresta pin tada n a parede de trás da jau la, a recordar-lhes o lu gar on de deveriam estar. Nem as pessoas. Mas aqu i, n os gu etos, elas vivem assim. Parei n o m eio-fio, n a esqu in a da Av. Myrtle, es- peran do o sin al abrir. Sobre m in h a cabeça u m trem ru giu e m atraqu eou , cobrin do os qu e estavam em baixo
  • 43. com u m a cam ada fin a de fu ligem e poeira. As ru as estavam cobertas com u m a m istu ra lam acen ta de n eve, su jeira e sal, qu e o povo atravessava qu an do o sin al abria. Nos fu n dos dos prédios de apartam en tos os varais iam de u m a sacada a ou tra, de u m a ch am in é a ou tra. As cam isas azu is e calças cáqu i drapejavam ao ven to gélido. Rou pas de baixo qu e u m a vez h aviam sido bran cas agora eram de u m cin zen to en cardido, devido à con stan te exposição ao ar polu ído. O sábado am an h ecera. Os lojistas abriam as pesadas grades de ferro defron te às lojas. Em m u itos qu arteirões n ão h avia loja que não tivesse uma grade de ferro em forma de tela ou barras de ferro, para protegê-la das qu adrilh as qu e por ali vagueavam à noite. Os apartam en tos eram , porém , o qu e m ais m e deprim ia. Havia evidên cias de ten tativas an êm icas dos ocu pan tes, procu ran do algu m a form a de iden tidade, acim a da selva de con creto e dos precipícios de tijolos. Mas era u m esforço desesperado à sem elh an ça de u m h om em qu e está se en terran do em areia m ovediça, qu e tateia às bordas do lodaçal com dedos frem en tes, procu ran do u m a raiz qu e seja, agarran do-se a ela desesperadam en te, en qu an to é arrastado para o fu n do, com a raiz qu ase esm agada n as m ãos apertadas em desespero. Um vaso de cerâm ica, su jo, com flores, en feitava o baten te de u m a jan ela coberta de fu ligem . Um gerân io mal cuidado apoiava-se contra o vidro. Ocasion alm en te, via u m apartam en to com esca- das pin tadas de cores vivas, e às vezes os u m brais de u m a jan ela estavam pin tados, aparecen do assim em flagran te con traste com as pedras escu ras. Em ou tro local u m a jardin eira im provisada, feita com a m adeira rústica de um engradado, aparecia dependurada de uma jan ela im u n da. Nela, algu m as flores artificiais
  • 44. desafiavam o ven to de in vern o, cobertas da fu ligem qu e saía de m ilh ares de ch am in és ergu idas por toda a cidade. Eu ch egara à Ru a St. Edward, e parara defron te à biblioteca Walt Wh itm an , perto do Distrito Policial. Do ou tro lado da ru a h avia u m en orm e edifício de apartam en tos de doze an dares, qu e cobria u m quarteirão inteiro. Suas seiscentas janelas davam para a ru a, cada u m a represen tan do u m estado m iserável de h u m an idade, trem en do por trás das vidraças De u m a das jan elas pen dia u m trapo esfarrapado, ou trora de cores brilh an tes, agora desbotado devido às in tem péries. A m aior parte das jan elas' n ão tin h a ven ezian as ou cortinas — estavam ali, arregaladas com o os olh os de um cadáver congelado, deitado na rua. Voltei sobre os m eu s passos, em direção à Praça Wash in gton . O qu e h á de errado com este povo, aqu i n este lu gar im u n do? pen sei. Por qu e vive assim ? Não h á qu in tais. Nem gram a. Nem espaços abertos. Nem árvores. Eu n ão sabia qu e u m a vez qu e algu ém m u da para u m a daqu elas gaiolas de con creto, fica prision eiro dela. Não há escapatória na selva de asfalto. Naqu ela tarde, desci ru a abaixo de n ovo. Eu n otara qu e h avia u m a espécie de parqu e de diversões e espetácu los, n o pátio qu e h avia atrás da Igreja Católica de St. Mich ael e St. Edward n a esqu in a das ru as Au bu rn e St. Edward. Era u m a qu erm esse. Ch egu ei às qu atro h oras. A m ú sica do alto-falan te ressoava n o volu m e m áxim o. Ain da tin h a u m pou co de din h eiro qu e restara do fu rto, e o pen sam en to de u m a qu erm esse fazia m eu san gu e form igar. Na porta, n otei u m gru po de rapazes em volta de u m tocador de realejo. Vestiam blu sões n egros, com dois M verm elh os costu rados n as costas. A m ú sica do realejo era qu ase su focada pelo baru lh o qu e os rapazes estavam fazen do, baten do palmas e dançando no meio da calçada.
  • 45. No cen tro do gru po estava u m rapaz de cabelos negros, bem magro, mais ou menos da minha idade. Seu rosto bon ito abria-se n u m sorriso, en qu an to ele sapateava, em ritmo acelerado. Com as mãos na cintura, ele girava ao ritm o da m ú sica. Repen tin am en te seu s olhos negros encontraram os meus. Parou de repente e o sorriso foi in stan tan eam en te su bstitu ído por u m olh ar duro e frio. “Ei, cara, o qu e é qu e você está fazen do n este território? Aqu i é dom ín io dos Mau -Mau s. Nós n ão queremos nenhum quadrado rondando por aqui.” Devolvi-lh e o olh ar du ro, e percebi qu e os ou tros rapazes de blu são preto h aviam , silen ciosam en te, for- m ado u m pequ en o círcu lo ao n osso redor. O rapaz bon ito, de olh os frios com o o aço, en cam in h ou -se para m im e m e em pu rrou com o peito, rin do: “Qu al a su a “turma”, moleque?” “Não ten h o tu rm a”, respon di. “Vim aqu i para entrar na quermesse. É crime?” Um rapaz do grupo avançou para mim. “Ei, m eu ch apa, você sabe o qu e é isto?” disse ele, bran din do u m a faca aberta. “Isto é u m pu n h al, cara. Isso vai cortar su a barriga. Qu ero ver você a ban car o espertinho comigo! Eu não sou mole como o Israel.” O rapaz a qu em ele ch am ara de Israel fez sin al para o ou tro afastar-se, e con tin u ou : “Sabe, u m qu a- drado pode ser m orto n u m in stan te. Pode ser qu e eu o mate. Agora, se você quer viver, é melhor pinicar .” Eu estava com raiva, e pu s a m ão n o bolso, pro- cu ran do m in h a faca, m as ch egu ei à con clu são de qu e a m in h a desvan tagem era m u ito gran de. Não qu eria portar-m e com o covarde, m as sabia qu e h averia ou tra oportu n idade para dem on strar m in h a coragem . Assen ti com a cabeça e voltei ru a acim a, em direção à Praça Wash in gton , e ao m eu qu arto. Atrás de m im pu de ou vir
  • 46. a qu adrilh a rin do e apu pan do: “Isto é qu e é falar, Israel. Aquele pirralho aprendeu a lição, desta vez. Vai fazer frio no inferno antes que ele ponha o nariz aqui de novo.” Eu estava zan gado e fru strado. Passan do por baixo do pon tilh ão do trem n a Av. Myrtle, en trei n a praça e sen tei-m e em u m ban co. Não n otei qu e u m garoto de cerca de treze an os m e segu ira. Virei-m e e olh ei para ele, qu e riu e sen tou -se n o ban co, ao m eu lado. “Eles lh e fizeram passar u m aperto, n ão?” disse ele. “O qu e você está pen san do?” pergu n tei. “Eu dou em todos eles, m as seria u m bobo se tosse lu tar con tra todos de uma só vez.” “Rapaz, as qu adrilh as aqu i são du ron as”, disse o m en in o, tiran do do bolso da cam isa u m cigarro feito em casa. “Matam a gente se não concordar com eles.” Acendeu o cigarro e notou que eu o observava. “Você fu m a m acon h a?” pergu n tou . Men eei a cabeça, embora soubesse do que estava falando. “Qu er experim en tar? Ten h o m ais u m . É bárbaro, bicho.” “Claro”, respon di. Recu ara u m a vez n aqu ela tarde, e não queria recuar de novo. Ele en fiou a m ão n o bolso da cam isa e tirou u m cigarro dobrado e am arfan h ado. Estava dobrado em am bas as pon tas, e m an ch ado lateralm en te, on de ele lambera o papel para colá-lo. “É preciso tragar”, disse o rapaz. “Se n ão, ele se apaga.” Ele acen deu o cigarro e com ecei a fu m ar cu ida- dosamente . “Não”, riu o menino, “é assim.”
  • 47. Deu u m trago profu n do n o cigarro e in alou va- garosamente a fumaça para os pulmões. “Pu xa, com o isto é bom ! Se você der baforadas, ele se qu eim a e você n ão aproveita. Você precisa tragar, meu chapa!” Eu traguei. Tinha um gosto estranhamente doce, e um cheiro forte. “O qu e acon tece?” pergu n tei, com eçan do a sen tir os efeitos atordoantes da erva. “Meu ch apa, isto faz a gen te voar”, respon deu o rapaz. “Faz a gen te rir u m bocado. Faz a gen te ach ar qu e é o m elh or dan çarin o, m elh or n am orador, m elhor lutador. Todos aqueles rapazes lá na quermesse estavam fumando a erva. Você não viu como os olh os deles estavam verm elh os? A gen te pode saber se eles estão “altos”, observan do o brilh o dos olhos.” “Onde é que você consegue isto?” “Ah, é fácil. Tem umas cem bocas de fumo aqui na vizin h an ça. A m aior parte dos rapazes pode con segu i-la para você. Eles con segu em de con tatos m ais im portan tes. Cu ba, México. Eu ? Meu velh o tem u m a plan tação de m acon h a n o fu n do do qu in tal. Nosso qu in tal está ch eio de m ato. Nin gu ém vai lá, e o m eu velh o plan tou algu m as sem en tes n o m eio do m ato. Nós tem os u m as m u das, para o gasto. Não é tão boa com o outros tipos de mercadoria, mas é de graça.” “Qu an to cu sta, a gen te com pran do n u m a boca de fumo?” pergu n tei, procu ran do apren der o vocabu lário e u m pou co em baraçado pelo fato de u m m en in o de treze anos saber mais do que eu. “Alguns “pacaus” custam um dólar. Algumas vezes a gen te en con tra a seten ta e cin co cen tavos, m as é m elh or com prar u m a lata. É com o u m a pequ en a lata de
  • 48. fu m o. Dessa form a a gen te pode fazer os próprios “pacaus” por qu aren ta cen tavos, m ais ou m en os. Mas, precisa ter cu idado. Algu n s caras podem qu erer tapear você. Eles m istu ram orégan o com a m acon h a, e assim a gen te n ão com pra a erva pu ra. Sem pre é bom provar antes de pagar, pois certamente eles quererão tapear.” Eu term in ara de fu m ar o m eu “pacau”, e esticara as pern as para a fren te, descan san do a cabeça n as costas do ban co. Não parecia estar sen tin do o ven to frio, e a ton tu ra desaparecera, deixan do-m e u m a sen sação de estar flutuando em uma nuvem de sonho. Voltei-m e para olh ar o garoto. Ele estava sen tado no banco, com a cabeça nas mãos. “Pensei que esta droga devia fazer a gente feliz. Por que você não está rindo?” “Rapaz, por qu e é qu e eu vou rir?” disse ele. “Meu velh o é u m beberrão. Só qu e ele n ão é m eu verdadeiro pai. Ele veio m orar com m in h a m ãe n o an o passado. Pra te con tar a verdade, eu n em sei qu em é o m eu velh o. Esse h om em bate n a m in h a m ãe o tem po todo. Na sem an a passada ten tei tirá-lo de cim a dela e ele deu u m a garrafada n a m in h a cara, qu ebran do-m e dois dentes. Joguei um despertador nele, que pegou nas suas costas. Então minha mãe, minha própria mãe me xingou e disse para eu me mandar... que eu não tinha direito de m ach u car o seu h om em . Agora eu estou m oran do n a ru a, esperan do a h ora de poder m atá-lo. Não faço parte de n en h u m a qu adrilh a. Não estou u n ido a n in gu ém . Estou só esperan do pegar aqu ele vagabu n do sozin h o, para m atá-lo. Tam bém n ão gosto m ais de m in h a m ãe. Que motivo tenho para sorrir?” Nenhuma vez levantou a cabeça enquanto falava. “Esse é o m esm o h om em qu e plan tou a m acon h a no fundo do quintal?” perguntei. “É. Ele também é traficante. Meu chapa, espera só
  • 49. eu o pegar sozinho. Vou furá-lo — atravessá-lo com uma faca.” Ele olhou para cima, o rosto contorcido e cansado. Parecia m ais a face de u m m acaco velh o, do qu e a de um rapazinho de treze anos. “E o seu velh o, ele tam bém é u m pau dágu a?” “Não, eu sou de sorte. Eu n em m esm o ten h o u m velh o ou uma velha”, menti. “Sou sozinho.” O m en in o levan tou a cabeça: “É, agora eu tam - bém; espero.” Depois, an im an do-se, acrescen tou : “Bem, “ciao”. Tom e cu idado com as qu adrilh as. Eles te m atam , se te pegarem na rua durante a noite!” “Ei, e o qu e você m e diz dessas qu adrilh as? Quantas são?” “Centenas”, disse ele. “Rapaz, h á tan tas qu e a gente nem pode contar.” “O que é que eles fazem?” “Brigam , m eu ch apa; o qu e m ais? Estão sem pre saindo para lu tar con tra ou tra gan g, ou en tão ficam perto de casa para defen der seu s dom ín ios con tra al- guma gang invasora. Quando não estão combatendo uns com os ou tros, estão com baten do com a polícia. Usam tudo o que podem para brigar. Carregam facas, porretes, pistolas, revólveres, soqu eiras de bron ze, rifles, espin gardas de can o serrado, baion etas, tacos de beisebol, garrafas qu ebradas, tijolos, pedras, corren tes de bicicleta... rapaz, qu alqu er coisa qu e você pen sar, eles u sam para m atar. Ch egam a afiar a pon ta do guarda-ch u va, pôr pregos n os sapatos, e algu m as das qu adrilh as dos italian os carregam n avalh as, e colocam lâm in as de barbear en tre os dedos, qu an do vão dar socos. Fiqu e por aqu i, e você vai ver. É por isto qu e n ão m e u n o a eles. Eu só an do pelos becos e ru as escu ras, e fico lon ge deles. Mas você vai apren der; fica por aí, qu e você aprende.”
  • 50. Ele se levan tou e foi an dan do sem destin o pela praça, desaparecen do n o crepú scu lo. Voltei ao n ú mero 54 da Fort Greene. Já estava ficando escuro. Capítulo 4 BBAATTIISS MMOO DDEE SS AANNGGUUEE VÁRIAS SEMANAS MAIS TARDE, saí de m eu apartam en to por volta de oito da n oite, e fu i até Papa J oh n 's, n u m a esqu in a da Av. Lafayette. Um m oço porto- riqu en h o ch am ado Tico estava en costado n a parede do edifício, fu m an do. Eu já m e en con trara com ele u m a ou duas vezes, e sabia que era perito na faca. Ele olh ou para m im e disse: “Ei, Nicky, você gostaria de ir a u m a “festinha”? Vou apresen tá-lo ao Carlos, presidente da gang.” Eu tin h a ou vido falar dessas “festinhas”, m as n u n ca fora con vidado, por isso aceitei pressu roso o seu con vite, e acom pan h ei-o por u m a ru a tran sversal; en tram os em u m porão debaixo de u m lan ce de escadas de um edifício de apartamentos. Tive dificu ldade em acostu m ar os olh os com a pen u m bra. Um qu ebra-lu z estava aceso a u m can to. Um pou co de claridade en trava pelas jan elas, e u m pouquinho, pela porta, vinda das luzes da rua, lá fora. Qu an do en trei n o salão, pu de ver figu ras agar- radas u m as às ou tras, dan çan do ao som de m ú sica su ave. Su as cabeças caíam n o om bro u m a da ou tra, enquan to os pés m oviam -se em com passo com a m ú sica lenta. Um dos rapazes agarrou uma garrafa de vinho por trás das costas do seu par, e cam baleou ao m esm o
  • 51. tem po qu e rodeava o pescoço da m oça com o braço e tomava um longo trago da garrafa. Vários rapazes se ach avam sen tados dian te de u m a pequ en a m esa, jogan do baralh o e fu m an do m a- con h a, com o vim a saber m ais tarde. Um a garrafa de vinho fora colocada no meio da mesa. Bem ao fu n do do salão, lon ge da lâm pada, dois casais estavam deitados n u m a esteira. Um casal estava aparen tem en te dorm in do, u m n os braços do ou tro. En qu an to eu ain da os observava, levan taram , e saíram tropeçando por uma porta lateral. Tico olh ou para m im e piscou . “Há u m a cam a ali. Eles podem fazer amor quando quiserem.” Um m on te de revistas com figu ras de m u lh eres nuas e semi-nuas estava no chão, aos meus pés. “Então, isto é uma “festinha”, pensei. Tico agarrou m eu braço e em pu rrou -m e salão adentro. “Ei, tu rm a, este é u m am igo m eu . Vam os fazê- lo sentir-se em casa.” Um a garota lou ra su rgiu das trevas perto da por- ta, e me agarrou pelo braço. Estava com um suéter preto apertado, u m a saia verm elh a, e descalça. Coloqu ei a m ão ao redor da su a cin tu ra e disse: “Ei, bon eca, qu er dançar comigo?” “Com o se ch am a?” pergu n tou . An tes qu e eu pu desse respon der, Tico falou : “Seu n om e é Nicky. Ele é m eu am igo e é u m cara m u ito bom de briga. Pode ser que entre na nossa turma.” A garota deslizou à m in h a fren te e ficou bem perto de mim. “Tá bom , Nicky, se você é tão bom de briga, vam os ver se é bom também para dançar.” Dan çam os u m pou co e depois param os para ver
  • 52. dois rapazes fazer o jogo da “galinha” com uma faca. Um dos rapazes estava de pé con tra a parede, e o ou tro atirava uma faca em direção aos seus pés. O objetivo era espetar a faca tão perto quanto possível, sem acertar nos pés. Se o rapaz recuasse, ele era um “galinha”. Surpreendi-m e desejan do qu e ele ferisse o rapaz. A idéia de ver san gu e m e excitava. Ali de pé, com ecei a rir in teriorm en te, esperan do qu e ele errasse, e machucasse o outro. A lou ra de su éter n egro m e pu xou pelo braço: “Ven h a com igo. Qu ero qu e você con h eça u m cara qu e é muito importante.” Segui-a até u m a sala ao lado. Um porto-riquenho alto e esbelto estava estirado n u m a cadeira, com as pern as sobre u m a m esin h a à su a fren te. Um a garota estava sen tada a cavalo em seu colo, en costada n ele, e ele soprava fumaça através do cabelo dela e sorria. “Ei!” gritou para n ós. “Vocês n ão têm edu cação? Não sabem qu e n ão podem en trar aqu i sem pedir licen ça? Vocês podem m e pegar fazen do algu m a coisa qu e n ão qu ero qu e n in gu ém veja.” Riu , virou -se de lado, e deu tapin h as n os qu adris da garota com am bas as mãos. Olh an do para m im , ele pergu n tou : “Qu em é esse cara?” A lou ra respon deu : “É m eu am igo Nicky. Veio com Tico. Tico disse que ele é bom de briga.” O rapaz alto tirou a garota do colo e olh ou carran cu do para m im . Depois arregan h ou os den tes num sorriso e estendeu a mão. “Toca aqu i, Nicky. Meu n om e é Carlos. Presidente dos Mau-Maus.” Cu idadosam en te en costei m in h a m ão aberta n a su a e pu xei-a para trás, escorregan do a palm a con tra a
  • 53. dele. Esta é a maneira de cumprimentar das quadrilhas. Ou vira falar dos Mau -Mau s. Eles tom aram esse n om e em prestado dos san gu in ários selvagen s da África. Já os vira nas ruas, com seus blusões de couro com dois M verm elh os costu rados às costas. Usavam ch apéu s alpin os extravagan tes, m u itos dos qu ais en feitados com fósforos de m adeira. Qu ase todos carregavam ben galas e u savam sapatos pon tu dos e podiam m atar u m h om em a pontapés em questão de segundos. Carlos acen ou com a cabeça para o can to da sala e eu recon h eci o rapaz qu e vira n a qu erm esse. “Aqu ele é Israel, vice-presidente dos Mau-Maus.” O rosto de Israel, ao olh ar para m im , estava in expressivo. Seu s profu n dos olh os n egros pareciam qu erer perscru tar m in h a alm a, deixando-me embaraçado. Descobri m ais tarde qu e o presiden te e o vice- presiden te estão qu ase sem pre ju n tos. Protegem -se u m ao outro no caso de um dos dois ser atacado. “Quantos anos, Nicky?” perguntou Carlos. “Dezesseis”, respondi. “Sabe brigar?” “Claro.” “Está disposto a brigar com qu alqu er u m , até com a polícia?” “Claro”, respondi outra vez. “Ei, você já “furou” alguém ?” “Não”, repliquei pesaroso, mas falando a verdade. “Alguém já tentou “furá-lo” ?” “Já”, respondi. “É ?”, disse Carlos, dem on stran do ren ovado in - teresse. “E o que foi que você fez com o cara?”
  • 54. “Nada”, disse eu , “m as vou fazer. Só estou es- peran do pegá-lo de n ovo, e qu an do isso acon tecer, vou matá-lo.” Israel in terrom peu -nos: “Escu te, m eu ch apa, se você qu er en trar para a n ossa gan g, precisa ser como n ós. Som os os m ais du rões. Até a polícia tem m edo da gen te. Mas n ão qu erem os “bolhas”. Para en trar para a nossa quadrilha, não pode ser “bolha”. Tá certo? Se você bancar o “galinha”, nós cortamos e matamos você.” Eu sabia qu e Israel estava falan do a verdade, pois já ou vira con tar de rapazes qu e tin h am sido m ortos por su as próprias qu adrilh as, por terem den u n ciado u m colega de gang. Carlos, en tão falou : “Du as coisas, rapaz: se você en trar para os Mau -Mau s, é para toda a vida. Nin guém pede dem issão. Segu n do, se a polícia te pegar e você der o serviço, n ós acertam os você qu an do sair da cadeia, ou en tram os n a cadeia e acertam os você lá. O fato é qu e acertamos.” Israel m ostrou u m sorriso escarn in h o n o rosto simpático: “Qu e tal, m en in o, você ain da qu er en trar n a turma?” “Dêem-m e três dias”, disse eu . “Se eu en trar para a sua gang quero ir até o fim.” “Tá bom , m eu ch apa”, disse Carlos, “tem três dias para pensar. No fim desse prazo, volte aqui. Quero saber su a decisão.” Ele ain da estava m eio deitado n a cadeira com as pern as sobre a m esa. Atraíra a garota para si, ou tra vez, e estava com a m ão esqu erda sob a su a saia, ao redor dos quadris. Virei-m e para sair, e Carlos disse: “Ei, Nicky, eu m e esqu eci de lh e dizer: se você con tar a algu ém ... a qu alqu er pessoa... on de estam os, eu o m ato an tes de você dizer “ai”. Morou?”
  • 55. “Morei”, respondi. E eu sabia que ele falava sério. Lá fora, n a ru a, in terrogu ei Tico: “O qu e é qu e você ach a, Tico? Ach a qu e eu devo en trar para os Mau - Maus?” Tico apenas encolheu os ombros. “É u m n egócio bom , cara. Se en trar, eles tom am con ta de você. Se n ão en trar, eles são capazes de m atá- lo por n ão ter en trado. Você n ão tem m u ita escolh a agora. Além disto, você vai ter qu e en trar para u m a quadrilha, para continuar vivo por aqui.” “Qu e é qu e você ach a de Carlos ?” pergu n tei, “que tipo de sujeito é ele?” “É cem por cen to. Não fala m u ito, m as qu an do fala, todo m u n do escu ta. Ele é o ch efe, e todos sabem disso.” “É verdade qu e o presiden te escolh e a garota qu e quiser?” perguntei. “É”, disse Tico. “Tem u m as seten ta e cin co garotas em n ossa gan g e o presiden te escolh e qu alqu er u m a delas. Cada dia é u m a diferen te, se qu iser. Rapaz, elas gostam disso. Você sabe, n am orar o presiden te é ser im portan te. Elas brigam para ver qu em vai divertir-se com ele. E isto n ão é tu do. A qu adrilh a cu ida do presiden te. Ele tem a parte do leão em tu do o qu e roubamos — o qu e geralm en te dá para ele pagar o alu gu el, a com ida e as rou pas. Ser presiden te é u m alto negócio.” “Ei, Tico, se você é tão bom de faca, por qu e você não é o presidente ?” “Eu n ão, m eu ch apa. O presiden te n ão briga m u i- to. Ele tem de ficar para trás e fazer os plan os. Eu gosto é de brigar. Não quero ser presidente.” “É disso tam bém qu e eu gosto”, pen sei. “Prefiro
  • 56. brigar... brigar.” Tico foi para o Papa J oh n 's ou tra vez, e eu voltei para o n .° 54 de Fort Green e. Sen tia o san gu e ferver n as veias ao im agin ar o qu e m e esperava. As “festinhas”, as garotas... Porém , acim a de tu do, as brigas. Eu n ão teria m ais de brigar sozin h o. Poderia ferir tan to qu an to qu isesse, sem ser ferido. Meu coração com eçou a bater m ais depressa. Talvez eu tivesse a ch an ce de esfaqu ear algu ém . Qu ase qu e já podia en xergar o san gu e escorren do pelas m in h as m ãos e pin gan do n a ru a. Fiz m ovim en tos com as m ãos, golpean do o ar, en qu an to an dava, com o se estivesse com u m a faca atacan do e ferin do figu ras im agin árias n a escu ridão. Dissera a Carlos qu e resolveria em três dias, m as já m e decidira. Tu do o qu e qu eria era qu e algu ém m e desse u m pu n h al e um revólver. Duas noites mais tarde, voltei à sede da quadrilha. Entrei, e Carlos veio me encontrar na porta. “Ei, Nicky, você ch egou bem n a h ora. Há ou tro rapaz qu e deseja en trar para os Mau -Mau s. Qu er ver o ritual de iniciação ?” Eu n ão tin h a idéia do qu e fosse u m a in iciação, m as qu eria assistir. Carlos con tin u ou: “Mas qu em sabe se você veio para dizer qu e n ão qu er en trar para a gan g, hein?” “Não”, repliqu ei. “Vim para dizer qu e qu ero en trar. Qu ero brigar. Ach o qu e sou tão du rão com o qu alqu er de vocês, e luto melhor do que a maioria dos outros.” “Bom”, disse Carlos, “você pode assistir, e depois será a su a vez. Tem os du as m an eiras de saber se o cara é covarde. Ou ele fica im óvel en qu an to cin co dos n ossos rapazes m ais fortes o su rram , ou en costa n a parede esperan do a faca. Se fu gir de qu alqu er u m a das provas, n ão pode en trar para a qu adrilh a. Este rapaz diz qu e é du rão. Vam os ver se é m esm o. E depois verem os se você