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UNIVE RS IDADE DO ES TADO DA BA HIA
    DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMA NAS - CAMPUS I
PROG RAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS
             J ONALVA SANTIAGO DA S ILVA




          DO CORDEL À NA RRATIVA BIOGRÁF ICA :
  A IN VENÇÃO DE BESO URO, O HERÓI DE CORP O FEC HADO




                    S ALVADOR – BA
                         2010
J ONALVA SANTIAGO DA S ILVA




    DO CORDEL À NARRATIV A BIOGRÁFICA:
A INVENÇÃ O DE BESOURO, O HERÓI DE CORPO FECHA DO




                      Dis sertação apresentada ao Programa de
                      Pós-graduação em E stu do de Lingu age ns
                      da Univer s idade do Estad o d a Ba hia,
                      como requis ito p arcial para ob tenção do
                      títu lo de Mestre, sob a orient ação da
                      Profª Drª. Márcia Rio s da Silva




                 S ALVADOR – BA
                      2010
Ilustração da capa: Desenho de Carybe.
Extraído do livro O Jogo da capoeira. 24 desenhos de Carybé.K.Paulo Hebeisen.
(org). Coleção Recôncavo. Salvador, Livraria Turista, 1951.


 S586
            Silva , Jona lva Santiago da
                  Do cordel à na rrativa b io g ráfic a: A Invenção de Be souro
             herói de corpo fech ado/ Jonalva Santiago da Silva- Salva dor,
            2010.
               126 f.:il


                Orientador Prof.ª Dr.ª M árcia Rios da Silva
 .
                 Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia
             DepartamentoCiê ncias Humanas - Campus I Programa
            de Pós Graduação em Estudo de Linguagens.


              1. Besouro Mangangá - Capoeira na literatura brasileira 2.Capoeira –
           Bahia 3 .Capoeirista I. Titulo

                                                            CDD B869.00
Dedico este trab alho, in me mo riam,a
Jônatas Co nce ição d a S ilva. Tal qual
Besouro, lutou , resist iu e ho je tamb ém
brilha no céu. Virou estrela.
AG RADECIMENTOS

À minha especial orientadora, Profa. Dra. Márcia Rios da Silva, p ela
paciênc ia e cumplicidade no acomp anhame nto e construção deste texto ;

À Profa. Dra. Florent ina Souz a, desde o Exame de Qualificação, pela s
contrib uições valiosas à e laboração desta pesquisa;

Ao Prof. Dr. Sílvio Roberto de Oliveir a, d esde o Exame de Qu alificaç ão,
também pelas suge stões enr iquecedoras a este trabalho;

Ao s meus p ais, J osé e Marina lva r esponsá veis pelo meu exist ir e por sempre
me ince nt ivarem a cont inu ar cresce ndo ;

Ao s meus irmãos e em e sp ecia l às minhas d uas irm ãs, Lad ism ar e Adla po r
todo o ince nt ivo;

A Vad o e Igo r, família que co nstruí e que me fa z sempre buscar novo s ideais;

À Edna Viana pela ajud a na organização do texto final;

À p ro fessora Be atr iz Ribeiro, pela a juda em algumas correções do texto;

Às minhas gra nde s amiga s, irmãs do coração e anjos q ue enco ntre i, And réa e
Margarete, pela co nvivê ncia intelectual, o que me fez ama durecer para a vida
acadêmica;

À Hildete, bibliotecária do PP GEdu c, pelos textos int ere ss antes            que
conse guiu p ara qu e melhor fund amenta sse a minha pesquis a;

À A ntonio Re inaldo , Mestre Lamp ião, inca ns áve l p esquisado r sobre Besouro,
pelo acesso ao seu acer vo e disponibilidade;

À Profa. Zilda Paim, p elos deta lhes so bre as histó ria s de Be so uro e paciência
para contá-las;

Ao s professores do PPGEL, p elos ens ina mentos, em especial, Luc iano Lim a e
Edil Costa;

Às secret aria s de educação do Estado da Ba hia e Mu nicipal de S anto Amaro
pela conce ss ão d e lice nça, para a rea lizaç ão d este estudo ;

À m inha turma de mestrado, e ao meu grupo de estud o, Edna, Geraldo,
Elizab ete, Raquel por todas as trocas d e exper iências;

Ao s atenc ioso s secretár ios do PPGEL, Camila e Danilo;

À todo s aq ueles que, d e algu ma forma, contribuíram para a rea lização dess e
trabalho.
RESUMO


Este e studo tem por objet ivo analisar as ima gens ou representações sobre o
capoeirista Besouro Mangangá, tornad o um mito, produzidas na lit eratura de
cordel, de autoria de Antô nio Vie ira e de Victo r Alvim G arcia, e na narrat iva
de Marco Carvalho , como textos ficcio nais q ue se a lime nt am de u ma
textu alidade   popular.   Bu scando   artic ular   liter atura,   mito   e   história,
ente ndido s como discurso s, recorre-se a p esquisad o res que contribuem para
uma co mpreensão da co nstrução do mit o Besouro, cap oeirista ba iano que
nasce no co ntexto histórico da nova ordem republicana e pós -abolição, de
forte repressão, por instânc ias jurídicas, ao jogo da capoeira. As narrat iva s
ana lisadas co ntrib uem para amp liar uma tradição da literatura brasileira,
como textos ficc iona is que tensionam valo res das produções literária s
legit imadas.


Palavras-chave:     Besouro    Mangangá.      Capo eira.    Textua lidad e    Popular.
Literatura Bras ileira
RÉSUMÉ



Cette étude a comme objectif analyser les images ou les répresentations sur le capoeirista
Besouro Mangangá, qui est devenu un mito, produites dans la littérature de cordel, écrit par
Antônio Vieira et Victor Alvim Gárcia, et dans le récit de Marco Carvalho, comme des textes
de fiction que se nourrissent d’une textualité populaire. En cherchant articuler la littérature,
le mythe et l'histoire, compris comme des discours, il fait appel aux chercheurs qui
contribuent à une compréhension de la construction du mythe Besouro, capoeirista de Bahia
qui est né dans le contexte historique du nouvel ordre républicain et d’après l'abolition, de
forte répression, pour les cas juridiques, au jeu du capoeira. Les récits analysés contribuent
pour agrandir une tradition de la littérature brésilienne, comme des textes de fiction que
tensionnent les valeurs des productions littéraires légitimées.


Mots-Clés: Besou ro M angangá – capoeira – textualité popu laire – littérature
brésilienne
SUMÁR IO




1 INTRODUÇ ÃO                                        08

2 NO RECÔNCAVO DA BAHI A, NASC E UM HERÓI            17


3 OS “VOOS” DE BESOURO NA LITERATU RA DE CORDEL      46

4 MORTE E NAS CIMENTO DO HERÓI NEGRO EM FEIJ OADA    85
  NO PARAÍSO

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS                              118

REFERÊNCIAS                                         120


ANEXO                                               126
8



1 INTRODUÇ ÃO

          O capoeir ist a Be so uro Manga ngá na sceu prova velm ente no a no de
189 5, no municíp io de Santo Amaro , no Recô ncavo Baia no, vind o a fale cer
em 1924. Filho de negros es cravizad os que atravess aram o Atlâ nt ico, o
capoeirista viveu u ma época em que muitos d eles viram -se obrigados a u sar
seu co rpo como máquina na co lheit a e moagem da cana-de-açúcar, nas terra s
dos senhores d e engenhos. Co ntudo , apesar dessa vio lênc ia, fizer am do seu
corpo uma arte, no jogo da cap oeira – luta e dança –, síncop a que marca a
cadência, a firmando sua força, como resi stência, em p ro l d a abolição.
          Manu el Henriqu e Pereira,      nome   civil   de   Beso uro   Manga ngá,
conhec ido ainda como Besouro Preto ou Besouro Cordão d e Ouro, viveu num
período de fo rte repressão à capoeira gem – entre final d o sécu lo XIX e
começo do século XX –, tempo em que muitos ne gros va gavam e vadiavam
pela s ruas de muitas c idad es da Ba hia, particularme nte a sua capit al e a s do
Recô nca vo, sem emprego fixo , e xplorados como mão -de-obra temporária. A s
ruas passam a s er palco de um jo go encenado po r muitos negros qu e
libertavam seu corpo inve nt ando modo s de viver e d e se relac ionar,
protagoniza ndo mu itas histórias, que ia m sendo retid as na m emó ria de sua
comunid ade.
          De ntre as muit as histórias t ecid as com os fios do real e da
ima ginação, as histórias produzidas p or e sobre Besouro estão preservada s po r
uma trad ição oral, vindo a se const itu ir em uma te xtualid ade popular, que
passou a alimentar as páginas de a lgu ns gêneros lit erár ios, como o cordel, e,
rece ntemente, invadiu a s telas do cinema, s inaliza ndo a permanênc ia de um
mito, vind o a ser estudado por algu ns pesq uisadores, que constat am naqu ela
textu alidade um processo de co nstrução da figura d e um herói p opular.
          A permanê nc ia des se mito gerou as inqu ietações dest e trabalho, de
auto ria de uma estud iosa negra, tamb ém filha de Sa nto Amaro da Purificação.
A minha vivência em um amb ient e soc ial imp re gnado da exp eriênc ia histórica
dos negros, no q ual compartilho os muit os “cau sos” sobre esse capoeir ist a,
levo u-me a indagar e a pesqu isar sobre a p ermanência do mito Be so ur o – tão
famo so, se guido s por ou tro s como Mestre Bimba e Mestre Pa st inha –, um
herói a fro -baiano , qu e nasceu em um est ado cujas oligarqu ias subju garam os
9



mod os de vida e de luta de u m expressivo segmento de d esce ndentes de
escravos.
            Pelo tempo exí guo em u m Curso de Mestrado para desenvolver um
estudo qu e, como primeira et ap a, exigiria o le vantame nto das história s
contadas sobre Besouro pelos moradores do Recôncavo Baia no, o ptei po r
ana lisar produções literár ias sobre esse capoeirista: os textos d e cordel de
auto ria do santoamarense A ntô nio Vie ira, O encontro de Besouro co m o
valentão Doze Homen s (s/d) e A valentia justicei ra d e Besouro (2003), e do
poeta e capoeirista car ioca Victo r A lvim Itahim Gar c ia, Hi stórias e b ravuras
de Besou ro o va lente capoeira (20 06) e narrat iva d e Marco Carvalho,
Feijoada no para íso : a sa ga d e Besouro, o capo eira (2002). O objetivo
princip al deste estu do é ana lisar a s rep resentações sobre Be sou ro nes se s
texto s ficcio nais, cons iderando o co ntexto histórico em que viveu e ss e
capoeirista, no intuito de ente nder a permanê ncia desse mito.
            Essas narrat iva s contam a história de um herói ne gro, que se
singulariza em relação aos heróis forjados pelas e lit es de u ma c ivilização, a
exemp los dos heróis gr e gos, pátria s o u nações modernas. Ao cont rár io, o
herói Besouro é protagonista de contranarrativas, de lu tas d e resistê ncia a um
sist ema opressor, de u m Brasil colo nial, imperia l e republic ano, que sempre
se nt enciou, mu itas vezes de forma cruel, o apagamento dos ne gros e
afrodescend ente s.
            Na primeira seção desta Diss ertaç ão, No Recônca vo da Bahia nasce
um    herói,    realiza-se   uma   composição      b iográfica   d esse   capoeir ista,
articula ndo -a com o conte xto histórico, no intuito de pu xar os fio s da cu ltura
afro-baia na para se pensar a co nst itu içã o d o herói B e sou ro . Para compor a
pais agem histó ric a d o Brasil e da Bahia, particularme nte a d o Recônca vo
Baiano, e ntre fins do século XIX e iníc io do sécu lo XX, período tensionado
por conflitos so ciais, mud anç as d e regim e político e p ós -aboliç ão, recorre-se
aos estu d os de Walter Fra ga F ilho, Eu l Soo Pang e Antonio Ris ério, b em
como aos d e Almir Areia s, Adriana Dias, J osivald o Olive ira e Mu niz So dré.
         Visando ent end er a co nstitu ição do heró i e sua m itificação, recorre -se
a M ircea E liade e Josep h Campbell. Como o estudo proposto trata de um
su jeito da his tória “e sq uecido” p ela historiografia ofic ia l, buscam -se a s
contrib uições de José G erald o Va sconc elos, Ecléa Bo si, para a qual a s
10



exp eriênc ias do passado são refe itas, reconstruídas, um trabalho d a memória,
e Lo iva Otero Fé lix, com sua noção de “memórias subterrânea s”. P elo
ente ndim ento d e qu e uma pesquisa se alime nta d e font es diversas, a lgumas até
desau torizad as pela academ ia, não se p ôde d esprezar a contrib uição da Profa.
Zilda Paim, conhecida como memoria lista, sobre o Recô nca vo Baia no.
            Na se gu nd a seção, Os vôo s de Beso uro Man gangá na literatura de
cordel, são analisadas e int erpretadas a s narrat iva s d o co rd el de A ntônio
Vie ira e Victor Alvim Garcia, nas q uais se biografa a histó ria de Besouro
Mangangá. P ara t a nto, reco rre-se às cont ribu ições de Márcia Abreu, Antônio
Ara ntes e Doralice Alco fo rado, em seus estudos so bre o cordel, gê nero
produ zido por escritores do chamado segmento popular, aqu i ente nd idos como
su jeitos q ue se viram privados, historic ame nt e, dos direitos bás icos de
cidadania, à cultura letrada, ma s, ainda que numa inclusão degradada, como
ana lisada, e cr it icada, pelo sociólo go J osé d e Souza Martins 1, aprenderam a
ler e a escrever. Tal co nquist a possib ilit ou u ma escrit a que lhes permit iram
registrar histórias e so cializá- las, s ilenciadas pela História oficia l, e ntendida
aqu i, dentro do campo historio gráfico, como um d iscurso elabo rado p ela
perspectiva d a cultura dominante.
            Na terce ira seção , Mo rte e nascimento de Besouro em Feijoa da no
paraíso , é analisada a narrat iva Feijoada no paraíso , de Marco Carvalho,
jornalist a e p ublicit ário , a qual tem como narrador e personagem centra l o
capoeirista Mangangá trazendo su a versão acerca d e mu itas histórias co ntada s
so bre ele próprio: sua morte, seu ap elido, seu nas cime nto, o jo go da capoeira,
relações d e amizade, bem como o enfrent amento à ordem republicana, com
relatos alinhavados por reflexões, digress ões ou comentário s.
            Em Feijoada no paraíso, o jo go da capoeir a ganha destaque, como
uma prática cultur al e performát ica : a ginga d o corpo, seus golpes, a
ma ndinga, a p ro teção dos orixás são postos em rele vo. Em vista d is so , são
impo rtantes a s refle xões d e Stuart Ha ll so bre os rep ertórios culturais d os
negro s da diáspo ra, b em co mo a noção de performance, elabo rada por Paul
Zumthor, compreendida como co rporeidade e teatra lid ade.



1
 Cf. MARTINS, José de Souza. A exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus, 1997. Apud
PEREGRINO, Mônica. www.anped.org.br/reunioes/25/monicaperegrinoferreirat06.rtf - Acesso em 21/05/2010.
11



            A narrat iva d e Marco Carva lho inspirou u m longa-metra gem do
cinema nac io nal, Besou ro, da capoeira nasce um herói , que estreo u em 2009,
filme dir igido pelo renomado pub licit ário João Daniel Tikhom iroff. 2 A
película, bu scand o aproximação com a textualidad e popular tec ida sobre
Besouro, co nta a história d e Mangangá, c om uma superp ro dução qu e realiza o
es forço d e traduzir a visão heroicizada sobre o lendário capo eir ist a. Para
tanto , as ce nas de luta, marc adas po r efe ito s especiais, foram coreo grafada s
pelo chinês Huen Chiu Ku, o mesmo que dirigiu Kill Bill e O tigre e o
dragão . Rodado na Chapada Diama nt ina , na Ba hia, a produção cuidou de
trazer capoeirist as para atuarem, e Ailton Sa ntos, pr ofessor de capoeira, é
protagonista da história. 3 Destaq ue-se que em 1980 foi la nçado Besou ro
Capoeirista , do diretor Tato Tabo rd a, te ndo o ato r baia no Mário Gu smão
atuando como Besouro.
            Os d iferent es sites que divu lgaram o la nçame nto do film e de João
Da niel T ikhom iroff destac aram a re levâ ncia de Be sou ro Cordão d e Ouro no
universo da cap oeiragem, re ss alta ndo se us fe itos extr ao rd inár ios, as fuga s
espetaculares, a sua agilid ade, denominando -o de heró i, de mito, u ma
refer ência para a arte da c apo eira. Tais rep resenta ções têm longa d ata, como
ima gens cint ila ntes na cultura afro -b aiana, particularmente no Recônca vo
Baiano e no universo da capoeira gem. O filme p rojeta Besouro nu m univer so
mais amplo, com a promessa d e torná -lo c onhecid o por um público ma ior, que
vive distante de um tempo em que o jogo da capoeira era t ido como uma
prática de “pretos”, “ vad ios” e “ ind ivíduos perigosos”, ou seja, d e ne gros que
ameaçavam a no va ordem republica na, até ser enquadrado como crime em
189 0, dois anos após a abolição da escr avatura.
            Co mo este estudo tem a preo cup ação de articular literatura e
história, os p esquisado res e estudiosos que se fazem presente s na primeir a
seção desta dis serta ção são retomados nas d emais seções, para art icular suas
contrib uições com os te xtos ficcio nais que dramatizam a his tória de Besouro
Mangangá.



2
 Disponível em http://www.interfilmes.com/filme_21174_Besouro-(Besouro).htlm. Acesso em 20/08/2009.
3
Cf.correio24horas.globo.com/noticias/noticia.asp2codigo=367048mdl=4http://www.cordaodeouromangalot.co
m.br/index.php?opt. Acesso em 07/10/2009.
12



              As narrat ivas de A ntônio Vie ira, Victor Alvim Garc ia e Marco
Car valho,      insp iradas      na     textu alidad e    p opular,      trazem      traços     dess a
textu alidade, filiad a a “uma c lasse de narrat ivas que se apresent am como
fant ást ica s e qu e terminam co m uma aceitação do sobrenatural”, na visão de
Tzvetan       Todorov, 4       sem    uma    exp licação      ló gica    cau sa l.   Os     feito s   e
acontec ime ntos envo lve ndo o personagem Besouro, e até mesmo sua vida
cotid iana, são marcados pela presença do inusitado, do sobrenatural e de
metamo rfoses.
              As sim,      o     personagem         c apoeirista        protago niza       situaçõe s
extraordinár ias: vira beso uro, um mangangá, vo a, tra nsforma-se em pla nta,
morre e rena sce, t em o corpo refratár io aos metais, enfrent a lobisomem,
convive com mundo sagrado dos orixás, retorna ao mundo dos vivos sem ser
visto e ainda se encar na no corpo d e outras pessoas. Muitas das situaçõe s
extraordinár ias ou metamo rfoses ocorrem quando se torna neces sário driblar
os   adversár ios,      es cap ar     dos   inim igos,    defe nder -se     ou    proteger     a lgum
injust içad o. Ainda d e aco rdo com Todoro v, no plano da recep ção ocorre “a
hes it ação e xperimentada p or um ser que só conhece as leis natura is, face a um
acontec ime nto aparent eme nte sob renatu ral” – d aí qu e o público ou le itor
dessas histórias v ai co nviver com o extr aordinár io, o insólito, o estranho , o
encantame nto e a ma gia e xperim enta ndo uma se nsação que o susp end e da vida
cotid iana.
              As histórias cr iadas p or Antônio Vieira, Victor A lvim Garc ia e
Marco Carvalho p odem ser lidas como b iografemas, se gu nd o Ro land Bart he s,
traço acentuado em Feijoad a no paraíso , narrat iva em 1 ª. pessoa, em que o
persona gem Besouro assume o lugar de narrador. São lendas inve nt adas,
relatos biográ ficos ou ainda “inst antâ neos fotográficos”, que Barthes va i
designar d e b iogr afema s: “go sto de certos tra ços biográ ficos qu e, na vid a de
um escr ito r, me enca ntam ta nto qu anto certas fotografias; chame i es se s traços
de ‘bio grafemas’” 5
               Todas elas se filiam a uma te xtualid ade popular, tecida por u ma
su perpo sição de fa las, voze s, te xtos, hist órias, “causos”, enfim, ficções sobre

4
  TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castelo. São Paulo:
Perspectiva, 2007. p. 58.
5
  Cf. Roland BARTHES. A câmara clara; nota sobre a fotografia. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1984. p. 51.
13



uma lenda, também uma ficção, do Recônca vo Baia no, cuja história de vida,
marcada      pela     r ebeldia,    fertilizou     a    imagina ção       de   u ma     comunidade,
ampliand o -se continuamente. Tais fic ções devem ser ent e ndidas pe la noção de
fictí cio, apresentada p or Wolfgang Iser.
             Questio nando a visão corrente d e que os te xtos ficc iona is se opõ em
aos te xtos factua is, Iser co ns idera q ue aqu eles não são “de todo is ento s de
realidade”. O texto ficc io nal “co ntém e lementos do real, sem qu e se esgo te na
descrição d este real”. As sim, co mo “o seu co mpo nente fictício não tem o
caráter de uma fina lidad e em s i mesma ”, é, “enquanto fingida, a prep aração
de um ima ginário”. 6 Segu ndo Iser, um text o ficcional guard a mu ita realidade,
de ordem socia l, sent iment a l e emo cio nal. Tais rea lidad es não são fic ções
nem se convert em nela s ao entr arem nos t exto s ficc io nais, pois não s e
repetem por efeito d e si mesma s.
             A “repetiç ão é u m ato d e fingir, pelo qual aparecem fina lidad es que
não pertencem à rea lidad e repetida, daí que o ato d e fingir é uma transgre ss ão
de limit es”. Por isso, Iser propõ e sub stit uir o p ar oposit ivo fic ção/realidade
pela tríade “rea l, fictíc io e imaginár io”. Em relação ao imaginár io, “seu
caráter d ifuso é transfer ido para uma co nfiguraç ão determinada, q ue se impõe
num mund o dado como produto d e uma trans gres são de limit es”. Ou seja, no
ato de fingir, “o imaginário ga nha u ma determinação que não lhe é própria e
adquire, deste modo, um pred icad o de realid ade : po is a determinação é u ma
definição mínima do real”.
             Para Iser, “as ficçõe s não e xistem só como textos ficcio nais :
desempenham papel importante tanto nas at ividades do conhec imento, da
ação, do compo rtamento, quanto no estabe lec imento d e instituições, de
so cied ades e de visões de mund o ”. Entend end o o texto literár io como um
mod o de temat iz ar o mundo, p ara Iser esse mod o não est á dado a priori.
As s im, é preciso qu e seja implantado, para se impor, o que “não s ignifica
imit ar as e struturas de organização previament e e nco ntrá ve is, mas sim
decompor”. Nessa d eco mpo sição ocorrem as seguintes o perações: a s eleção e
a comb inação .



6
  ISER, Wolfgang. O ato de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da
Literatura e suas fontes. Vol. II. 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. p. 384-416.
14



            A    sel eção ,   “nece ssár ia   a    cada   texto   ficcio nal,     d os   sistema s
contextua is pré-existentes, sejam e les de natu reza sócio -cultural o u mesmo
lit erár ia”, “é uma tra nsgre ss ão d e limites na medid a em que os elemento s
acolhidos pelo texto agora se d es vinculam d a estruturação semânt ica ou
sist emát ica dos sistemas de q ue foram tomados. Isso va le t anto para os
sist emas co nte xtua is, qu anto p ara os texto s literár ios a qu e os novo s te xt os s e
refer em”. Cont inu a: “O s elem ento s co ntextuais que o texto int egra não são em
si fictí cio s, ape na s a seleção é u m ato de fingir pelo q ual os sistemas, como
campos de referênc ia, são entr e s i d elimit ados, pois suas fro nte ira s são
trans gred id as”.
            No ato d e seleção oco rre “uma perda d e articula ções preced ente s e
uma reint egração do s elementos es co lhidos em uma no va art icu lação”.
“Su prim ir, complementar, valorizar” vêm a ser, de acordo com Iser, operações
básica s da “produção de u m mundo”. A seleção , co mo ato de fingir, encontr a
su a   co rrespo ndência      intratextu al   na    combinação       –   o utra     operação     e
trans gres são de lim it es, d os e lem entos textu ais – , “que abrange t a nto a
combina lidade do significado verbal, o mund o introduzido no texto, quanto os
esquemas responsá veis pela organização de personage ns e ações”.
            Co mo ocorre quase sempre, se gundo Iser, no s t exto s narrativos são
acentuados “os espaços sem ânt icos const ituído s a p artir de elemento s
se lec ionad os das realidades extrat e xtuais , que se re velam p ela ap rese nt aç ão
esquemática das personage ns do romance (caractere s po sit ivos e ne gat ivos) ”.
No s relac ionamentos intr ate xtua is, ocorre u m rompimento d e fronteiras, p ois
a ficção a grega, em um ú nico esp aço, “uma var iedade d e lingu age ns, d e ní vei s
de foco s, de pontos de vista, que ser iam co ntraditórios noutras e sp écie s de
discurso, organizadas quanto a u m fim empírico particu lar”.
            Co mpo ndo uma te xtualidade p opular, as história s sob re Besou ro –
elaboradas a partir da se leção de ele mentos da realidad e extrate xtual,
se guidas da comb inaç ão intert e xtual, e na ruptu ra d e fronteiras – são
contra narrat ivas q ue põ em em xeque um modelo d e nação , um dese nho
ident itár io homogene izador do Brasil, segu ndo Florentina Souza, tecido po r
um gru po so cial, a saber, as elit es do país. Para a pe squisad ora, este de se nho
ident itár io,
15



                          in di vi dual o u col eti vo, consist e nu m pr ocesso d e co nst r uç ã o
                          si mbó lica utiliza do como p onto de r ef er ê nci a e auto -afir maçã o
                          d o g r up o ou i ndi ví du o. As fr at ur as, dú vi d as, deslizes,
                          h et er og en ei da des so fr em um p r ocesso d e e s ma eci m ent o p ar a
                          q ue seja gar a nti da a co nst ruçã o d e u m d es en ho u ni for me,
                          u nitá ri o e t otaliza nt e, a ci ma d e q ualq u er susp eita q ua nt o à
                          p r opri eda de o u plausib ili da de. L egiti mad o p ela imp osiçã o d e
                          u m gr up o so cial, p el as r ep etiçõ es de fi g uras r etó ricas, o
                          d es enho ser á ratifi cad o e reti fi ca do p ela tr adição e ar vora r -s e-
                          á cap az de defi nir e si ngul ari zar indi ví du os e/ ou g r up o s
                          so ci ais. 7

             O capoeirist a Be so uro viveu uma ép oca em que esta va em curso o
projeto de consolidação do Estad o-naç ão brasile iro , traça ndo seu desenho
ident itár io, e a literatura e a história, inst itucio nalizadas co mo disciplinas e
domínio      do    conhecime nto,        vão    se    ir manar     em    tal projeto.        Enqu anto
produ ções, ambas vão co ntrib uir, em s ua maioria, na construção de um
discurso ident itár io homoge neizador.

                          A i denti d ad e, pa ra os i nt el ect uais dos “pri mó r di os” da naçã o,
                          estava li ga da à necessi d ad e de co nstru çã o de um país, d e um a
                          históri a, u ma cult ura, atra vés                dos    q uais t o dos s e
                          r eco nh ecesse m si mu ltaneam ent e se mel ha nt es e di fer ent es da
                          M et ró p ol e ( co ntr adiçõ es de col o ni zad o...). Ó r gãos sã o cria do s,
                          u m p r oj et o liter ári o é delin ea do, escrit or es, est udi oso s,
                          artistas e p olíti co s articula m-s e; t o das as ener gias i nt el ect uai s
                          diri ge m-s e e co n cen tra m-s e no es forço de “i n ventar ” o Brasil.
                          É pr ecis o i nvent ar o país, pr een cher os v ácuo s da m emóri a
                          com aq uil o q u e nã o pr o pi ci e co nstra ngi ment os mai or es q ue o
                          d e ser uma ex- colô ni a.
                          Co mo con str uçã o si mbó lica q u e é, a i d entid ad e cu ltural
                          b rasil ei ra vai gan ha r p er fis mais ou men os ot i mistas de a cor d o
                          com as i déias, pri n cíp i os e val or es hege mô ni cos de ca d a
                          ép o ca. 8

             Para F lorentina S ouza, o s intelectuais brasile iro s têm à fre nt e um
desafio, cerca ndo -os de constrangime ntos : “Como forjar u ma id ent idade d igna
se o imaginár io já t inha cr ista lizad o como verdadeira a ‘ind ignidade’ d e dois
se gme ntos ét nicos [o índio e o negro ] da população ?” 9. Segund o a autora, o



7
  SOUZA, Florentina. Imagens e contra imagens do negro. In.: Congresso ABRALIC, Anais... Rio de Janeiro.
1988.p. 243. Nesse trabalho, a autora analisa a série Cadernos Negros, um periódico criado por escritores
afrodescendentes, em fins de 1970. Segundo a autora, Cadernos Negros, “produzidos com intenção expressa de
abalar a autoridade do discurso do saber e do poder, podem ser vistos como tentativa de constituir uma
suplementariedade à cultura oficial brasileira; buscam inventar uma contra-imagem que desautorize a
unanimidade proposta pela imagem instituída”. p. 245.
8
  Id., p. 243-244.
9
  Id., p. 244.
16



“processo              de   co nstrução   simbólica   nã o descarta   as significações p ré -
exist entes”.
                      Desse modo, no processo de construção da identid ade nac io na l
brasileir a, pelas elites do paí s, de cunho ho mogene izant e, a trad ição ocident al
desempenhará um p apel fu ndame ntal, uma vez que tece “narrat ivas sob re o
Ou tro [o índio e o ne gro] de acord o co m o seu projeto de dominação”,
incu lcando -as “ no imaginár io do próprio colonizad o d e modo qu e o m esmo
che ga a acred itar na verac idade do texto.” 10 Ass im, o “p erfil d o Outro
inve ntado pela tradição ocident al presc inde d e ser comprovado ou organizado
logicame nte, a repetição garante a sua validade”. 11
                      Na contr amão d e um dese nho id ent itário ho mogene izad or, u ma
textu alidade popu lar emerge quest ionando -o , com histórias qu e têm Besouro
como herói, à reve lia da História oficia l. Tais narrat ivas são elaborad as por
su jeitos que enco ntram nes se c apo eirista a referência de uma luta e
res istência ao processo de colo nização , que subju gou os ne gros, colocand o -os
num lugar inferio r, em diver sos ní veis, naquele desenho, a despeito de sua
inegáve l co ntr ibuição na construção do país. Assim, u m refrão ins ist e,
“furando” tal des enho, em riste: “zum zum zum, zum zum zum, cap o eira mat a
um”.




10
     Id., loc. cit.
11
     Id., p. 244.
Fonte: CARNEIRO, Edison - Caderno de Folclore 1 – Capoeira, 1977
17



2 NO RECÔNCAVO DA BAHIA, NASCE UM HERÓ I


                                                                          Qu and o eu morr er
                                                                          Nã o qu er o gri t o e ne m mi st éri o
                                                                          Qu er o u m beri mbau
                                                                          Toc and o n a p ort a d o c e mi t éri o
                                                                          Com u ma fi t a a ma rel a
                                                                          Gra vad a c o m o n ome d el a
                                                                          Ai nd a d ep oi s d e mort o
                                                                          Bes our o é c o rd ã o d e our o
                                                                          Como é o n o me?
                                                                          Cord ão de Ou ro. 12


Vida breve, longa histó ria


              Manu el Henr ique Pereira é o nome c ivil do mestre de capoeir a
Besouro Manga ngá, ou Besou ro Cordão de Ouro. A d ata provável d e s eu
nascimento tem como referênc ia o processo movido em 1918 , pelo Exército
Brasile iro, que resulto u na sua e xpulsão da corporação, no mesmo ano , po r
“incapacidade moral”, conforme o fício do Ministér io d a Gu erra, 13 no qual se
atest a que o acusado tinha 2 3 anos à época. Beso uro Mangangá nasce no
quilombo Urup y, Olive ira d os Campinho s, distrito de Santo Amaro da
Purificação, na região denominada Recô ncavo Ba iano, 14 filho d e J oão Martins

12
   Letra da canção Cordão de ouro, do mestre Traíra de Santo Amaro, o José Ramos do Nascimento. Capoeirista
famoso da Bahia, marcou época e ganhou notabilidade ímpar na arte das “rasteiras” e “cabeçadas”. No disco
fonográfico, produzido pela Editora Xauã, intitulado "Capoeira", hoje uma preciosidade para os estudiosos e
adeptos dessa arte, tem presença marcante envolvendo os ouvintes. Sobre a beleza e periculosidade do seu jogo,
assim se referiu Jorge Amado: "Traíra, um caboclo seco e de pouco falar, feito de músculos, grande mestre de
capoeira. Vê-lo brincar é um verdadeiro prazer estético. Parece bailarino e só mesmo Pastinha pode competir
com ele na beleza dos movimentos, na agilidade, na rigidez dos golpes. Quando Traíra não se encontra na Escola
de Waldemar, está ali por perto, na Escola de Sete Molas, também na Liberdade". Mestre Traíra também teve
importante participação no filme "Vadiação", de Alexandre Robatto Filho, produzido em 1954, junto a outros
grandes capoeiristas baianos, como Curió, Nagé, Bimba, Waldemar, Caiçara, Crispim Disponível em:
http://sites.br.inter.net/capueirameialua. Acesso em 06/06/2009.
13
   Cf. VASCONCELOS, José Gerardo. Etnocenologia e história: percorrendo indícios da vida de Manoel
Henrique Pereira, vulgo “Besouro” (1895-1924). p. 25. In: MATOS, Kelma Socorro L. de. VASCONCELOS,
José Gerardo. (Orgs.). Registros de pesquisas na educação. Fortaleza: LC-UFC, 2002. p. 27. Na Seção Judiciária
do Arquivo Público Municipal de Santo Amaro (Data limite: 1920 – 1927: Subsérie: Tentativa de Homicídio:
Cx. 4; Nº. 104: Vol. 18), tem-se o seguinte registro, de 04/02/1922, no auto de perguntas dirigidas à vítima
Caetano José Diogo: “um homem moderno de cor escura quase preto”.
14
   O Recôncavo abrange a região Bahia de Todos os Santos, com 23 municípios, incluso o de Salvador. Partindo
do litoral, onde começam as dunas e praias do Litoral-Norte, a linha limite inflete para o Oeste, para o interior,
passando ao Norte de São Sebastião do Passé, até alcançar o norte do município de Santo Amaro, e encontrar
Humildes, onde seu traçado curva-se para o Sul, correndo paralela ao sentido do litoral, atravessando os leitos
dos rios Jacuípe e Paraguaçu, envolvendo os municípios de São Gonçalo dos Campos, Cachoeira, Conceição da
Feira e Cruz das Almas; deste, a fronteira retorna em direção à costa, passando por Santo Antônio de Jesus,
apontando em linha reta para o mar, margeando as Matas do Sul, passando abaixo de Nazaré, Aratuípe e
Jaguaribe, até encontrar a praia, nas alturas da Ponta do Garcez, ao norte da Barra do Jequiriçá. Cf. COSTA,
Pinto. Recôncavo: laboratório de uma experiência humana. In. BRANDÃO, Maria de Azevedo et al. Recôncavo
18



Pereira e Maria Auta Pereira 15. Zilda Paim, conhec ida como memo ria list a
sa ntoamare nse, traz a lgu ns dados biográ ficos desse capoeirista, fa lec ido em
192 4:

                            Nasceu em Sa nt o Amar o. Filh o de J oão Mat os P er eira e Mari a
                            José. O mais la di n o e mali ci os o cap o ei rista da Ba hia. Mestr e
                            d e cap oei ra no E xér cito, d e o nde s e desli gou dep ois da gu err a.
                            Nã o conh ecia o medo, ven cia a p olí ci a da nd o p er na das e r ab o s
                            d e arr aia, co m seus fa mo sos salt os acr ob áti cos. F oi fria e
                            cov ar dement e g olp ea do em Mara ca ng al ha, n o l uga r d e nom e
                            Qui mb eca. V eio pa ra Sa nt o Amar o em ca noa , fi ca nd o no Port o
                            em fr ent e a L oja N ov a, até q ue foi t ra nsp o r tado para a Sa nt a
                            Casa d a Misericór di a, o nde fal eceu a os 32 an os de i da de. 16

              O capoeirista Be so uro M angangá d á continuidade a uma p rática, a
capoeira, que chegou ao Brasil desde o início d a colo nização. Segu ndo
Car ibé, os capoeirist as chegaram à Ba hia “ no bo jo de p au dos ant igos ve leiros
do século X VI. Eram negros da A ngola, talvez guerreiros jogadores dessa luta
em q ue pés e cabeç a têm m ais importância e qu e as mãos pass am a segu ndo



da Bahia Sociedade e economia em transição. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; Academia de Letras
da Bahia; UFBA, 1998. p. 103-105.
15
   Não há informações precisas sobre a data de nascimento de Besouro. Segundo Vasconcelos, “só foi possível
desvendar a sua origem mediante a certidão de óbito do seu irmão Caetano Cícero Pereira”. O autor ainda cita
relato de João Pequeno, citando-o em seu livro: “Besouro morreu com vinte e tantos anos ou trinta. To ouvindo
falar que ele morreu em 1924”. Cf. Etnocenologia e história: percorrendo indícios da vida de Manuel Henrique
Pereira, vulgo “Besouro” (1895-1924). p. 29-32. In: Matos, Kelma Socorro Lopes de. VASCONCELOS, José
Gerardo. Orgs. Registros de Pesquisas na Educação. Fortaleza: LCR – UFC, 2002. O autor transcreve na íntegra
a certidão de óbito, expedida pela Santa Casa da Misericórdia de Santo Amaro, em 1925, a pedido do Dr. João
de Cerqueira e Souza, promotor público da Comarca de Santo Amaro, para o arquivamento do processo movido
contra o capoeirista por Caetano José Diogo em 1922, em virtude do seu falecimento em 1924. C.f.; certidão de
óbito em anexo. “A Santa Casa da Misericórdia de Santo Amaro, mantenedora do Hospital Nossa Senhora da
Natividade, é uma entidade filantrópica sem fins lucrativos que presta serviços de saúde de urgência/emergência,
há cerca de 235 anos, a toda a população santoamarense e de cidades circunvizinhas, tendo como finalidade
principais o atendimento aos mais carentes. “O objetivo maior da Santa Casa da Bahia, como de todas as Santas
Casas, desde sua criação, era praticar a caridade cristã, observando o estatuto, “a lei escrita da Misericórdia”,
chamado de Compromisso. A Santa Casa da Bahia seguia o Compromisso datado de 1516, que regia a Santa
Casa de Lisboa. O Compromisso prescrevia as quatorze ações ou ‘obras de misericórdia’ que concretizavam a
prática caritativa, sendo sete Espirituais  ensinar aos ignorantes; dar bom conselho; consolar os infelizes;
perdoar as injúrias recebidas; suportar as deficiências do próximo; orar a Deus pelos vivos e pelos mortos  e
sete compromissos Corporais  resgatar os cativos e visitar prisioneiros; tratar os doentes; vestir os nus;
alimentar os famintos; dar de beber aos sedentos; abrigar os viajantes e os pobres; sepultar os mortos”.
SANTANA, A. C. S. de. Santa Casa de Misericórdia da Bahia e sua prática educativa, 1862-1934. 227f. Tese
(doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, UFBA, Salvador, 2008.p. 44.
16
   PAIM, Zilda. Relicário popular. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo: EGBA, 1999. p 53. Conhecida
pela divulgação da cultura santoamaresense, a autora nasceu em 1919 e iniciou o magistério, em Santo Amaro,
de 1937 até 1988. Foi vereadora pelo PDC e MDB nas legislaturas de 1959-1963 e 1997-1982, presidente do
Legislativo de Santo Amaro entre 1980 e 1982. Seu grupo folclórico Maculelê de Santo Amaro atravessou
fronteiras para ser aplaudido por cariocas, paulistas, mineiros e paraibanos. In: Isto é Santo Amaro. 3ª ed.
Salvador Academia de Letras, 2005. Zilda Paim apóia-se na memória popular para referir-se ao nome da mãe de
Besouro como Maria José, enquanto na certidão de seu irmão Caetano Cícero Pereira, consta Maria Auta Pereira.
19



plano”. 17 São d etentores d e uma cultura que co ntrib uiu para formar a cultura
afro-brasileir a, fortalecendo o combate à opressão, uma arte que usa da
“ginga” “para disfarçar a luta, d and o -lhe um caráter lúdico ino fe ns ivo e
cadenciad o, de certa forma, à loco moção e preparação dos ataques e
defesas”. 18
              Nas história s sob re Besouro, que compõem uma textualidade
pop ular, sobressa i-se a im agem do capoeirista como um indivíduo alt ivo,
destem ido, rebelde, corajoso, va lente, audacio so, ju stice iro, representa nte d os
se gme ntos oprimid os num p eríodo d e pó s-abolição e mudança de regime
polít ico . Beso uro torna-se uma le nda, mit o , acima do bem e do mal pelo poder
de que se invest e e é investid o, para enfr entar a elite econô mica e polít ica da
terra de Santo Amaro, no Recôncavo Baiano.
              Graças a u ma tradição oral, pode -se recont ar a su a história,
praticame nte ausente das páginas da lit eratu ra canonizad a, e xc eção feit a a
Jo rge Amado, que o ap resenta em Ma r Morto , publicado em 1936, u m ano
depois de Jubiabá, narrat iva qu e elege um ne gro o herói da trama. Em Mar
Morto, o escritor faz uma home nagem a Manga ngá, no capítulo int itu lado
“Viscondes, condes, m arqueses e Besouro”. Na trama, Be sou ro Cordão de
Ou ro , um “ne gro valente”, é o save irista am igo de Guma, personagem dest a
narrat iva:


                          E ssa ci da de d e Sa nt o Ama r o, on de G uma es tá co m o sav eir o,
                          foi p átri a de mu ito ba rão d o i mp éri o, visco ndes , con des,
                          ma rq ueses, mas foi t a mb ém de gent e do cais, a p át ria d e
                          Bes our o. P or ess e moti vo, so ment e p o r esse mo ti vo, não é p o r
                          p r oduzi r a çú car, con des, viscond es, ba rõ es, marq ueses,
                          ca cha ça, q u e Sa nt o Ama ro é u ma ci d ade ama da d os ho mens d o
                          cais. Mas foi al i q ue nasceu Bes our o, co rr eu n aq u el as ru as, ali
                          d err a mo u s an gue, esfaq ueou, atir o u, l ut ou cap oeir a, cant o u
                          sa mb as. Foi ali p ert o em Mar acan galh a, q ue o cort ar a m
                          to di n ho a facão, foi ali q ue s eu sa ng ue corr e u e ali b ril ha a s ua
                          estrel a, cl ara e gra nd e [...] ele vir ou estr ela, qu e foi um negr o
                          v al ent e [...]. Bes ou r o nun ca caso u, alé m de ma ríti mo el e er a
                          jagu nç o, alé m d o r emo ti n ha u m ri fl e, além da fa ca d e
                          ma ri n hei r o tinha uma n aval ha. [...] a estr el a de B es our o p isc a
                          n o cé u. É cla ra e gra nd e. As mul h er es di z em q u e el e est á
                          espia ndo os mal feit os dos ho mens (barõ es, co ndes, vis con des,


17
  Cf. CARIBÉ, op. cit., Zilda Paim em Relicário Popular, transcreve essas mesmas informações no corpo do seu
texto, porém não cita a fonte pesquisada. op. cit.; p. 47.
18
   AREIAS, Almir, O que é capoeira. 3 ed. Brasiliense. (sd), p.24.
20



                            ma rq ueses) de Sa nt o Ama r o. E stá vend o to das as i nj ustiça s
                            q ue os maríti mos so frem. Um di a volt ar á para s e vi ngar. 19


              Beso uro se metamorfoseia, torna -se u ma estrela, “clara e grand e” –
depois de ter vivido como “marítimo” e “ jagu nço” –, atento às injust iças d os
pod erosos do Recôncavo, como os barões, co ndes, visconde s e marqueses.
As s im como o persona gem Macu naíma, de Mário de Andrade, que tamb ém
“vira e strela”, Beso uro faz parte de uma const e lação, organizad a pelo
pensame nto mít ico, const itutivo dos homens, em difere ntes épocas ou
so cied ades, vis and o d ar sent ido e reflet ir “so bre a exist ênc ia, os cosmos, as
situaçõ es de ‘estar no mundo’ ou as relações soc iais”. 20
              Ao se rememorar a vida de Besouro, de ve-s e cons iderar que “a
lembranç a é a sobrevivência d o passado. O passado, conser va ndo -se no
espírito de cad a s er humano, aflora à co nsc iênc ia na forma de im age ns -
lembranç a”. 21 Portanto, o ato de lembrar acontec ime ntos qu e se tra nsformam
em história vivifica s ituações e p erpetua o seu aprendizado. Assim são as
história s sobre Besouro Cordão de Ouro, idea lizadas em ima gens elaboradas
pela m emória de quem as conta. S e gund o Ecléa Bosi, “o instrumento
so cializado r da memória é a lingua gem. Ela reduz, unific a e ap ro xima no
mesmo espaço histó rico e cultu ral a imagem do sonho, a ima gem lembrada e
as ima gens da vigí lia atual”. 22
              As    narrativas       so bre     Besouro        Manga ngá        são     produzidas        num
momento histórico e so cial e ta is aco ntecime ntos, num processo d e se leção e
combina ção, são memo rizado s, contado s e reco nt ado s, dispens ando -se ass im
uma cobrança aos seu s narrad ores quanto a dado s históricos p recisos, p ois a
impo rtância da narrat iva está no p erso nagem vetor do acontec im ento narrad o.
              Co mo      representa nt e       de u m e xpress ivo            segmento        populac ional
afrodescend ente, a histó ria des se capoeirista, que Car ibé destaca, d entr e
vários nomes da capoeiragem, co mo “bom faquista angola, mas jogado r

19
   AMADO, Jorge. Mar Morto. 36ª ed. São Paulo, Martins, 1973. p. 123-127.
20
   ROCHA, Everardo. O que é mito. São Paulo, Brasiliense, 1991. 5ª. edição. P. 7. De acordo com o autor, o
mito, presente em todas as épocas, “não possui sólidos alicerces de definições. Não possui verdade eterna e é
como uma construção que não repousa no solo. O mito flutua. Seu registro é o do imaginário. Seu poder é a
sensação, a emoção, a dádiva. Sua possibilidade intelectual é o prazer da interpretação. E interpretação é jogo e
não certeza. Id., p. 95.
21
   BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. Lembrança de velhos. 9ª ed. São Paulo Companhia das Letras, 2001. p.
53.
22
   Id.; p. 56.
21



escasso”, 23 foi, como a de ta ntos ou tro s, “esquecid a” pela História oficial,
comprometida co m o projeto ident itár io das elit es d o p aís, na co nstrução de
um Bras il europeizado. Por isso, a au sê ncia de documentos escr itos, d eve ndo
o pesqu isador reco rrer à memória oral p ara elaborar uma histór ia da cap oeira,
pela importância do s afr ica nos na co nstrução da memória do país. Ao
considerar o traço livre e quase o nírico da memória, Bosi afirma o se guinte :


                          [...] lemb rar nã o é r evi ver, mas r efa zer, reco nstr ui r, r ep ens ar,
                          com i ma gens e i déias d e hoj e, as exp eriên cias do p assad o. A
                          me mó ria nã o é s on ho, é tr abal ho. S e assi m é, deve -se duvi da r
                          d a s ob r evi vên cia do p assado, “t al como foi ” e q ue se daria n o
                          in co ns ci ent e de ca da suj eit o. A l emb ran ça é u ma i ma ge m
                          con str uí da p el o s mat eri ais q u e est ã o a gor a à no ssa dis p osiçã o,
                          n o co nj u nt o de rep r esenta çõ es q ue p ov oam noss a cons ciê nci a
                          atual. 24


             Transmit idas d e ger ação a geração, há quase um século, as
narrat ivas so bre Besouro são fios de uma “memória subterrânea ”, te ce ndo
outros tranç ados, a fim de evit ar o seu esquecime nto.

                          E stu dar memó ria é falar nã o ap enas de vi da e de p er p et u aç ã o
                          d a vi da at ra vés d a histó ri a; é falar, ta mb ém, de s eu rever so, d o
                          esq ueciment o, dos silênci os, d os n ão dit os e, ai nda, de um a
                          fo r ma i nter medi ária, q ue é a p er man ênci a de m emó ria s
                          su bterrân ea s ent re o esq ueci ment o e a memóri a s ocial. E n o
                          ca mp o d as memó rias subt er râ neas, é falar tamb é m na s
                          me mó rias do s ex cl uíd os, d aq u el es q u e a fr ont eir a do p o de r
                          lanç ou à ma r gi nali da de d a históri a, a um o utr o tipo d e
                          esq ueciment o ao l hes r eti ra r o es pa ço ofi c ial ou r egu lar da
                          ma ni fest açã o d o di r eit o à fala e ao r econ he ci men t o d a
                          p r es en ça social. 25

             Por     esse     e ntendime nto,         tais    histórias       são      reco nstruídas,
ressignificada s pelo traba lho da memória, que se efetu a p elas operações de
lembrar e esquecer. Toda vez qu e um acontecimento é narrado, ou tras
performances são colocadas e tra zidas do inconscie nte e, num misto de real e
ima ginár io, confluem para o mesmo ponto, ou seja, a recria ção das “façanhas ”
ou feitos realizados por Besouro, nu m país que fez do negro o seu Outro, um



23
   CARIBÉ. Op.cit.;
24
   Ibid.; p. 55.
25
  FÉLIX, Loiva Otero. Política, memória e esquecimento. In: TEDESCO, João Carlos (org). Usos de memórias.
(Política, Educação e Identidade). Universidade de Passo Fundo. RS – Brasil. 2002, p. 31.
22



estranho a quem se “podia” maltratar, ao ignorar que se trata de um ser
humano .
                Segu ndo Vas concelos, ao tratar da impo rtâ ncia d a memória para a
so lidific ação d a história, “ se o esquecimento nos protege das do res, não
impedirá que os ho mens s intam sau dade ou rememorem seus mitos, s ímbo los
e ima ge ns”. 26 As sim, ao se prop or um estudo sobre o capoeirista Besou ro, não
se tem a intenção de esquecer as do res que certamente viveu . Ao contrário,
busca-se e ntender as razõ es pelas qu ais esse p ro tagonista é rememorado co mo
um mito, um símbolo, rep rese ntant e de um segmento so cial mar gina lizad o.
                Para     se   ente nder      o   lugar     que     Besouro       M angangá   ocupa   no
ima ginár io p opular, é neces sár io co ntextua lizar o período em q ue viveu,
marcado por mudanças soc iais e p olít icas do Brasil do fina l do sé culo XIX e
iní cio do século XX. A abo lição da es cravatura, com a as sinatura d a Le i
Áu rea em 13 de maio de 1888 , e a Primeira República, que começa a vigo rar
com a sua proclamação, em 15 de novembro de 1889, p elo Marecha l Deodoro
da Fo nseca, at é 1930, criam a espera nça de trans formar o Bras il em um novo
país.
                Nesse perío do, o Recôncavo Ba iano é o princip al veto r das relaçõe s
econômica s com o plant io e a colhe ita da ca na -d e-açúcar, e os engenhos s ão
os p rincipa is núc leos para o s co ntatos . A maioria do s engenhos e sta va
loca lizada em Santo Amaro da Pu rificaçã o, terra de Besou ro Cordão de Ouro.
Para Z ilda P aim, “o Recôncavo tornou -se em pouco tempo o mais imp ortant e
ce ntro agrícola da era colo nia l”. 27 Ainda p ara a autora, Santo Amaro “fo i, s em
dúvid a, o município que mais e scra vos p ossuiu. Seu s prime iro s povoado res,
os p ortu gueses, dado às ave nturas, ávido s de lucros, qu eriam t irar da terra o
má ximo que ela pud esse dar”. Dest acam -s e a inda o s agru pamento s ne gros que
vieram para Santo Amaro:


                              [...] os ha ussás h ab itav am o Sudã o C entr al, a o nort e d os ri o s
                              Nig er e Bi n ue. F or mav am a naçã o mais i mp orta nt e de t o das a s
                              n eg ríti cas su dan es as. Os malês eram a frican os islami za dos,
                              p oss ui do r es de med i ana cult ura e p ort a do r d e ofí ci os d e



26
     VASCONCELOS, José Gerardo. op. cit.; p. 24.
27
     PAIM, Zilda. Isto é Santo Amaro. 3 ed. Salvador. Academia de Letras, 2005, p.51.
23



                           p edr ei r o e ca rpi nteir o, óti mos a gri cul tor es, exer cen d o
                           in fl uê ncia s ob re es cravos d e di versas pr oced ênci as. 28


             No p eríodo em que Besouro viveu , preva leciam “ra nço s” muito
fortes do regime mo nárqu ico no país, e a ab olição era ainda uma s ituação a
ser ac eita por muitos ex-do nos de escravos. Segundo o historiad or baiano
Walter Fra ga F ilho, “ nos últ imos anos do século XIX, o Recôncavo era a
região econo micame nt e mais imp ortante da pro vínc ia. Era também a mais
densame nt e povoad a e a que concentra va maior número de escravos”. 29 E para
Antô nio Risér io a sociedade que s e formou na “cid ade da Bahia” e s eu
Recô nca vo esteve marcada po r um processo contí nu o de mest iça gem, apesar
de to das as desigu aldades entre os gru pos que a co nstitu íram. 30
             Co m essa composição pop ulacio nal s ingularizando o Recôncavo
Baiano e a cidade do Salvador no s primeiros a nos da Repú blica, as e lite s
loca is vão fazer uso do s capo eirista s. De acordo com Ris ério, “a c lass e
dirigente baia na se opôs, até quando is so foi possível, à mu danç a de regime
polít ico ”, e a Ba hia foi a ú lt ima província do império a ad er ir à Repúb lica.
Ris ério destaca que a elite b aiana, p or seu conservadorismo, de “fund as e
contorcidas raízes”, via no no vo regime o sinô nimo da anarquia e, tanto a
elite po lítica quanto o empresariad o agromerca nt il, cons idera vam que, com a
alt eração do r egime, só ter iam a perder o poder adqu irido du rante anos de
domínio senhorial. 31
             As sim, com a Prime ira Repúb lica, surge a figura d o coronel, que va i
atuar co mo “escudo” das forças política s vigent es, cabe ndo -lhe, po r mu itas
vezes,     escolher      o s líderes       loca is    ou    formar      novas     parcerias,      pois     a
so brevivê nc ia do sistem a político d ependia do contínuo e da manipu lação do
pod er pela s o ligarquias trad iciona is.
             Para o histo riador coreano Eul Soo Pang, a Bahia, “devido ao seu
tamanho fí sico e demográfico e sua imp o rtâ ncia eco nômic a, era o ma ior e


28
  Id. Ibid., p. 45- 48.
29
   FILHO, Walter Fraga. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos libertos na Bahia (1870-1910).
Campinas/SP. UNICAMP, 2006. p. 34.
30
   RISÉRIO, Antonio. Uma história da cidade da Bahia. 2 ed. Versal, 2004. p. 103. Segundo, Josivaldo Pires de
Oliveira, Salvador, “capital da Bahia”, é, historicamente, conhecida como uma cidade de muitos nomes. “Cidade
da Bahia”, “São Salvador”, “Cidade do Salvador” ou “Bahia de Todos os Santos”, principalmente quando se
trata da cidade da primeira metade do século XX.
31
   RISÉRIO, Antonio. op. cit., p. 404-405.
24



mais poderoso estado do Nordeste do Bras il e os seu s coronéis c hegaram a
particip ar d e campanhas m ilitares ao lado de determinados grupos polít icos
estadu ais e nacio na is. 32 Ainda com Eul Soo Pang, o co ro nelismo tem como
base p atriarca l, soc ial e eco nô mica os e nge nhos de açúcar do século XVI, e a
su a principal fu nção era a hábil u tiliz ação do pod er privado acumulado pelo
patriarca de um clã ou uma famí lia ma is ext ens a. 33 J osivaldo Oliveira e ntende
o coronelismo como “fruto de situ ações históric as e specífica s em u ma
so cied ade, inclus ive em soc iedades urbanas, a exe mplo de Salvador na
Primeira República”. 34
              Dest aque-se qu e o pod er senhor ia l d o int erior do Brasil a ind a
ma nteve a sua força até a s egunda met ade do século XX, como afirm am
Vilaça e Albu querqu e, “tendo, portanto, sobrevivido por mais de meio século
a seus precursores, o s coronéis do açúcar”. 35 Nes se co ntexto, muitos
capoeiras, assim tamb ém conhec idos, ho mens fortes e destemidos, aptos a
todo tipo d e ser viço, vão trabalhar co mo “capa nga s” ou homens de co nfiança
dos coronéis – uma espécie d e s eus protetores particulares e de suas terras – e
vão ter os coronéis como seus protetores.
              Segu ndo Muniz Sodré, “desde pouco antes da Abolição e durante a
Primeira República”,


                            os cap o ei ristas p ass ar am a s er usad os, s ob r et u do no Rio d e
                            Ja neiro co mo ca pa ngas (às vez es contr a os p róp rios n eg r os, o u
                            con tra os rep ubli can os ) p o r p olíti cos e p ess oas d e i nfl uê nci a.
                            Nã o s en do ess e o cas o, o cap oeirista er a fr eq ü ent em ent e



32
   PANG, Eul-Soo. Coronelismo e oligarquias. 1899-1934. A Bahia na Primeira República Brasileira. Trad.
Vera Teixeira Soares. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. p. 9. No período em que viveu Besouro
Mangangá, a divisão geopolítica do Brasil estava demarcada por duas regiões: Norte e Sul. O “termo nordeste é
usado inicialmente para designar a área de atuação da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS),
criado em 1919. Neste discurso institucional, o Nordeste surge como a parte do Norte sujeita às estiagens e, por
essa razão merecedora de especial atenção do poder público federal. [...] Em 1920, a separação Norte e Nordeste
ainda está se processando; só neste momento começa a surgir nos discursos a separação entre a área amazônica e
a área ‘ocidental’ do norte, provocada principalmente pela preocupação com a migração de ‘nordestinos’ para a
extração de borracha e o perigo que isto acarreta para o suprimento de trabalhadores para as lavouras tradicionais
do Nordeste”. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 2 ed.
Recife: FJN, Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2001. p. 68-69.
33
   PANG, Eul-Soo. Coronelismo e oligarquias. 1899-1934. A Bahia na Primeira República Brasileira. Trad.
Vera Teixeira Soares. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. p. 9.
34
   OLIVEIRA, Josivaldo Pires. No tempo dos valentes: os capoeiras na cidade da Bahia. Salvador: Quarteto,
2005. p. 90.
35
   VILAÇA, Marcos Vinicius; ALBURQUEQUE, Roberto Cavalcante de. Coronel, coronéis. Apogeu e declínio
do Coronelismo no Nordeste. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 23.
25



                           ap o nta do co mo a ut o r d e t r op eli as e des or den s, sus cit a ndo mai s
                           u ma vez medi das l egislati vas esp ecí fi cas. 36


             Aind a co m Sodré, “a crônica da cap oeira até qu ase o fim d o Império
reve la d ispo sições permanente s de re sist ênc ia marc ia l aos dispositivos
repress ivos d e ordem escra vagist a”. As sim, no final do século XIX, o jogo da
capoeira começa a so frer forte repress ão socia l e polic ia l, tanto na capit al da
Repúb lica, o Rio de Janeiro, qu anto na Bahia e seu Recô nca vo, decorrente da
insurgênc ia dos negro s ao sistema polític o vigente. Nos primei ros anos pós-
monárquicos e d e Repúb lica Velha (1889 -1930), a capo eira vem a se r
considerada crime, com o Código Pena l de 1890.
             De acordo com M anuel Querino, no Rio de J ane iro “o cap oeira
const ituía u m elemento perigoso, torna ndo -se ne cess ário que o gover no , p ela
portaria de 3 1 de outubro d e 1821, estabele ce ss e cast igo s corpo rais e
providê nc ias ou tras, relat ivas ao caso” . 37 Os t ipos, então d escr itos nas
narrat ivas,     podem        bem     representar        caricaturas       do     siste ma     soc ial    da
épo ca.Desse mo do, domina nt es e dominad os lideravam um conflito freqüente.
Afirma Edil Co sta :
                           P rati cada p el os a fr o-br asil eir os como um j ogo, u ma for ma d e
                           di verti ment o q ue dis farç ava uma luta p eri g os a, a cap o ei r a
                           p ar ece nã o t er d ei xa do de s er p rati cad a em mo men t o al g um d e
                           su a história, ap esar da r ep r ess ão p oli ci al viol ent a q u e s ofr eu .
                           Ao cont rári o, ga nh ou forç a enq u ant o sin al d e r esistência e d e
                           d es cob ert a da negrit ud e. E m u m mo m en t o segu i nt e, fi r mou - s e
                           como l uta e, mes mo p rati cad a ent re os negr os, nã o hav en d o
                           comb at e dir et o entr e o opri mi do so cia l me nt e e o s eu op ressor,
                           o comb at e simbó li co esta va estab el eci do : jo gar cap o ei r a
                           sig ni fi ca va a fi r mar-s e co mo negr o, her deir o da tr a diç ã o
                           a fri ca na e faz er fr en t e e r esistê ncia a os valor es so ciais d o
                           b ran co. 38

             A repressão ao jo go da capoeira não s e estendia à s e lites, que
faziam uso da fo rça e da valent ia dos cap oeirista s. Se gundo Almir das Areia s,
o Código Pena l de 1890 confere à capoeir agem um tratamento esp ecífico:



36
   SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida; por um conceito de cultura no Brasil. 3ª ed. DPA editora. Rio de Janeiro,
2005. p. 155.
37
   QUERINO, Manuel. A Bahia de outrora. Salvador. Progresso, 1955. p. 80.
38
   COSTA, Edil Silva. Comunicação sem reservas. Ensaios de malandragem e preguiça. 2005 (236 p) Tese
(Doutorado em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo 2005.
p.88.
26



                           – F az er nas r uas e p ra ças p ú bli cas exer cí ci os d e agili dad e e
                           d estr eza cor p oral con heci d os p ela d eno mi nação cap oeira gem;
                           s erá o autu ad o p uni d o com dois mes es d e p ris ã o.
                           – É co nsi der ada ci rcun stâ nci a a gra vant e p ert encer o cap oei ra a
                           algu ma ba nd a o u malt a.
                           – Aos ch ef es e cab eças se i mp or á a p en a em d ob ro.
                           – No cas o d e r ei n ci dê ncia s erá apli cad a ao cap oeir a, no gr a u
                           má xi mo, a p ena do arti go 400 .
                           – Se for estran geir o, s erá dep orta do d ep ois de cu mp rir p en a.
                           – Se n ess es exercí cios de cap oeir a gem p erp etra r ho mi cí di o,
                           p rati car al guma l es ão co rp oral, ultr aja r o p oder pú bli co e
                           p arti cul ar, e p ert urba r a or d em, a tra nqü ilida de o u a segu ra nç a
                           p úb li ca     ou    for      enco ntr a do    co m    ar mas,     incorr er á
                           cumul ati va ment e nas p en as comi nadas p ara t ais cri mes. 39

             Tal código é destituído em 1937, na Rep ública No va, com o então
presidente Getúlio Var gas, e a capo eira t orna-se um esporte, inst itucionaliza -
se, como um modo de contro lar a at uação dos cap oeirista s, atra vés da
organização de academ ias para o seu ens ino. 40 De acordo com Walde loir
Rego,
                           a cap o ei ra foi i nv en tad a co m a fi nalida de de di verti ment o, ma s
                           n a r eali dade funci onav a co mo faca de dois gu mes. Ao lado d o
                           n or mal e do q uoti di an o, qu e era di vertir, er a lut a ta mbém n o
                           mo ment o op o rtuno. N ão h avia Acad emi as d e Cap o eir a, ne m
                           a mbi ent e fecha do, pr emedita da ment e p ara jog ar ca p o eir a.
                           Anti gament e h avia cap o ei ra, ond e ha vi a uma quitan da o u um a
                           v en da d e ca ch aça, com u m l ar go b em em fr ent e, p r opí ci o a o
                           jo go. Aí, aos domi ng os, feri a dos e dias s ant os, ou ap ós o
                           trabal ho s e r euni a m os cap oeiras mais famo sos a ta garelar em,
                           b eb er em e j ogar em cap oei ra. 41


             Co m a ass inatura d a Lei Áu rea, mu itos n e gros libertos cont inuaram
a trabalhar em tro ca de salários ou arrenda ndo terras dos seus ex-senhores,
se gundo Walt er Fraga Filho :


                           É p r eciso lembr ar q u e a pop ul açã o q u e emer gi u da es cr a vi dã o
                           era b asta nt e di fer encia da i nt er na ment e. A p oss e d e al gun s
                           b ens, o dir eit o d e acess o à t er ra, o do mí ni o de u ma pr ofissã o
                           esp eci aliza da, a p osi ção de feit or d e ser vi ço, estab el ecera m


39
   AREIAS, Almir das. O que é capoeira. 3 ed. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1983. p. 43. Em A verdade seduzida,
Muniz Sodré, em nota de rodapé, afirma o seguinte: “O Código Penal de 1890 previa desterro e castigos
corporais para quem praticasse a capoeira. Exemplos célebres de desterro: Manduca da Praia, Juca Reis,
mandados para a Ilha de Fernando de Noronha, durante o primeiro governo republicano; de castigos corporais:
as chicotadas aplicadas pelo famoso Major Vidigal, chefe de polícia do Rio de Janeiro, no início do século XIX
Cf. SODRÉ, Muniz. Op. cit.; p. 155.
40
   OLIVEIRA, Josivaldo. op. cit., p. 31.
41
   RÊGO, Waldeloir. Capoeira Angola: ensaio sócio-etnográfico. Salvador: Itapoã, 1968, p. 35-36.
27



                          algu ma s di fer en ças dentr o do conti n gent e escravo, d efi nir a m
                          es col has e po der d e b ar ga nh a fr ent e aos ex -s enh or es. 42


            Antes e scra vos, agora o s negros passam a const itu ir u m exp ress ivo
se gme nto de exc luídos, deixados à própria sorte. Como a grande maio ria não
teve a ce sso à cultu ra letrada, restava - lhes fazer parte do gra nde cont inge nt e
de-mão-de obra barata e desqualific ada que povo ava as c idad es do Recônc avo
Baiano e do Brasil.
            Para      a    historiadora       Adria na      D ias,    mu itos      negros      “eram
trabalhado res braçais, como carregadores, estivado res, engraxates, cap anga s,
polic iais”, 43 e a rua era o p rincipa l ce nário de co nflito s constantes, p ois
muito s trab alha vam esporad icam ente, e lu gar do jo go da capoeira. Ne sse
contexto, negros e “me st iços” são c las sificados de “vadios”, “ vale ntões,”
“deso rd eiros” ou ainda pobres “vicio sos ”. 44
            Aind a s egu ndo Adriana D ias,


                          [...] n o fi nal do sécul o XIX, muit os vi vi am de o cup aç õ es
                          esp or á di cas t end o um rit mo de vi da b asta nt e ir r eg ul ar, o q u e
                          lh es pr op o r ci o nava fr eqü ent es p erí od os d e oci osi da d e
                          ent r emead os p or mo m en tos d e div ersão q uas e s empr e
                          a compan ha dos de mu itos ‘ gol es de cachaça’ e, lógi co, muit a s
                          b rigas e pr o vocaçõ es. 45

            As sim, como afirma Walt er Fraga, justamente por suas hab ilidades
ou p ro fiss ão esp ecia lizad a, os negros do pós -abolição u sam seu poder de
barga nha junto à s e lites, e os capoeiristas t amb ém vêm a ne goc iar sua s
hab ilidades, ao serem usado s como capangas p or “polít icos e pes so as de
influência”, como também analisa Muniz Sodré.
            A capoeira, misto de arte e lu ta, compõe o repertório cultural do
negro , u ma estraté gia cr iada em sua d efesa e est ab elec ime nto de poder entr e
outros negro s. No Rio d e J ane iro , após a abolição, um enorme cont ingent e de
ex-escra vos também va gueava p elas ru as, “resid indo nos morros e na s




42
   FILHO, Walter Fraga. Op. cit., p. 232.
43
   DIAS, Adriana Albert. Mandinga, manha & malícia; uma história sobre os capoeiras na capital da Bahia
(1910-1925). Salvador: EDUFBA, 2006. p. 70.
44
   Ibid., p. 26.
45
  Ibid., p. 17
28



periferias, circu la ndo normalmente nos locais de ma ior movim ento d a cidade
[...], mal co ns eguia m um trabalho qu e lhe s garant isse a sobrevivênc ia”. 46
             Entregues à próp ria sorte, por co nta de um passado que não
esco lheram, e nvolviam-s e em as sa ltos, cr imes e emboscadas. Por is so,
vad iavam pe la cidade – “dividind o -se e o rganizando -se em grup os, os ne gros
caminhavam cada vez mais para a mar ginalidade. Surgem as famo sa s ma lta s
de capoeira”. 47 Em relação a es sas malta s, Edson Carneiro afirma o segu inte:


                          As maltas d a Bahi a fo ra m d es or ganiza das po r ocasião da
                          g uer ra do Par a guai: o g ov er no da p r ovín ci a r ecr ut ou à força o s
                          cap oeir as, q u e fez segu ir pa ra o S ul co mo “v o l u nt ári os d a
                          P átria”. Ma nu el Q ueri no co nt a q ue mu it os de les s e disti n guia m
                          p or at os de br av ur a no ca mp o de bat al ha. 48

             Ao reconst ituir um p ercurso histó rico da capoeira gem, Líb ano
Soares destaca que, antes

                          d e s er ‘ des cob ert a’ p el os hist ori ador es, há p oucas dé ca das, a
                          cap oeir a já ti nha vi vi d o su as a vent uras nas p ági nas d a
                          literat u ra, d os cr o nist as, dos me mo ri ali stas do p assa d o
                          i mp erial d o Rio d e Jan eir o. E ant es mes mo d est es – e d e for m a
                          mu it o mais fr eqü ent e -, nu m p assa do remot o, a cap o ei ra só er a
                          test emun had a p el os es cri vã es d e P olí cia. 49

             Aluís io d e Aze ved o, em O co rtiço , (1890) e M anoel A ntônio de
Alm eida, em Memórias de um sargento d e milícias, (1854 ) registram na s
páginas d esses ro mance s episódios envo lvend o p erso nagens capo eir ist as, os
quais co ntr ibuem para ente nder a dinâmic a socia l do Rio de Janeiro, no século
XIX, p eríodo qu e marca a passagem da o rd em imp erial para a o rd em
repub licana.
              Co nt inua Líbano Soares:

                          [...] junt o co m ra mei ras, p r ostit utas, v agab u nd os, esti va dor es,
                          mal andr os, b oêmi os, p oli ci ais, os cap o ei ras fa zia m p art e d a
                          b uliç osa fau na das r uas da C ort e, q ue ass ustava as ca ma da s
                          mé di as e tamb é m a elit e diri gent e. P ersegu idos p el o apa rat o




46
   Cf. AREIAS, op. cit., p. 29
47
   Id., p. 29.
48
   CARNEIRO, Edson. Capoeira. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1977. 2 ed. Cadernos de Folclore. V. 1.
49
   SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições no Rio de Janeiro. (1808-1850). 2
ed. Campinas, São Paulo: Unicamp, 2004. p. 35-36.
29



                            p oli ci al os cap o ei ras fora m p res en ça fr eqü ente nas pá gi n as d o
                            cri me do sécul o XIX. 50


              Co nco mitante aos ep isódio s da Corte Imp erial no Rio de Janeiro,
envolve ndo indivídu os desses s egmento s sociais, a Ba hia e s eu Recôncavo
também p ossuem os seu s “vadios”, “valentões”, “d esordeiros” ou ainda
“pobres e vic iosos”. S egundo Jo siva ldo Olive ira, na cidade de Sal vad or das
primeiras décadas repu blica nas a capo eiragem ass im era vista :

                            Co nfi gu r ou-s e de forma apr oxi ma da a o Par á r ep ub li ca no. O s
                            cap oeir as eram ass oci ad os à v agab und ag em e a outr os tip o s
                            so ci ais do uni v ers o das ru as, a exe mp l o do cap an ga p olíti co e
                            d o sol da do de p olí ci a, mas t a mb ém a o trab al ha do r na s
                            p rincipais ocup aç õ es das camad as p op ula r es: p ed r ei r o,
                            carr ega dor, car r oceiro, maríti mo, p ei xeir o, et c. 51


              Para Muniz Sodré, a cap oeira imp licava, como toda estraté gia
cultu ral dos negro s no Bra sil, um jogo d e res istê ncia e acomodação .


                            L ut a co m ap ar ên ci a d e dan ça, danç a qu e apa r ent a combat e,
                            fa ntasi a d e l uta, va di açã o, ma ndi n ga, a capo eira s ob revi v eu
                            p or ser u m jog o cu ltural. Um j ogo d e destr eza e ma lí cia e m
                            q ue s e fi ng e l ut ar, e fi ng e-s e t ã o b em q u e o co n cei t o d e
                            v er d ade da l uta se diss ol ve aos ol hos d o esp ect ad or e – ai del e
                            – do ad vers ári o desa visa do. 52


                Sodré traz uma descrição p rimorosa dessa arte :


                            V adia çã o e brin cad eira sã o outr os n omes com q ue os n eg ro s
                            d esi gnav am n a Ba hia o j og o d a cap oeir a. Capo eir a s e l uta,
                            jo ga, bri nca, é al g o q ue s e faz en tre ami gos o u co mp an heiros.
                            Co mo ? Pri m ei r o, for ma -se uma r oda co mp ost a p or um ou mai s
                            to ca do res de b eri mba u (a rco r et esad o p or um fi o de aço,
                            p er cuti do p o r uma vareta e a o q ual s e p r en de uma cabaç a
                            cap az de fun ci o na r como cai xa de r ess onâ ncia), p an deir os,
                            ca xi xis o u r eco -r eco s. E m segu ida, dois h omen s en tra m n o
                            cí r cul o, abaix an do-s e n a fr ent e d os mú sicos, ao so m do s
                            instru ment os e de ca nçõ es (c hu las) esp ecí fi cas. 53


50
   SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A negregada instituição. Os capoeiras na Corte Imperial 1850-1890. Rio
de Janeiro: Access, 1999. p. 3. Segundo o autor, os feitos dos capoeiras no Rio de Janeiro – capital da República
– Bahia e seu Recôncavo vinham desde o período monárquico, o que validava a sua coibição. Por conta disso, o
Código Penal de 1890 passa a ser o principal recurso de punição para esse tipo de luta.
51
   OLIVEIRA, Josivaldo. op. cit.; p. 33.
52
   SODRÉ, Muniz. Capoeira, um jogo de corpo. op. cit.; p. 155. Grifos do autor.
53
   Id. p. 153. Grifos do autor.
30



                           E nt ão, mo biliza m-s e t ot al men t e os corp os d os j o ga dor es.
                           Mãos, p és, joel ho s, b ra ços, cal ca nhar es, cot ov el os, dedos,
                           cab eç as combi na m-s e di na mi cament e em esq ui v as e g olp es, d e
                           n omes va riad os: aú, rast eir a, meia -lua, m eia -lua de co mpass o,
                           ma rt el o, r ab o- de- ar raia, b enç ão, chap a- de-p é, chib ata, t eso ur a
                           e muit os outr os. 54


               Em sua cartogra fia d a cap oeiragem baiana, J os ivaldo Oliveir a
mapeia os princ ipais loca is de conflitos dos capoeiristas, ruas, logradouros, e
a mo radia de muitos dos indivíduo s ident ific ado s co mo capoeiras. 55 As e lite s
so teropolita nas         cons ider a vam         esses      locais       espaços         suscet íveis        à
crimina lidad e.
               O “cotid ia no da ru a na Cidade d o Salva dor, inclu sive nas obscu ras
e embriagadas noit es, urgia atenção especial por parte das autoridades e os
edito ria is dos principa is jorna is da época cob ravam das auto ridades polic iais
melhor seguranç a e ordenação pú blica ”. 56 Co ntudo, a despeito da forte
repressão, os capo eir ist as ma nt iver am clandest inam ente o jogo, pratica ndo -o
nos quint a is, na s praias, nos terre iro s e nos arredores da cidad e, ao tempo em
que transm it iam seus e ns inamento s à s ger açõ es fu turas. 57
               A ginga e ma lícia d a capoeira estavam nas ruas, fert ilizando a
ima ginação de segm ento s so ciais e lit izad os, amedrontados com as possíveis
agressões, endossa ndo a má xima de q ue o capoeir ista é “ ma la ndro”, um
detentor de artimanhas, aprimo radas a cada luta e, princ ipalm ente, na roda da
capoeira.
               Nesse cont exto histórico, co meça a sa ga d e Besouro Manga ngá, cuja
fama alcançada é ass im compreend id a po r Pedro Abib:

                           No i ma gi n ári o d a cap oeira gem e d os cap oei ras nã o exi s t e
                           fi g ura mais r ep r esent ati va d o q u e B es ou r o Ma nga ng á. [...] na
                           me mó ria dos mais a nti gos morad or es do R ecô n ca vo, a fi g ur a
                           d e B eso ur o, viv e e pr ot a goniza um s em- nú mer o de histó rias e
                           “caus os” en vo lv en do su as p eripé cias              e astú cias       no
                           enfr entam ent o co m a p ol í cia, s ua valentia ao bri ga r e b at er e m
                           v ári os op on ent es a o mes mo t emp o [...]. 58

54
     Id. p. 153-154.
55
   Id. p. 41. O autor destaca a importância das crônicas e da literatura urbana para os estudos africanistas e a
etnografia, vigorando até os anos 1930, por contribuírem com a reconstituição do cotidiano dos capoeiras
baianos que viveram em Salvador nas primeiras décadas do século XX. Cf. OLIVEIRA, Josivaldo. p. 39-40.
56
   Id. p. 45.
57
   Cf. AREIAS, p. 61.
58
   ABIB, Pedro. Capoeira Angola: cultura popular e o jogo dos saberes na roda. Campinas, SP. Unicamp/
CMU; Salvador: EDUFBA, 2005. p. 160.
31



              Ao sair de ca sa com 13 anos de idade, Besouro vai para a sede do
distrito em qu e mo rava, S anto Amaro da Pu rificação, vindo a res idir no ba irro
do Trapiche d e Baixo , zona su burbana da cidade qu e passa a s er a sua escola.
Ap rende a jo gar capoeira com o “tio Alí pio” e trab alha em diversos o fíc ios :
vaq ueiro, amansador de burros, sa ve irista, num temp o de conflito entr e
“maltas”, disputas a nava lha, capa ngas ele itorais e repres são do Estado
repub licano ao jogo da capoeira.
              É nesse período conturbado do país, em espec ial a Ba hia e o seu
Recô nca vo, cu ja at ividade econômica, em seus mo dos e relação de produção,
não abriu mão da fo rça de trabalho dos negros, m esmo com a aboliç ão da
escravatura, q ue passam a comp or predominanteme nte os segmentos p opulares
que Besouro ganha evidê ncia com seus feitos que d esafiam a ordem vigent e.
              Naquele universo da capoeiragem baia na, muitos cap oeirista s s e
tornaram notáveis. Contu do, Besouro Cord ão de Ouro lid era o período, com
maestria, sí ncopa, qu alificad a por Muniz Sodré co mo um esp aço a ser
preenchido com o corpo 59 e, nesse ca so, o corpo do negro : em mo vimentos
rítmicos, envolvido pela música e a ginga da cap oeir a, qu ase um b ailado que
hip no tiza o adversár io. Edson Car ne iro o destaca : o “ma is famoso d os
capoeiras na cionais era natura l de Santo Amaro, na zo na cana vieira, e tinha o
apelido de Besouro Ve nenoso. Era inve ncí vel e inigualá vel. Ainda agora a s
chu las de capo eira cantam as suas proezas lendár ias”. 60
              Beso uro Mangangá ens inou a outros o que aprendeu com o seu
velho mestre, a inda garoto . Nesse ap re ndizado começa a co nhecer o corpo
como eleme nto agre gad or para fortalecer a arte da então “capoeira escr ava”, 61
um instrume nto para defes a e ataq ue, uma das e straté gias dos escravos para

59
   SODRÉ, Muniz, Samba, o dono do corpo. 2 ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. p. 11. De acordo com Walnice
Nogueira Galvão, a síncopa é “uma espécie de padrão rítmico em que um som é articulado na parte fraca do
tempo ou compasso, prolongando-se pela parte forte seguinte”. “Um corpo sincopado valoriza mais intensa e
expressivamente o tempo fraco da música. E isso se reflete de diversas maneiras. Porque rompendo com a
hegemonia do tempo forte, esse corpo se fraseia de um outro jeito: é como se ele tomasse a liberdade de brincar
se expressando. Conectado com o espírito da música esse corpo tanto ginga por dentro como por fora; saracoteia,
deixa-se tomar por trejeitos, por negaças, remelexos, balanços, meneios, volteios, suíngues...”. A síncopa “se
traduz no corpo e o corpo traduziria o ritmo caso ele fosse dessincompado. É como se no tempo fraco o corpo
pudesse exprimir certas sutilezas para as quais o tempo forte não dispõe de duração suficiente. Pois o tempo forte
nos prende ao chão enquanto o fraco nos liberta dele: o tempo forte é peso, o tempo fraco é leveza”. Cf.
GALVÃO, Walnice Nogueira. Grandeza e encanto de Naturalmente, de Antônio Nóbrega. Disponível em
http://www.conectedance.com.br/matéria.php?id=9
60
   CARNEIRO, Edson. op. cit., loc., cit.
61
   Denominação usada por Carlos Líbano Soares para a capoeira jogada no século XIX. In: A capoeira escrava e
outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). Campinas, SP: Ed. UNICAMP, 2004.
32



lidar com a brutalidad e do poder escra vista.                       Segund o Almir das Areias, “a
capoeira surge no Brasil como arma, em função da necessidade d o escravo de
se defender dos maltratos e cast igo s dos seu s opressores e, ao mesmo tempo,
como folgu edo, p ara express ão e manife st ação dos seus se nt ime ntos”. 62
              As sim, a cap oeira era u ma prática ne ce ss ária a um segm ento da
pop ulação       afro -b aiana,      cada      vez    mais      oprimid a e           marginalizada.             “À s
esco ndidas, os capo eiras, nos qu int ais, nas pra ias, no s terreiros e no s
arredores da c id ade, exerc ita va m a s ua prática e tra nsmit iam os seus
ens inamentos à s geraçõe s futuras”. 63 Nes sa p rática, tem-se u m jogo de corpo
que marca um movimento d e res ist ência, o scila ndo entre a re volt a e o emb ate
direto às forças da ordem.


Besouro Cordão de Ouro, um heró i d a cultura afro -brasileira


                                                               Onç a pr et a foi l á e m cas a/ t u m t u m t u m
                                                               bat eu na port a/ M e ch a mou pr a
                                                               con ver sar/ Te m u m n eg o q ue é u m
                                                               t ou r o/ Vi aj an d o p ara cá/ Us a c ord ão d e
                                                               ou r o/ Cal ça ch ap éu e ab adar/ U sa bri n c o
                                                               e p at uá/ On ça pret a foi l á em cas a/ Zu m
                                                               zu m zu m boat o c orr e/ É B es our o
                                                               Man g an gá 64

                                                               Zu m, zu m, zu m, Besou ro M an gan g á
                                                               Bat en d o n os s ol d ad os d a p ol í ci a mi l i t ar
                                                               Zu m, zu m, zu m, Besou ro M an gan g á
                                                               Que m n ão pode c o m mand i n ga n ã o
                                                               carr e ga pat u á 65.


              Quem é o herói Beso uro? Que narrat iva protagoniz a? Em su a
trajetória, não abraço u uma nob re mis são, como os heróis das ep opéia s
cláss icas: r epresentar grand iosame nte a s ua p átria ou nação ou a humanidade.
Besouro va i compor a galer ia de ou tra tradição, a do heró i popu lar, erguid o na
contramão do s valo res de uma cultura hegemô nica. Por ess e ent e ndimento,
são tidos co mo ant i- heróis, marginais ou pic aresco s.
               No Ocid ente, as narrat ivas so bre os feitos e xtraordinár ios d os
heróis começam na Gré cia, a s q uais re gistram histórias d e personagens que

62
   AREIAS, Almir. O que é capoeira. 1 ed. Brasiliense, São Paulo: 1983, p. 22
63
   Id. p.60-61.
64
   Cantiga de capoeira identificada por Areias, de autoria de Dado. In. O que é capoeira. p. 55.
65
   Cantiga de domínio público.
33



enfrentaram s ituações d es afiado ras de sua condição humana. O herói des sa s
narrat ivas é jovem, corajoso e destemido, que vive ncia incríveis façanha s.
As s im os heró is são figuras imorta lizad as como sem ideuses, p ersona gens de
narrat ivas mít icas p ovoando o ima giná rio do s ind ivíd uos em diferente s
cultu ras. De acordo com Massaud Mo isé s, até o século XVIII,

                           [...] grosso mod o a épi ca cara ct eri zo u- se p or u m t o m
                           maj est os o e mes mo r eli gi os o, e p or cont er as s ub li me s
                           faça nh as du m h erói q ue si mb oli za va as gr a ndezas de sua p át ri a
                           e mes mo d e t o da a Hu ma ni dad e: n um mu nd o estrati fi ca do,
                           h avia l u gar cert o p ara o herói. C om o ad vent o d o R omantis m o
                           e a cons eqü ent e d err ub ad a das car comi das e tra di ci onai s
                           estrut ur as, des ap ar ece o h erói e nas ce o não - heró i o u o anti -
                           h eró i, pois no mund o n ov o d ei x ou de haver esp aç o p ara a s
                           con cepçõ es míti cas segu ndo o a nti g o fi gu ri n o. 66


             O herói das narrat ivas ocide ntais é uma espéc ie de su per -homem,
um semi-deus, daí a amb igüidade, o que mantém sua co nd ição hu mana. Na s
epopéias gregas, o herói ap rese nta uma fac eta bélica, protagonizando u ma
história de conflitos, qu e tem o seguinte e nredo : “a prep aração (aprese ntação
do herói e descrição das armas); o comb ate (peripécias, espect ado res,
proezas); o dese nlac e vito rio so (despojos, injúria aos cadáveres inimigos,
jogos fúnebres)”. 67
             Beso uro, herói de extr ação popular, é protagonista da epop éia
dolorosa dos negros no Bras il, tornando -se um p erso nagem d a história que va i
alime ntar, aind a hoje, mu itas narrativ as sobre suas aventuras. O capoeirist a
rasura a noção de herói como a elaborada por uma conceituação tradicio nal do
gênero épico, vindo simbo lizar a rebeldia dos negros, como resposta ao
sist ema escra vocrat a no país.
             O e nfre nt amento dos negros es cra vizados ao s istema d omina nt e
sempre foi vigiad o, controlad o, objeto de punições se vera s, se ja atravé s de
cód igos criados pelos se nhores escravist as, seja atravé s de leis elaboradas
pelo campo ju rídico, qu e inc lusive dá respaldo àqueles có digos. Em seu
estudo acer ca do papel dos negros na desagre gação da ordem escravist a no



66
  MASSAUD, Moisés. A criação literária. 4 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1971, p. 70.
67
  Cf. E-Dicionário de Termos Literários. http://www2.fcsh.unl.pt/edtl//verbetes/H/heroi.htm. Acesso em
01/05/2010.
34



Brasil, a historiado ra Lane La ge Lima ana lisa a aliança entre a campanha
abo licio nist a e a rebeldia negra. 68
              Para a auto ra, a insurreição “const itui a respo sta do escra vo à
violê ncia d o s istema de dominação imposto p elo branco. Vio lênc ia traduzida
por precárias co ndições d e subsistênc ia, aliadas à co mpulsão a um trab alho
exte nua nte e a lie nador, através de me ca nismos de coerção particularme nt e
viole ntos e legitim ado s, legal e ideolo gica mente, na consc iênc ia do senhor”. 69
              A     autora      co nstat a      os     limites        d essa    reb eldia,      co mo      suas
possib ilid ades. Limitad a, porque “não se abrem p ara o escr avo perspectiva s
de atuação política dentro d o sistema, que condena o ne gro rebelde à
marginalidade e à vio lê ncia sem e xpressão so cial”, como se apresentam
“dificuldad es        mater iais      de     mobilizaçã o        de     uma    classe      co nst anteme nt e
vigiada”       e,    sobretudo,         “imp ossib ilidade            de   o    escravo       at ingir     u ma
consc ient ização mais ampla de s i me smo e do sistem a qu e o oprime”. 70


                            P or ém, d ois fat or es vão p ossib ilitar a o negr o ultr ap ass ar o s
                            li mit es d essa r eb el dia fech ad a em si m es ma. E m p ri meir o
                            lu gar, a pr eser va çã o da r eli gi ão e cult ura a fr ica nas; n a med i da
                            em q u e nã o só a gl utin am e or gani za m os n eg ros p el a
                            r epr od uç ão d e hi er arq ui as tr a nspla nt a das da Á fri ca, mas,
                            p rincipalm ent e,      p er mit em-l hes     a ut ocon ceb erem-se    com o
                            p ess oas, dotad as d e i ndi vi duali da de p róp ria , fora d o sist em a
                            es cr a vista, q u e p assa a s er vist o, d e for ma glob aliza nt e, com o
                            u m todo cu lt ur al q ue l he é h ostil.
                            E , em s egun do l u gar, o apr ov eita ment o das co nt urb açõ e s
                            so ci ais s ur gi das nos mom en t os d e crise do s istema, q uan do o s
                            n eg r os    ca naliza m     s ua   r ev olta     p ara   os    mo vi ment o s
                            r evol ucio ná ri os qu e agitam esses p erí odos, co mo for ma,

68
   LIMA, Lana Lage da Gama. Rebeldia negra & abolicionismo. Rio de Janeiro: s/d. A pesquisadora elenca os
movimentos de insurreição no país, principalmente os ocorridos no século XIX, momento em que o sistema
escravocrata apresenta sinais de crise, isto é, quando o trabalho escravo inviabiliza a expansão do capitalismo. A
autora destaca a rebeldia do negro em movimentos de cunho político, como a Conspiração dos Alfaiates, na
Bahia, em 1798, a Cabanagem, no Pará, a Balaiada, no Maranhão, a Guerra dos Farrapos, no Rio Grande do Sul,
a Sabinada, na Bahia, no século XIX, e de cunho religioso, como as insurreições dos Malês, na Bahia, também
no século XIX.
69
   Idem, p. 153.
70
    Id. p. 154. Segundo a autora, esses limites, “por sua vez, são determinados pela estrutura de produção
brasileira, que, ao integrar a produção para mercado à de subsistência, alia num só núcleo o lar e a empresa,
permeando com relações pessoais as relações de produção”. De acordo com Lana Lima, nas relações pessoais,
senhor e escravo, de base patriarcal, no âmbito da esfera privada, o negro se percebe em sua condição humana,
enquanto pelas relações econômicas, patrão e empregado, é colocado como instrumento de produção, portanto,
coisificado, o que conduz o escravo a “auto-representar-se como não pessoa, destituído de vontade própria, posto
que submetido ao arbítrio do senhor”. Isso limita “no escravo a capacidade de identificar o sentido real das
relações de produção do sistema escravista, percebido apenas do ângulo particular, vivenciado no cotidiano da
fazenda. Assim, a atuação divergente do negro restringe-se à revolta parcial e imediatista contra as situações de
opressão que povoam o seu dia-a-dia”. Cf. LIMA, loc. cit.
35



                         con sci ent e o u não, de ampli ar s uas p ossibili da des de exp r essã o
                         so ci al. 71

            A preservação da religião e cu ltu ra africanas p ossib ilita ao s ne gro s
uma integra ção entre s i. A p rática d a religião do cando mblé, trazido ao Brasil
pelo s sacerdotes afr icanos e scra vizados, as se gura a permanênc ia do idioma e
da cultura dos negro s. No cand omblé, são cultuad os o s d euses – orixás,
vod uns, inqu ices –, preservados em ritu ais sagr ad os, com vestim enta s
próprias, danças, cânt icos, o ferend as, home nagens, int egrando -se à vida
cotid iana, a d espeito da proib ição est abele cida p ela Igreja Cató lic a ou
gover nant es. 72
            Para     La na    Lima,       é    no   s éculo     X IX    que    a     ampliação     das
possib ilid ades d e expres são so cial d os negros alcança seu limite má ximo, com
o    movimento       abo lic io nis ta,       que   “absorve,       fu ncio nand o    como     age nt e
catalizador, u ma rebeldia sempre manife sta”, com a promessa de um mu ndo
difer ente da marginalidade em que viviam.


                        Mas, ao alia r-s e à r eb el dia negra, utilizand o- a para pr essi on ar e
                        d es gastar o sist ema [ es cr a vocr ata], o ab oli cionismo i mpõ e -l h e
                        s eus p róp ri os li mit es, enq ua nt o i deol o gia nas cid a de i nt eresse s
                        esp ecí fi cos, q u e dep ois da a b oliçã o o negr o p er ceb e nã o
                        coi n ci dir e m exat ament e com os seus. Tr ans fo r ma das as rel aç õ es
                        d e pr od uç ão, nã o se modi fi ca o l ug ar ocup a do p el o negr o n o
                        p ro cesso pr odu tivo, e desfeitas as ali a nç as, seu co mp orta me nt o
                        di verg en t e vai s er n ova men te r elega do a mer a qu estão p olici al. 73


            Nasc ido no contexto de pó s-abolição, tempo de alianças desfe itas,
portanto, o capoeir ist a Besou ro const itui-se, e nquanto su jeito, num ambie nt e
quilombola, d e negros reb eldes à d ominação, preserva ndo a religião do
ca ndomblé, q ue se expande com a abolição da escravatura, b em como a
cultu ra africana. A inda menino, conhec e o mestre Alíp io, que lhe transmit e,
na prática, os ens inam ento s da capo eira, uma arte, um fazer que se aprimora
inco rporand o a religios idad e – de “religare”, ou seja, ligar de no vo –, de
int egração ao mundo d e seu s a nce strais . Para tanto, cre nça s e va lores da



71
   Id. p. 154-155.
72
   Informações disponíveis em:
http://www.turismoreligioso.org.br/system=news&action=read&id=88.
73
   Id. p. 155.
Representações de Besouro na Literatura de Cordel e Narrativa
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Representações de Besouro na Literatura de Cordel e Narrativa

  • 1. UNIVE RS IDADE DO ES TADO DA BA HIA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMA NAS - CAMPUS I PROG RAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS J ONALVA SANTIAGO DA S ILVA DO CORDEL À NA RRATIVA BIOGRÁF ICA : A IN VENÇÃO DE BESO URO, O HERÓI DE CORP O FEC HADO S ALVADOR – BA 2010
  • 2. J ONALVA SANTIAGO DA S ILVA DO CORDEL À NARRATIV A BIOGRÁFICA: A INVENÇÃ O DE BESOURO, O HERÓI DE CORPO FECHA DO Dis sertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em E stu do de Lingu age ns da Univer s idade do Estad o d a Ba hia, como requis ito p arcial para ob tenção do títu lo de Mestre, sob a orient ação da Profª Drª. Márcia Rio s da Silva S ALVADOR – BA 2010
  • 3. Ilustração da capa: Desenho de Carybe. Extraído do livro O Jogo da capoeira. 24 desenhos de Carybé.K.Paulo Hebeisen. (org). Coleção Recôncavo. Salvador, Livraria Turista, 1951. S586 Silva , Jona lva Santiago da Do cordel à na rrativa b io g ráfic a: A Invenção de Be souro herói de corpo fech ado/ Jonalva Santiago da Silva- Salva dor, 2010. 126 f.:il Orientador Prof.ª Dr.ª M árcia Rios da Silva . Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia DepartamentoCiê ncias Humanas - Campus I Programa de Pós Graduação em Estudo de Linguagens. 1. Besouro Mangangá - Capoeira na literatura brasileira 2.Capoeira – Bahia 3 .Capoeirista I. Titulo CDD B869.00
  • 4. Dedico este trab alho, in me mo riam,a Jônatas Co nce ição d a S ilva. Tal qual Besouro, lutou , resist iu e ho je tamb ém brilha no céu. Virou estrela.
  • 5. AG RADECIMENTOS À minha especial orientadora, Profa. Dra. Márcia Rios da Silva, p ela paciênc ia e cumplicidade no acomp anhame nto e construção deste texto ; À Profa. Dra. Florent ina Souz a, desde o Exame de Qualificação, pela s contrib uições valiosas à e laboração desta pesquisa; Ao Prof. Dr. Sílvio Roberto de Oliveir a, d esde o Exame de Qu alificaç ão, também pelas suge stões enr iquecedoras a este trabalho; Ao s meus p ais, J osé e Marina lva r esponsá veis pelo meu exist ir e por sempre me ince nt ivarem a cont inu ar cresce ndo ; Ao s meus irmãos e em e sp ecia l às minhas d uas irm ãs, Lad ism ar e Adla po r todo o ince nt ivo; A Vad o e Igo r, família que co nstruí e que me fa z sempre buscar novo s ideais; À Edna Viana pela ajud a na organização do texto final; À p ro fessora Be atr iz Ribeiro, pela a juda em algumas correções do texto; Às minhas gra nde s amiga s, irmãs do coração e anjos q ue enco ntre i, And réa e Margarete, pela co nvivê ncia intelectual, o que me fez ama durecer para a vida acadêmica; À Hildete, bibliotecária do PP GEdu c, pelos textos int ere ss antes que conse guiu p ara qu e melhor fund amenta sse a minha pesquis a; À A ntonio Re inaldo , Mestre Lamp ião, inca ns áve l p esquisado r sobre Besouro, pelo acesso ao seu acer vo e disponibilidade; À Profa. Zilda Paim, p elos deta lhes so bre as histó ria s de Be so uro e paciência para contá-las; Ao s professores do PPGEL, p elos ens ina mentos, em especial, Luc iano Lim a e Edil Costa; Às secret aria s de educação do Estado da Ba hia e Mu nicipal de S anto Amaro pela conce ss ão d e lice nça, para a rea lizaç ão d este estudo ; À m inha turma de mestrado, e ao meu grupo de estud o, Edna, Geraldo, Elizab ete, Raquel por todas as trocas d e exper iências; Ao s atenc ioso s secretár ios do PPGEL, Camila e Danilo; À todo s aq ueles que, d e algu ma forma, contribuíram para a rea lização dess e trabalho.
  • 6. RESUMO Este e studo tem por objet ivo analisar as ima gens ou representações sobre o capoeirista Besouro Mangangá, tornad o um mito, produzidas na lit eratura de cordel, de autoria de Antô nio Vie ira e de Victo r Alvim G arcia, e na narrat iva de Marco Carvalho , como textos ficcio nais q ue se a lime nt am de u ma textu alidade popular. Bu scando artic ular liter atura, mito e história, ente ndido s como discurso s, recorre-se a p esquisad o res que contribuem para uma co mpreensão da co nstrução do mit o Besouro, cap oeirista ba iano que nasce no co ntexto histórico da nova ordem republicana e pós -abolição, de forte repressão, por instânc ias jurídicas, ao jogo da capoeira. As narrat iva s ana lisadas co ntrib uem para amp liar uma tradição da literatura brasileira, como textos ficc iona is que tensionam valo res das produções literária s legit imadas. Palavras-chave: Besouro Mangangá. Capo eira. Textua lidad e Popular. Literatura Bras ileira
  • 7. RÉSUMÉ Cette étude a comme objectif analyser les images ou les répresentations sur le capoeirista Besouro Mangangá, qui est devenu un mito, produites dans la littérature de cordel, écrit par Antônio Vieira et Victor Alvim Gárcia, et dans le récit de Marco Carvalho, comme des textes de fiction que se nourrissent d’une textualité populaire. En cherchant articuler la littérature, le mythe et l'histoire, compris comme des discours, il fait appel aux chercheurs qui contribuent à une compréhension de la construction du mythe Besouro, capoeirista de Bahia qui est né dans le contexte historique du nouvel ordre républicain et d’après l'abolition, de forte répression, pour les cas juridiques, au jeu du capoeira. Les récits analysés contribuent pour agrandir une tradition de la littérature brésilienne, comme des textes de fiction que tensionnent les valeurs des productions littéraires légitimées. Mots-Clés: Besou ro M angangá – capoeira – textualité popu laire – littérature brésilienne
  • 8. SUMÁR IO 1 INTRODUÇ ÃO 08 2 NO RECÔNCAVO DA BAHI A, NASC E UM HERÓI 17 3 OS “VOOS” DE BESOURO NA LITERATU RA DE CORDEL 46 4 MORTE E NAS CIMENTO DO HERÓI NEGRO EM FEIJ OADA 85 NO PARAÍSO 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 118 REFERÊNCIAS 120 ANEXO 126
  • 9. 8 1 INTRODUÇ ÃO O capoeir ist a Be so uro Manga ngá na sceu prova velm ente no a no de 189 5, no municíp io de Santo Amaro , no Recô ncavo Baia no, vind o a fale cer em 1924. Filho de negros es cravizad os que atravess aram o Atlâ nt ico, o capoeirista viveu u ma época em que muitos d eles viram -se obrigados a u sar seu co rpo como máquina na co lheit a e moagem da cana-de-açúcar, nas terra s dos senhores d e engenhos. Co ntudo , apesar dessa vio lênc ia, fizer am do seu corpo uma arte, no jogo da cap oeira – luta e dança –, síncop a que marca a cadência, a firmando sua força, como resi stência, em p ro l d a abolição. Manu el Henriqu e Pereira, nome civil de Beso uro Manga ngá, conhec ido ainda como Besouro Preto ou Besouro Cordão d e Ouro, viveu num período de fo rte repressão à capoeira gem – entre final d o sécu lo XIX e começo do século XX –, tempo em que muitos ne gros va gavam e vadiavam pela s ruas de muitas c idad es da Ba hia, particularme nte a sua capit al e a s do Recô nca vo, sem emprego fixo , e xplorados como mão -de-obra temporária. A s ruas passam a s er palco de um jo go encenado po r muitos negros qu e libertavam seu corpo inve nt ando modo s de viver e d e se relac ionar, protagoniza ndo mu itas histórias, que ia m sendo retid as na m emó ria de sua comunid ade. De ntre as muit as histórias t ecid as com os fios do real e da ima ginação, as histórias produzidas p or e sobre Besouro estão preservada s po r uma trad ição oral, vindo a se const itu ir em uma te xtualid ade popular, que passou a alimentar as páginas de a lgu ns gêneros lit erár ios, como o cordel, e, rece ntemente, invadiu a s telas do cinema, s inaliza ndo a permanênc ia de um mito, vind o a ser estudado por algu ns pesq uisadores, que constat am naqu ela textu alidade um processo de co nstrução da figura d e um herói p opular. A permanê nc ia des se mito gerou as inqu ietações dest e trabalho, de auto ria de uma estud iosa negra, tamb ém filha de Sa nto Amaro da Purificação. A minha vivência em um amb ient e soc ial imp re gnado da exp eriênc ia histórica dos negros, no q ual compartilho os muit os “cau sos” sobre esse capoeir ist a, levo u-me a indagar e a pesqu isar sobre a p ermanência do mito Be so ur o – tão famo so, se guido s por ou tro s como Mestre Bimba e Mestre Pa st inha –, um herói a fro -baiano , qu e nasceu em um est ado cujas oligarqu ias subju garam os
  • 10. 9 mod os de vida e de luta de u m expressivo segmento de d esce ndentes de escravos. Pelo tempo exí guo em u m Curso de Mestrado para desenvolver um estudo qu e, como primeira et ap a, exigiria o le vantame nto das história s contadas sobre Besouro pelos moradores do Recôncavo Baia no, o ptei po r ana lisar produções literár ias sobre esse capoeirista: os textos d e cordel de auto ria do santoamarense A ntô nio Vie ira, O encontro de Besouro co m o valentão Doze Homen s (s/d) e A valentia justicei ra d e Besouro (2003), e do poeta e capoeirista car ioca Victo r A lvim Itahim Gar c ia, Hi stórias e b ravuras de Besou ro o va lente capoeira (20 06) e narrat iva d e Marco Carvalho, Feijoada no para íso : a sa ga d e Besouro, o capo eira (2002). O objetivo princip al deste estu do é ana lisar a s rep resentações sobre Be sou ro nes se s texto s ficcio nais, cons iderando o co ntexto histórico em que viveu e ss e capoeirista, no intuito de ente nder a permanê ncia desse mito. Essas narrat iva s contam a história de um herói ne gro, que se singulariza em relação aos heróis forjados pelas e lit es de u ma c ivilização, a exemp los dos heróis gr e gos, pátria s o u nações modernas. Ao cont rár io, o herói Besouro é protagonista de contranarrativas, de lu tas d e resistê ncia a um sist ema opressor, de u m Brasil colo nial, imperia l e republic ano, que sempre se nt enciou, mu itas vezes de forma cruel, o apagamento dos ne gros e afrodescend ente s. Na primeira seção desta Diss ertaç ão, No Recônca vo da Bahia nasce um herói, realiza-se uma composição b iográfica d esse capoeir ista, articula ndo -a com o conte xto histórico, no intuito de pu xar os fio s da cu ltura afro-baia na para se pensar a co nst itu içã o d o herói B e sou ro . Para compor a pais agem histó ric a d o Brasil e da Bahia, particularme nte a d o Recônca vo Baiano, e ntre fins do século XIX e iníc io do sécu lo XX, período tensionado por conflitos so ciais, mud anç as d e regim e político e p ós -aboliç ão, recorre-se aos estu d os de Walter Fra ga F ilho, Eu l Soo Pang e Antonio Ris ério, b em como aos d e Almir Areia s, Adriana Dias, J osivald o Olive ira e Mu niz So dré. Visando ent end er a co nstitu ição do heró i e sua m itificação, recorre -se a M ircea E liade e Josep h Campbell. Como o estudo proposto trata de um su jeito da his tória “e sq uecido” p ela historiografia ofic ia l, buscam -se a s contrib uições de José G erald o Va sconc elos, Ecléa Bo si, para a qual a s
  • 11. 10 exp eriênc ias do passado são refe itas, reconstruídas, um trabalho d a memória, e Lo iva Otero Fé lix, com sua noção de “memórias subterrânea s”. P elo ente ndim ento d e qu e uma pesquisa se alime nta d e font es diversas, a lgumas até desau torizad as pela academ ia, não se p ôde d esprezar a contrib uição da Profa. Zilda Paim, conhecida como memoria lista, sobre o Recô nca vo Baia no. Na se gu nd a seção, Os vôo s de Beso uro Man gangá na literatura de cordel, são analisadas e int erpretadas a s narrat iva s d o co rd el de A ntônio Vie ira e Victor Alvim Garcia, nas q uais se biografa a histó ria de Besouro Mangangá. P ara t a nto, reco rre-se às cont ribu ições de Márcia Abreu, Antônio Ara ntes e Doralice Alco fo rado, em seus estudos so bre o cordel, gê nero produ zido por escritores do chamado segmento popular, aqu i ente nd idos como su jeitos q ue se viram privados, historic ame nt e, dos direitos bás icos de cidadania, à cultura letrada, ma s, ainda que numa inclusão degradada, como ana lisada, e cr it icada, pelo sociólo go J osé d e Souza Martins 1, aprenderam a ler e a escrever. Tal co nquist a possib ilit ou u ma escrit a que lhes permit iram registrar histórias e so cializá- las, s ilenciadas pela História oficia l, e ntendida aqu i, dentro do campo historio gráfico, como um d iscurso elabo rado p ela perspectiva d a cultura dominante. Na terce ira seção , Mo rte e nascimento de Besouro em Feijoa da no paraíso , é analisada a narrat iva Feijoada no paraíso , de Marco Carvalho, jornalist a e p ublicit ário , a qual tem como narrador e personagem centra l o capoeirista Mangangá trazendo su a versão acerca d e mu itas histórias co ntada s so bre ele próprio: sua morte, seu ap elido, seu nas cime nto, o jo go da capoeira, relações d e amizade, bem como o enfrent amento à ordem republicana, com relatos alinhavados por reflexões, digress ões ou comentário s. Em Feijoada no paraíso, o jo go da capoeir a ganha destaque, como uma prática cultur al e performát ica : a ginga d o corpo, seus golpes, a ma ndinga, a p ro teção dos orixás são postos em rele vo. Em vista d is so , são impo rtantes a s refle xões d e Stuart Ha ll so bre os rep ertórios culturais d os negro s da diáspo ra, b em co mo a noção de performance, elabo rada por Paul Zumthor, compreendida como co rporeidade e teatra lid ade. 1 Cf. MARTINS, José de Souza. A exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus, 1997. Apud PEREGRINO, Mônica. www.anped.org.br/reunioes/25/monicaperegrinoferreirat06.rtf - Acesso em 21/05/2010.
  • 12. 11 A narrat iva d e Marco Carva lho inspirou u m longa-metra gem do cinema nac io nal, Besou ro, da capoeira nasce um herói , que estreo u em 2009, filme dir igido pelo renomado pub licit ário João Daniel Tikhom iroff. 2 A película, bu scand o aproximação com a textualidad e popular tec ida sobre Besouro, co nta a história d e Mangangá, c om uma superp ro dução qu e realiza o es forço d e traduzir a visão heroicizada sobre o lendário capo eir ist a. Para tanto , as ce nas de luta, marc adas po r efe ito s especiais, foram coreo grafada s pelo chinês Huen Chiu Ku, o mesmo que dirigiu Kill Bill e O tigre e o dragão . Rodado na Chapada Diama nt ina , na Ba hia, a produção cuidou de trazer capoeirist as para atuarem, e Ailton Sa ntos, pr ofessor de capoeira, é protagonista da história. 3 Destaq ue-se que em 1980 foi la nçado Besou ro Capoeirista , do diretor Tato Tabo rd a, te ndo o ato r baia no Mário Gu smão atuando como Besouro. Os d iferent es sites que divu lgaram o la nçame nto do film e de João Da niel T ikhom iroff destac aram a re levâ ncia de Be sou ro Cordão d e Ouro no universo da cap oeiragem, re ss alta ndo se us fe itos extr ao rd inár ios, as fuga s espetaculares, a sua agilid ade, denominando -o de heró i, de mito, u ma refer ência para a arte da c apo eira. Tais rep resenta ções têm longa d ata, como ima gens cint ila ntes na cultura afro -b aiana, particularmente no Recônca vo Baiano e no universo da capoeira gem. O filme p rojeta Besouro nu m univer so mais amplo, com a promessa d e torná -lo c onhecid o por um público ma ior, que vive distante de um tempo em que o jogo da capoeira era t ido como uma prática de “pretos”, “ vad ios” e “ ind ivíduos perigosos”, ou seja, d e ne gros que ameaçavam a no va ordem republica na, até ser enquadrado como crime em 189 0, dois anos após a abolição da escr avatura. Co mo este estudo tem a preo cup ação de articular literatura e história, os p esquisado res e estudiosos que se fazem presente s na primeir a seção desta dis serta ção são retomados nas d emais seções, para art icular suas contrib uições com os te xtos ficcio nais que dramatizam a his tória de Besouro Mangangá. 2 Disponível em http://www.interfilmes.com/filme_21174_Besouro-(Besouro).htlm. Acesso em 20/08/2009. 3 Cf.correio24horas.globo.com/noticias/noticia.asp2codigo=367048mdl=4http://www.cordaodeouromangalot.co m.br/index.php?opt. Acesso em 07/10/2009.
  • 13. 12 As narrat ivas de A ntônio Vie ira, Victor Alvim Garc ia e Marco Car valho, insp iradas na textu alidad e p opular, trazem traços dess a textu alidade, filiad a a “uma c lasse de narrat ivas que se apresent am como fant ást ica s e qu e terminam co m uma aceitação do sobrenatural”, na visão de Tzvetan Todorov, 4 sem uma exp licação ló gica cau sa l. Os feito s e acontec ime ntos envo lve ndo o personagem Besouro, e até mesmo sua vida cotid iana, são marcados pela presença do inusitado, do sobrenatural e de metamo rfoses. As sim, o personagem c apoeirista protago niza situaçõe s extraordinár ias: vira beso uro, um mangangá, vo a, tra nsforma-se em pla nta, morre e rena sce, t em o corpo refratár io aos metais, enfrent a lobisomem, convive com mundo sagrado dos orixás, retorna ao mundo dos vivos sem ser visto e ainda se encar na no corpo d e outras pessoas. Muitas das situaçõe s extraordinár ias ou metamo rfoses ocorrem quando se torna neces sário driblar os adversár ios, es cap ar dos inim igos, defe nder -se ou proteger a lgum injust içad o. Ainda d e aco rdo com Todoro v, no plano da recep ção ocorre “a hes it ação e xperimentada p or um ser que só conhece as leis natura is, face a um acontec ime nto aparent eme nte sob renatu ral” – d aí qu e o público ou le itor dessas histórias v ai co nviver com o extr aordinár io, o insólito, o estranho , o encantame nto e a ma gia e xperim enta ndo uma se nsação que o susp end e da vida cotid iana. As histórias cr iadas p or Antônio Vieira, Victor A lvim Garc ia e Marco Carvalho p odem ser lidas como b iografemas, se gu nd o Ro land Bart he s, traço acentuado em Feijoad a no paraíso , narrat iva em 1 ª. pessoa, em que o persona gem Besouro assume o lugar de narrador. São lendas inve nt adas, relatos biográ ficos ou ainda “inst antâ neos fotográficos”, que Barthes va i designar d e b iogr afema s: “go sto de certos tra ços biográ ficos qu e, na vid a de um escr ito r, me enca ntam ta nto qu anto certas fotografias; chame i es se s traços de ‘bio grafemas’” 5 Todas elas se filiam a uma te xtualid ade popular, tecida por u ma su perpo sição de fa las, voze s, te xtos, hist órias, “causos”, enfim, ficções sobre 4 TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castelo. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 58. 5 Cf. Roland BARTHES. A câmara clara; nota sobre a fotografia. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 51.
  • 14. 13 uma lenda, também uma ficção, do Recônca vo Baia no, cuja história de vida, marcada pela r ebeldia, fertilizou a imagina ção de u ma comunidade, ampliand o -se continuamente. Tais fic ções devem ser ent e ndidas pe la noção de fictí cio, apresentada p or Wolfgang Iser. Questio nando a visão corrente d e que os te xtos ficc iona is se opõ em aos te xtos factua is, Iser co ns idera q ue aqu eles não são “de todo is ento s de realidade”. O texto ficc io nal “co ntém e lementos do real, sem qu e se esgo te na descrição d este real”. As sim, co mo “o seu co mpo nente fictício não tem o caráter de uma fina lidad e em s i mesma ”, é, “enquanto fingida, a prep aração de um ima ginário”. 6 Segu ndo Iser, um text o ficcional guard a mu ita realidade, de ordem socia l, sent iment a l e emo cio nal. Tais rea lidad es não são fic ções nem se convert em nela s ao entr arem nos t exto s ficc io nais, pois não s e repetem por efeito d e si mesma s. A “repetiç ão é u m ato d e fingir, pelo qual aparecem fina lidad es que não pertencem à rea lidad e repetida, daí que o ato d e fingir é uma transgre ss ão de limit es”. Por isso, Iser propõ e sub stit uir o p ar oposit ivo fic ção/realidade pela tríade “rea l, fictíc io e imaginár io”. Em relação ao imaginár io, “seu caráter d ifuso é transfer ido para uma co nfiguraç ão determinada, q ue se impõe num mund o dado como produto d e uma trans gres são de limit es”. Ou seja, no ato de fingir, “o imaginário ga nha u ma determinação que não lhe é própria e adquire, deste modo, um pred icad o de realid ade : po is a determinação é u ma definição mínima do real”. Para Iser, “as ficçõe s não e xistem só como textos ficcio nais : desempenham papel importante tanto nas at ividades do conhec imento, da ação, do compo rtamento, quanto no estabe lec imento d e instituições, de so cied ades e de visões de mund o ”. Entend end o o texto literár io como um mod o de temat iz ar o mundo, p ara Iser esse mod o não est á dado a priori. As s im, é preciso qu e seja implantado, para se impor, o que “não s ignifica imit ar as e struturas de organização previament e e nco ntrá ve is, mas sim decompor”. Nessa d eco mpo sição ocorrem as seguintes o perações: a s eleção e a comb inação . 6 ISER, Wolfgang. O ato de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da Literatura e suas fontes. Vol. II. 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. p. 384-416.
  • 15. 14 A sel eção , “nece ssár ia a cada texto ficcio nal, d os sistema s contextua is pré-existentes, sejam e les de natu reza sócio -cultural o u mesmo lit erár ia”, “é uma tra nsgre ss ão d e limites na medid a em que os elemento s acolhidos pelo texto agora se d es vinculam d a estruturação semânt ica ou sist emát ica dos sistemas de q ue foram tomados. Isso va le t anto para os sist emas co nte xtua is, qu anto p ara os texto s literár ios a qu e os novo s te xt os s e refer em”. Cont inu a: “O s elem ento s co ntextuais que o texto int egra não são em si fictí cio s, ape na s a seleção é u m ato de fingir pelo q ual os sistemas, como campos de referênc ia, são entr e s i d elimit ados, pois suas fro nte ira s são trans gred id as”. No ato d e seleção oco rre “uma perda d e articula ções preced ente s e uma reint egração do s elementos es co lhidos em uma no va art icu lação”. “Su prim ir, complementar, valorizar” vêm a ser, de acordo com Iser, operações básica s da “produção de u m mundo”. A seleção , co mo ato de fingir, encontr a su a co rrespo ndência intratextu al na combinação – o utra operação e trans gres são de lim it es, d os e lem entos textu ais – , “que abrange t a nto a combina lidade do significado verbal, o mund o introduzido no texto, quanto os esquemas responsá veis pela organização de personage ns e ações”. Co mo ocorre quase sempre, se gundo Iser, no s t exto s narrativos são acentuados “os espaços sem ânt icos const ituído s a p artir de elemento s se lec ionad os das realidades extrat e xtuais , que se re velam p ela ap rese nt aç ão esquemática das personage ns do romance (caractere s po sit ivos e ne gat ivos) ”. No s relac ionamentos intr ate xtua is, ocorre u m rompimento d e fronteiras, p ois a ficção a grega, em um ú nico esp aço, “uma var iedade d e lingu age ns, d e ní vei s de foco s, de pontos de vista, que ser iam co ntraditórios noutras e sp écie s de discurso, organizadas quanto a u m fim empírico particu lar”. Co mpo ndo uma te xtualidade p opular, as história s sob re Besou ro – elaboradas a partir da se leção de ele mentos da realidad e extrate xtual, se guidas da comb inaç ão intert e xtual, e na ruptu ra d e fronteiras – são contra narrat ivas q ue põ em em xeque um modelo d e nação , um dese nho ident itár io homogene izador do Brasil, segu ndo Florentina Souza, tecido po r um gru po so cial, a saber, as elit es do país. Para a pe squisad ora, este de se nho ident itár io,
  • 16. 15 in di vi dual o u col eti vo, consist e nu m pr ocesso d e co nst r uç ã o si mbó lica utiliza do como p onto de r ef er ê nci a e auto -afir maçã o d o g r up o ou i ndi ví du o. As fr at ur as, dú vi d as, deslizes, h et er og en ei da des so fr em um p r ocesso d e e s ma eci m ent o p ar a q ue seja gar a nti da a co nst ruçã o d e u m d es en ho u ni for me, u nitá ri o e t otaliza nt e, a ci ma d e q ualq u er susp eita q ua nt o à p r opri eda de o u plausib ili da de. L egiti mad o p ela imp osiçã o d e u m gr up o so cial, p el as r ep etiçõ es de fi g uras r etó ricas, o d es enho ser á ratifi cad o e reti fi ca do p ela tr adição e ar vora r -s e- á cap az de defi nir e si ngul ari zar indi ví du os e/ ou g r up o s so ci ais. 7 O capoeirist a Be so uro viveu uma ép oca em que esta va em curso o projeto de consolidação do Estad o-naç ão brasile iro , traça ndo seu desenho ident itár io, e a literatura e a história, inst itucio nalizadas co mo disciplinas e domínio do conhecime nto, vão se ir manar em tal projeto. Enqu anto produ ções, ambas vão co ntrib uir, em s ua maioria, na construção de um discurso ident itár io homoge neizador. A i denti d ad e, pa ra os i nt el ect uais dos “pri mó r di os” da naçã o, estava li ga da à necessi d ad e de co nstru çã o de um país, d e um a históri a, u ma cult ura, atra vés dos q uais t o dos s e r eco nh ecesse m si mu ltaneam ent e se mel ha nt es e di fer ent es da M et ró p ol e ( co ntr adiçõ es de col o ni zad o...). Ó r gãos sã o cria do s, u m p r oj et o liter ári o é delin ea do, escrit or es, est udi oso s, artistas e p olíti co s articula m-s e; t o das as ener gias i nt el ect uai s diri ge m-s e e co n cen tra m-s e no es forço de “i n ventar ” o Brasil. É pr ecis o i nvent ar o país, pr een cher os v ácuo s da m emóri a com aq uil o q u e nã o pr o pi ci e co nstra ngi ment os mai or es q ue o d e ser uma ex- colô ni a. Co mo con str uçã o si mbó lica q u e é, a i d entid ad e cu ltural b rasil ei ra vai gan ha r p er fis mais ou men os ot i mistas de a cor d o com as i déias, pri n cíp i os e val or es hege mô ni cos de ca d a ép o ca. 8 Para F lorentina S ouza, o s intelectuais brasile iro s têm à fre nt e um desafio, cerca ndo -os de constrangime ntos : “Como forjar u ma id ent idade d igna se o imaginár io já t inha cr ista lizad o como verdadeira a ‘ind ignidade’ d e dois se gme ntos ét nicos [o índio e o negro ] da população ?” 9. Segund o a autora, o 7 SOUZA, Florentina. Imagens e contra imagens do negro. In.: Congresso ABRALIC, Anais... Rio de Janeiro. 1988.p. 243. Nesse trabalho, a autora analisa a série Cadernos Negros, um periódico criado por escritores afrodescendentes, em fins de 1970. Segundo a autora, Cadernos Negros, “produzidos com intenção expressa de abalar a autoridade do discurso do saber e do poder, podem ser vistos como tentativa de constituir uma suplementariedade à cultura oficial brasileira; buscam inventar uma contra-imagem que desautorize a unanimidade proposta pela imagem instituída”. p. 245. 8 Id., p. 243-244. 9 Id., p. 244.
  • 17. 16 “processo de co nstrução simbólica nã o descarta as significações p ré - exist entes”. Desse modo, no processo de construção da identid ade nac io na l brasileir a, pelas elites do paí s, de cunho ho mogene izant e, a trad ição ocident al desempenhará um p apel fu ndame ntal, uma vez que tece “narrat ivas sob re o Ou tro [o índio e o ne gro] de acord o co m o seu projeto de dominação”, incu lcando -as “ no imaginár io do próprio colonizad o d e modo qu e o m esmo che ga a acred itar na verac idade do texto.” 10 Ass im, o “p erfil d o Outro inve ntado pela tradição ocident al presc inde d e ser comprovado ou organizado logicame nte, a repetição garante a sua validade”. 11 Na contr amão d e um dese nho id ent itário ho mogene izad or, u ma textu alidade popu lar emerge quest ionando -o , com histórias qu e têm Besouro como herói, à reve lia da História oficia l. Tais narrat ivas são elaborad as por su jeitos que enco ntram nes se c apo eirista a referência de uma luta e res istência ao processo de colo nização , que subju gou os ne gros, colocand o -os num lugar inferio r, em diver sos ní veis, naquele desenho, a despeito de sua inegáve l co ntr ibuição na construção do país. Assim, u m refrão ins ist e, “furando” tal des enho, em riste: “zum zum zum, zum zum zum, cap o eira mat a um”. 10 Id., loc. cit. 11 Id., p. 244.
  • 18. Fonte: CARNEIRO, Edison - Caderno de Folclore 1 – Capoeira, 1977
  • 19. 17 2 NO RECÔNCAVO DA BAHIA, NASCE UM HERÓ I Qu and o eu morr er Nã o qu er o gri t o e ne m mi st éri o Qu er o u m beri mbau Toc and o n a p ort a d o c e mi t éri o Com u ma fi t a a ma rel a Gra vad a c o m o n ome d el a Ai nd a d ep oi s d e mort o Bes our o é c o rd ã o d e our o Como é o n o me? Cord ão de Ou ro. 12 Vida breve, longa histó ria Manu el Henr ique Pereira é o nome c ivil do mestre de capoeir a Besouro Manga ngá, ou Besou ro Cordão de Ouro. A d ata provável d e s eu nascimento tem como referênc ia o processo movido em 1918 , pelo Exército Brasile iro, que resulto u na sua e xpulsão da corporação, no mesmo ano , po r “incapacidade moral”, conforme o fício do Ministér io d a Gu erra, 13 no qual se atest a que o acusado tinha 2 3 anos à época. Beso uro Mangangá nasce no quilombo Urup y, Olive ira d os Campinho s, distrito de Santo Amaro da Purificação, na região denominada Recô ncavo Ba iano, 14 filho d e J oão Martins 12 Letra da canção Cordão de ouro, do mestre Traíra de Santo Amaro, o José Ramos do Nascimento. Capoeirista famoso da Bahia, marcou época e ganhou notabilidade ímpar na arte das “rasteiras” e “cabeçadas”. No disco fonográfico, produzido pela Editora Xauã, intitulado "Capoeira", hoje uma preciosidade para os estudiosos e adeptos dessa arte, tem presença marcante envolvendo os ouvintes. Sobre a beleza e periculosidade do seu jogo, assim se referiu Jorge Amado: "Traíra, um caboclo seco e de pouco falar, feito de músculos, grande mestre de capoeira. Vê-lo brincar é um verdadeiro prazer estético. Parece bailarino e só mesmo Pastinha pode competir com ele na beleza dos movimentos, na agilidade, na rigidez dos golpes. Quando Traíra não se encontra na Escola de Waldemar, está ali por perto, na Escola de Sete Molas, também na Liberdade". Mestre Traíra também teve importante participação no filme "Vadiação", de Alexandre Robatto Filho, produzido em 1954, junto a outros grandes capoeiristas baianos, como Curió, Nagé, Bimba, Waldemar, Caiçara, Crispim Disponível em: http://sites.br.inter.net/capueirameialua. Acesso em 06/06/2009. 13 Cf. VASCONCELOS, José Gerardo. Etnocenologia e história: percorrendo indícios da vida de Manoel Henrique Pereira, vulgo “Besouro” (1895-1924). p. 25. In: MATOS, Kelma Socorro L. de. VASCONCELOS, José Gerardo. (Orgs.). Registros de pesquisas na educação. Fortaleza: LC-UFC, 2002. p. 27. Na Seção Judiciária do Arquivo Público Municipal de Santo Amaro (Data limite: 1920 – 1927: Subsérie: Tentativa de Homicídio: Cx. 4; Nº. 104: Vol. 18), tem-se o seguinte registro, de 04/02/1922, no auto de perguntas dirigidas à vítima Caetano José Diogo: “um homem moderno de cor escura quase preto”. 14 O Recôncavo abrange a região Bahia de Todos os Santos, com 23 municípios, incluso o de Salvador. Partindo do litoral, onde começam as dunas e praias do Litoral-Norte, a linha limite inflete para o Oeste, para o interior, passando ao Norte de São Sebastião do Passé, até alcançar o norte do município de Santo Amaro, e encontrar Humildes, onde seu traçado curva-se para o Sul, correndo paralela ao sentido do litoral, atravessando os leitos dos rios Jacuípe e Paraguaçu, envolvendo os municípios de São Gonçalo dos Campos, Cachoeira, Conceição da Feira e Cruz das Almas; deste, a fronteira retorna em direção à costa, passando por Santo Antônio de Jesus, apontando em linha reta para o mar, margeando as Matas do Sul, passando abaixo de Nazaré, Aratuípe e Jaguaribe, até encontrar a praia, nas alturas da Ponta do Garcez, ao norte da Barra do Jequiriçá. Cf. COSTA, Pinto. Recôncavo: laboratório de uma experiência humana. In. BRANDÃO, Maria de Azevedo et al. Recôncavo
  • 20. 18 Pereira e Maria Auta Pereira 15. Zilda Paim, conhec ida como memo ria list a sa ntoamare nse, traz a lgu ns dados biográ ficos desse capoeirista, fa lec ido em 192 4: Nasceu em Sa nt o Amar o. Filh o de J oão Mat os P er eira e Mari a José. O mais la di n o e mali ci os o cap o ei rista da Ba hia. Mestr e d e cap oei ra no E xér cito, d e o nde s e desli gou dep ois da gu err a. Nã o conh ecia o medo, ven cia a p olí ci a da nd o p er na das e r ab o s d e arr aia, co m seus fa mo sos salt os acr ob áti cos. F oi fria e cov ar dement e g olp ea do em Mara ca ng al ha, n o l uga r d e nom e Qui mb eca. V eio pa ra Sa nt o Amar o em ca noa , fi ca nd o no Port o em fr ent e a L oja N ov a, até q ue foi t ra nsp o r tado para a Sa nt a Casa d a Misericór di a, o nde fal eceu a os 32 an os de i da de. 16 O capoeirista Be so uro M angangá d á continuidade a uma p rática, a capoeira, que chegou ao Brasil desde o início d a colo nização. Segu ndo Car ibé, os capoeirist as chegaram à Ba hia “ no bo jo de p au dos ant igos ve leiros do século X VI. Eram negros da A ngola, talvez guerreiros jogadores dessa luta em q ue pés e cabeç a têm m ais importância e qu e as mãos pass am a segu ndo da Bahia Sociedade e economia em transição. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; Academia de Letras da Bahia; UFBA, 1998. p. 103-105. 15 Não há informações precisas sobre a data de nascimento de Besouro. Segundo Vasconcelos, “só foi possível desvendar a sua origem mediante a certidão de óbito do seu irmão Caetano Cícero Pereira”. O autor ainda cita relato de João Pequeno, citando-o em seu livro: “Besouro morreu com vinte e tantos anos ou trinta. To ouvindo falar que ele morreu em 1924”. Cf. Etnocenologia e história: percorrendo indícios da vida de Manuel Henrique Pereira, vulgo “Besouro” (1895-1924). p. 29-32. In: Matos, Kelma Socorro Lopes de. VASCONCELOS, José Gerardo. Orgs. Registros de Pesquisas na Educação. Fortaleza: LCR – UFC, 2002. O autor transcreve na íntegra a certidão de óbito, expedida pela Santa Casa da Misericórdia de Santo Amaro, em 1925, a pedido do Dr. João de Cerqueira e Souza, promotor público da Comarca de Santo Amaro, para o arquivamento do processo movido contra o capoeirista por Caetano José Diogo em 1922, em virtude do seu falecimento em 1924. C.f.; certidão de óbito em anexo. “A Santa Casa da Misericórdia de Santo Amaro, mantenedora do Hospital Nossa Senhora da Natividade, é uma entidade filantrópica sem fins lucrativos que presta serviços de saúde de urgência/emergência, há cerca de 235 anos, a toda a população santoamarense e de cidades circunvizinhas, tendo como finalidade principais o atendimento aos mais carentes. “O objetivo maior da Santa Casa da Bahia, como de todas as Santas Casas, desde sua criação, era praticar a caridade cristã, observando o estatuto, “a lei escrita da Misericórdia”, chamado de Compromisso. A Santa Casa da Bahia seguia o Compromisso datado de 1516, que regia a Santa Casa de Lisboa. O Compromisso prescrevia as quatorze ações ou ‘obras de misericórdia’ que concretizavam a prática caritativa, sendo sete Espirituais  ensinar aos ignorantes; dar bom conselho; consolar os infelizes; perdoar as injúrias recebidas; suportar as deficiências do próximo; orar a Deus pelos vivos e pelos mortos  e sete compromissos Corporais  resgatar os cativos e visitar prisioneiros; tratar os doentes; vestir os nus; alimentar os famintos; dar de beber aos sedentos; abrigar os viajantes e os pobres; sepultar os mortos”. SANTANA, A. C. S. de. Santa Casa de Misericórdia da Bahia e sua prática educativa, 1862-1934. 227f. Tese (doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, UFBA, Salvador, 2008.p. 44. 16 PAIM, Zilda. Relicário popular. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo: EGBA, 1999. p 53. Conhecida pela divulgação da cultura santoamaresense, a autora nasceu em 1919 e iniciou o magistério, em Santo Amaro, de 1937 até 1988. Foi vereadora pelo PDC e MDB nas legislaturas de 1959-1963 e 1997-1982, presidente do Legislativo de Santo Amaro entre 1980 e 1982. Seu grupo folclórico Maculelê de Santo Amaro atravessou fronteiras para ser aplaudido por cariocas, paulistas, mineiros e paraibanos. In: Isto é Santo Amaro. 3ª ed. Salvador Academia de Letras, 2005. Zilda Paim apóia-se na memória popular para referir-se ao nome da mãe de Besouro como Maria José, enquanto na certidão de seu irmão Caetano Cícero Pereira, consta Maria Auta Pereira.
  • 21. 19 plano”. 17 São d etentores d e uma cultura que co ntrib uiu para formar a cultura afro-brasileir a, fortalecendo o combate à opressão, uma arte que usa da “ginga” “para disfarçar a luta, d and o -lhe um caráter lúdico ino fe ns ivo e cadenciad o, de certa forma, à loco moção e preparação dos ataques e defesas”. 18 Nas história s sob re Besouro, que compõem uma textualidade pop ular, sobressa i-se a im agem do capoeirista como um indivíduo alt ivo, destem ido, rebelde, corajoso, va lente, audacio so, ju stice iro, representa nte d os se gme ntos oprimid os num p eríodo d e pó s-abolição e mudança de regime polít ico . Beso uro torna-se uma le nda, mit o , acima do bem e do mal pelo poder de que se invest e e é investid o, para enfr entar a elite econô mica e polít ica da terra de Santo Amaro, no Recôncavo Baiano. Graças a u ma tradição oral, pode -se recont ar a su a história, praticame nte ausente das páginas da lit eratu ra canonizad a, e xc eção feit a a Jo rge Amado, que o ap resenta em Ma r Morto , publicado em 1936, u m ano depois de Jubiabá, narrat iva qu e elege um ne gro o herói da trama. Em Mar Morto, o escritor faz uma home nagem a Manga ngá, no capítulo int itu lado “Viscondes, condes, m arqueses e Besouro”. Na trama, Be sou ro Cordão de Ou ro , um “ne gro valente”, é o save irista am igo de Guma, personagem dest a narrat iva: E ssa ci da de d e Sa nt o Ama r o, on de G uma es tá co m o sav eir o, foi p átri a de mu ito ba rão d o i mp éri o, visco ndes , con des, ma rq ueses, mas foi t a mb ém de gent e do cais, a p át ria d e Bes our o. P or ess e moti vo, so ment e p o r esse mo ti vo, não é p o r p r oduzi r a çú car, con des, viscond es, ba rõ es, marq ueses, ca cha ça, q u e Sa nt o Ama ro é u ma ci d ade ama da d os ho mens d o cais. Mas foi al i q ue nasceu Bes our o, co rr eu n aq u el as ru as, ali d err a mo u s an gue, esfaq ueou, atir o u, l ut ou cap oeir a, cant o u sa mb as. Foi ali p ert o em Mar acan galh a, q ue o cort ar a m to di n ho a facão, foi ali q ue s eu sa ng ue corr e u e ali b ril ha a s ua estrel a, cl ara e gra nd e [...] ele vir ou estr ela, qu e foi um negr o v al ent e [...]. Bes ou r o nun ca caso u, alé m de ma ríti mo el e er a jagu nç o, alé m d o r emo ti n ha u m ri fl e, além da fa ca d e ma ri n hei r o tinha uma n aval ha. [...] a estr el a de B es our o p isc a n o cé u. É cla ra e gra nd e. As mul h er es di z em q u e el e est á espia ndo os mal feit os dos ho mens (barõ es, co ndes, vis con des, 17 Cf. CARIBÉ, op. cit., Zilda Paim em Relicário Popular, transcreve essas mesmas informações no corpo do seu texto, porém não cita a fonte pesquisada. op. cit.; p. 47. 18 AREIAS, Almir, O que é capoeira. 3 ed. Brasiliense. (sd), p.24.
  • 22. 20 ma rq ueses) de Sa nt o Ama r o. E stá vend o to das as i nj ustiça s q ue os maríti mos so frem. Um di a volt ar á para s e vi ngar. 19 Beso uro se metamorfoseia, torna -se u ma estrela, “clara e grand e” – depois de ter vivido como “marítimo” e “ jagu nço” –, atento às injust iças d os pod erosos do Recôncavo, como os barões, co ndes, visconde s e marqueses. As s im como o persona gem Macu naíma, de Mário de Andrade, que tamb ém “vira e strela”, Beso uro faz parte de uma const e lação, organizad a pelo pensame nto mít ico, const itutivo dos homens, em difere ntes épocas ou so cied ades, vis and o d ar sent ido e reflet ir “so bre a exist ênc ia, os cosmos, as situaçõ es de ‘estar no mundo’ ou as relações soc iais”. 20 Ao se rememorar a vida de Besouro, de ve-s e cons iderar que “a lembranç a é a sobrevivência d o passado. O passado, conser va ndo -se no espírito de cad a s er humano, aflora à co nsc iênc ia na forma de im age ns - lembranç a”. 21 Portanto, o ato de lembrar acontec ime ntos qu e se tra nsformam em história vivifica s ituações e p erpetua o seu aprendizado. Assim são as história s sobre Besouro Cordão de Ouro, idea lizadas em ima gens elaboradas pela m emória de quem as conta. S e gund o Ecléa Bosi, “o instrumento so cializado r da memória é a lingua gem. Ela reduz, unific a e ap ro xima no mesmo espaço histó rico e cultu ral a imagem do sonho, a ima gem lembrada e as ima gens da vigí lia atual”. 22 As narrativas so bre Besouro Manga ngá são produzidas num momento histórico e so cial e ta is aco ntecime ntos, num processo d e se leção e combina ção, são memo rizado s, contado s e reco nt ado s, dispens ando -se ass im uma cobrança aos seu s narrad ores quanto a dado s históricos p recisos, p ois a impo rtância da narrat iva está no p erso nagem vetor do acontec im ento narrad o. Co mo representa nt e de u m e xpress ivo segmento populac ional afrodescend ente, a histó ria des se capoeirista, que Car ibé destaca, d entr e vários nomes da capoeiragem, co mo “bom faquista angola, mas jogado r 19 AMADO, Jorge. Mar Morto. 36ª ed. São Paulo, Martins, 1973. p. 123-127. 20 ROCHA, Everardo. O que é mito. São Paulo, Brasiliense, 1991. 5ª. edição. P. 7. De acordo com o autor, o mito, presente em todas as épocas, “não possui sólidos alicerces de definições. Não possui verdade eterna e é como uma construção que não repousa no solo. O mito flutua. Seu registro é o do imaginário. Seu poder é a sensação, a emoção, a dádiva. Sua possibilidade intelectual é o prazer da interpretação. E interpretação é jogo e não certeza. Id., p. 95. 21 BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. Lembrança de velhos. 9ª ed. São Paulo Companhia das Letras, 2001. p. 53. 22 Id.; p. 56.
  • 23. 21 escasso”, 23 foi, como a de ta ntos ou tro s, “esquecid a” pela História oficial, comprometida co m o projeto ident itár io das elit es d o p aís, na co nstrução de um Bras il europeizado. Por isso, a au sê ncia de documentos escr itos, d eve ndo o pesqu isador reco rrer à memória oral p ara elaborar uma histór ia da cap oeira, pela importância do s afr ica nos na co nstrução da memória do país. Ao considerar o traço livre e quase o nírico da memória, Bosi afirma o se guinte : [...] lemb rar nã o é r evi ver, mas r efa zer, reco nstr ui r, r ep ens ar, com i ma gens e i déias d e hoj e, as exp eriên cias do p assad o. A me mó ria nã o é s on ho, é tr abal ho. S e assi m é, deve -se duvi da r d a s ob r evi vên cia do p assado, “t al como foi ” e q ue se daria n o in co ns ci ent e de ca da suj eit o. A l emb ran ça é u ma i ma ge m con str uí da p el o s mat eri ais q u e est ã o a gor a à no ssa dis p osiçã o, n o co nj u nt o de rep r esenta çõ es q ue p ov oam noss a cons ciê nci a atual. 24 Transmit idas d e ger ação a geração, há quase um século, as narrat ivas so bre Besouro são fios de uma “memória subterrânea ”, te ce ndo outros tranç ados, a fim de evit ar o seu esquecime nto. E stu dar memó ria é falar nã o ap enas de vi da e de p er p et u aç ã o d a vi da at ra vés d a histó ri a; é falar, ta mb ém, de s eu rever so, d o esq ueciment o, dos silênci os, d os n ão dit os e, ai nda, de um a fo r ma i nter medi ária, q ue é a p er man ênci a de m emó ria s su bterrân ea s ent re o esq ueci ment o e a memóri a s ocial. E n o ca mp o d as memó rias subt er râ neas, é falar tamb é m na s me mó rias do s ex cl uíd os, d aq u el es q u e a fr ont eir a do p o de r lanç ou à ma r gi nali da de d a históri a, a um o utr o tipo d e esq ueciment o ao l hes r eti ra r o es pa ço ofi c ial ou r egu lar da ma ni fest açã o d o di r eit o à fala e ao r econ he ci men t o d a p r es en ça social. 25 Por esse e ntendime nto, tais histórias são reco nstruídas, ressignificada s pelo traba lho da memória, que se efetu a p elas operações de lembrar e esquecer. Toda vez qu e um acontecimento é narrado, ou tras performances são colocadas e tra zidas do inconscie nte e, num misto de real e ima ginár io, confluem para o mesmo ponto, ou seja, a recria ção das “façanhas ” ou feitos realizados por Besouro, nu m país que fez do negro o seu Outro, um 23 CARIBÉ. Op.cit.; 24 Ibid.; p. 55. 25 FÉLIX, Loiva Otero. Política, memória e esquecimento. In: TEDESCO, João Carlos (org). Usos de memórias. (Política, Educação e Identidade). Universidade de Passo Fundo. RS – Brasil. 2002, p. 31.
  • 24. 22 estranho a quem se “podia” maltratar, ao ignorar que se trata de um ser humano . Segu ndo Vas concelos, ao tratar da impo rtâ ncia d a memória para a so lidific ação d a história, “ se o esquecimento nos protege das do res, não impedirá que os ho mens s intam sau dade ou rememorem seus mitos, s ímbo los e ima ge ns”. 26 As sim, ao se prop or um estudo sobre o capoeirista Besou ro, não se tem a intenção de esquecer as do res que certamente viveu . Ao contrário, busca-se e ntender as razõ es pelas qu ais esse p ro tagonista é rememorado co mo um mito, um símbolo, rep rese ntant e de um segmento so cial mar gina lizad o. Para se ente nder o lugar que Besouro M angangá ocupa no ima ginár io p opular, é neces sár io co ntextua lizar o período em q ue viveu, marcado por mudanças soc iais e p olít icas do Brasil do fina l do sé culo XIX e iní cio do século XX. A abo lição da es cravatura, com a as sinatura d a Le i Áu rea em 13 de maio de 1888 , e a Primeira República, que começa a vigo rar com a sua proclamação, em 15 de novembro de 1889, p elo Marecha l Deodoro da Fo nseca, at é 1930, criam a espera nça de trans formar o Bras il em um novo país. Nesse perío do, o Recôncavo Ba iano é o princip al veto r das relaçõe s econômica s com o plant io e a colhe ita da ca na -d e-açúcar, e os engenhos s ão os p rincipa is núc leos para o s co ntatos . A maioria do s engenhos e sta va loca lizada em Santo Amaro da Pu rificaçã o, terra de Besou ro Cordão de Ouro. Para Z ilda P aim, “o Recôncavo tornou -se em pouco tempo o mais imp ortant e ce ntro agrícola da era colo nia l”. 27 Ainda p ara a autora, Santo Amaro “fo i, s em dúvid a, o município que mais e scra vos p ossuiu. Seu s prime iro s povoado res, os p ortu gueses, dado às ave nturas, ávido s de lucros, qu eriam t irar da terra o má ximo que ela pud esse dar”. Dest acam -s e a inda o s agru pamento s ne gros que vieram para Santo Amaro: [...] os ha ussás h ab itav am o Sudã o C entr al, a o nort e d os ri o s Nig er e Bi n ue. F or mav am a naçã o mais i mp orta nt e de t o das a s n eg ríti cas su dan es as. Os malês eram a frican os islami za dos, p oss ui do r es de med i ana cult ura e p ort a do r d e ofí ci os d e 26 VASCONCELOS, José Gerardo. op. cit.; p. 24. 27 PAIM, Zilda. Isto é Santo Amaro. 3 ed. Salvador. Academia de Letras, 2005, p.51.
  • 25. 23 p edr ei r o e ca rpi nteir o, óti mos a gri cul tor es, exer cen d o in fl uê ncia s ob re es cravos d e di versas pr oced ênci as. 28 No p eríodo em que Besouro viveu , preva leciam “ra nço s” muito fortes do regime mo nárqu ico no país, e a ab olição era ainda uma s ituação a ser ac eita por muitos ex-do nos de escravos. Segundo o historiad or baiano Walter Fra ga F ilho, “ nos últ imos anos do século XIX, o Recôncavo era a região econo micame nt e mais imp ortante da pro vínc ia. Era também a mais densame nt e povoad a e a que concentra va maior número de escravos”. 29 E para Antô nio Risér io a sociedade que s e formou na “cid ade da Bahia” e s eu Recô nca vo esteve marcada po r um processo contí nu o de mest iça gem, apesar de to das as desigu aldades entre os gru pos que a co nstitu íram. 30 Co m essa composição pop ulacio nal s ingularizando o Recôncavo Baiano e a cidade do Salvador no s primeiros a nos da Repú blica, as e lite s loca is vão fazer uso do s capo eirista s. De acordo com Ris ério, “a c lass e dirigente baia na se opôs, até quando is so foi possível, à mu danç a de regime polít ico ”, e a Ba hia foi a ú lt ima província do império a ad er ir à Repúb lica. Ris ério destaca que a elite b aiana, p or seu conservadorismo, de “fund as e contorcidas raízes”, via no no vo regime o sinô nimo da anarquia e, tanto a elite po lítica quanto o empresariad o agromerca nt il, cons idera vam que, com a alt eração do r egime, só ter iam a perder o poder adqu irido du rante anos de domínio senhorial. 31 As sim, com a Prime ira Repúb lica, surge a figura d o coronel, que va i atuar co mo “escudo” das forças política s vigent es, cabe ndo -lhe, po r mu itas vezes, escolher o s líderes loca is ou formar novas parcerias, pois a so brevivê nc ia do sistem a político d ependia do contínuo e da manipu lação do pod er pela s o ligarquias trad iciona is. Para o histo riador coreano Eul Soo Pang, a Bahia, “devido ao seu tamanho fí sico e demográfico e sua imp o rtâ ncia eco nômic a, era o ma ior e 28 Id. Ibid., p. 45- 48. 29 FILHO, Walter Fraga. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos libertos na Bahia (1870-1910). Campinas/SP. UNICAMP, 2006. p. 34. 30 RISÉRIO, Antonio. Uma história da cidade da Bahia. 2 ed. Versal, 2004. p. 103. Segundo, Josivaldo Pires de Oliveira, Salvador, “capital da Bahia”, é, historicamente, conhecida como uma cidade de muitos nomes. “Cidade da Bahia”, “São Salvador”, “Cidade do Salvador” ou “Bahia de Todos os Santos”, principalmente quando se trata da cidade da primeira metade do século XX. 31 RISÉRIO, Antonio. op. cit., p. 404-405.
  • 26. 24 mais poderoso estado do Nordeste do Bras il e os seu s coronéis c hegaram a particip ar d e campanhas m ilitares ao lado de determinados grupos polít icos estadu ais e nacio na is. 32 Ainda com Eul Soo Pang, o co ro nelismo tem como base p atriarca l, soc ial e eco nô mica os e nge nhos de açúcar do século XVI, e a su a principal fu nção era a hábil u tiliz ação do pod er privado acumulado pelo patriarca de um clã ou uma famí lia ma is ext ens a. 33 J osivaldo Oliveira e ntende o coronelismo como “fruto de situ ações históric as e specífica s em u ma so cied ade, inclus ive em soc iedades urbanas, a exe mplo de Salvador na Primeira República”. 34 Dest aque-se qu e o pod er senhor ia l d o int erior do Brasil a ind a ma nteve a sua força até a s egunda met ade do século XX, como afirm am Vilaça e Albu querqu e, “tendo, portanto, sobrevivido por mais de meio século a seus precursores, o s coronéis do açúcar”. 35 Nes se co ntexto, muitos capoeiras, assim tamb ém conhec idos, ho mens fortes e destemidos, aptos a todo tipo d e ser viço, vão trabalhar co mo “capa nga s” ou homens de co nfiança dos coronéis – uma espécie d e s eus protetores particulares e de suas terras – e vão ter os coronéis como seus protetores. Segu ndo Muniz Sodré, “desde pouco antes da Abolição e durante a Primeira República”, os cap o ei ristas p ass ar am a s er usad os, s ob r et u do no Rio d e Ja neiro co mo ca pa ngas (às vez es contr a os p róp rios n eg r os, o u con tra os rep ubli can os ) p o r p olíti cos e p ess oas d e i nfl uê nci a. Nã o s en do ess e o cas o, o cap oeirista er a fr eq ü ent em ent e 32 PANG, Eul-Soo. Coronelismo e oligarquias. 1899-1934. A Bahia na Primeira República Brasileira. Trad. Vera Teixeira Soares. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. p. 9. No período em que viveu Besouro Mangangá, a divisão geopolítica do Brasil estava demarcada por duas regiões: Norte e Sul. O “termo nordeste é usado inicialmente para designar a área de atuação da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), criado em 1919. Neste discurso institucional, o Nordeste surge como a parte do Norte sujeita às estiagens e, por essa razão merecedora de especial atenção do poder público federal. [...] Em 1920, a separação Norte e Nordeste ainda está se processando; só neste momento começa a surgir nos discursos a separação entre a área amazônica e a área ‘ocidental’ do norte, provocada principalmente pela preocupação com a migração de ‘nordestinos’ para a extração de borracha e o perigo que isto acarreta para o suprimento de trabalhadores para as lavouras tradicionais do Nordeste”. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 2 ed. Recife: FJN, Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2001. p. 68-69. 33 PANG, Eul-Soo. Coronelismo e oligarquias. 1899-1934. A Bahia na Primeira República Brasileira. Trad. Vera Teixeira Soares. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. p. 9. 34 OLIVEIRA, Josivaldo Pires. No tempo dos valentes: os capoeiras na cidade da Bahia. Salvador: Quarteto, 2005. p. 90. 35 VILAÇA, Marcos Vinicius; ALBURQUEQUE, Roberto Cavalcante de. Coronel, coronéis. Apogeu e declínio do Coronelismo no Nordeste. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 23.
  • 27. 25 ap o nta do co mo a ut o r d e t r op eli as e des or den s, sus cit a ndo mai s u ma vez medi das l egislati vas esp ecí fi cas. 36 Aind a co m Sodré, “a crônica da cap oeira até qu ase o fim d o Império reve la d ispo sições permanente s de re sist ênc ia marc ia l aos dispositivos repress ivos d e ordem escra vagist a”. As sim, no final do século XIX, o jogo da capoeira começa a so frer forte repress ão socia l e polic ia l, tanto na capit al da Repúb lica, o Rio de Janeiro, qu anto na Bahia e seu Recô nca vo, decorrente da insurgênc ia dos negro s ao sistema polític o vigente. Nos primei ros anos pós- monárquicos e d e Repúb lica Velha (1889 -1930), a capo eira vem a se r considerada crime, com o Código Pena l de 1890. De acordo com M anuel Querino, no Rio de J ane iro “o cap oeira const ituía u m elemento perigoso, torna ndo -se ne cess ário que o gover no , p ela portaria de 3 1 de outubro d e 1821, estabele ce ss e cast igo s corpo rais e providê nc ias ou tras, relat ivas ao caso” . 37 Os t ipos, então d escr itos nas narrat ivas, podem bem representar caricaturas do siste ma soc ial da épo ca.Desse mo do, domina nt es e dominad os lideravam um conflito freqüente. Afirma Edil Co sta : P rati cada p el os a fr o-br asil eir os como um j ogo, u ma for ma d e di verti ment o q ue dis farç ava uma luta p eri g os a, a cap o ei r a p ar ece nã o t er d ei xa do de s er p rati cad a em mo men t o al g um d e su a história, ap esar da r ep r ess ão p oli ci al viol ent a q u e s ofr eu . Ao cont rári o, ga nh ou forç a enq u ant o sin al d e r esistência e d e d es cob ert a da negrit ud e. E m u m mo m en t o segu i nt e, fi r mou - s e como l uta e, mes mo p rati cad a ent re os negr os, nã o hav en d o comb at e dir et o entr e o opri mi do so cia l me nt e e o s eu op ressor, o comb at e simbó li co esta va estab el eci do : jo gar cap o ei r a sig ni fi ca va a fi r mar-s e co mo negr o, her deir o da tr a diç ã o a fri ca na e faz er fr en t e e r esistê ncia a os valor es so ciais d o b ran co. 38 A repressão ao jo go da capoeira não s e estendia à s e lites, que faziam uso da fo rça e da valent ia dos cap oeirista s. Se gundo Almir das Areia s, o Código Pena l de 1890 confere à capoeir agem um tratamento esp ecífico: 36 SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida; por um conceito de cultura no Brasil. 3ª ed. DPA editora. Rio de Janeiro, 2005. p. 155. 37 QUERINO, Manuel. A Bahia de outrora. Salvador. Progresso, 1955. p. 80. 38 COSTA, Edil Silva. Comunicação sem reservas. Ensaios de malandragem e preguiça. 2005 (236 p) Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo 2005. p.88.
  • 28. 26 – F az er nas r uas e p ra ças p ú bli cas exer cí ci os d e agili dad e e d estr eza cor p oral con heci d os p ela d eno mi nação cap oeira gem; s erá o autu ad o p uni d o com dois mes es d e p ris ã o. – É co nsi der ada ci rcun stâ nci a a gra vant e p ert encer o cap oei ra a algu ma ba nd a o u malt a. – Aos ch ef es e cab eças se i mp or á a p en a em d ob ro. – No cas o d e r ei n ci dê ncia s erá apli cad a ao cap oeir a, no gr a u má xi mo, a p ena do arti go 400 . – Se for estran geir o, s erá dep orta do d ep ois de cu mp rir p en a. – Se n ess es exercí cios de cap oeir a gem p erp etra r ho mi cí di o, p rati car al guma l es ão co rp oral, ultr aja r o p oder pú bli co e p arti cul ar, e p ert urba r a or d em, a tra nqü ilida de o u a segu ra nç a p úb li ca ou for enco ntr a do co m ar mas, incorr er á cumul ati va ment e nas p en as comi nadas p ara t ais cri mes. 39 Tal código é destituído em 1937, na Rep ública No va, com o então presidente Getúlio Var gas, e a capo eira t orna-se um esporte, inst itucionaliza - se, como um modo de contro lar a at uação dos cap oeirista s, atra vés da organização de academ ias para o seu ens ino. 40 De acordo com Walde loir Rego, a cap o ei ra foi i nv en tad a co m a fi nalida de de di verti ment o, ma s n a r eali dade funci onav a co mo faca de dois gu mes. Ao lado d o n or mal e do q uoti di an o, qu e era di vertir, er a lut a ta mbém n o mo ment o op o rtuno. N ão h avia Acad emi as d e Cap o eir a, ne m a mbi ent e fecha do, pr emedita da ment e p ara jog ar ca p o eir a. Anti gament e h avia cap o ei ra, ond e ha vi a uma quitan da o u um a v en da d e ca ch aça, com u m l ar go b em em fr ent e, p r opí ci o a o jo go. Aí, aos domi ng os, feri a dos e dias s ant os, ou ap ós o trabal ho s e r euni a m os cap oeiras mais famo sos a ta garelar em, b eb er em e j ogar em cap oei ra. 41 Co m a ass inatura d a Lei Áu rea, mu itos n e gros libertos cont inuaram a trabalhar em tro ca de salários ou arrenda ndo terras dos seus ex-senhores, se gundo Walt er Fraga Filho : É p r eciso lembr ar q u e a pop ul açã o q u e emer gi u da es cr a vi dã o era b asta nt e di fer encia da i nt er na ment e. A p oss e d e al gun s b ens, o dir eit o d e acess o à t er ra, o do mí ni o de u ma pr ofissã o esp eci aliza da, a p osi ção de feit or d e ser vi ço, estab el ecera m 39 AREIAS, Almir das. O que é capoeira. 3 ed. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1983. p. 43. Em A verdade seduzida, Muniz Sodré, em nota de rodapé, afirma o seguinte: “O Código Penal de 1890 previa desterro e castigos corporais para quem praticasse a capoeira. Exemplos célebres de desterro: Manduca da Praia, Juca Reis, mandados para a Ilha de Fernando de Noronha, durante o primeiro governo republicano; de castigos corporais: as chicotadas aplicadas pelo famoso Major Vidigal, chefe de polícia do Rio de Janeiro, no início do século XIX Cf. SODRÉ, Muniz. Op. cit.; p. 155. 40 OLIVEIRA, Josivaldo. op. cit., p. 31. 41 RÊGO, Waldeloir. Capoeira Angola: ensaio sócio-etnográfico. Salvador: Itapoã, 1968, p. 35-36.
  • 29. 27 algu ma s di fer en ças dentr o do conti n gent e escravo, d efi nir a m es col has e po der d e b ar ga nh a fr ent e aos ex -s enh or es. 42 Antes e scra vos, agora o s negros passam a const itu ir u m exp ress ivo se gme nto de exc luídos, deixados à própria sorte. Como a grande maio ria não teve a ce sso à cultu ra letrada, restava - lhes fazer parte do gra nde cont inge nt e de-mão-de obra barata e desqualific ada que povo ava as c idad es do Recônc avo Baiano e do Brasil. Para a historiadora Adria na D ias, mu itos negros “eram trabalhado res braçais, como carregadores, estivado res, engraxates, cap anga s, polic iais”, 43 e a rua era o p rincipa l ce nário de co nflito s constantes, p ois muito s trab alha vam esporad icam ente, e lu gar do jo go da capoeira. Ne sse contexto, negros e “me st iços” são c las sificados de “vadios”, “ vale ntões,” “deso rd eiros” ou ainda pobres “vicio sos ”. 44 Aind a s egu ndo Adriana D ias, [...] n o fi nal do sécul o XIX, muit os vi vi am de o cup aç õ es esp or á di cas t end o um rit mo de vi da b asta nt e ir r eg ul ar, o q u e lh es pr op o r ci o nava fr eqü ent es p erí od os d e oci osi da d e ent r emead os p or mo m en tos d e div ersão q uas e s empr e a compan ha dos de mu itos ‘ gol es de cachaça’ e, lógi co, muit a s b rigas e pr o vocaçõ es. 45 As sim, como afirma Walt er Fraga, justamente por suas hab ilidades ou p ro fiss ão esp ecia lizad a, os negros do pós -abolição u sam seu poder de barga nha junto à s e lites, e os capoeiristas t amb ém vêm a ne goc iar sua s hab ilidades, ao serem usado s como capangas p or “polít icos e pes so as de influência”, como também analisa Muniz Sodré. A capoeira, misto de arte e lu ta, compõe o repertório cultural do negro , u ma estraté gia cr iada em sua d efesa e est ab elec ime nto de poder entr e outros negro s. No Rio d e J ane iro , após a abolição, um enorme cont ingent e de ex-escra vos também va gueava p elas ru as, “resid indo nos morros e na s 42 FILHO, Walter Fraga. Op. cit., p. 232. 43 DIAS, Adriana Albert. Mandinga, manha & malícia; uma história sobre os capoeiras na capital da Bahia (1910-1925). Salvador: EDUFBA, 2006. p. 70. 44 Ibid., p. 26. 45 Ibid., p. 17
  • 30. 28 periferias, circu la ndo normalmente nos locais de ma ior movim ento d a cidade [...], mal co ns eguia m um trabalho qu e lhe s garant isse a sobrevivênc ia”. 46 Entregues à próp ria sorte, por co nta de um passado que não esco lheram, e nvolviam-s e em as sa ltos, cr imes e emboscadas. Por is so, vad iavam pe la cidade – “dividind o -se e o rganizando -se em grup os, os ne gros caminhavam cada vez mais para a mar ginalidade. Surgem as famo sa s ma lta s de capoeira”. 47 Em relação a es sas malta s, Edson Carneiro afirma o segu inte: As maltas d a Bahi a fo ra m d es or ganiza das po r ocasião da g uer ra do Par a guai: o g ov er no da p r ovín ci a r ecr ut ou à força o s cap oeir as, q u e fez segu ir pa ra o S ul co mo “v o l u nt ári os d a P átria”. Ma nu el Q ueri no co nt a q ue mu it os de les s e disti n guia m p or at os de br av ur a no ca mp o de bat al ha. 48 Ao reconst ituir um p ercurso histó rico da capoeira gem, Líb ano Soares destaca que, antes d e s er ‘ des cob ert a’ p el os hist ori ador es, há p oucas dé ca das, a cap oeir a já ti nha vi vi d o su as a vent uras nas p ági nas d a literat u ra, d os cr o nist as, dos me mo ri ali stas do p assa d o i mp erial d o Rio d e Jan eir o. E ant es mes mo d est es – e d e for m a mu it o mais fr eqü ent e -, nu m p assa do remot o, a cap o ei ra só er a test emun had a p el os es cri vã es d e P olí cia. 49 Aluís io d e Aze ved o, em O co rtiço , (1890) e M anoel A ntônio de Alm eida, em Memórias de um sargento d e milícias, (1854 ) registram na s páginas d esses ro mance s episódios envo lvend o p erso nagens capo eir ist as, os quais co ntr ibuem para ente nder a dinâmic a socia l do Rio de Janeiro, no século XIX, p eríodo qu e marca a passagem da o rd em imp erial para a o rd em repub licana. Co nt inua Líbano Soares: [...] junt o co m ra mei ras, p r ostit utas, v agab u nd os, esti va dor es, mal andr os, b oêmi os, p oli ci ais, os cap o ei ras fa zia m p art e d a b uliç osa fau na das r uas da C ort e, q ue ass ustava as ca ma da s mé di as e tamb é m a elit e diri gent e. P ersegu idos p el o apa rat o 46 Cf. AREIAS, op. cit., p. 29 47 Id., p. 29. 48 CARNEIRO, Edson. Capoeira. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1977. 2 ed. Cadernos de Folclore. V. 1. 49 SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições no Rio de Janeiro. (1808-1850). 2 ed. Campinas, São Paulo: Unicamp, 2004. p. 35-36.
  • 31. 29 p oli ci al os cap o ei ras fora m p res en ça fr eqü ente nas pá gi n as d o cri me do sécul o XIX. 50 Co nco mitante aos ep isódio s da Corte Imp erial no Rio de Janeiro, envolve ndo indivídu os desses s egmento s sociais, a Ba hia e s eu Recôncavo também p ossuem os seu s “vadios”, “valentões”, “d esordeiros” ou ainda “pobres e vic iosos”. S egundo Jo siva ldo Olive ira, na cidade de Sal vad or das primeiras décadas repu blica nas a capo eiragem ass im era vista : Co nfi gu r ou-s e de forma apr oxi ma da a o Par á r ep ub li ca no. O s cap oeir as eram ass oci ad os à v agab und ag em e a outr os tip o s so ci ais do uni v ers o das ru as, a exe mp l o do cap an ga p olíti co e d o sol da do de p olí ci a, mas t a mb ém a o trab al ha do r na s p rincipais ocup aç õ es das camad as p op ula r es: p ed r ei r o, carr ega dor, car r oceiro, maríti mo, p ei xeir o, et c. 51 Para Muniz Sodré, a cap oeira imp licava, como toda estraté gia cultu ral dos negro s no Bra sil, um jogo d e res istê ncia e acomodação . L ut a co m ap ar ên ci a d e dan ça, danç a qu e apa r ent a combat e, fa ntasi a d e l uta, va di açã o, ma ndi n ga, a capo eira s ob revi v eu p or ser u m jog o cu ltural. Um j ogo d e destr eza e ma lí cia e m q ue s e fi ng e l ut ar, e fi ng e-s e t ã o b em q u e o co n cei t o d e v er d ade da l uta se diss ol ve aos ol hos d o esp ect ad or e – ai del e – do ad vers ári o desa visa do. 52 Sodré traz uma descrição p rimorosa dessa arte : V adia çã o e brin cad eira sã o outr os n omes com q ue os n eg ro s d esi gnav am n a Ba hia o j og o d a cap oeir a. Capo eir a s e l uta, jo ga, bri nca, é al g o q ue s e faz en tre ami gos o u co mp an heiros. Co mo ? Pri m ei r o, for ma -se uma r oda co mp ost a p or um ou mai s to ca do res de b eri mba u (a rco r et esad o p or um fi o de aço, p er cuti do p o r uma vareta e a o q ual s e p r en de uma cabaç a cap az de fun ci o na r como cai xa de r ess onâ ncia), p an deir os, ca xi xis o u r eco -r eco s. E m segu ida, dois h omen s en tra m n o cí r cul o, abaix an do-s e n a fr ent e d os mú sicos, ao so m do s instru ment os e de ca nçõ es (c hu las) esp ecí fi cas. 53 50 SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A negregada instituição. Os capoeiras na Corte Imperial 1850-1890. Rio de Janeiro: Access, 1999. p. 3. Segundo o autor, os feitos dos capoeiras no Rio de Janeiro – capital da República – Bahia e seu Recôncavo vinham desde o período monárquico, o que validava a sua coibição. Por conta disso, o Código Penal de 1890 passa a ser o principal recurso de punição para esse tipo de luta. 51 OLIVEIRA, Josivaldo. op. cit.; p. 33. 52 SODRÉ, Muniz. Capoeira, um jogo de corpo. op. cit.; p. 155. Grifos do autor. 53 Id. p. 153. Grifos do autor.
  • 32. 30 E nt ão, mo biliza m-s e t ot al men t e os corp os d os j o ga dor es. Mãos, p és, joel ho s, b ra ços, cal ca nhar es, cot ov el os, dedos, cab eç as combi na m-s e di na mi cament e em esq ui v as e g olp es, d e n omes va riad os: aú, rast eir a, meia -lua, m eia -lua de co mpass o, ma rt el o, r ab o- de- ar raia, b enç ão, chap a- de-p é, chib ata, t eso ur a e muit os outr os. 54 Em sua cartogra fia d a cap oeiragem baiana, J os ivaldo Oliveir a mapeia os princ ipais loca is de conflitos dos capoeiristas, ruas, logradouros, e a mo radia de muitos dos indivíduo s ident ific ado s co mo capoeiras. 55 As e lite s so teropolita nas cons ider a vam esses locais espaços suscet íveis à crimina lidad e. O “cotid ia no da ru a na Cidade d o Salva dor, inclu sive nas obscu ras e embriagadas noit es, urgia atenção especial por parte das autoridades e os edito ria is dos principa is jorna is da época cob ravam das auto ridades polic iais melhor seguranç a e ordenação pú blica ”. 56 Co ntudo, a despeito da forte repressão, os capo eir ist as ma nt iver am clandest inam ente o jogo, pratica ndo -o nos quint a is, na s praias, nos terre iro s e nos arredores da cidad e, ao tempo em que transm it iam seus e ns inamento s à s ger açõ es fu turas. 57 A ginga e ma lícia d a capoeira estavam nas ruas, fert ilizando a ima ginação de segm ento s so ciais e lit izad os, amedrontados com as possíveis agressões, endossa ndo a má xima de q ue o capoeir ista é “ ma la ndro”, um detentor de artimanhas, aprimo radas a cada luta e, princ ipalm ente, na roda da capoeira. Nesse cont exto histórico, co meça a sa ga d e Besouro Manga ngá, cuja fama alcançada é ass im compreend id a po r Pedro Abib: No i ma gi n ári o d a cap oeira gem e d os cap oei ras nã o exi s t e fi g ura mais r ep r esent ati va d o q u e B es ou r o Ma nga ng á. [...] na me mó ria dos mais a nti gos morad or es do R ecô n ca vo, a fi g ur a d e B eso ur o, viv e e pr ot a goniza um s em- nú mer o de histó rias e “caus os” en vo lv en do su as p eripé cias e astú cias no enfr entam ent o co m a p ol í cia, s ua valentia ao bri ga r e b at er e m v ári os op on ent es a o mes mo t emp o [...]. 58 54 Id. p. 153-154. 55 Id. p. 41. O autor destaca a importância das crônicas e da literatura urbana para os estudos africanistas e a etnografia, vigorando até os anos 1930, por contribuírem com a reconstituição do cotidiano dos capoeiras baianos que viveram em Salvador nas primeiras décadas do século XX. Cf. OLIVEIRA, Josivaldo. p. 39-40. 56 Id. p. 45. 57 Cf. AREIAS, p. 61. 58 ABIB, Pedro. Capoeira Angola: cultura popular e o jogo dos saberes na roda. Campinas, SP. Unicamp/ CMU; Salvador: EDUFBA, 2005. p. 160.
  • 33. 31 Ao sair de ca sa com 13 anos de idade, Besouro vai para a sede do distrito em qu e mo rava, S anto Amaro da Pu rificação, vindo a res idir no ba irro do Trapiche d e Baixo , zona su burbana da cidade qu e passa a s er a sua escola. Ap rende a jo gar capoeira com o “tio Alí pio” e trab alha em diversos o fíc ios : vaq ueiro, amansador de burros, sa ve irista, num temp o de conflito entr e “maltas”, disputas a nava lha, capa ngas ele itorais e repres são do Estado repub licano ao jogo da capoeira. É nesse período conturbado do país, em espec ial a Ba hia e o seu Recô nca vo, cu ja at ividade econômica, em seus mo dos e relação de produção, não abriu mão da fo rça de trabalho dos negros, m esmo com a aboliç ão da escravatura, q ue passam a comp or predominanteme nte os segmentos p opulares que Besouro ganha evidê ncia com seus feitos que d esafiam a ordem vigent e. Naquele universo da capoeiragem baia na, muitos cap oeirista s s e tornaram notáveis. Contu do, Besouro Cord ão de Ouro lid era o período, com maestria, sí ncopa, qu alificad a por Muniz Sodré co mo um esp aço a ser preenchido com o corpo 59 e, nesse ca so, o corpo do negro : em mo vimentos rítmicos, envolvido pela música e a ginga da cap oeir a, qu ase um b ailado que hip no tiza o adversár io. Edson Car ne iro o destaca : o “ma is famoso d os capoeiras na cionais era natura l de Santo Amaro, na zo na cana vieira, e tinha o apelido de Besouro Ve nenoso. Era inve ncí vel e inigualá vel. Ainda agora a s chu las de capo eira cantam as suas proezas lendár ias”. 60 Beso uro Mangangá ens inou a outros o que aprendeu com o seu velho mestre, a inda garoto . Nesse ap re ndizado começa a co nhecer o corpo como eleme nto agre gad or para fortalecer a arte da então “capoeira escr ava”, 61 um instrume nto para defes a e ataq ue, uma das e straté gias dos escravos para 59 SODRÉ, Muniz, Samba, o dono do corpo. 2 ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. p. 11. De acordo com Walnice Nogueira Galvão, a síncopa é “uma espécie de padrão rítmico em que um som é articulado na parte fraca do tempo ou compasso, prolongando-se pela parte forte seguinte”. “Um corpo sincopado valoriza mais intensa e expressivamente o tempo fraco da música. E isso se reflete de diversas maneiras. Porque rompendo com a hegemonia do tempo forte, esse corpo se fraseia de um outro jeito: é como se ele tomasse a liberdade de brincar se expressando. Conectado com o espírito da música esse corpo tanto ginga por dentro como por fora; saracoteia, deixa-se tomar por trejeitos, por negaças, remelexos, balanços, meneios, volteios, suíngues...”. A síncopa “se traduz no corpo e o corpo traduziria o ritmo caso ele fosse dessincompado. É como se no tempo fraco o corpo pudesse exprimir certas sutilezas para as quais o tempo forte não dispõe de duração suficiente. Pois o tempo forte nos prende ao chão enquanto o fraco nos liberta dele: o tempo forte é peso, o tempo fraco é leveza”. Cf. GALVÃO, Walnice Nogueira. Grandeza e encanto de Naturalmente, de Antônio Nóbrega. Disponível em http://www.conectedance.com.br/matéria.php?id=9 60 CARNEIRO, Edson. op. cit., loc., cit. 61 Denominação usada por Carlos Líbano Soares para a capoeira jogada no século XIX. In: A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). Campinas, SP: Ed. UNICAMP, 2004.
  • 34. 32 lidar com a brutalidad e do poder escra vista. Segund o Almir das Areias, “a capoeira surge no Brasil como arma, em função da necessidade d o escravo de se defender dos maltratos e cast igo s dos seu s opressores e, ao mesmo tempo, como folgu edo, p ara express ão e manife st ação dos seus se nt ime ntos”. 62 As sim, a cap oeira era u ma prática ne ce ss ária a um segm ento da pop ulação afro -b aiana, cada vez mais oprimid a e marginalizada. “À s esco ndidas, os capo eiras, nos qu int ais, nas pra ias, no s terreiros e no s arredores da c id ade, exerc ita va m a s ua prática e tra nsmit iam os seus ens inamentos à s geraçõe s futuras”. 63 Nes sa p rática, tem-se u m jogo de corpo que marca um movimento d e res ist ência, o scila ndo entre a re volt a e o emb ate direto às forças da ordem. Besouro Cordão de Ouro, um heró i d a cultura afro -brasileira Onç a pr et a foi l á e m cas a/ t u m t u m t u m bat eu na port a/ M e ch a mou pr a con ver sar/ Te m u m n eg o q ue é u m t ou r o/ Vi aj an d o p ara cá/ Us a c ord ão d e ou r o/ Cal ça ch ap éu e ab adar/ U sa bri n c o e p at uá/ On ça pret a foi l á em cas a/ Zu m zu m zu m boat o c orr e/ É B es our o Man g an gá 64 Zu m, zu m, zu m, Besou ro M an gan g á Bat en d o n os s ol d ad os d a p ol í ci a mi l i t ar Zu m, zu m, zu m, Besou ro M an gan g á Que m n ão pode c o m mand i n ga n ã o carr e ga pat u á 65. Quem é o herói Beso uro? Que narrat iva protagoniz a? Em su a trajetória, não abraço u uma nob re mis são, como os heróis das ep opéia s cláss icas: r epresentar grand iosame nte a s ua p átria ou nação ou a humanidade. Besouro va i compor a galer ia de ou tra tradição, a do heró i popu lar, erguid o na contramão do s valo res de uma cultura hegemô nica. Por ess e ent e ndimento, são tidos co mo ant i- heróis, marginais ou pic aresco s. No Ocid ente, as narrat ivas so bre os feitos e xtraordinár ios d os heróis começam na Gré cia, a s q uais re gistram histórias d e personagens que 62 AREIAS, Almir. O que é capoeira. 1 ed. Brasiliense, São Paulo: 1983, p. 22 63 Id. p.60-61. 64 Cantiga de capoeira identificada por Areias, de autoria de Dado. In. O que é capoeira. p. 55. 65 Cantiga de domínio público.
  • 35. 33 enfrentaram s ituações d es afiado ras de sua condição humana. O herói des sa s narrat ivas é jovem, corajoso e destemido, que vive ncia incríveis façanha s. As s im os heró is são figuras imorta lizad as como sem ideuses, p ersona gens de narrat ivas mít icas p ovoando o ima giná rio do s ind ivíd uos em diferente s cultu ras. De acordo com Massaud Mo isé s, até o século XVIII, [...] grosso mod o a épi ca cara ct eri zo u- se p or u m t o m maj est os o e mes mo r eli gi os o, e p or cont er as s ub li me s faça nh as du m h erói q ue si mb oli za va as gr a ndezas de sua p át ri a e mes mo d e t o da a Hu ma ni dad e: n um mu nd o estrati fi ca do, h avia l u gar cert o p ara o herói. C om o ad vent o d o R omantis m o e a cons eqü ent e d err ub ad a das car comi das e tra di ci onai s estrut ur as, des ap ar ece o h erói e nas ce o não - heró i o u o anti - h eró i, pois no mund o n ov o d ei x ou de haver esp aç o p ara a s con cepçõ es míti cas segu ndo o a nti g o fi gu ri n o. 66 O herói das narrat ivas ocide ntais é uma espéc ie de su per -homem, um semi-deus, daí a amb igüidade, o que mantém sua co nd ição hu mana. Na s epopéias gregas, o herói ap rese nta uma fac eta bélica, protagonizando u ma história de conflitos, qu e tem o seguinte e nredo : “a prep aração (aprese ntação do herói e descrição das armas); o comb ate (peripécias, espect ado res, proezas); o dese nlac e vito rio so (despojos, injúria aos cadáveres inimigos, jogos fúnebres)”. 67 Beso uro, herói de extr ação popular, é protagonista da epop éia dolorosa dos negros no Bras il, tornando -se um p erso nagem d a história que va i alime ntar, aind a hoje, mu itas narrativ as sobre suas aventuras. O capoeirist a rasura a noção de herói como a elaborada por uma conceituação tradicio nal do gênero épico, vindo simbo lizar a rebeldia dos negros, como resposta ao sist ema escra vocrat a no país. O e nfre nt amento dos negros es cra vizados ao s istema d omina nt e sempre foi vigiad o, controlad o, objeto de punições se vera s, se ja atravé s de cód igos criados pelos se nhores escravist as, seja atravé s de leis elaboradas pelo campo ju rídico, qu e inc lusive dá respaldo àqueles có digos. Em seu estudo acer ca do papel dos negros na desagre gação da ordem escravist a no 66 MASSAUD, Moisés. A criação literária. 4 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1971, p. 70. 67 Cf. E-Dicionário de Termos Literários. http://www2.fcsh.unl.pt/edtl//verbetes/H/heroi.htm. Acesso em 01/05/2010.
  • 36. 34 Brasil, a historiado ra Lane La ge Lima ana lisa a aliança entre a campanha abo licio nist a e a rebeldia negra. 68 Para a auto ra, a insurreição “const itui a respo sta do escra vo à violê ncia d o s istema de dominação imposto p elo branco. Vio lênc ia traduzida por precárias co ndições d e subsistênc ia, aliadas à co mpulsão a um trab alho exte nua nte e a lie nador, através de me ca nismos de coerção particularme nt e viole ntos e legitim ado s, legal e ideolo gica mente, na consc iênc ia do senhor”. 69 A autora co nstat a os limites d essa reb eldia, co mo suas possib ilid ades. Limitad a, porque “não se abrem p ara o escr avo perspectiva s de atuação política dentro d o sistema, que condena o ne gro rebelde à marginalidade e à vio lê ncia sem e xpressão so cial”, como se apresentam “dificuldad es mater iais de mobilizaçã o de uma classe co nst anteme nt e vigiada” e, sobretudo, “imp ossib ilidade de o escravo at ingir u ma consc ient ização mais ampla de s i me smo e do sistem a qu e o oprime”. 70 P or ém, d ois fat or es vão p ossib ilitar a o negr o ultr ap ass ar o s li mit es d essa r eb el dia fech ad a em si m es ma. E m p ri meir o lu gar, a pr eser va çã o da r eli gi ão e cult ura a fr ica nas; n a med i da em q u e nã o só a gl utin am e or gani za m os n eg ros p el a r epr od uç ão d e hi er arq ui as tr a nspla nt a das da Á fri ca, mas, p rincipalm ent e, p er mit em-l hes a ut ocon ceb erem-se com o p ess oas, dotad as d e i ndi vi duali da de p róp ria , fora d o sist em a es cr a vista, q u e p assa a s er vist o, d e for ma glob aliza nt e, com o u m todo cu lt ur al q ue l he é h ostil. E , em s egun do l u gar, o apr ov eita ment o das co nt urb açõ e s so ci ais s ur gi das nos mom en t os d e crise do s istema, q uan do o s n eg r os ca naliza m s ua r ev olta p ara os mo vi ment o s r evol ucio ná ri os qu e agitam esses p erí odos, co mo for ma, 68 LIMA, Lana Lage da Gama. Rebeldia negra & abolicionismo. Rio de Janeiro: s/d. A pesquisadora elenca os movimentos de insurreição no país, principalmente os ocorridos no século XIX, momento em que o sistema escravocrata apresenta sinais de crise, isto é, quando o trabalho escravo inviabiliza a expansão do capitalismo. A autora destaca a rebeldia do negro em movimentos de cunho político, como a Conspiração dos Alfaiates, na Bahia, em 1798, a Cabanagem, no Pará, a Balaiada, no Maranhão, a Guerra dos Farrapos, no Rio Grande do Sul, a Sabinada, na Bahia, no século XIX, e de cunho religioso, como as insurreições dos Malês, na Bahia, também no século XIX. 69 Idem, p. 153. 70 Id. p. 154. Segundo a autora, esses limites, “por sua vez, são determinados pela estrutura de produção brasileira, que, ao integrar a produção para mercado à de subsistência, alia num só núcleo o lar e a empresa, permeando com relações pessoais as relações de produção”. De acordo com Lana Lima, nas relações pessoais, senhor e escravo, de base patriarcal, no âmbito da esfera privada, o negro se percebe em sua condição humana, enquanto pelas relações econômicas, patrão e empregado, é colocado como instrumento de produção, portanto, coisificado, o que conduz o escravo a “auto-representar-se como não pessoa, destituído de vontade própria, posto que submetido ao arbítrio do senhor”. Isso limita “no escravo a capacidade de identificar o sentido real das relações de produção do sistema escravista, percebido apenas do ângulo particular, vivenciado no cotidiano da fazenda. Assim, a atuação divergente do negro restringe-se à revolta parcial e imediatista contra as situações de opressão que povoam o seu dia-a-dia”. Cf. LIMA, loc. cit.
  • 37. 35 con sci ent e o u não, de ampli ar s uas p ossibili da des de exp r essã o so ci al. 71 A preservação da religião e cu ltu ra africanas p ossib ilita ao s ne gro s uma integra ção entre s i. A p rática d a religião do cando mblé, trazido ao Brasil pelo s sacerdotes afr icanos e scra vizados, as se gura a permanênc ia do idioma e da cultura dos negro s. No cand omblé, são cultuad os o s d euses – orixás, vod uns, inqu ices –, preservados em ritu ais sagr ad os, com vestim enta s próprias, danças, cânt icos, o ferend as, home nagens, int egrando -se à vida cotid iana, a d espeito da proib ição est abele cida p ela Igreja Cató lic a ou gover nant es. 72 Para La na Lima, é no s éculo X IX que a ampliação das possib ilid ades d e expres são so cial d os negros alcança seu limite má ximo, com o movimento abo lic io nis ta, que “absorve, fu ncio nand o como age nt e catalizador, u ma rebeldia sempre manife sta”, com a promessa de um mu ndo difer ente da marginalidade em que viviam. Mas, ao alia r-s e à r eb el dia negra, utilizand o- a para pr essi on ar e d es gastar o sist ema [ es cr a vocr ata], o ab oli cionismo i mpõ e -l h e s eus p róp ri os li mit es, enq ua nt o i deol o gia nas cid a de i nt eresse s esp ecí fi cos, q u e dep ois da a b oliçã o o negr o p er ceb e nã o coi n ci dir e m exat ament e com os seus. Tr ans fo r ma das as rel aç õ es d e pr od uç ão, nã o se modi fi ca o l ug ar ocup a do p el o negr o n o p ro cesso pr odu tivo, e desfeitas as ali a nç as, seu co mp orta me nt o di verg en t e vai s er n ova men te r elega do a mer a qu estão p olici al. 73 Nasc ido no contexto de pó s-abolição, tempo de alianças desfe itas, portanto, o capoeir ist a Besou ro const itui-se, e nquanto su jeito, num ambie nt e quilombola, d e negros reb eldes à d ominação, preserva ndo a religião do ca ndomblé, q ue se expande com a abolição da escravatura, b em como a cultu ra africana. A inda menino, conhec e o mestre Alíp io, que lhe transmit e, na prática, os ens inam ento s da capo eira, uma arte, um fazer que se aprimora inco rporand o a religios idad e – de “religare”, ou seja, ligar de no vo –, de int egração ao mundo d e seu s a nce strais . Para tanto, cre nça s e va lores da 71 Id. p. 154-155. 72 Informações disponíveis em: http://www.turismoreligioso.org.br/system=news&action=read&id=88. 73 Id. p. 155.