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LUIZ FERNANDO VERÍSSIMO
FERNANDO SABINO
Luiz Fernando
Veríssimo
Luis Fernando Veríssimo nasceu em 26 de setembro 1936,
em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Filho do grande escritor
Érico Veríssimo, iniciou seus estudos no Instituto Porto
Alegre, tendo passado por escolas nos Estados Unidos
quando morou lá, em virtude de seu pai ter ido lecionar em
uma universidade da Califórnia, por dois anos. Voltou a
morar nos EUA quando tinha 16 anos, tendo cursado
a Roosevelt High School de Washington, onde também
estudou música, sendo até hoje inseparável de seu saxofone.
É casado com Lúcia e tem três filhos.
Jornalista, iniciou sua carreira no jornal Zero Hora, em Porto
Alegre, em fins de 1966, onde começou como copydesk mas
trabalhou em diversas seções ("editor de frescuras", redator,
editor nacional e internacional). Além disso, sobreviveu um
tempo como tradutor, no Rio de Janeiro. A partir de 1969,
passou a escrever matéria assinada, quando substituiu a
coluna do Jockyman, na Zero Hora. Em 1970 mudou-se para
o jornal Folha da Manhã, mas voltou ao antigo emprego em
1975, e passou a ser publicado no Rio de Janeiro também. O
sucesso de sua coluna garantiu o lançamento, naquele ano,
do livro "A Grande Mulher Nua", uma coletânea de seus
textos.
Participou também da televisão, criando quadros para o
programa "Planeta dos Homens", na Rede Globo e, mais
recentemente, fornecendo material para a série "Comédias
da Vida Privada", baseada em livro homônimo.
Escritor prolífero, são de sua autoria, dentre outros, O
Popular, A Grande Mulher Nua, Amor Brasileiro, publicados
pela José Olympio Editora; As Cobras e Outros Bichos, Pega
pra Kapput!, Ed Mort em "Procurando o Silva", Ed Mort em
"Disneyworld Blues", Ed Mort em "Com a Mão no Milhão", Ed
Mort em "A Conexão Nazista", Ed Mort em "O Seqüestro do
Zagueiro Central", Ed Mort e Outras Histórias, O Jardim do
Diabo, Pai não Entende Nada, Peças Íntimas, O Santinho,
Zoeira , Sexo na Cabeça, O Gigolô das Palavras, O Analista
de Bagé, A Mão Do Freud, Orgias, As Aventuras da Família
Brasil, O Analista de Bagé,O Analista de Bagé em
Quadrinhos, Outras do Analista de Bagé, A Velhinha de
Taubaté, A Mulher do Silva, O Marido do Doutor Pompeu,
publicados pela L&PM Editores, e A Mesa Voadora, pela
Editora Globo e Traçando Paris, pela Artes e Ofícios.
Além disso, tem textos de ficção e crônicas publicadas nas
revistas Playboy, Cláudia, Domingo (do Jornal do Brasil),
Veja, e nos jornais Zero Hora, Folha de São Paulo, Jornal do
Brasil e, a partir de junho de 2.000, no jornal O Globo.
Na opinião de Jaguar "Veríssimo é uma fábrica de fazer
humor. Muito e bom. Meu consolo — comparando meu
artesanato de chistes e cartuns com sua fábrica — era que,
enquanto eu rodo pelaí com minha grande capacidade ociosa
pelos bares da vida, na busca insaciável do prazer (B.I.P.), o
campeão do humor trabalha como um mouro (se é que os
mouros trabalham). Pensava que, com aquela vasta
produção, ele só podia levantar os olhos da máquina de
escrever para pingar colírio, como dizia o Stanislaw Ponte
Preta. Boemia, papos furados pela noite a dentro, curtir
restaurantes malocados, lazer em suma, nem pensar. De
manhã à noite, sempre com a placa "Homens Trabalhando"
pendurada no pescoço."
Botecos
Lixo
O apito
O homem que vivia anedotas
Ressaca
Alívio
Gaúcho que é gaúcho
Incidente na casa do ferreiro
O desafio
O popular
Os moralistas
Povo
Terrorismo
O Casamento
O analista de Bagé
Clic
Botecos
Tinha uma mania: colecionava botecos. Não os freqüentava, apenas. Era
um estudioso.
Gostava de descobrir botecos e recomendar para os amigos.
Ultimamente vinha se especializando - um refinamento da sua paixão -
no que chamava
de botecos asquerosos. Daqueles que nenhum fiscal da Saúde Pública
incomoda porque não passa pela porta sem desmaiar.
Seu rosto se iluminava na frente de um boteco asqueroso recém-
descoberto.
Não resistia e entrava. Depois contava para os amigos.
- Uma glória. Sabe ovo boiando em garrafão com água?
- Repelentes, é?
As galinhas não os receberiam de volta. A própria mãe!
Descrevia o boteco com carinhoso entusiasmo. - E que moscas. Que
moscas!
Só não tinha paciência com o falso sórdido. Alguns botecos assumiam
suas privações como uma declaração de falta de princípios.
Ele preferia o sórdido inconsciente, o sórdido autêntico.
Principalmente o sórdido pretensioso.
Uma vez contara, extasiado, uma cena.
Terminara de comer uma inominável
almôndega, pedira um palito para o dono do boteco e desencadeara uma
busca
barulhenta e mal-humorada,
com o dono procurando por toda a parte e gritando para a mulher:
- Cadê o palito?
Finalmente o dono encontrara o palito, atrás da orelha,
e o oferecera. Ele se emocionava só de contar.
Os amigos, sabendo da sua paixão, mantinham-se
atentos para botecos sórdidos
que pudessem interessá-lo. Muitos ele já conhecia.
Um que tem uma Virgem Maria pintada num espelho com uma
barata esmigalhada de tapa-olho? Vou seguido.
A cachaça é tão braba que tem bula com contra-indicação.
Outro dia lhe trouxeram a notícia do pior dos botecos.
Não era um boteco de quinta categoria. Era um boteco de última
categoria.
Ficava no limite entre a vida inteligente, e a vida orgânica. Ele precisava
ir lá verificar.
Foi no mesmo dia. Ficou estudando o boteco de longe, antes de se
aproximar.
Tinha um garoto na porta do boteco.
A função do garoto era atacar cachorros sarnentos.
Quando passava um cachorro sarnento
o garoto o enxotava - para dentro do boteco!
Ele atravessou a rua na direção do boteco com aquele brilho no olhar que
tem o
pesquisador no limiar da grande revelação, ou o santo antes do doce
martírio.
O texto acima foi extraído da revista "Veja", Editora Abril, edição de 12-
12-84.
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Lixo
Luis Fernando Veríssimo
Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a
primeira vez que se falam
— Bom dia...
— Bom dia.
— A senhora é do 610.
— E o senhor do 612.
— É.
— Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente...
— Pois é...
— Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...
— O meu quê?
— O seu lixo.
— Ah...
— Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena...
— Na verdade sou só eu.
— Mmmm. Notei também que o senhor usa muita comida em lata.
— É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei
cozinhar...
— Entendo.
— A senhora também...
— Me chame de você.
— Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns
restos
de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim...
— É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes.
Mas como moro sozinha, às vezes sobra...
— A senhora... Você não tem família?
— Tenho, mas não aqui.
— No Espírito Santo.
— Como é que você sabe?
— Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.
— É. Mamãe escreve todas as semanas.
— Ela é professora?
— Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?
— Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.
— O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.
— Pois é...
— No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.
— É.
— Más notícias?
— Meu pai. Morreu.
— Sinto muito.
— Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.
— Foi por isso que você recomeçou a fumar?
— Como é que você sabe?
— De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras
de cigarro amassadas no seu lixo.
— É verdade. Mas consegui parar outra vez.
— Eu, graças a Deus, nunca fumei.
— Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo...
— Tranqüilizantes. Foi uma fase. Já passou.
— Você brigou com o namorado, certo?
— Isso você também descobriu no lixo?
— Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora.
Depois, muito lenço de papel.
— E, chorei bastante. Mas já passou.
— Mas hoje ainda tem uns lencinhos...
— É que eu estou com um pouco de coriza.
— Ah.
— Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.
— É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.
— Namorada?
— Não.
— Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até
bonitinha.
— Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.
— Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer
que ela volte.
— Você já está analisando o meu lixo!
— Não posso negar que o seu lixo me interessou.
— Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria
de conhecê-la. Acho que foi a poesia.
— Não! Você viu meus poemas?
— Vi e gostei muito.
— Mas são muito ruins!
— Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado.
Eles só estavam dobrados.
— Se eu soubesse que você ia ler...
— Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando.
Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?
— Acho que não. Lixo é domínio público.
Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público.
O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros.
O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?
— Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que...
— Ontem, no seu lixo..
— O quê?
— Me enganei, ou eram cascas de camarão?
— Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.
— Eu adoro camarão.
— Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode...
— Jantar juntos?
— É.
— Não quero dar trabalho.
— Trabalho nenhum.
— Vai sujar a sua cozinha.
— Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.
— No seu lixo ou no meu?
Texto extraído do livro “O Analista de Bagé”, L&PM Editores – Porto
Alegre, 1981, pág. 83.
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O Apito
Luis Fernando Veríssimo
Tudo o que o Mafra dizia, o Dubin duvidava. Eram inseparáveis, mas
viviam brigando.
Porque o Mafra contava histórias fantásticas e o
Dubin sempre fazia aquela cara de conta outra.
-- Uma vez...
-- Lá vem história.
-- Eu nem comecei e você já está duvidando?
-- Duvidando, não. Não acredito mesmo.
-- Mas eu nem contei ainda!
-- Então conta.
-- Uma vez eu fui a um baile só de pernetas e...
-- Eu não disse? Eu não disse?
O Mafra às vezes fazia questão de provar as suas histórias para o Dubin.
-- Dubin, eu sou ou não sou pai-de-santo honorário?
O Dubin relutava, mas confirmava.
-- É.
Mas em seguida arrematava:
-- Também, aquele terreiro está aceitando até turista argentino...
Então veio o caso do apito. Um dia, numa roda, assim no mais , o Mafra
revelou:
-- Tenho um apito de chamar mulher.
-- O quê?
-- Um apito de chamar mulher.
Ninguém acreditou. O Dubin chegou a bater com
a cabeça na mesa, gemendo:
-- Ai meu Deus! Ai meu Deus!
-- Não quer acreditar, não acredita. Mas tenho.
-- Então mostra.
-- Não está aqui. E aqui não precisa apito. É só dizer "vem cá".
O Dubin gesticulava para o céu, apelando por justiça.
-- Um apito de chamar mulher! Só faltava essa!
Mas aconteceu o seguinte: Mafra e Dubin foram juntos numa viagem
(Mafra queria provar ao Dubin que tinha mesmo terras na Amazônia,
uma ilha que mudava de lugar conforme as cheias) e o avião caiu em
plena selva.
Ninguém se pisou, todos sobreviveram e depois de uma semana a
frutas e água foram salvos pela FAB.
Na volta, cercados pelos amigos, Mafra e Dubin contaram sua aventura.
E Mafra, triunfante, pediu para Dubin:
-- Agora conta do meu apito.
-- Conta você -- disse Dubin, contrafeito.
-- O apito existia ou não existia?
-- Existia.
-- Conta, conta -- pediram os outros.
-- Foi no quarto ou quinto dia. Já sabíamos que ninguém morreria.
A FAB já tinha nos localizado. O salvamento era só uma questão de
tempo.
Então, naquela descontração geral, tirei o meu apito do bolso.
-- O tal de chamar mulher?
-- Exato. Estou mentindo, Dubinzinho?
-- Não -- murmurou Dubinzinho.
-- Soprei o apito e pimba.
-- Apareceram mulheres?
-- Coisa de dez minutos. Três mulheres.
Todos se viraram para o Dubin incrédulos.
-- É verdade?
-- É -- concedeu Dubin.
Fez-se um silêncio de puro espanto. No fim do qual Dubin falou outra
vez:
-- Mas também, era cada bucho!
A crônica acima foi extraída do livro "Outras do analista de Bagé", L &
PM Editores - Porto Alegre, 1982, pág. 15.
O Homem que Vivia Anedotas
Luis Fernando Veríssimo
— Sempre deu tudo errado comigo. Desde criança.
— Compreendo.
— Na escola, não conseguia prestar atenção em nada.
Estava sempre pensando em mulher nua.
— Espera aí. Você é…
— Sou. O Juquinha. Todo mundo ficou sabendo das minhas histórias, virei
anedota.
— Mas as histórias até que eram engraçadas.
— Engraçadas para quem não foi expulso da escola, como eu.
Meus pais me mandaram a um médico para curar minha obsessão. Um
psiquiatra.
— Não foi esse o médico que...
— É. Começou a me mostrar desenhos. Uma cadeira.
Um chapéu. Um telefone. Pediu para eu me concentrar.
— E aí você disse…
— Eu disse: "Me concentrar como, se o senhor não pára de mostrar
figurinha erótica?".
O senhor está rindo porque não foi com o senhor. Fiquei anos em
tratamento.
— Desculpa. Eu não estava rindo de você. Continue.
— Como não tinha educação, fui ser mecânico. Não deu certo.
— Por quê?
— Sabe aquela história do cara que acendeu um fósforo dentro do tanque
do carro para ver se tinha gasolina, e tinha?
— Foi você?
— Foi. No hospital, tiveram que me reconstituir.
Pegaram as partes e juntaram de novo. Tudo bem, só que…
— Só que para ouvir direito, você precisava levantar o braço! Essa é
ótima.
— Ótima porque não foi com o senhor.
— Desculpe. Foi horrível.
— Quando saí do hospital comprei uma motocicleta.
Uma noite na estrada, vi os holofotes de duas motocicletas que
vinham em sentido contrário. Só por farra, resolvi passar com a minha
entre as duas.
— E era um automóvel. Essa eu conheço.
— Voltei para o hospital. Tiraram radiografias. Eu estava péssimo.
Quando o médico disse quanto ia custar o tratamento, eu disse que não
podia pagar.
— E ele?
— Ele disse que por um preço módico mandava retocar as radiografias.
— Grande! Quer dizer, horrível. E seus pais?
— Está vendo esse relógio? Está na família há gerações.
— É uma beleza.
— No seu leito de morte, poucos minutos antes de expirar, papai me
vendeu.
— Boa, boa. Quer dizer, triste, triste.
— Me casei. Não durou muito. Minha mulher estava convencida que era
um refrigerador.
— Realmente, não dava para continuar vivendo com uma louca.
— O pior não era isso. O pior é que ela dormia com a boca aberta e a luz
não
me deixava dormir. O senhor está rindo outra vez.
— Não posso me conter. É que você teve uma vida engraçada.
— Engraçada? Trágica. Tudo comigo deu errado. As pessoas riem de
sádicas.
— Você tem razão.
— Para esquecer tudo, fui fazer uma viagem. Quando o avião estava a
dez mil metros de altura,
ouviu-se uma voz que dizia: "Isto é uma gravação. Este avião não tem
piloto.
É dirigido por um sistema totalmente automático que substitui com
vantagem
o controle humano. Não há com o que se preocupar.
O sistema foi exaustivamente testado é absolutamente
aprova de falhas, de falhas, de falhas…".
— O avião caiu e foi assim que você veio parar aqui?
— Não, São Pedro. O avião caiu no mar, eu sobrevivi e passei uma
temporada numa ilha deserta com uma mulher. Só que a mulher era a
Betty Friedman.
— Acho que já vi esse cartum.
— Pois é. Aí fui salvo e ainda passei por várias anedotas até resolver me
matar.
Não conseguia fazer anda certo. Só restava o suicídio. Dei um tiro na
cabeça.
— E aqui está você.
— Não. Errei o tiro. Depois fiquei tão contente de ainda estar vivo que
dei um tiro para o ar.
Aí acertei na cabeça. E aqui estou eu. Livre, finalmente, das anedotas. O
senhor ainda está rindo!
— Meu filho você sabe quantas anedotas de São Pedro na porta do céu
existem?
— Não, São Pedro. Por favor. Não!
— O que é que eu posso fazer? Esta é uma delas. Houve um maremoto
em Copacabana,
morreu todo mundo e nós estamos com o céu lotado.
— Lotado? Mas só a população de Copacabana lota o céu?
— É que tinha os argentinos.
Você só vai encontrar lugar no Purgatório, e na lista de espera.
Texto extraído do livro "Sexo na Cabeça", L&PM Editores - Porto
Alegre, 1982, pág. 15.
Ressaca
Luis Fernando Veríssimo
Hoje, existem pílulas milagrosas, mas eu ainda sou do tempo das grandes
ressacas.
As bebedeiras de antigamente eram mais dignas, porque você as tomava
sabendo
que no dia seguinte estaria no inferno. Além de saúde era preciso
coragem.
As novas gerações não conhecem ressaca,
o que talvez explique a falência dos velhos valores. A ressaca era a
prova de que a retribuição
divina existe e que nenhum prazer ficará sem castigo.
Cada porre era um desafio ao céu e às suas feras. E elas vinham: Náusea,
Azia, Dor de Cabeça,
Dúvidas Existenciais - golfadas. Hoje, as bebedeiras não têm a mesma
grandeza.
São inconseqüentes, literalmente. Não é que eu fosse um bêbado, mas me
lembro
de todos os sábados de minha adolescência como uma luta desigual entre
a cuba-libre e o meu instinto de autopreservação. A cuba-libre ganhava
sempre.
Já dos domingos me lembro de muito pouco, salvo a tontura e o desejo de
morte.
Jurava que nunca mais ia beber, mas, antes dos trinta, "nunca mais" dura
pouco.
Ou então o próximo sábado custava tanto a chegar que parecia mesmo
uma eternidade.
Não sei o que a cuba-libre fez com meu organismo, mas até hoje quando
vejo uma
garrafa de rum os dedos do meu pé encolhem.
Tentava-se de tudo para evitar a ressaca. Eu preferia um Alka-Seltzer e
duas aspirinas antes de dormir.
Mas no estado em que chegava nem sempre conseguia completar a
operação.
Às vezes dissolvia as aspirinas num copo de água, engolia o Alka-Seltzer
e ia
borbulhando para a cama, quando encontrava a cama. Mas os métodos
variavam.
Por exemplo:
Um cálice de azeite antes de começar a beber
-- O estômago se revoltava, você ficava doente e desistia de beber.
Tomar um copo de água entre cada copo de bebida
-- O difícil era manter a regularidade. A certa altura, você começava a
misturar a água
com a bebida, e em proporções cada vez menores.
Depois, passava a pedir um copo de outra bebida entre cada copo de
bebida.
Suco de tomate, limão, molho inglês, sal e pimenta -- Para ser tomado no
dia seguinte,
de jejum. Adicionando vodca ficava um bloody-mary,
mas isto era para mais tarde um pouco.
Sumo de uma batata, sementes de girassol e folhas de gelatina verde
dissolvidas em querosene -- Misturava-se tudo num prato pirex forrado
com velhos cartões do sabonete Eucalol. Embebia-se um algodão na
testa e deitava-se
com os pés da ilha de Páscoa. Ficava-se imóvel durante três dias,
no fim dos quais o tempo já teria curado a ressaca de qualquer maneira.
Uma cerveja bem gelada na hora de acordar -- Por alguma razão o
método mais popular.
Canja -- Acreditava-se que uma boa canja de galinha de madrugada
resolveria qualquer problema. Era preciso especificar que a canja era
para tomar,
no entanto. Muitos mergulhavam o rosto no prato e tinham de ser
socorridos às pressas antes do afogamento.
Minha experiência maior era com a cuba-libre, mas conheço outros tipos
de ressaca,
pelo menos de ouvir falar. Você sabia que o uísque escocês que tomara
na noite
anterior era paraguaio quando acordava se sentindo como uma harpa
guarani.
Quando a bebedeira com uísque falsificado era muito grande, você
acordava se
sentindo como uma harpa guarani e no deposito de instrumentos da boate
Catito's em Assunção.
A pior ressaca era de gim.
Na manhã seguinte, você não conseguia abrir os dois olhos ao mesmo
tempo.
Abria um e quando abria o outro, o primeiro se fechava. Ficava com o
ouvido
tão aguçado que ouvia até os sinos da catedral de São Pedro, em Roma.
Ressaca de martini doce: você ia se levantar da cama e escorria para
o chão como óleo. Pior é que você chamava a sua mãe, ela entrava
correndo
no quarto, escorregava em você e deslocava a bacia.
Ressaca de vinho. Pior era a sede. Você se arrastava até a cozinha,
tentava alcançar a garrafa de água e puxava todo o conteúdo
da geladeira em cima de você.
Era descoberto na manhã seguinte imobilizado por hortigranjeiros e
laticínios
e mastigando um chuchu para alcançar a umidade. Era deserdado na
hora.
Ressaca de cachaça. Você acordava sem saber como, de pé num canto do
quarto.
Levava meia hora para chegar até a cama porque se esquecera como se
caminhava:
era pé ante pé ou mão ante mão? Quando conseguia se deitar,
tinha a sensação que deixara as duas orelhas e uma clavícula no canto.
Olhava para cima e via que aquela mancha com uma forma vagamente
humana no teto finalmente se definira. Era o Peter Pan e estava piscando
para você.
Ressaca de licor de ovos. Um dos poucos casos em que a lei brasileira
permite a eutanásia.
Ressaca de conhaque. Você acordava lúcido.
Tinha, de repente, resposta para todos os enigmas do universo.
A chave de tudo estava no seu cérebro.
Devia ser por isso que aqueles homenzinhos estavam tentando
arrombar a sua caixa craniana.
Você sabia que era alucinação, mas por via das dúvidas,
quando ouvia falar em dinamite, saltava da cama ligeiro.
Hoje não existe mais isto. As pessoas bebem, bebem e não acontece
nada.
No dia seguinte estão saudáveis, bem-dispostas e fazem até piadas a
respeito.
De vez em quando alguns dos nossos se encontram e se saúdam em
silêncio.
Somos como veteranos de velhas guerras lembrando os companheiros
caídos e o nosso heroísmo anônimo.
Estivemos no inferno e voltamos, inteiros.
Um brinde.
E um Engov.
Alívio
Luis Fernando Veríssimo
Um homem sente que acordou, mas não consegue abrir os olhos. Tenta
se mexer mas descobre está paralisado. Começa a ouvir vozes.
— Coitado...
— Olha a cara. Parece que está dormindo...
Sente cheiro de velas. Será que...?
Outras vozes:
— É. Descansou.
— Ninguém esperava. Tão saudável.
— Coitado...
As vozes parecem conhecidas. Ele começa a entrar em pânico.
Concentra toda a sua força em abrir os olhos. Não consegue.
Tenta mexer uma das mãos. Um dedo! Nada. Meu Deus. Preciso mostrar
que é um engano,
não morri. Vão enterrar um vivo. Ou será que não houve engano? Morri
mesmo.
Estou ouvindo tudo, sentindo tudo, mas estou morto. Isto é horrível, isto
é...
— Um homem tão bom...
— Grande caráter...
— Que marido.
— Vida exemplar...
O homem fica mais aliviado. Pode estar num velório. Mas,
definitivamente, não é o seu.
Texto extraído do livro "A Mãe do Freud", L&PM Editores - Porto
Alegre, 1985, pág. 75.
Gaúcho que é Gaúcho
Luis Fernando Veríssimo
Gaúcho que é Gaúcho não usa camiseta sem manga a não ser para jogar
basquete.
Gaúcho que é Gaúcho não gosta de canapés, de cebolinhas em conserva
ou de
qualquer outra coisa que leve menos de 30 segundos para mastigar e
engolir.
Gaúcho que é Gaúcho não come suflê.
Gaúcho que é Gaúcho - de agora em diante chamado GQEG - não deixa a
sua
mulher mostrar a bunda pra ninguém. Nem em baile de carnaval. GQEG
não mostra
a sua bunda pra ninguém. Só no vestiário, para outros homens, e assim
mesmo,
se olhar por mais de 30 segundos dá briga.
GQEG só vai ao cinema ver filme do Franco Zefirelli quando a mulher
insiste muito,
e passa todo tempo tentando ver as horas no escuro.
GQEG não gosta
de musical, filme com a Jill Claybourgh ou do Ingmar Bergman.
Prefere filmes com o Charles Bronson.
Diz que ator mesmo era o Spencer Tracy e que dos novos,
tirando Schwartzneger, é tudo veado.
GQEG não vai mais a teatro porque também não gosta que mostrem a
bunda à sua mulher.
Se você quer ver um GQEG no momento mais baixo de sua vida, precisa
vê-lo no ballet.
Na saída ele diz que até o porteiro é veado e que se enxergar mais
alguém de malha justa mata.
Se você não sabe se tem um GQEG dentro de você, faça este teste.
Leia esta série de situações. Estude-as, pense, e depois decida como
você reagiria em cada situação.
A resposta dirá o seu coeficiente de GQEG.
Se pensar muito, nem precisa responder: você não é um GQEG. GQEG
não pensa muito!
SITUAÇÃO 1
Você está num restaurante com nome francês. O cardápio é todo escrito
em francês.
Só o preço está em reais, muitos reais.
Você pergunta o que significa o nome de um determinado prato ao
maitre.
Você tem certeza que o maitre está se segurando para não rir da sua
pronúncia.
O maitre levará mais tempo para descrever o prato do que você para
comê-lo,
pois o que vem é uma pasta vagamente marinha em cima de uma torrada
do
tamanho aproximado de uma moeda de um real, embora custe mais de
50.
Você come de um golpe só, pensando no que os operários são obrigados
a comer.
Com inveja. Sua acompanhante pergunta qual é o gosto e você responde
que não deu tempo para saber.
O prato principal vem trocado. Você tem certeza que pediu um "boeuf à
quelque chose"
e o que vem é uma fatia de pato sem qualquer acompanhamento. Só.
Bem que você tinha notado o nome: "Canard Melancolique".
Você a princípio sente pena do pato pela sua solidão, mas muda de idéia
quando tenta cortá-lo.
Ele é um duro, pode agüentar.
Quando vem a conta, você nota que cobraram pelo pato e pelo boeuf que
não veio.
Você:
1.paga assim mesmo para não dar à sua acompanhante a impressão de
que se
preocupa com coisas vulgares como dinheiro, ainda mais o brasileiro;
2.chama, discretamente, o maitre e indica o erro, sorrindo para dar a
entender que,
"merde", "alors", estas coisas acontecem;
3.vira a mesa, quebra uma garrafa de vinho contra a parede e, segurando
o gargalo, grita:
"Eu quero o gerente e é melhor ele vir sozinho!"
SITUAÇÃO 2
Você foi convencido pela sua mulher, namorada ou amiga - se bem que
GQEG não tem
"amigas", quem tem "amigas" é veado - a entrar para um curso de
Sensitivação Oriental.
Você reluta em vestir a malha preta, mas acaba sucumbindo.
O curso é dado por um japonês, provavelmente veado.
Todos sentam num círculo em volta do japonês, na posição de lótus.
Menos você que, está um pouco fora
de forma, pode sentar na posição de arbusto despencado pelo vento.
Durante quinze minutos todos devem fechar os olhos, juntar a ponta dos
dedos e fazer
"Ron", até que se integrem na Grande Corrente Universal que vem do
Tibete,
passa pelas cidades sagradas da Índia e do Oriente Médio e,
estranhamente,
bem em cima do prédio do japonês, antes de voltar para o Oriente.
Uma vez atingido este estágio, todos devem virar para a pessoa ao seu
lado e
estudar seu rosto com as pontas dos dedos, não se surpreendendo se o
japonês
chegar por trás e puxar suas orelhas com força para lembrá-los da
dualidade de todas as coisas.
Durante o "Ron" você faz força, mas não consegue se integrar na grande
corrente universal, embora comece sentir uma sensação
diferente que depois revela-se ser cãibra.
Você:
1.finge que atingiu a integração para não cortar a onda de ninguém;
2.finge que não entendeu bem as instruções, engatinha, fazendo "Ron",
até ao lado daquela grande loura, e na hora de tocar o seu rosto erra
o alvo e agarra os seus seios, recusando-se a soltá-los mesmo que
o japonês quase arranque suas orelhas; ou
3. diz que não sentiu nada, que não vai seguir adiante com aquela
bobagem,
ainda mais de malha preta, e que é tudo coisa de veado.
SITUAÇÃO 3
Você está numa reunião social, daquelas que há lugares de sobra para
sentar mas
todo mundo senta no chão. Você não quis ser diferente, se atirou num
almofadão
colorido e tarde demais descobriu que era a dona da casa.
Sua mulher ou namorada está tendo uma conversa confidencial, de mãos
dadas,
com uma moça que é a cara do Charlton Heston, só que de bigode.
O jantar é à americana e você não tem mais um joelho para colocar o seu
copo
de vinho enquanto usa os outros dois para equilibrar o prato e cortar o
pedaço
de pato, provavelmente o mesmo do restaurante francês, só que algumas
semanas mais velho.
Aí o cabeleireiro de cabelo mechado, ao seu lado oferece:
- Se quiser usar o meu..
- O seu...?
- Joelho.
- Ah...
- Ele está desocupado.
- Mas eu não o conheço.
- Eu apresento. Este é o meu joelho.
- Não. Eu digo, você...
- Eu, hein? Quanta formalidade. Aposto que se eu tivesse oferecendo a
perna toda você ia estar pedindo referências. Ti-au.
Você:
1.resolve entrar no espírito da festa e começa a tirar as calças:
2.leva seu copo de vinho para um canto e fica, entre divertido e irônico,
observando aquele curioso painel humano e organizando um pensamento
sobre
estas sociedades tropicais, que passam da barbárie para a decadência
sem
a etapa intermediária de civilização; ou
3.pega sua mulher ou namorada e dá o fora, não sem antes
derrubar o Charlton Heston com um soco.
ESCORE
Se você escolheu a resposta "1" para todas as situações, não é um
GQEG. Se escolheu a resposta "2", não é um GQEG. E se escolheu a
resposta "3", também não é um GQEG. Um GQEG acha que teste é coisa
de veado.
Profissão para um GQEG é motorista de caminhão. Daqueles que depois
de comer um mocotó com duas Malzibier, dormem na estrada e, se
sentem falta de mulher,
ligam o motor e trepam com o radiador.
No futebol, GQEG é beque central, cabeça de área ou centroavante.
Meio de campo é coisa de veado.
Mulher do amigo de Gaúcho que é Gaúcho é homem. GQEG não tem
amizade colorida,
que é a sacanagem por outros meios. GQEG não tem um relacionamento
adulto,
de confiança mútua, cada um respeitando a liberdade do outro, numa
transa,
assim, extra conjugal, mas assumida, entende?
Que isso é papo de mulher pra dar pra todo mundo.
GQEG acha que o movimento gay é coisa de veado.
GQEG nunca vai a vernissage.
GQEG diz que não tem preconceito, mas que se um dia estivesse na sala
com
todas as cantoras da música popular brasileira, não desencostaria da
parede.
Coisas que você jamais encontrará no bolso de um GQEG: batom neutro
para
lábios ressequidos, pastilhas para refrescar o hálito, o telefone do
Gabeira,
entradas para um espetáculo de mímica.
Coisas que você jamais deve dizer a um GQEG: "ton sur ton", "vamos
ao ballet?", "prove estas cebolinhas".
Coisas que você jamais ouvirá um GQEG dizer: "assumir", "amei", "minha
porção mulher",
"acho que o bordeau fica melhor no sofá e a ráfia em cima do pufe".
GQEG acha que ainda há tempo de salvar o Brasil e já conseguiu a
adesão de todos os Homens
que são Homens que restam no país para uma campanha de regeneração
do macho brasileiro.
Os quatro só não têm se reunido muito seguidamente porque pode
parecer coisa de veado.
O texto acima, foi publicado nos livros "A mulher do Silva" e em "
As mentiras que os homens contam" sob o título "Homem que é homem".
Incidente na Casa do Ferreiro
Luis Fernando Veríssimo
Pela janela vê-se uma floresta com macacos. Cada um no seu galho.
Dois ou três olham o rabo do vizinho, mas a maioria cuida do seu. Há
também um estranho moinho, movido por águas passadas. Pelo mato,
aparentemente perdido — não tem cachorro — passa Maomé a caminho
da montanha,
para evitar um terremoto. Dentro da casa, o filho do enforcado
e o ferreiro tomam chá.
Ferreiro — Nem só de pão vive o homem.
Filho do enforcado — Comigo é pão, pão, queijo, queijo.
Ferreiro — Um sanduíche! Você está com a faca e o queijo na mão.
Cuidado.
Filho do enforcado — Por quê?
Ferreiro — É uma faca de dois gumes.
(Entra o cego).
Cego — Eu não quero ver! Eu não quero ver!
Ferreiro — Tirem esse cego daqui!
(Entra o guarda com o mentiroso).
Guarda (ofegante) — Peguei o mentiroso, mas o coxo fugiu.
Cego — Eu não quero ver!
(Entra o vendedor de pombas com uma pomba na mão e duas voando).
Filho do enforcado (interessado) — Quanto cada pomba?
Vendedor de pombas — Esta na mão é 50. As duas voando eu faço por 60
o par.
Cego (caminhando na direção do vendedor de pombas)
— Não me mostra que eu não quero ver.
(O cego se choca com o vendedor de pombas, que larga a pomba que
tinha na mão.
Agora são três pombas voando sob o telhado de vidro da casa).
Ferreiro — Esse cego está cada vez pior!
Guarda — Eu vou atrás do coxo. Cuidem do mentiroso por mim. Amarrem
com uma corda.
Filho do enforcado (com raiva) — Na minha casa você não diria isso!
(O guarda fica confuso, mas resolve não responder.
Sai pela porta e volta em seguida).
Guarda (para o ferreiro) — Tem um pobre aí fora que quer falar com
você.
Algo sobre uma esmola muito grande. Parece desconfiado.
Ferreiro — É a história. Quem dá aos pobres empresta a Deus,
mas acho que exagerei.
(Entra o pobre).
Pobre (para o ferreiro) — Olha aqui, doutor. Essa esmola que o senhor
me deu.
O que é que o senhor está querendo? Não sei não. Dá para desconfiar...
Ferreiro — Está bem. Deixa a esmola e pega uma pomba.
Cego — Essa eu nem quero ver...
(Entra o mercador).
Ferreiro (para o mercador) — Foi bom você chegar. Me ajuda a amarrar
o mentiroso com uma...
(Olha para o filho do enforcado). A amarrar o mentiroso.
Mercador (com a mão atrás da orelha) — Hein?
Cego — Eu não quero ver!
Mercador — O quê?
Pobre — Consegui! Peguei uma pomba!
Cego — Não me mostra.
Mercador — Como?
Pobre — Agora é só arranjar um espeto de ferro que eu faço um galeto.
Mercador — Hein?
Ferreiro (perdendo a paciência) — Me dêem uma corda.
(O filho do enforcado vai embora, furioso).
Pobre (para o ferreiro) — Me arranja um espeto de ferro?
Ferreiro — Nesta casa só tem espeto de pau.
(Uma pedra fura o telhado de vidro, obviamente atirada pelo filho do
enforcado,
e pega na perna do mentiroso.
O mentiroso sai mancando pela porta enquanto as duas pombas
voam pelo buraco no telhado).
Mentiroso (antes de sair) — Agora quero ver aquele guarda me pegar!
(Entra o último, de tapa-olho, pela porta de trás).
Ferreiro — Como é que você entrou aqui?
Último — Arrombei a porta.
Ferreiro — Vou ter que arranjar uma tranca.
De pau, claro.
Último — Vim avisar que já é verão.
Vi não uma mas duas andorinhas voando aí fora.
Mercador — Hein?
Ferreiro — Não era andorinha, era pomba. E das baratas.
Pobre (para o último) — Ei, você aí de um olho só...
Cego (prostrando-se ao chão por engano na frente do mercador) - Meu
rei.
Mercador — O quê?
Ferreiro — Chega! Chega! Todos para fora!
A porta da rua é serventia da casa!
(Todos se precipitam para a porta, menos o cego, que vai de encontro à
parede.
Mas o último protesta).
Último — Parem! Eu serei o primeiro.
(Todos saem com o último na frente. O cego vai atrás).
Cego — Meu rei! Meu rei!
Texto extraído do livro “O Gigolô das Palavras”, L&PM Editores – Porto
Alegre, 1982, pág. 37.
O Desafio
Luis Fernando Veríssimo
Um publicitário morreu e, como era da área de atendimento e mau para o
pessoal da criação,
foi para o inferno. O Diabo, que todos os dias recebe um print-out com
nome e profissão d
e todos os admitidos na data anterior, mandou que o publicitário fosse
tirado da grelha e
levado ao seu escritório. Queria fazer-lhe uma proposta.
Se ele aceitasse sua carga de castigos diminuiria e ele teria regalias. Ar-
condicionado, etc.
— Qual é a proposta?
— Temos que melhorar a imagem do inferno — disse o Diabo. — Falam
as piores coisas do inferno.
Queremos mudar isso.
— Mas o que é que se pode dizer de bom disto aqui? Nada.
— Por isso é que precisamos de publicidade.
O publicitário topou. Era um desafio. E as regalias eram atraentes.
Quis saber algumas coisas que diziam do Inferno e que mais irritavam o
Diabo.
— Bem. Dizem que aqui todos os cozinheiros são ingleses, todos os
garçons são italianos,
todos os motoristas de táxi são franceses e todos os humoristas alemães.
— E é verdade?
— É.
— Hmmm — disse o publicitário. — Uma das técnicas que podemos usar
é
transformar desvantagem em vantagem. Pegar a coisa pelo outro lado.
Sua cabeça já estava funcionando. Continuou:
— Os cozinheiros ingleses, por exemplo. Podemos dizer que a comida
é tão ruim que é o local ideal para emagrecer. Além de tudo, já é uma
sauna.
— Bom, bom.
— Garçons italianos. Servem a mesa pessimamente. Mas cantam,
conversam,
brigam. Isto é, ajudam a distrair a atenção da comida inglesa.
— Ótimo.
— Motoristas franceses. São mal-humorados e grosseiros.
Isso desestimula o uso do táxi e promove as caminhadas. É econômico e
saudável.
Também provoca a indignação generalizada, une a população e combate a
apatia.
— Muito bom!
— Uma situação que não seria amenizada pelos humoristas.
Os humoristas, como se sabe, não têm qualquer função social. Eles só
servem para
desmobilizar as pessoas, criar um clima de lassidão e deboche, quando
não
de perigosa alienação. Isto não acontece com os humoristas alemães, cuja
falta de graça
só aumenta a revolta geral, mantendo a população ativa e séria.
O alívio é dado pelos garçons italianos.
— Perfeito! — exclamou o Diabo. — Já vi que acertei.
Quando podemos começar a campanha?
— Espere um pouquinho — disse o publicitário. — Temos que combinar
algumas coisas, antes.
Por exemplo: a verba.
— Isto já não é comigo — disse o Diabo. — É com o pessoal da área
econômica.
Você pode tratar com eles. E aproveitar para acertar também o seu
contrato.
Com isto o Diabo apertou um botão intercomunicador vermelho que
havia sobre a sua mesa e disse:
— Dona Henriqueta, diga para o
Silva vir até a minha sala.
— Silva? — estranhou o publicitário.
— Nosso gerente financeiro. Toda a nossa economia
é dirigida por brasileiros.
Aí o publicitário suspirou, levantou e disse:
— Me devolve pra grelha...
Texto extraído do livro "A Mãe do Freud", L&PM Editores, Porto Alegre,
1985, pág. 93.
O Popular
Luis Fernando Veríssimo
Um número recente da revista Veja trazia fotografias sensacionais
das (como diria um inglês) "incomodações" na Irlanda do Norte.
Todas eram de ganhar prêmio, mas uma me impressionou especialmente.
Nela aparecia a versão irlandesa do Popular.
É uma figura que sempre me intrigou. A foto da Veja mostra um soldado
inglês espichado
na calçada, protegido pela quina de um prédio, o rosto tapado por uma
máscara de gás,
fazendo pontaria contra um franco-atirador local. Atrás dele, agachados
no vão de uma porta,
dois ou três dos seus companheiros, também em plena parafernália de
guerra,
esperam tensamente para entrar no tiroteio.
Há fumaça por todos os lados, um clima de medo e drama.
Mas ao lado do soldado que atira, em primeiro plano, está o Popular.
De pé, olhando com algum interesse o que se passa, com as mãos nos
bolsos e
um embrulho embaixo do braço. O Popular foi no armazém e na volta
parou para ver a guerra.
Sempre pensei que o Popular fosse uma figura exclusivamente brasileira.
Nas nossas incomodações políticas, no tempo em que ainda havia política
no Brasil,
o Popular não perdia uma. Os jornais mostravam tanques na Cinelândia
protegidos por soldados
de baioneta calada e lá estava o Popular, com um embrulho embaixo do
braço,
examinando as correias de um dos tanques. Pancadaria na Avenida.
Corria polícia,
corria manifestante, corria todo mundo, menos o Popular. O Popular
assistia.
Cheguei a imaginar, certa vez, uma série de cartuns em que o Popular
apareceria assistindo ao Descobrimento do Brasil, à Primeira Missa, ao
Grito da Independência,
à Proclamação da República... Sempre com seu embrulho embaixo do
braço.
E de camisa esporte clara para fora das calças (o Popular irlandês veste
terno e
sobretudo contra o frio, o Popular tropical é muito mais Popular).
Não se deve confundir o Popular com o Transeunte, também conhecido
como o Passante.
O Transeunte ou Passante às vezes leva uma bala perdida, o Popular
nunca.
O Transeunte às vezes vai preso por engano, o Popular é o que fica
assistindo à sua prisão.
O Transeunte, não raro, se compromete com os acontecimentos.
Aplaude o visitante ilustre que passa, por exemplo. O Popular fica com as
mãos
no bolso e quase sempre presta mais atenção ao motociclo dos
batedores do que à figura ilustre.
O Transeunte pode se entusiasmar momentaneamente
com uma frase de comício ou um drama na rua, e aí o Popular
é o que fica olhando o Transeunte.
O Popular não tem opinião sobre as coisas.
Quando o rádio ou a televisão resolvem ouvir "a opinião de um popular"
na rua, sempre se enganam.
O Popular nunca é o entrevistado, é o sujeito que está atrás
do entrevistado, olhando para a câmara.
O Popular não merece nem os méritos nem a calhordice que a imprensa
lhe atribui.
Alguém que é "socorrido por populares", outro, menos feliz, que é
"linchado por populares"... Engano. Onde há um bando de populares não
há o Popular.
O Popular é a antimultidão. Sua única virtude é a sua singularidade.
E um certo ceticismo inconsciente diante da História e das coisas.
Não é que o Popular desmereça o Poder e os grandes lances da
Humanidade, é que ele tem
uma fatal curiosidade pelo detalhe supérfluo, um fascínio irresistível pelo
insignificante.
Nas revoluções, o que atrai o Popular é a estranha postura de um soldado
deitado no chão,
o mecanismo de um tanque, as lentes de uma câmara.
O Popular é uma figura tipicamente urbana. Não tem domicílio certo.
Seu habitat natural é a margem dos acontecimentos. E -- este é o seu
maior mistério, a chave da sua existência -- ninguém jamais conseguiu
descobrir o
que o Popular leva naquele embrulho.
E tem mais. O dia que pegarem um Popular para desvendarem o mistério,
será inútil.
Vão se enganar outra vez. O Popular verdadeiro estará atrás do preso,
assistindo tudo.
Texto extraído do livro "O Gigolô das Palavras", L&PM Editores - Porto
Alegre, 1982.
Os Moralistas
Luis Fernando Veríssimo
— Você pensou bem no que vai fazer, Paulo?
— Pensei. Já estou decidido. Agora não volto atrás.
— Olhe lá, hein, rapaz...
Paulo está ao mesmo tempo comovido e surpreso com os três amigos.
Assim que souberam do seu divórcio iminente, correram para visitá-lo no
hotel.
A solidariedade lhe faz bem. Mas não entende aquela insistência deles em
dissuadi-lo.
Afinal, todos sabiam que ele não se acertava com a mulher.
— Pense um pouco mais, Paulo. Reflita. Essas decisões súbitas...
— Mas que súbitas? Estamos praticamente separados há um ano!
— Dê outra chance ao seu casamento, Paulo.
— A Margarida é uma ótima mulher.
— Espera um pouquinho. Você mesmo deixou de freqüentar
nossa casa por causa da Margarida.
Depois que ela chamou vocês de bêbados e expulsou todo mundo.
— E fez muito bem. Nós estávamos bêbados e tínhamos que ser
expulsos.
— Outra coisa, Paulo. O divórcio. Sei lá.
— Eu não entendo mais nada. Você sempre defendeu o divórcio!
— É. Mas quando acontece com um amigo...
— Olha, Paulo. Eu não sou moralista. Mas acho a família uma coisa
importantíssima.
Acho que a família merece qualquer sacrifício.
— Pense nas crianças, Paulo. No trauma.
— Mas nós não temos filhos!
— Nos filhos dos outros, então. No mau exemplo.
— Mas isto é um absurdo! Vocês estão falando como se fosse o fim do
mundo.
Hoje, o divórcio é uma coisa comum. Não vai mudar nada.
— Como, não muda nada?
— Muda tudo!
— Você não sabe o que está dizendo, Paulo! Muda tudo.
— Muda o quê?
— Bom, pra começar, você não vai poder mais freqüentar as nossas
casas.
— As mulheres não vão tolerar.
— Você se transformará num pária social, Paulo.
— O quê?!
— Fora de brincadeira. Um reprobo.
— Puxa. Eu nunca pensei que vocês...
— Pense bem, Paulo. Dê tempo ao tempo.
— Deixe pra decidir depois. Passado o verão.
— Reflita, Paulo. É uma decisão seriíssima. Deixe para mais tarde.
— Está bem. Se vocês insistem...
Na saída, os três amigos conversam:
— Será que ele se convenceu?
— Acho que sim. Pelo menos vai adiar.
— E no solteiros contra casados da praia, este ano, ainda teremos ele no
gol.
— Também, a idéia dele. Largar o gol dos casados logo agora. Em cima
da hora.
Quando não dava mais para arranjar substituto.
— Os casados nunca terão um goleiro como ele.
— Se insistirmos bastante, ele desiste definitivamente do divórcio.
— Vai agüentar a Margarida pelo resto da vida.
— Pelo time dos casados, qualquer sacrifício serve.
— Me diz uma coisa. Como divorciado,
ele podia jogar no time dos solteiros?
— Podia.
— Impensável.
— É.
— Outra coisa.
— O quê?
— Não é reprobo. É réprobo. Acento no "e".
— Mas funcionou, não funcionou?
Texto extraído do livro "As Mentiras que os Homens Contam"
, Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2000, pág. 41.
Povo
Luis Fernando Veríssimo
— Geneci...
— Senhora?
— Preciso falar com você.
— O que foi? O almoço não estava bom?
— O almoço estava ótimo. Não é isso. Precisamos conversar.
— Aqui na cozinha?
— Aqui mesmo. O seu patrão não pode ouvir.
— Sim, senhora.
— Você...
— Foi o copo que eu quebrei?
— Quer ficar quieta e me escutar?
— Sim, senhora.
— Não foi o copo. Você vai sair na escola, certo?
— Vou, sim senhora. Mas se a senhora quiser que eu venha na Terça...
— Não é isso, Geneci!
— Desculpe.
— É que eu... Geneci, eu queria sair na sua escola.
— Mas...
— Ou fazer alguma coisa. Qualquer coisa. Não agüento ficar fora do
Carnaval.
— Mas...
— Vocês não têm, sei lá, uma ala das patroas? Qualquer coisa.
— Se a senhora tivesse me falado antes...
— Eu sei. Agora é tarde. Para a fantasia e tudo o mais.
Mas eu improviso uma baiana.
Deusa grega, que é só um lençol.
— Não sei...
— Saio na bateria. Empurrando alegoria.
— Olhe que não é fácil...
— Eu sei. Mas eu quero participar. Eu até sambo direitinho. Você nunca
me viu sambar?
Nos bailes do clube, por exemplo. Toca um samba e lá vou eu.
Até acho que tenho um pé na cozinha. Quer dizer. Desculpe.
— Tudo bem.
— Eu também sou povo, Geneci! Quando vejo uma escola passar, fico
toda arrepiada.
— Mas a senhora pode assistir.
— Mas eu quero participar, você não entende? No meio da massa.
Sentir o que o povo sente. Vibrar, cantar, pular, suar.
— Olhe...
— Por que só vocês podem ser povo? Eu também tenho direito.
— Não sei...
— Se precisar pagar, eu pago.
— Não é isso. É que...
— Está bem. Olhe aqui. Não preciso nem sair na avenida. Posso
costurar.
Ajudar a organizar o pessoal. Ajudar no transporte. O Alfa Romeo está aí
mesmo.
Tem a Caravan, se o patrão não der falta. É a emoção de participar
que me interessa, entende? Poder dizer "a minha escola...".
Eu teria assunto para o resto do ano. Minhas amigas ficariam loucas de
inveja.
Alguns iam torcer o nariz, claro. Mas eu não sou assim. Eu sou legal.
Eu não sou legal com você, Geneci? Sempre tratei você de igual para
igual.
— Tratou, sim senhora.
— Meu Deus, a ama-de-leite da minha mãe era preta!
— Sim, senhora.
— Geneci, é um favor que você me faz. Em nome da nossa velha
amizade.
Faço qualquer coisa pela nossa escola, Geneci.
— Bom, se a senhora está mesmo disposta...
— Qualquer coisa, Geneci.
— É que o Rudinei e Fátima Araci não têm com quem ficar.
— Quem?
— Minhas crianças.
— Ah.
— Se a senhora pudesse ficar com eles enquanto eu desfilo...
— Certo. Bom. Vou pensar. Depois a gente vê.
— Eu posso trazer elas e...
— Já disse que vou pensar, Geneci. Sirva o cafezinho na sala.
"Extraído do livro "A mãe do Freud", LP&M Editores Ltda. - Porto
Alegre, 1985, pág. 55.
Terrorismo
Luis Fernando Veríssimo
Betty insistia, queria conhecer a Europa, e Bob resistia. Pense só, disse
Betty,
nós num bom restaurante francês, você dando um dinheiro ao maître e
pedidndo a melhor mesa, e nós comendo aquela comida maravilhosa.
Bob fez uma careta de desgosto. Numa frase Betty incluíra tudo que o
revoltava na
idéia de ir à Europa: lugares estranhos onde falavam línguas estranhas e
você pagava
muito mais para comer coisas estranhas. E maîtres franceses.
Bob ouvira falar de maîtres franceses. Sabia que eles gostavam de
humilhar turistas americanos.
Eles se reuniam depois do trabalho, os patifes, soltavam
a gravatinha preta, desabotoavam a camisa engomada e trocavam
histórias cruéis.
"Hoje fiz um americano chorar...". E davam gargalhadas. Ele sabia.
Ou superiores risadinhas francesas. Pois não o humilhariam, pensou Bob,
desembarcando em Paris, já que Betty tanto insistiu que o carregou para
a
Europa. Não me humilharão. Não com o que eu carrego no bolso,
escondido
da Betty. Está certo, só usarei em autodefesa.
Mas eles que não tentem nada comigo, pensou Bob.
Na noite seguinte Betty e Bob foram ao seu
primeiro restaurante em Paris. Quando soube que eles não tinham
reserva o maître
começou a revirar os olhos como quem vai dizer "Ah, les innocents!",
mas foi interrompido por uma nota de cem dólares estrategicamente
colocada
na sua mão por Bob e lembrou-se que alguém cancelara a reserva e
havia, s
im, uma mesa. Num canto escuro e pouco freqüentado, principalmente
por garçons.
Betty e Bob esforçaram-se para ler o menu, prejudicados pela pouca luz
e pelo fato do menu ser em francês e, apesar de repetidos sinais de Bob
-- Betty conseguiu dissuadi-lo de bater com
a faca no lado do copo vazio --, ninguém apareceu para ajudá-los ou
tomar
seu pedido ou apenas saber como estavam passando.
Finalmente Bob resolveu agir. Olhou em volta.
Na mesa mais próxima um casal de meia-idade, que chegara depois
deles e já estava no meio da refeição, comia pequenas aves
aparentemente
sacrificadas na infância e trazidas à mesa em meio a delicados
arranjos de flores de nabo. Bob levantou-se da mesa, ao mesmo tempo
que tirava
o pequeno frasco do bolso e, rapidamente, seqüestrou o prato com o
pequeno
pássaro da frente do homem de meia-idade, segurando-o no ar com uma
mão e ameaçando derramar nele o conteúdo
do frasco que segurava na outra.
-- Ninguém se mexa! -- disse Bob.
Espanto e paralisia no restaurante.
-- Isto é ketchup -- anunciou Bob.
-- Agh!
Bob gostou de ver que o som de repulsa escapara dos lábio do maître.
Continuou:
-- Se minha mulher e eu não começarmos a ser servidos no
próximo minuto, esse passarinho inocente será
sepultado em ketchup. E não pensem que eu não sei usá-lo.
-- Calma! -- pediu o maître, ao mesmo tempo que instruía uma
equipe, com gestos, a dar atenção à mesa
dos americanos. -- O que vocês querem?
-- Para começar, um cardápio em inglês.
-- Impossível.
Bob aumentou a inclinação do frasco.
-- Não!
O grito foi do chef, que aparecera da cozinha para ver o que estava
acontecendo.
-- Façam tudo que ele pedir! -- ordenou o chef quase aos prantos.
Bob sorria triunfalmente.
Luis Fernando Veríssimo morou durante oito meses em Paris,
a exemplo do que já havia feito em New York e Roma. "Traçando Paris",
editado pela Artes e Ofícios - São Paulo,1997
O casamento
Luis Fernando Verissimo
— Eu quero ter um casamento tradicional, papai.
— Sim, minha filha.
— Exatamente como você!
— Ótimo.
— Que música tocaram no casamento de vocês?
— Não tenho certeza, mas acho que era Mendelssohn. Ou Mendelssohn é
o d
a Marcha Fúnebre? Não, era Mendelssohn mesmo.
— Mendelssohn, Mendelssohn...
Acho que não conheço. Canta alguma coisa dele ai.
— Ah, não posso, minha filha. Era o que o órgão tocava em
todos os casamentos, no meu tempo.
— O nosso não vai ter órgão, é claro.
— Ah, não?
— Não. Um amigo do Varum tem um sintetizador eletrônico e ele vai
tocar na cerimônia.
O Padre Tuco já deixou. Só que esse Mendelssohn, não sei,não...
— É, acho que no sintetizador não fica bem...
— Quem sabe alguma coisa do Queen...
— Quem?
— O Queen.
— Não é a Queen?
— Não. O Queen. E o nome de um conjunto, papai.
— Ah, certo. O Queen. No sintetizador.
— Acho que vai ser o maior barato!
— Só o síntetizador ou...
— Não. Claro que precisa ter uma guitarra elétrica, um baixo elétrico...
— Claro. Quer dizer, tudo bem tradicional.
— Isso.
*
— Eu sei que não é da minha conta. Afinal, eu sou só o pai da noiva.
Um nada. Na recepção vão me confundir com um garçom.
Se ainda me derem gorjeta, tudo bem. Mas alguém pode me dizer por que
chamam o nosso futuro genro de Varum?
— Eu sabia...
— O quê?
— Que você já ia começar a implicar com ele.
— Eu não estou implicando. Eu gosto dele. Eu até o beijaria na testa se
ele
algum dia tirasse aquele capacete de motoqueiro.
— Eles nem casaram e você já está implicando.
— Mas que implicância? É um ótimo rapaz. Tem uma boa cabeça.
Pelo menos eu imagino que seja cabeça o que ele tem debaixo do
capacete.
— É um belo rapaz.
— E eu não sei? Há quase um ano que ele freqüenta a nossa casa
diariamente.
E como se fosse um filho. Eu às vezes fico esperando
que ele me peça uma mesada. Um belo rapaz. Mas por que Varum?
— E o apelido e pronto.
— Ah, então é isso. Você explicou tudo. Obrigado.
— Quanto mais se aproxima o dia do casamento, mais intratável você
fica.
— Desculpe. Eu sou apenas o pai. Um inseto. Me esmigalha. Eu mereço.
*
— Aí xará!
— Ôi, Varum, como vai? A sua noiva está se arrumando. Ela já desce.
Senta aí um pouquinho. Tira o capacete...
— Essa noivinha...
— Vocês vão ao cinema?
— Ela não lhe disse? Nós vamos acampar.
— Acampar? Só vocês dois?
— É. Qual é o galho?
— Não. E que... Sei lá.
— Já sei o que você tá pensando, cara. Saquei.
— É! Você sabe como é...
— Saquei. Você está pensando que só nós dois, no meio do mato, pode
pintar um lance.
— No mínimo isso. Um lance. Até dois.
— Mas qualé, xará. Não tem disso não. Está em falta. Ôi,gatona!
— Oi, Varum. O que é que você e papai estão conversando?
— Não, o velho aí tá preocupado que nós dois, acampados pode
pintar um lance. Eu já disse que não tem disso.
— Ô, papai. Não tem perigo nenhum. Nem cobra. E qualquer coisa
o Varum me defende. Eu Jane, ele Tarzan.
— Só não dou o meu grito para proteger os cristais.
— Vamos?
— Vamlá?
— Mas... Vocês vão acampar de motocicleta?
— De motoca, cara. Vá-rum, vá-rum.
*
— Descobri por que ele se chama Varum.
— O quê? Você quer alguma coisa?
— Disse que descobri por que ele se chama Varum.
— Você me acordou só para dizer isto?
— Você estava dormindo?
— É o que eu costumo fazer às três da manhã, todos os dias. Você não
dormiu?
— Ainda não. Sabe como é que ele chama ela? Gatona.
Por um estranho processo de degeneração genética, eu sou pai de uma
gatona.
Varum e Gatona, a dupla dinâmica, está neste momento, no meio do mato.
— Então é isso que está preocupando você?
— E não é para preocupar? Você também não devia estar dormindo.
A gatona é sua também.
— Mas não tem perigo nenhum!
— Como, não tem perigo? Um homem e uma mulher,
dentro de uma tenda, no meio do mato?
— O que é que pode acontecer?
— Se você já esqueceu, é melhor ir dormir mesmo.
— Não tem perigo nenhum. O máximo que pode acontecer é entrar um
sapo na tenda.
— Ou você está falando em linguagem figurada ou eu é que estou ficando
louco.
— Vai dormir.
— Gatona. Minha própria filha...
— Você também tinha um apelido pra mim, durante o nosso noivado.
— Eu prefiro não ouvir.
— Você me chamava de Formosura. Pensando bem, você também tinha
um apelido.
— Por favor. Reminiscências não. Comi faz pouco.
— Kid Gordini. Você não se lembra? Você e o seu Gordini envenenado.
— Tão envenenado que morreu, nas minhas mãos. Um dia levei num
mecânico
e disse que a bateria estava ruim.
Ele disse que a bateria estava boa, o resto do carro é que tinha que ser
trocado.
— Viu só? E você se queixa do Varum. Kid Gordini!
— Mas eu nunca levei você para o mato no meu Gordini.
— Não levou porque meu pai matava você.
— Hmmmm.
— “Hmmmm” o quê?
— Você me deu uma idéia. Assassinato...
— Não seja bobo.
— Um golpe bem aplicado... Na cabeça não porque ela
está sempre bem protegida. Sim. Kid Gordini ataca outra vez...
— O que você tem é ciúme.
Nisso tudo, tem uma coisa que me preocupa acima
de tudo que é o que me tira o sono.
— O quê?
— Será que ele tira o capacete para dormir?
*
— Bom dia.
— Bom dia.
— Eu sou o pai da noiva. Da Maria Helena.
— Maria Helena... Ah, a Gatona!
— Essa.
— Que prazer. Alguma dúvida sobre a cerimônia?
— Não, Padre Osni. E que...
— Pode me chamar de Tuco. E como me chamam.
— Não, Padre Tuco. E que a Ga... A Maria Helena me disse que ela
pretende entrar dançando na igreja. O conjunto toca
um rock e a noiva entra dançando, é isso?
— É. Um rock suave. Não é rock pauleira.
— Ah, não é rock pauleira. Sei. Bom, isto muda tudo.
— Muitos jovens estão fazendo isto. A noiva entra dançando e na saída
os dois saem dançando. O senhor sabe, a Igreja hoje está diferente.
É isto que está atraindo os jovens de volta à Igreja. Temos que evoluir
com os tempos.
— Claro. Mas, Padre Osni...
— Tuco.
— Padre Tuco, tem uma coisa. O pai da noiva também tem que dançar?
— Bom, isto depende do senhor. O senhor dança?
— Agora não, obrigado. Quer dizer, dançava. Até ganhei concurso de
chá-chá-chá.
Acho que você ainda não era nascido. Mas estou meio fora de forma e...
— Ensaie, ensaie.
— Certo.
— Peça para a Gatona ensaiar com o senhor.
— Claro.
— Não é rock pauleira.
— Certo. Um roquezinho suave.
Quem sabe um chá-chá-chá? Não. Esquece, esquece.
*
— Você está nervoso, papai?
— Um pouco. E se a gente adiasse o casamento? Eu preciso uma
semana a mais de ensaio. Só uma semana.
— Eu estou bonita?
— Linda. Quando estiver pronta vai ficar uma beleza.
— Mas eu estou pronta.
— Você vai se casar assim?
— Você não gosta?
— É... diferente, né? Essa coroa de flores, os pés descalços...
— Não é um barato?
*
— Um brinde, xará!
— Um brinde, Varum.
— Você estava um estouro entrando naquela igreja.
Parecia um bailarino profissional.
— Pois é. Improvisei uns passos. Acho que me sai bem.
— Muito bem!
— Não sei se você sabe que eu fui o rei do chá-chá-chá.
— Do quê?
— Chá-chá-chá. Uma dança que havia. Você ainda não era nascido.
— Bota tempo nisso.
— Eu tinha um Gordini envenenado. Tão envenenado que morreu. Um dia
levei no...
— Tinha um quê?
— Gordini. Você sabe. Um carro. Varum, varum.
— Ah.
— Esquece.
— Um brinde ao sogro bailarino.
— Um brinde. Eu sei que vocês vão ser muito felizes.
— O que é que você achou da minha beca, cara?
— Sensacional. Nunca tinha visto um noivo de macacão vermelho, antes.
Gostei. Confesso que quando entrei na igreja e vi você lá no altar, de
capacete...
— Vacilou.
— Vacilei. Mas aí vi que o Padre Tuco estava de boné e pensei, tudo
bem.
Temos que evoluir com os tempos. E ataquei meu rock suave.
Texto extraído do livro "O analista de Bagé", L&PM Editores – Porto
Alegre, 1981, pág. 13
O Analista de Bagé
Luis Fernando Verissimo
Certas cidades não conseguem se livrar da reputação injusta que,
por alguma razão, possuem. Algumas das pessoas mais sensíveis e
menos grossas que eu conheço vem de Bagé, assim como algumas das
menos
afetadas são de Pelotas. Mas não adianta. Estas histórias do psicanalista
de Bagé
são provavelmente apócrifas (como diria o próprio analista de Bagé,
história apócrifa é mentira bem educada)
mas, pensando bem, ele não poderia vir de outro lugar.
Pues, diz que o divã no consultório do analista de Bagé é forrado com um
pelego.
Ele recebe os pacientes de bombacha e pé no chão.
— Buenas. Vá entrando e se abanque, índio velho.
— O senhor quer que eu deite logo no divã?
— Bom, se o amigo quiser dançar uma marca, antes, esteja a gosto.
Mas eu prefiro ver o vivente estendido e charlando que nem china da
fronteira,
pra não perder tempo nem dinheiro.
— Certo, certo. Eu...
— Aceita um mate?
— Um quê? Ah, não. Obrigado.
— Pos desembucha.
— Antes, eu queria saber. O senhor é freudiano?
— Sou e sustento. Mais ortodoxo que reclame de xarope.
— Certo. Bem. Acho que o meu problema é com a minha mãe
— Outro.
— Outro?
— Complexo de Édipo. Dá mais que pereba em moleque.
— E o senhor acha...
— Eu acho uma pôca vergonha.
— Mas...
— Vai te metê na zona e deixa a velha em paz, tchê!
~//~
Contam que outra vez um casal pediu para consultar, juntos, o analista de
Bagé.
Ele, a princípio, não achou muito ortodoxo.
— Quem gosta de aglomeramento é mosca em bicheira... Mas acabou
concordando.
— Se abanquem, se abanquem no más. Mas que parelha buenacha, tchê! .
Qual é o causo?
— Bem — disse o home — é que nós tivemos um desentendimento...
— Mas tu também é um bagual. Tu não sabe que em mulher
e cavalo novo não se mete a espora?
— Eu não meti a espora. Não é, meu bem?
— Não fala comigo!
— Mas essa aí tá mais nervosa que gato em dia de faxina.
— Ela tem um problema de carência afetiva...
— Eu não sou de muita frescura. Lá de onde eu venho,
carência afetiva é falta de homem.
— Nós estamos justamente atravessando uma crise de relacionamento
porque ela tem procurado experiências extraconjugais e...
— Epa. Opa. Quer dizer que a negra velha é que nem luva de maquinista?
Tão folgada que qualquer um bota a mão?
— Nós somos pessoas modernas.
Ela está tentando encontrar o verdadeiro eu, entende?
— Ela tá procurando o verdadeiro tu nos outros?
— O verdadeiro eu, não. O verdadeiro eu dela.
— Mas isto tá ficando mais enrolado que lingüiça de venda. Te deita no
pelego.
— Eu?
— Ela. Tu espera na salinha.
Texto extraído do livro "O gigolô das palavras", L&PM Editores – Porto
Alegre, 1982, pág. 78.
Clic
Luis Fernando Verissimo
Cidadão se descuidou e roubaram seu celular. Como era um executivo e
não
sabia mais viver sem celular, ficou furioso. Deu parte do roubo,
depois teve uma idéia. Ligou para o número do telefone. Atendeu uma
mulher.
— Aloa.
— Quem fala?
— Com quem quer falar?
— O dono desse telefone.
— Ele não pode atender.
— Quer chamá-lo, por favor?
— Ele esta no banheiro. Eu posso anotar o recado?
— Bate na porta e chama esse vagabundo agora.
Clic. A mulher desligou. O cidadão controlou-se. Ligou de novo.
— Aloa.
— Escute. Desculpe o jeito que eu falei antes.
Eu preciso falar com ele, viu? É urgente.
— Ele já vai sair do banheiro.
— Você é a...
— Uma amiga.
— Como é seu nome?
— Quem quer saber?
O cidadão inventou um nome.
— Taborda. (Por que Taborda, meu Deus?) Sou primo dele.
— Primo do Amleto?
Amleto. O safado já tinha um nome.
— É. De Quaraí.
— Eu não sabia que o Amleto tinha um primo de Quaraí.
— Pois é.
— Carol.
— Hein?
— Meu nome. É Carol.
— Ah. Vocês são...
— Não, não. Nos conhecemos há pouco.
— Escute Carol. Eu trouxe uma encomenda para o Amleto.
De Quaraí. Uma pessegada, mas não me lembro do endereço.
— Eu também não sei o endereço dele.
— Mas vocês...
— Nós estamos num motel. Este telefone é celular.
— Ah.
— Vem cá. Como você sabia o número do telefone dele? Ele recém-
comprou.
— Ele disse que comprou?
— Por que?
O cidadão não se conteve.
— Porque ele não comprou, não. Ele roubou. Está entendendo? Roubou.
De mim!
— Não acredito.
— Ah, não acredita? Então pergunta pra ele. Bate na porta do banheiro e
pergunta.
— O Amleto não roubaria um telefone do próprio primo.
E Carol desligou de novo.
O cidadão deixou passar um tempo, enquanto se recuperava. Depois
ligou.
— Aloa.
— Carol, é o Tobias.
— Quem?
— O Taborda. Por favor, chame o Amleto.
— Ele continua no banheiro.
— Em que motel vocês estão?
— Por que?
— Carol, você parece ser uma boa moça. Eu sei que você gosta do
Amleto...
— Recém nos conhecemos.
— Mas você simpatizou. Estou certo? Você não quer acreditar que ele
seja um ladrão. Mas ele é, Carol. Enfrente a realidade.
O Amleto pode Ter muitas qualidades, sei lá. Há quanto tempo vocês
saem juntos?
— Esta é a primeira vez.
— Vocês nunca tinham se visto antes?
— Já, já. Mas, assim, só conversa.
— E você nem sabe o endereço dele, Carol. Na verdade você não sabe
nada sobre ele.
Não sabia que ele é de Quaraí.
— Pensei que fosse goiano.
— Ai esta, Carol. Isso diz tudo. Um cara que se faz passar por goiano...
— Não, não. Eu é que pensei.
— Carol, ele ainda está no banheiro?
— Está.
— Então sai daí, Carol. Pegue as suas coisas e saia.
Esse negocio pode acabar mal. Você pode ser envolvida. — Saia daí
enquanto é tempo, Carol!
— Mas...
— Eu sei. Você não precisa dizer. Eu sei. Você não quer acabar a
amizade.
Vocês se dão bem, ele é muito legal. Mas ele é um ladrão, Carol.
Um bandido. Quem rouba celular é capaz de tudo. Sua vida corre perigo.
— Ele esta saindo do banheiro.
— Corra, Carol! Leve o telefone e corra! Daqui a pouco eu
ligo para saber onde você está.
Clic.
Dez minutos depois, o cidadão liga de novo.
— Aloa.
— Carol, onde você está?
— O Amleto está aqui do meu lado e pediu para lhe dizer uma coisa.
— Carol, eu...
— Nós conversamos e ele quer pedir desculpas a você.
Diz que vai devolver o telefone, que foi só brincadeira.
Jurou que não vai fazer mais isso.
O cidadão engoliu a raiva. Depois de alguns segundos falou:
— Como ele vai devolver o telefone?
— Domingo, no almoço da tia Eloá. Diz que encontra você lá.
— Carol, não...
Mas Carol já tinha desligado.
O cidadão precisou de mais cinco minutos
para se recompor. Depois ligou outra vez.
—Aloa.
Pelo ruído o cidadão deduziu que ela estava dentro de um carro em
movimento.
— Carol, é o Torquatro.
— Quem?
— Não interessa! Escute aqui. Você está sendo cúmplice de um crime.
Esse telefone que você tem na mão, esta me entendendo?
Esse telefone que agora tem suas impressões digitais.
É meu! Esse salafrário roubou meu celular!
— Mas ele disse que vai devolver na...
— Não existe Tia Eloá nenhuma! Eu não sou primo dele.
Nem conheço esse cafajeste. Ele esta mentindo para você, Carol.
— Então você também mentiu!
— Carol...
Clic.
Cinco minutos depois, quando o cidadão se ergueu do chão,
onde estivera mordendo o carpete, e ligou de novo, ouviu um "Alô" de
homem.
— Amleto?
— Primo! Muito bem. Você conseguiu, viu? A Carol acaba de descer do
carro.
— Olha aqui, seu...
— Você já tinha liquidado com o nosso programa no motel,
o maior clima e você estragou, e agora acabou com tudo.
Ela está desiludida com todos os homens, para sempre. Mandou parar o
carro e desceu.
Em plena Cavalhada. Parabéns primo. Você venceu. Quer saber como ela
era?
— Só quero meu telefone.
— Morena clara. Olhos verdes. Não resistiu ao meu celular.
Se não fosse o celular, ela não teria topado o programa.
E se não fosse o celular, nós ainda estaríamos no motel.
Como é que chama isso mesmo? Ironia do destino?
— Quero meu celular de volta!
— Certo, certo. Seu celular. Você tem que fechar negócios,
impressionar clientes, enganar trouxas. Só o que eu queria era a Carol...
— Ladrão
— Executivo
— Devolve meu...
Clic.
Cinco minutos mais tarde. Cidadão liga de novo.
telefone toca várias vezes. Atende uma voz diferente.
— Ahn?
— Quem fala?
— É o Trola.
— Como você conseguiu esse telefone?
— Sei lá. Alguém jogou pela janela de um carro. Quase me acertou.
— Onde você está?
— Como eu estou? Bem, bem. Catando meus papéis, sabe como é.
Mas eu já fui de circo. É. Capitão Trovar. Andei até pelo Paraguai.
— Não quero saber de sua vida. Estou pagando uma recompensa por este
telefone.
Me diga onde você está que eu vou buscar.
— Bem. Fora a Dalvinha, tudo bem. Sabe como é mulher.
Quando nos vê por baixo, aproveita. Ontem mesmo...
— Onde você está? Eu quero saber onde!
— Aqui mesmo, embaixo do viaduto. De noitinha.
Ela chegou com o índio e o Marvão, os três com a cara cheia, e...
Extraído do livro "As Mentiras que os Homens Contam",
Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2000, pág. 41.
FERNANDO SABINO
Já faz um longo tempo que fui apresentado a Fernando Sabino. Meu
irmão Francisco era um
ano mais velho que eu. Como todo irmão da mesma idade, vivíamos as
grandes alegria e as piores
tristezas. Num dos meus aniversário ele me presenteou com o livro
Encontro Marcado.
Logo em seguida o Senhor Deus da vida fez com que transcendesse a
temporalidade.
Hoje tenho uma filha que é parecida com ele, na fisionomia e no gênio.
Selecionei alguns textos que acho legal e interessante
O Homem Nu
Fernando Sabino
Ao acordar, disse para a mulher:
-- Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem
aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não
trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.
-- Explique isso ao homem -- ponderou a mulher.
-- Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir
rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica
quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém.
Deixa ele bater até cansar -- amanhã eu pago.
Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar
um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava,
resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço
para apanhar o pão. Como estivesse completamente nu, olhou com
cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos
até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito.
Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos,
porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo,
impulsionada pelo vento.
Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à
espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água
do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa
a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos
dedos:
-- Maria! Abre aí, Maria. Sou eu -- chamou, em voz baixa.
Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.
Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o
ponteiro subir lentamente os andares... Desta vez, era o homem da
televisão!
Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o
elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a
segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:
-- Maria, por favor! Sou eu!
Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos,
regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor,
fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar
um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam,
e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão.
Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa,
encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado,
enxugando o suor da testa com o embrulho do pão.
Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.
-- Ah, isso é que não! -- fez o homem nu, sobressaltado.
E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele
ali, em pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu,
desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu
apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka,
instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do
Terror!
-- Isso é que não -- repetiu, furioso.
Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares,
obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a
momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão
do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador. Antes de
mais nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou
descer? Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta,
enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.
-- Maria! Abre esta porta! -- gritava, desta vez esmurrando a porta, já
sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si.
Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente
cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:
-- Bom dia, minha senhora -- disse ele, confuso. -- Imagine que eu...
A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:
-- Valha-me Deus! O padeiro está nu!
E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:
-- Tem um homem pelado aqui na porta!
Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:
-- É um tarado!
-- Olha, que horror!
-- Não olha não! Já pra dentro, minha filha!
Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era.
Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se
lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora,
bateram na porta.
-- Deve ser a polícia -- disse ele, ainda ofegante, indo abrir.
Não era: era o cobrador da televisão.
Esta é uma das crônicas mais famosas do grande escritor mineiro
Fernando Sabino. Extraída do livro de mesmo nome, Editora do Autor -
Rio de Janeiro, 1960, pág. 65.
A mulher do vizinho
Fernando Sabino
Contaram-me que na rua onde mora (ou morava) um conhecido e
antipático general de nosso Exército morava (ou mora) também um sueco
cujos filhos passavam o dia jogando futebol com bola de meia. Ora, às
vezes acontecia cair a bola no carro do general e um dia o general
acabou perdendo a paciência, pediu ao delegado do bairro para dar um
jeito nos filhos do sueco.
O delegado resolveu passar uma chamada no homem, e intimou-o a
comparecer à delegacia.
O sueco era tímido, meio descuidado no vestir e pelo aspecto não parecia
ser um importante industrial, dono de grande fabrica de papel (ou coisa
parecida), que realmente ele era. Obedecendo a ordem recebida,
compareceu em companhia da mulher à delegacia e ouviu calado tudo o
que o delegado tinha a dizer-lhe. O delegado tinha a dizer-lhe o
seguinte:
— O senhor pensa que só porque o deixaram morar neste país pode logo
ir fazendo o que quer? Nunca ouviu falar numa coisa chamada
AUTORIDADES CONSTITUÍDAS? Não sabe que tem de conhecer as leis
do país? Não sabe que existe uma coisa chamada EXÉRCITO
BRASILEIRO que o senhor tem de respeitar? Que negócio é este? Então é
ir chegando assim sem mais nem menos e fazendo o que bem entende,
como se isso aqui fosse casa da sogra? Eu ensino o senhor a cumprir a
lei, ali no duro: dura lex! Seus filhos são uns moleques e outra vez que eu
souber que andaram incomodando o general, vai tudo em cana. Morou?
Sei como tratar gringos feito o senhor.
Tudo isso com voz pausada, reclinado para trás, sob o olhar de
aprovação do escrivão a um canto. O sueco pediu (com delicadeza)
licença para se retirar. Foi então que a mulher do sueco interveio:
— Era tudo que o senhor tinha a dizer a meu marido?
O delegado apenas olhou-a espantado com o atrevimento.
— Pois então fique sabendo que eu também sei tratar tipos como o
senhor. Meu marido não e gringo nem meus filhos são moleques. Se por
acaso incomodaram o general ele que viesse falar comigo, pois o senhor
também está nos incomodando. E fique sabendo que sou brasileira, sou
prima de um major do Exército, sobrinha de um coronel, E FILHA DE UM
GENERAL! Morou?
Estarrecido, o delegado só teve forças para engolir em seco e balbuciar
humildemente:
— Da ativa, minha senhora?
E ante a confirmação, voltou-se para o escrivão, erguendo os braços
desalentado:
— Da ativa, Motinha! Sai dessa...
Texto extraído do livro "Fernando Sabino - Obra Reunida - Vol.01",
Editora Nova Aguiar - Rio de Janeiro, 1996, pág. 872.
O Golpe do Comendador
Fernando Sabino
Ele sabia que aquilo ainda ia acabar mal. Ele era noivo, à antiga: pedido
oficial, aliança no dedo, casamento marcado, Mas, no ardor da juventude,
não se contentava em ter uma noiva em Copacabana: tinha também uma
namorada na cidade.
Encontravam-se na hora do almoço, ou em algum barzinho do centro, ao
cair da tarde, encerrado o expediente. Ele trabalhava num banco, ela num
escritório. A noiva não trabalhava: vivia em casa no bem-bom.
E tudo ia muito bem, até que a namorada, que morava na Tijuca, resolve
se mudar também para Copacabana.
A princípio ele achou prudente não voltarem juntos, já que uma não sabia
da existência da outra. Com o correr do tempo, porém, foi relaxando o
que lhe parecia um excesso de precauções. Mais de uma vez eu adverti
ao meu amigo:
— Cuidado. Um dia a casa cai.
— Seria o auge da coincidência — protestava ele.
Pois acabou acontecendo. Foi numa tarde em que os dois voltavam de
ônibus para Copacabana, muito enleados, mãozinhas dadas. Ali pela altura
do Flamengo, ao olhar casualmente pela janela, ele viu e reconheceu de
longe a moça que fazia sinal no ponto de parada.
Em pânico, o seu primeiro impulso foi o de gritar para o motorista que
não parasse, para evitar o encontro fatal. Era o cúmulo do azar: havia um
lugar vago justamente a seu lado, naquele último banco, que comportava
cinco passageiros.
O ônibus parou e ela subiu. Ele se encolheu, separando-se da outra,
mãos enfiadas entre os joelhos e olhando para o lado — como se
adiantasse: já tinha sido visto. A noiva sorriu, agradavelmente
surpreendida:
— Mas que coincidência!
E sentou-se a seu lado. Você ainda não viu nada — pensou ele, sentindo-
se perdido, ali entre as duas. Queria sumir, evaporar-se no ar. Num
gesto meio vago, que se dirigia tanto a uma como a outra, fez a
apresentação com voz sumida:
— Esta é a minha noiva...
— Muito prazer — disseram ambas.
E começaram uma conversa meio disparatada por cima do seu
cadáver:
— Você o conhece há muito tempo? — perguntou a noiva titular.
— Algum - respondeu a outra, tomando-o pelo braço: — Só que
ainda não estamos propriamente noivos, como ele disse...
— Ah, não? Que interessante! Pois nós estamos, não é, meu bem? E
a noiva o tomou pelo outro braço:
— Você não havia me falado a respeito da sua amiguinha...
Atordoado, nem tendo 0 ônibus chegado ainda ao Mourisco, ele
perdeu completamente a cabeça. Desvencilhou-se das duas e se
precipitou para a porta, ordenando ao motorista:
— Pare! Pare que eu preciso descer!
Saltou pela traseira mesmo, sem pagar, os demais passageiros o
olhavam, espantados, o trocador não teve tempo de protestar. Atirou-se
num táxi que se deteve ante seus gestos frenéticos, foi direto à minha
casa:
— Você tem que me ajudar a sair dessa.
Amigo é para essas coisas, mas não me dou por bom conselheiro em tais
questões. Mal consigo eu próprio sair das minhas: a emenda em geral é
pior do que o soneto. Ainda assim, tão logo ele me contou o que havia
acontecido, ocorreu-me dizer que, se saída houvesse, ele teria que abrir
mão de uma — com as duas é que não poderia ficar. Qual delas preferia?
— A minha noiva, é lógico - afirmou ele, sem muita convicção: É
com ela que vou me casar.
E torcia as mãos, nervoso:
— Pretendia, né? Imagino o que a esta hora já não devem ter dito
uma para a outra. O pior é que minha noiva é meio esquentada, para
acabar no tapa não custa.
Respirou fundo, mudando o tom:
— Também, que diabo tinha ela de tomar exatamente aquele
ônibus? E o que é que estava fazendo àquela hora no Flamengo? De onde
é que ela vinha?
— Eu que sei? — e comecei a rir: — Me desculpe, meu velho, mas
essa não pega.
Ele se deixou cair na poltrona.
— É isso mesmo. Não pega. Nenhuma pega. Estou liquidado. Não
tem saída.
— Só vejo uma — e fiz uma pausa, para dar mais ênfase: — O
golpe do comendador.
Marido exemplar, pai extremoso, avô dedicado, como se usava
antigamente, o ilustre comendador era de uma respeitabilidade sem jaça.
Vai um dia sua digníssima consorte, chegando inesperadamente em casa,
dá com o ilustre na cama da empregada. Com a empregada.
Enquanto a esposa ultrajada se entregava a uma crise de nervos lá
na sala, o comendador se recompunha no local do crime, vestindo
meticulosamente a roupa, inclusive colete, paletó e gravata. Em seguida
se dirigiu a ela nos seguintes termos:
— Reconheço que procedi como um crápula, um canalha, um
miserável. Cedi aos sentidos, conspurcando o próprio lar. Você tem o
direito de renegar-me para sempre, e mesmo de me expor à execração
pública. E provocar em conseqüência a desgraça de nosso casamento, a
desonra de meu nome e o opróbrio de nossos filhos e netos. A menos
que resolva me perdoar, e neste caso não se fala mais nisto. Perdoa ou
não?
Aturdida com tão eloqüente falatório, a mulher parou de chorar e
ficou a olhá-lo, apalermada.
— Vamos, responda! — insistiu ele com firmeza: — Sim ou não?
— Sim — balbuciou ela, timidamente.
Ele cofiou os bigodes e, do alto de sua reassumida dignidade,
declarou categórico:
— Pois então não se fala mais nisto.
Tão logo ouviu o caso do comendador, o noivo desastrado resolveu
imitá-lo. De minha casa mesmo telefonou para a noiva, dizendo-lhe
atropeladamente que ele era um crápula, um canalha — em resumo: o ser
mais ordinário que jamais existiu na face da terra. Depois, sem lhe dar
tempo de retrucar, despejou-lhe uma cachoeira de declarações
amorosas, invocando o casamento marcado, a felicidade de ambos para
sempre perdida, os filhos que não mais teriam... Não faltaram nem
reminiscências dos primeiros dias de namoro - tanto tempo já que se
amavam, ela não tinha treze anos quando se conheceram, as trancinhas
que usava, lembra-se? Tudo isso ia por água abaixo — a menos que o
perdoasse.
Desligou o telefone, vitorioso.
— Concordou em se encontrar comigo.
— Não se esqueça. O comendador.
— Já sei. Não se fala mais nisto.
E se foi, alvoroçado. Nem comigo se falou mais nisto, mas de
alguma forma deu certo, pois acabou se casando, teve vários filhos e,
segundo ouvi dizer, vive feliz até hoje.
Com a outra.
Texto extraído do livro “Fernando Sabino – Obra Reunida”,
Volume III, Editora Nova Aguilar S.A. – Rio de Janeiro, 1996, pág. 148.
No Quarto da Valdirene
Fernando Sabino
Mal ele entrou em casa, a mulher o tomou pelas mãos, ansiosa:
- Estava aflita para você chegar.
E sussurrou, apontando dramaticamente para os lados da cozinha:
- Tem um homem no quarto da Valdirene.
Sacudiu a cabeça com irritação:
- Desde o primeiro dia eu achei que essa menina não era boa coisa. Ela
nunca me enganou.
Valdirene, a jovem empregada, uma mulata de olhos grandes, não faria
feio num palco.
- Como e que você sabe? - perguntou ele, para ganhar tempo. Não
partilhava da opinião da mulher: desde o primeiro dia achou que a
Valdirene era ótima.
- Sei porque vi. Escutei um ruído qualquer ai fora no corredor, olhei pelo
olho mágico, e vi quando ela punha ele para dentro pela porta de serviço.
- Ele quem?
- O homem. Não sei quem é, só sei que é um homem. Deve ser o
namorado dela, ou o amante, tanto faz. O certo e que os dois estão
trancados lá no quarto faz um tempão.
- Vai ver que já saiu.
- Não saiu não, que eu não sou boba, fiquei de olho. Esta lá dentro com
ela até agora.
- E o que e que você quer que eu faça?
- Quero que bote ele pra fora, essa e boa.
- Por quê?
Ela botou as mãos na cintura:
- Por quê? Você ainda pergunta por que? Então tem cabimento a gente
deixar que a empregada receba homens no quarto dela? O que e que essa
menina está pensando que minha casa é? Um motel? Se você não for lá,
eu mesma vou.
- Espera ai, vamos com calma, mulher. Você tem razão, mas deixa a
gente raciocinar um pouco. Não podemos é perder a cabeça. Pode ser
perigoso. Como é que ele é?
- Não cheguei a ver direito. Só vi que era um homem. Para mim, basta.
- Não posso ir lá no quarto dela sem mais nem menos. Quem sabe é
algum parente? Um irmão, talvez...
- Um irmão, talvez... Você tem cada uma! Pior ainda: que é que um irmão
tem de ficar fazendo trancado no quarto com a irmã como eles dois
estão? Você tem de pôr esse homem pra fora.
- E se estiver armado? Ele pode muito bem estar armado.
- Já que você está com medo...
- Não estou com medo. Só que temos de agir com calma. Vamos ver
como a gente sai dessa. Deixa comigo.
Ele respirou fundo e se meteu pela cozinha, ganhou a área de serviço,
ficou à escuta. Nada, tudo quieto e às escuras no quarto da Valdirene.
Bateu de leve na porta:
- Valdirene.
Via-se pelas frestas da veneziana na própria porta que o quarto
continuava no escuro. Ele bateu de novo:
- Valdirene, está me ouvindo? Valdirene!
Escutou alguém se mexendo lá dentro e a voz estremunhada da moça:
- Senhor?
- Tem alguém com você ai dentro, Valdirene?
- Tem não senhor.
- Abra um instante, por favor.
Em pouco ela abria a porta, furtivamente, e o encarava sem piscar.
Vestia um baby-doll pequenino e transparente que, sob a luz mortiça
vinda da área, deixava quase todo seu corpo à mostra.
- Acenda essa luz, minha filha.
Mais para vê-la melhor do que para olhar o quarto, pois mesmo no
escuro podia-se verificar que ali dentro não havia mais ninguém. Luz
acesa, ela se protegia discretamente com os braços, enquanto ele dava
uma olhada rápida por cima do seu ombro:
- Tudo bem. Desculpe o incômodo. Boa noite.
Voltou para a sala, onde a mulher o aguardava, tensa de expectativa. - E
então?
- Não tem ninguém.
- Como não tem ninguém? Pois se eu vi o homem entrando!
- Se viu entrando, não viu saindo. O certo é que não tem ninguém no
quarto da Valdirene, além dela própria. Vamos dormir.
- Como é que eu posso ir dormir sabendo que tem um estranho dentro de
casa? Você vai voltar lá e olhar direito.
- Eu olhei direito. Se não acredita, vai lá e olha você.
- Quem e o homem nesta casa? Se você não for olhar eu não fico aqui
dentro nem mais um minuto. Vou direto à polícia.
Ele ergueu os braços e os deixou cair, com um suspiro resignado:
- Essa mulher, meu Deus. Agora é você que está com medo. Direto à
polícia. Como se fosse um crime... Tudo bem, eu vou lá olhar direito.
Voltou a bater na porta da empregada:
- Valdirene.
Desta vez ela respondeu logo:
- Senhor?
- Abra ai um instante, por favor.
- Sim senhor.
Ela abriu e foi logo acendendo a luz. Estimulado pela nova oportunidade
de vê-la tão de perto, ele perdeu a cerimônia e entrou no quarto. Sempre
de olho nela e ouvido atento à mulher lá na sala. Ali dentro só cabia a
cama e o armariozinho com uma cortina, atrás da qual ninguém poderia
se esconder. Ainda assim ergueu o pano para se certificar. Satisfeito,
voltou-se para a moça que, ao sentir seus olhos tão próximos, abaixara
modestamente os dela:
- Desculpe, minha filha. É que minha mulher, você sabe, quando ela
cisma uma coisa... Mas pode dormir sossegada. Boa noite.
Na sala, a mulher voltou a questioná-lo:
- Você olhou direito desta vez?
- Não há como olhar errado. Um quarto deste tamaninho! Olhei o que
tinha para olhar: a Valdirene e a cama.
- A Valdirene e a cama? O que você quer dizer com isso?
- Não quero dizer coisa nenhuma. É que ali dentro não cabe mais nada
além da Valdirene e da cama.
- Não é isso que parece estar insinuando, com essa sua cara.
- Que é que tem minha cara? Você é que insinuou que tinha um homem lá
dentro, não fui eu. Não me admiraria nada. Mas acontece que não tem. Só
faltou olhar debaixo da cama.
- Não admiraria nada - ela o imitou, com um trejeito. E ordenou, braço
estendido:
- Pois então vai olhar debaixo da cama.
- Essa não! - relutou ele: - Já disse que não cabe ninguém...
Mas acabou indo. Pobre da menina, de novo importunada:
- Me desculpe, Valdirene, mas é preciso que você abra aí outra vez. '
Ela acendeu a luz, abriu a porta e deu-lhe passagem. Seus olhos o
acompanharam impassíveis, quando ele entrou e se agachou para olhar
debaixo da cama. De quatro, sentindo-se ridículo naquela postura, ele
baixou a cabeça até que a ponta do queixo tocasse o chão, e enfiou-a
sob o estrado. Seu nariz esbarrou de cheio em algo branco e macio - era
nada menos que o traseiro de um homem.
- Oi - assustou-se, recuando.
- Oi - fez o homem, como um eco, encolhendo-se ainda mais.
Ele se ergueu. perturbado, limpou a garganta, procurando dar firmeza à
voz:
- O senhor tem um minuto pra sair deste quarto.
Um último olhar para Valdirene, como a dizer que sentia muito mas não
podia deixar de cumprir o seu dever, e foi ter com a mulher na sala:
- Tinha sim. Tinha um homem debaixo da cama. Está satisfeita?
- Eu não disse? E o que é que você fez?
- Mandei que ele se pusesse pra fora. É o tempo de se vestir.
- Meu Deus, ele estava nu?
- Que é que você queria? Não sei é como ele pôde caber lá debaixo.
Imagino o susto dele. E o da Valdirene, coitadinha.
No dia seguinte, mal amanheceu, ela despedia a Valdirene, coitadinha.
Texto extraído da revista "Playboy", edição de outubro/1983.
(Publicado no livro "O Gato Sou Eu", Editora Record - Rio de Janeiro,
1983, pág. 147).

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Crônicas de Luis Fernando Veríssimo e Fernando Sabino

  • 1. LUIZ FERNANDO VERÍSSIMO FERNANDO SABINO Luiz Fernando Veríssimo Luis Fernando Veríssimo nasceu em 26 de setembro 1936, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Filho do grande escritor Érico Veríssimo, iniciou seus estudos no Instituto Porto Alegre, tendo passado por escolas nos Estados Unidos quando morou lá, em virtude de seu pai ter ido lecionar em uma universidade da Califórnia, por dois anos. Voltou a morar nos EUA quando tinha 16 anos, tendo cursado a Roosevelt High School de Washington, onde também estudou música, sendo até hoje inseparável de seu saxofone. É casado com Lúcia e tem três filhos. Jornalista, iniciou sua carreira no jornal Zero Hora, em Porto Alegre, em fins de 1966, onde começou como copydesk mas trabalhou em diversas seções ("editor de frescuras", redator, editor nacional e internacional). Além disso, sobreviveu um tempo como tradutor, no Rio de Janeiro. A partir de 1969, passou a escrever matéria assinada, quando substituiu a
  • 2. coluna do Jockyman, na Zero Hora. Em 1970 mudou-se para o jornal Folha da Manhã, mas voltou ao antigo emprego em 1975, e passou a ser publicado no Rio de Janeiro também. O sucesso de sua coluna garantiu o lançamento, naquele ano, do livro "A Grande Mulher Nua", uma coletânea de seus textos. Participou também da televisão, criando quadros para o programa "Planeta dos Homens", na Rede Globo e, mais recentemente, fornecendo material para a série "Comédias da Vida Privada", baseada em livro homônimo. Escritor prolífero, são de sua autoria, dentre outros, O Popular, A Grande Mulher Nua, Amor Brasileiro, publicados pela José Olympio Editora; As Cobras e Outros Bichos, Pega pra Kapput!, Ed Mort em "Procurando o Silva", Ed Mort em "Disneyworld Blues", Ed Mort em "Com a Mão no Milhão", Ed Mort em "A Conexão Nazista", Ed Mort em "O Seqüestro do Zagueiro Central", Ed Mort e Outras Histórias, O Jardim do Diabo, Pai não Entende Nada, Peças Íntimas, O Santinho, Zoeira , Sexo na Cabeça, O Gigolô das Palavras, O Analista de Bagé, A Mão Do Freud, Orgias, As Aventuras da Família Brasil, O Analista de Bagé,O Analista de Bagé em Quadrinhos, Outras do Analista de Bagé, A Velhinha de Taubaté, A Mulher do Silva, O Marido do Doutor Pompeu, publicados pela L&PM Editores, e A Mesa Voadora, pela Editora Globo e Traçando Paris, pela Artes e Ofícios. Além disso, tem textos de ficção e crônicas publicadas nas revistas Playboy, Cláudia, Domingo (do Jornal do Brasil), Veja, e nos jornais Zero Hora, Folha de São Paulo, Jornal do Brasil e, a partir de junho de 2.000, no jornal O Globo.
  • 3. Na opinião de Jaguar "Veríssimo é uma fábrica de fazer humor. Muito e bom. Meu consolo — comparando meu artesanato de chistes e cartuns com sua fábrica — era que, enquanto eu rodo pelaí com minha grande capacidade ociosa pelos bares da vida, na busca insaciável do prazer (B.I.P.), o campeão do humor trabalha como um mouro (se é que os mouros trabalham). Pensava que, com aquela vasta produção, ele só podia levantar os olhos da máquina de escrever para pingar colírio, como dizia o Stanislaw Ponte Preta. Boemia, papos furados pela noite a dentro, curtir restaurantes malocados, lazer em suma, nem pensar. De manhã à noite, sempre com a placa "Homens Trabalhando" pendurada no pescoço." Botecos Lixo O apito O homem que vivia anedotas Ressaca Alívio Gaúcho que é gaúcho Incidente na casa do ferreiro O desafio O popular Os moralistas Povo Terrorismo
  • 4. O Casamento O analista de Bagé Clic Botecos Tinha uma mania: colecionava botecos. Não os freqüentava, apenas. Era um estudioso. Gostava de descobrir botecos e recomendar para os amigos. Ultimamente vinha se especializando - um refinamento da sua paixão - no que chamava de botecos asquerosos. Daqueles que nenhum fiscal da Saúde Pública incomoda porque não passa pela porta sem desmaiar. Seu rosto se iluminava na frente de um boteco asqueroso recém- descoberto. Não resistia e entrava. Depois contava para os amigos. - Uma glória. Sabe ovo boiando em garrafão com água? - Repelentes, é? As galinhas não os receberiam de volta. A própria mãe! Descrevia o boteco com carinhoso entusiasmo. - E que moscas. Que moscas! Só não tinha paciência com o falso sórdido. Alguns botecos assumiam suas privações como uma declaração de falta de princípios. Ele preferia o sórdido inconsciente, o sórdido autêntico. Principalmente o sórdido pretensioso. Uma vez contara, extasiado, uma cena. Terminara de comer uma inominável
  • 5. almôndega, pedira um palito para o dono do boteco e desencadeara uma busca barulhenta e mal-humorada, com o dono procurando por toda a parte e gritando para a mulher: - Cadê o palito? Finalmente o dono encontrara o palito, atrás da orelha, e o oferecera. Ele se emocionava só de contar. Os amigos, sabendo da sua paixão, mantinham-se atentos para botecos sórdidos que pudessem interessá-lo. Muitos ele já conhecia. Um que tem uma Virgem Maria pintada num espelho com uma barata esmigalhada de tapa-olho? Vou seguido. A cachaça é tão braba que tem bula com contra-indicação. Outro dia lhe trouxeram a notícia do pior dos botecos. Não era um boteco de quinta categoria. Era um boteco de última categoria. Ficava no limite entre a vida inteligente, e a vida orgânica. Ele precisava ir lá verificar. Foi no mesmo dia. Ficou estudando o boteco de longe, antes de se aproximar. Tinha um garoto na porta do boteco. A função do garoto era atacar cachorros sarnentos. Quando passava um cachorro sarnento o garoto o enxotava - para dentro do boteco! Ele atravessou a rua na direção do boteco com aquele brilho no olhar que tem o pesquisador no limiar da grande revelação, ou o santo antes do doce martírio. O texto acima foi extraído da revista "Veja", Editora Abril, edição de 12- 12-84.
  • 6. voltar Lixo Luis Fernando Veríssimo Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam — Bom dia... — Bom dia. — A senhora é do 610. — E o senhor do 612. — É. — Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente... — Pois é... — Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo... — O meu quê? — O seu lixo. — Ah... — Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena... — Na verdade sou só eu. — Mmmm. Notei também que o senhor usa muita comida em lata. — É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar... — Entendo. — A senhora também... — Me chame de você.
  • 7. — Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim... — É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas como moro sozinha, às vezes sobra... — A senhora... Você não tem família? — Tenho, mas não aqui. — No Espírito Santo. — Como é que você sabe? — Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo. — É. Mamãe escreve todas as semanas. — Ela é professora? — Isso é incrível! Como foi que você adivinhou? — Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora. — O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo. — Pois é... — No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado. — É. — Más notícias? — Meu pai. Morreu. — Sinto muito. — Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos. — Foi por isso que você recomeçou a fumar? — Como é que você sabe? — De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu lixo. — É verdade. Mas consegui parar outra vez. — Eu, graças a Deus, nunca fumei. — Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo... — Tranqüilizantes. Foi uma fase. Já passou.
  • 8. — Você brigou com o namorado, certo? — Isso você também descobriu no lixo? — Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de papel. — E, chorei bastante. Mas já passou. — Mas hoje ainda tem uns lencinhos... — É que eu estou com um pouco de coriza. — Ah. — Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo. — É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é. — Namorada? — Não. — Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha. — Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga. — Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte. — Você já está analisando o meu lixo! — Não posso negar que o seu lixo me interessou. — Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que foi a poesia. — Não! Você viu meus poemas? — Vi e gostei muito. — Mas são muito ruins! — Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam dobrados. — Se eu soubesse que você ia ler... — Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando.
  • 9. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela? — Acho que não. Lixo é domínio público. Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso? — Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que... — Ontem, no seu lixo.. — O quê? — Me enganei, ou eram cascas de camarão? — Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei. — Eu adoro camarão. — Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode... — Jantar juntos? — É. — Não quero dar trabalho. — Trabalho nenhum. — Vai sujar a sua cozinha. — Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora. — No seu lixo ou no meu? Texto extraído do livro “O Analista de Bagé”, L&PM Editores – Porto Alegre, 1981, pág. 83. voltar O Apito Luis Fernando Veríssimo Tudo o que o Mafra dizia, o Dubin duvidava. Eram inseparáveis, mas viviam brigando. Porque o Mafra contava histórias fantásticas e o
  • 10. Dubin sempre fazia aquela cara de conta outra. -- Uma vez... -- Lá vem história. -- Eu nem comecei e você já está duvidando? -- Duvidando, não. Não acredito mesmo. -- Mas eu nem contei ainda! -- Então conta. -- Uma vez eu fui a um baile só de pernetas e... -- Eu não disse? Eu não disse? O Mafra às vezes fazia questão de provar as suas histórias para o Dubin. -- Dubin, eu sou ou não sou pai-de-santo honorário? O Dubin relutava, mas confirmava. -- É. Mas em seguida arrematava: -- Também, aquele terreiro está aceitando até turista argentino... Então veio o caso do apito. Um dia, numa roda, assim no mais , o Mafra revelou: -- Tenho um apito de chamar mulher. -- O quê? -- Um apito de chamar mulher. Ninguém acreditou. O Dubin chegou a bater com a cabeça na mesa, gemendo: -- Ai meu Deus! Ai meu Deus! -- Não quer acreditar, não acredita. Mas tenho. -- Então mostra. -- Não está aqui. E aqui não precisa apito. É só dizer "vem cá". O Dubin gesticulava para o céu, apelando por justiça. -- Um apito de chamar mulher! Só faltava essa! Mas aconteceu o seguinte: Mafra e Dubin foram juntos numa viagem (Mafra queria provar ao Dubin que tinha mesmo terras na Amazônia,
  • 11. uma ilha que mudava de lugar conforme as cheias) e o avião caiu em plena selva. Ninguém se pisou, todos sobreviveram e depois de uma semana a frutas e água foram salvos pela FAB. Na volta, cercados pelos amigos, Mafra e Dubin contaram sua aventura. E Mafra, triunfante, pediu para Dubin: -- Agora conta do meu apito. -- Conta você -- disse Dubin, contrafeito. -- O apito existia ou não existia? -- Existia. -- Conta, conta -- pediram os outros. -- Foi no quarto ou quinto dia. Já sabíamos que ninguém morreria. A FAB já tinha nos localizado. O salvamento era só uma questão de tempo. Então, naquela descontração geral, tirei o meu apito do bolso. -- O tal de chamar mulher? -- Exato. Estou mentindo, Dubinzinho? -- Não -- murmurou Dubinzinho. -- Soprei o apito e pimba. -- Apareceram mulheres? -- Coisa de dez minutos. Três mulheres. Todos se viraram para o Dubin incrédulos. -- É verdade? -- É -- concedeu Dubin. Fez-se um silêncio de puro espanto. No fim do qual Dubin falou outra vez: -- Mas também, era cada bucho! A crônica acima foi extraída do livro "Outras do analista de Bagé", L & PM Editores - Porto Alegre, 1982, pág. 15.
  • 12. O Homem que Vivia Anedotas Luis Fernando Veríssimo — Sempre deu tudo errado comigo. Desde criança. — Compreendo. — Na escola, não conseguia prestar atenção em nada. Estava sempre pensando em mulher nua. — Espera aí. Você é… — Sou. O Juquinha. Todo mundo ficou sabendo das minhas histórias, virei anedota. — Mas as histórias até que eram engraçadas. — Engraçadas para quem não foi expulso da escola, como eu. Meus pais me mandaram a um médico para curar minha obsessão. Um psiquiatra. — Não foi esse o médico que... — É. Começou a me mostrar desenhos. Uma cadeira. Um chapéu. Um telefone. Pediu para eu me concentrar. — E aí você disse… — Eu disse: "Me concentrar como, se o senhor não pára de mostrar figurinha erótica?". O senhor está rindo porque não foi com o senhor. Fiquei anos em tratamento. — Desculpa. Eu não estava rindo de você. Continue. — Como não tinha educação, fui ser mecânico. Não deu certo. — Por quê? — Sabe aquela história do cara que acendeu um fósforo dentro do tanque do carro para ver se tinha gasolina, e tinha? — Foi você? — Foi. No hospital, tiveram que me reconstituir.
  • 13. Pegaram as partes e juntaram de novo. Tudo bem, só que… — Só que para ouvir direito, você precisava levantar o braço! Essa é ótima. — Ótima porque não foi com o senhor. — Desculpe. Foi horrível. — Quando saí do hospital comprei uma motocicleta. Uma noite na estrada, vi os holofotes de duas motocicletas que vinham em sentido contrário. Só por farra, resolvi passar com a minha entre as duas. — E era um automóvel. Essa eu conheço. — Voltei para o hospital. Tiraram radiografias. Eu estava péssimo. Quando o médico disse quanto ia custar o tratamento, eu disse que não podia pagar. — E ele? — Ele disse que por um preço módico mandava retocar as radiografias. — Grande! Quer dizer, horrível. E seus pais? — Está vendo esse relógio? Está na família há gerações. — É uma beleza. — No seu leito de morte, poucos minutos antes de expirar, papai me vendeu. — Boa, boa. Quer dizer, triste, triste. — Me casei. Não durou muito. Minha mulher estava convencida que era um refrigerador. — Realmente, não dava para continuar vivendo com uma louca. — O pior não era isso. O pior é que ela dormia com a boca aberta e a luz não me deixava dormir. O senhor está rindo outra vez. — Não posso me conter. É que você teve uma vida engraçada. — Engraçada? Trágica. Tudo comigo deu errado. As pessoas riem de sádicas.
  • 14. — Você tem razão. — Para esquecer tudo, fui fazer uma viagem. Quando o avião estava a dez mil metros de altura, ouviu-se uma voz que dizia: "Isto é uma gravação. Este avião não tem piloto. É dirigido por um sistema totalmente automático que substitui com vantagem o controle humano. Não há com o que se preocupar. O sistema foi exaustivamente testado é absolutamente aprova de falhas, de falhas, de falhas…". — O avião caiu e foi assim que você veio parar aqui? — Não, São Pedro. O avião caiu no mar, eu sobrevivi e passei uma temporada numa ilha deserta com uma mulher. Só que a mulher era a Betty Friedman. — Acho que já vi esse cartum. — Pois é. Aí fui salvo e ainda passei por várias anedotas até resolver me matar. Não conseguia fazer anda certo. Só restava o suicídio. Dei um tiro na cabeça. — E aqui está você. — Não. Errei o tiro. Depois fiquei tão contente de ainda estar vivo que dei um tiro para o ar. Aí acertei na cabeça. E aqui estou eu. Livre, finalmente, das anedotas. O senhor ainda está rindo! — Meu filho você sabe quantas anedotas de São Pedro na porta do céu existem? — Não, São Pedro. Por favor. Não! — O que é que eu posso fazer? Esta é uma delas. Houve um maremoto em Copacabana,
  • 15. morreu todo mundo e nós estamos com o céu lotado. — Lotado? Mas só a população de Copacabana lota o céu? — É que tinha os argentinos. Você só vai encontrar lugar no Purgatório, e na lista de espera. Texto extraído do livro "Sexo na Cabeça", L&PM Editores - Porto Alegre, 1982, pág. 15. Ressaca Luis Fernando Veríssimo Hoje, existem pílulas milagrosas, mas eu ainda sou do tempo das grandes ressacas. As bebedeiras de antigamente eram mais dignas, porque você as tomava sabendo que no dia seguinte estaria no inferno. Além de saúde era preciso coragem. As novas gerações não conhecem ressaca, o que talvez explique a falência dos velhos valores. A ressaca era a prova de que a retribuição divina existe e que nenhum prazer ficará sem castigo. Cada porre era um desafio ao céu e às suas feras. E elas vinham: Náusea, Azia, Dor de Cabeça, Dúvidas Existenciais - golfadas. Hoje, as bebedeiras não têm a mesma grandeza. São inconseqüentes, literalmente. Não é que eu fosse um bêbado, mas me lembro de todos os sábados de minha adolescência como uma luta desigual entre
  • 16. a cuba-libre e o meu instinto de autopreservação. A cuba-libre ganhava sempre. Já dos domingos me lembro de muito pouco, salvo a tontura e o desejo de morte. Jurava que nunca mais ia beber, mas, antes dos trinta, "nunca mais" dura pouco. Ou então o próximo sábado custava tanto a chegar que parecia mesmo uma eternidade. Não sei o que a cuba-libre fez com meu organismo, mas até hoje quando vejo uma garrafa de rum os dedos do meu pé encolhem. Tentava-se de tudo para evitar a ressaca. Eu preferia um Alka-Seltzer e duas aspirinas antes de dormir. Mas no estado em que chegava nem sempre conseguia completar a operação. Às vezes dissolvia as aspirinas num copo de água, engolia o Alka-Seltzer e ia borbulhando para a cama, quando encontrava a cama. Mas os métodos variavam. Por exemplo: Um cálice de azeite antes de começar a beber -- O estômago se revoltava, você ficava doente e desistia de beber. Tomar um copo de água entre cada copo de bebida -- O difícil era manter a regularidade. A certa altura, você começava a misturar a água com a bebida, e em proporções cada vez menores. Depois, passava a pedir um copo de outra bebida entre cada copo de bebida. Suco de tomate, limão, molho inglês, sal e pimenta -- Para ser tomado no dia seguinte,
  • 17. de jejum. Adicionando vodca ficava um bloody-mary, mas isto era para mais tarde um pouco. Sumo de uma batata, sementes de girassol e folhas de gelatina verde dissolvidas em querosene -- Misturava-se tudo num prato pirex forrado com velhos cartões do sabonete Eucalol. Embebia-se um algodão na testa e deitava-se com os pés da ilha de Páscoa. Ficava-se imóvel durante três dias, no fim dos quais o tempo já teria curado a ressaca de qualquer maneira. Uma cerveja bem gelada na hora de acordar -- Por alguma razão o método mais popular. Canja -- Acreditava-se que uma boa canja de galinha de madrugada resolveria qualquer problema. Era preciso especificar que a canja era para tomar, no entanto. Muitos mergulhavam o rosto no prato e tinham de ser socorridos às pressas antes do afogamento. Minha experiência maior era com a cuba-libre, mas conheço outros tipos de ressaca, pelo menos de ouvir falar. Você sabia que o uísque escocês que tomara na noite anterior era paraguaio quando acordava se sentindo como uma harpa guarani. Quando a bebedeira com uísque falsificado era muito grande, você acordava se sentindo como uma harpa guarani e no deposito de instrumentos da boate Catito's em Assunção. A pior ressaca era de gim. Na manhã seguinte, você não conseguia abrir os dois olhos ao mesmo tempo. Abria um e quando abria o outro, o primeiro se fechava. Ficava com o ouvido
  • 18. tão aguçado que ouvia até os sinos da catedral de São Pedro, em Roma. Ressaca de martini doce: você ia se levantar da cama e escorria para o chão como óleo. Pior é que você chamava a sua mãe, ela entrava correndo no quarto, escorregava em você e deslocava a bacia. Ressaca de vinho. Pior era a sede. Você se arrastava até a cozinha, tentava alcançar a garrafa de água e puxava todo o conteúdo da geladeira em cima de você. Era descoberto na manhã seguinte imobilizado por hortigranjeiros e laticínios e mastigando um chuchu para alcançar a umidade. Era deserdado na hora. Ressaca de cachaça. Você acordava sem saber como, de pé num canto do quarto. Levava meia hora para chegar até a cama porque se esquecera como se caminhava: era pé ante pé ou mão ante mão? Quando conseguia se deitar, tinha a sensação que deixara as duas orelhas e uma clavícula no canto. Olhava para cima e via que aquela mancha com uma forma vagamente humana no teto finalmente se definira. Era o Peter Pan e estava piscando para você. Ressaca de licor de ovos. Um dos poucos casos em que a lei brasileira permite a eutanásia. Ressaca de conhaque. Você acordava lúcido. Tinha, de repente, resposta para todos os enigmas do universo. A chave de tudo estava no seu cérebro. Devia ser por isso que aqueles homenzinhos estavam tentando arrombar a sua caixa craniana. Você sabia que era alucinação, mas por via das dúvidas,
  • 19. quando ouvia falar em dinamite, saltava da cama ligeiro. Hoje não existe mais isto. As pessoas bebem, bebem e não acontece nada. No dia seguinte estão saudáveis, bem-dispostas e fazem até piadas a respeito. De vez em quando alguns dos nossos se encontram e se saúdam em silêncio. Somos como veteranos de velhas guerras lembrando os companheiros caídos e o nosso heroísmo anônimo. Estivemos no inferno e voltamos, inteiros. Um brinde. E um Engov. Alívio Luis Fernando Veríssimo Um homem sente que acordou, mas não consegue abrir os olhos. Tenta se mexer mas descobre está paralisado. Começa a ouvir vozes. — Coitado... — Olha a cara. Parece que está dormindo... Sente cheiro de velas. Será que...? Outras vozes: — É. Descansou. — Ninguém esperava. Tão saudável. — Coitado... As vozes parecem conhecidas. Ele começa a entrar em pânico. Concentra toda a sua força em abrir os olhos. Não consegue. Tenta mexer uma das mãos. Um dedo! Nada. Meu Deus. Preciso mostrar que é um engano,
  • 20. não morri. Vão enterrar um vivo. Ou será que não houve engano? Morri mesmo. Estou ouvindo tudo, sentindo tudo, mas estou morto. Isto é horrível, isto é... — Um homem tão bom... — Grande caráter... — Que marido. — Vida exemplar... O homem fica mais aliviado. Pode estar num velório. Mas, definitivamente, não é o seu. Texto extraído do livro "A Mãe do Freud", L&PM Editores - Porto Alegre, 1985, pág. 75. Gaúcho que é Gaúcho Luis Fernando Veríssimo Gaúcho que é Gaúcho não usa camiseta sem manga a não ser para jogar basquete. Gaúcho que é Gaúcho não gosta de canapés, de cebolinhas em conserva ou de qualquer outra coisa que leve menos de 30 segundos para mastigar e engolir. Gaúcho que é Gaúcho não come suflê. Gaúcho que é Gaúcho - de agora em diante chamado GQEG - não deixa a sua mulher mostrar a bunda pra ninguém. Nem em baile de carnaval. GQEG não mostra
  • 21. a sua bunda pra ninguém. Só no vestiário, para outros homens, e assim mesmo, se olhar por mais de 30 segundos dá briga. GQEG só vai ao cinema ver filme do Franco Zefirelli quando a mulher insiste muito, e passa todo tempo tentando ver as horas no escuro. GQEG não gosta de musical, filme com a Jill Claybourgh ou do Ingmar Bergman. Prefere filmes com o Charles Bronson. Diz que ator mesmo era o Spencer Tracy e que dos novos, tirando Schwartzneger, é tudo veado. GQEG não vai mais a teatro porque também não gosta que mostrem a bunda à sua mulher. Se você quer ver um GQEG no momento mais baixo de sua vida, precisa vê-lo no ballet. Na saída ele diz que até o porteiro é veado e que se enxergar mais alguém de malha justa mata. Se você não sabe se tem um GQEG dentro de você, faça este teste. Leia esta série de situações. Estude-as, pense, e depois decida como você reagiria em cada situação. A resposta dirá o seu coeficiente de GQEG. Se pensar muito, nem precisa responder: você não é um GQEG. GQEG não pensa muito! SITUAÇÃO 1 Você está num restaurante com nome francês. O cardápio é todo escrito em francês. Só o preço está em reais, muitos reais. Você pergunta o que significa o nome de um determinado prato ao maitre.
  • 22. Você tem certeza que o maitre está se segurando para não rir da sua pronúncia. O maitre levará mais tempo para descrever o prato do que você para comê-lo, pois o que vem é uma pasta vagamente marinha em cima de uma torrada do tamanho aproximado de uma moeda de um real, embora custe mais de 50. Você come de um golpe só, pensando no que os operários são obrigados a comer. Com inveja. Sua acompanhante pergunta qual é o gosto e você responde que não deu tempo para saber. O prato principal vem trocado. Você tem certeza que pediu um "boeuf à quelque chose" e o que vem é uma fatia de pato sem qualquer acompanhamento. Só. Bem que você tinha notado o nome: "Canard Melancolique". Você a princípio sente pena do pato pela sua solidão, mas muda de idéia quando tenta cortá-lo. Ele é um duro, pode agüentar. Quando vem a conta, você nota que cobraram pelo pato e pelo boeuf que não veio. Você: 1.paga assim mesmo para não dar à sua acompanhante a impressão de que se preocupa com coisas vulgares como dinheiro, ainda mais o brasileiro; 2.chama, discretamente, o maitre e indica o erro, sorrindo para dar a entender que, "merde", "alors", estas coisas acontecem; 3.vira a mesa, quebra uma garrafa de vinho contra a parede e, segurando o gargalo, grita:
  • 23. "Eu quero o gerente e é melhor ele vir sozinho!" SITUAÇÃO 2 Você foi convencido pela sua mulher, namorada ou amiga - se bem que GQEG não tem "amigas", quem tem "amigas" é veado - a entrar para um curso de Sensitivação Oriental. Você reluta em vestir a malha preta, mas acaba sucumbindo. O curso é dado por um japonês, provavelmente veado. Todos sentam num círculo em volta do japonês, na posição de lótus. Menos você que, está um pouco fora de forma, pode sentar na posição de arbusto despencado pelo vento. Durante quinze minutos todos devem fechar os olhos, juntar a ponta dos dedos e fazer "Ron", até que se integrem na Grande Corrente Universal que vem do Tibete, passa pelas cidades sagradas da Índia e do Oriente Médio e, estranhamente, bem em cima do prédio do japonês, antes de voltar para o Oriente. Uma vez atingido este estágio, todos devem virar para a pessoa ao seu lado e estudar seu rosto com as pontas dos dedos, não se surpreendendo se o japonês chegar por trás e puxar suas orelhas com força para lembrá-los da dualidade de todas as coisas. Durante o "Ron" você faz força, mas não consegue se integrar na grande corrente universal, embora comece sentir uma sensação diferente que depois revela-se ser cãibra. Você:
  • 24. 1.finge que atingiu a integração para não cortar a onda de ninguém; 2.finge que não entendeu bem as instruções, engatinha, fazendo "Ron", até ao lado daquela grande loura, e na hora de tocar o seu rosto erra o alvo e agarra os seus seios, recusando-se a soltá-los mesmo que o japonês quase arranque suas orelhas; ou 3. diz que não sentiu nada, que não vai seguir adiante com aquela bobagem, ainda mais de malha preta, e que é tudo coisa de veado. SITUAÇÃO 3 Você está numa reunião social, daquelas que há lugares de sobra para sentar mas todo mundo senta no chão. Você não quis ser diferente, se atirou num almofadão colorido e tarde demais descobriu que era a dona da casa. Sua mulher ou namorada está tendo uma conversa confidencial, de mãos dadas, com uma moça que é a cara do Charlton Heston, só que de bigode. O jantar é à americana e você não tem mais um joelho para colocar o seu copo de vinho enquanto usa os outros dois para equilibrar o prato e cortar o pedaço de pato, provavelmente o mesmo do restaurante francês, só que algumas semanas mais velho. Aí o cabeleireiro de cabelo mechado, ao seu lado oferece: - Se quiser usar o meu.. - O seu...? - Joelho. - Ah... - Ele está desocupado.
  • 25. - Mas eu não o conheço. - Eu apresento. Este é o meu joelho. - Não. Eu digo, você... - Eu, hein? Quanta formalidade. Aposto que se eu tivesse oferecendo a perna toda você ia estar pedindo referências. Ti-au. Você: 1.resolve entrar no espírito da festa e começa a tirar as calças: 2.leva seu copo de vinho para um canto e fica, entre divertido e irônico, observando aquele curioso painel humano e organizando um pensamento sobre estas sociedades tropicais, que passam da barbárie para a decadência sem a etapa intermediária de civilização; ou 3.pega sua mulher ou namorada e dá o fora, não sem antes derrubar o Charlton Heston com um soco. ESCORE Se você escolheu a resposta "1" para todas as situações, não é um GQEG. Se escolheu a resposta "2", não é um GQEG. E se escolheu a resposta "3", também não é um GQEG. Um GQEG acha que teste é coisa de veado. Profissão para um GQEG é motorista de caminhão. Daqueles que depois de comer um mocotó com duas Malzibier, dormem na estrada e, se sentem falta de mulher, ligam o motor e trepam com o radiador. No futebol, GQEG é beque central, cabeça de área ou centroavante. Meio de campo é coisa de veado. Mulher do amigo de Gaúcho que é Gaúcho é homem. GQEG não tem amizade colorida,
  • 26. que é a sacanagem por outros meios. GQEG não tem um relacionamento adulto, de confiança mútua, cada um respeitando a liberdade do outro, numa transa, assim, extra conjugal, mas assumida, entende? Que isso é papo de mulher pra dar pra todo mundo. GQEG acha que o movimento gay é coisa de veado. GQEG nunca vai a vernissage. GQEG diz que não tem preconceito, mas que se um dia estivesse na sala com todas as cantoras da música popular brasileira, não desencostaria da parede. Coisas que você jamais encontrará no bolso de um GQEG: batom neutro para lábios ressequidos, pastilhas para refrescar o hálito, o telefone do Gabeira, entradas para um espetáculo de mímica. Coisas que você jamais deve dizer a um GQEG: "ton sur ton", "vamos ao ballet?", "prove estas cebolinhas". Coisas que você jamais ouvirá um GQEG dizer: "assumir", "amei", "minha porção mulher", "acho que o bordeau fica melhor no sofá e a ráfia em cima do pufe". GQEG acha que ainda há tempo de salvar o Brasil e já conseguiu a adesão de todos os Homens que são Homens que restam no país para uma campanha de regeneração do macho brasileiro. Os quatro só não têm se reunido muito seguidamente porque pode parecer coisa de veado. O texto acima, foi publicado nos livros "A mulher do Silva" e em "
  • 27. As mentiras que os homens contam" sob o título "Homem que é homem". Incidente na Casa do Ferreiro Luis Fernando Veríssimo Pela janela vê-se uma floresta com macacos. Cada um no seu galho. Dois ou três olham o rabo do vizinho, mas a maioria cuida do seu. Há também um estranho moinho, movido por águas passadas. Pelo mato, aparentemente perdido — não tem cachorro — passa Maomé a caminho da montanha, para evitar um terremoto. Dentro da casa, o filho do enforcado e o ferreiro tomam chá. Ferreiro — Nem só de pão vive o homem. Filho do enforcado — Comigo é pão, pão, queijo, queijo. Ferreiro — Um sanduíche! Você está com a faca e o queijo na mão. Cuidado. Filho do enforcado — Por quê? Ferreiro — É uma faca de dois gumes. (Entra o cego). Cego — Eu não quero ver! Eu não quero ver! Ferreiro — Tirem esse cego daqui! (Entra o guarda com o mentiroso). Guarda (ofegante) — Peguei o mentiroso, mas o coxo fugiu. Cego — Eu não quero ver! (Entra o vendedor de pombas com uma pomba na mão e duas voando). Filho do enforcado (interessado) — Quanto cada pomba? Vendedor de pombas — Esta na mão é 50. As duas voando eu faço por 60 o par. Cego (caminhando na direção do vendedor de pombas) — Não me mostra que eu não quero ver.
  • 28. (O cego se choca com o vendedor de pombas, que larga a pomba que tinha na mão. Agora são três pombas voando sob o telhado de vidro da casa). Ferreiro — Esse cego está cada vez pior! Guarda — Eu vou atrás do coxo. Cuidem do mentiroso por mim. Amarrem com uma corda. Filho do enforcado (com raiva) — Na minha casa você não diria isso! (O guarda fica confuso, mas resolve não responder. Sai pela porta e volta em seguida). Guarda (para o ferreiro) — Tem um pobre aí fora que quer falar com você. Algo sobre uma esmola muito grande. Parece desconfiado. Ferreiro — É a história. Quem dá aos pobres empresta a Deus, mas acho que exagerei. (Entra o pobre). Pobre (para o ferreiro) — Olha aqui, doutor. Essa esmola que o senhor me deu. O que é que o senhor está querendo? Não sei não. Dá para desconfiar... Ferreiro — Está bem. Deixa a esmola e pega uma pomba. Cego — Essa eu nem quero ver... (Entra o mercador). Ferreiro (para o mercador) — Foi bom você chegar. Me ajuda a amarrar o mentiroso com uma... (Olha para o filho do enforcado). A amarrar o mentiroso. Mercador (com a mão atrás da orelha) — Hein? Cego — Eu não quero ver! Mercador — O quê? Pobre — Consegui! Peguei uma pomba! Cego — Não me mostra. Mercador — Como?
  • 29. Pobre — Agora é só arranjar um espeto de ferro que eu faço um galeto. Mercador — Hein? Ferreiro (perdendo a paciência) — Me dêem uma corda. (O filho do enforcado vai embora, furioso). Pobre (para o ferreiro) — Me arranja um espeto de ferro? Ferreiro — Nesta casa só tem espeto de pau. (Uma pedra fura o telhado de vidro, obviamente atirada pelo filho do enforcado, e pega na perna do mentiroso. O mentiroso sai mancando pela porta enquanto as duas pombas voam pelo buraco no telhado). Mentiroso (antes de sair) — Agora quero ver aquele guarda me pegar! (Entra o último, de tapa-olho, pela porta de trás). Ferreiro — Como é que você entrou aqui? Último — Arrombei a porta. Ferreiro — Vou ter que arranjar uma tranca. De pau, claro. Último — Vim avisar que já é verão. Vi não uma mas duas andorinhas voando aí fora. Mercador — Hein? Ferreiro — Não era andorinha, era pomba. E das baratas. Pobre (para o último) — Ei, você aí de um olho só... Cego (prostrando-se ao chão por engano na frente do mercador) - Meu rei. Mercador — O quê? Ferreiro — Chega! Chega! Todos para fora! A porta da rua é serventia da casa! (Todos se precipitam para a porta, menos o cego, que vai de encontro à parede. Mas o último protesta).
  • 30. Último — Parem! Eu serei o primeiro. (Todos saem com o último na frente. O cego vai atrás). Cego — Meu rei! Meu rei! Texto extraído do livro “O Gigolô das Palavras”, L&PM Editores – Porto Alegre, 1982, pág. 37. O Desafio Luis Fernando Veríssimo Um publicitário morreu e, como era da área de atendimento e mau para o pessoal da criação, foi para o inferno. O Diabo, que todos os dias recebe um print-out com nome e profissão d e todos os admitidos na data anterior, mandou que o publicitário fosse tirado da grelha e levado ao seu escritório. Queria fazer-lhe uma proposta. Se ele aceitasse sua carga de castigos diminuiria e ele teria regalias. Ar- condicionado, etc. — Qual é a proposta? — Temos que melhorar a imagem do inferno — disse o Diabo. — Falam as piores coisas do inferno. Queremos mudar isso. — Mas o que é que se pode dizer de bom disto aqui? Nada. — Por isso é que precisamos de publicidade. O publicitário topou. Era um desafio. E as regalias eram atraentes. Quis saber algumas coisas que diziam do Inferno e que mais irritavam o Diabo.
  • 31. — Bem. Dizem que aqui todos os cozinheiros são ingleses, todos os garçons são italianos, todos os motoristas de táxi são franceses e todos os humoristas alemães. — E é verdade? — É. — Hmmm — disse o publicitário. — Uma das técnicas que podemos usar é transformar desvantagem em vantagem. Pegar a coisa pelo outro lado. Sua cabeça já estava funcionando. Continuou: — Os cozinheiros ingleses, por exemplo. Podemos dizer que a comida é tão ruim que é o local ideal para emagrecer. Além de tudo, já é uma sauna. — Bom, bom. — Garçons italianos. Servem a mesa pessimamente. Mas cantam, conversam, brigam. Isto é, ajudam a distrair a atenção da comida inglesa. — Ótimo. — Motoristas franceses. São mal-humorados e grosseiros. Isso desestimula o uso do táxi e promove as caminhadas. É econômico e saudável. Também provoca a indignação generalizada, une a população e combate a apatia. — Muito bom! — Uma situação que não seria amenizada pelos humoristas. Os humoristas, como se sabe, não têm qualquer função social. Eles só servem para desmobilizar as pessoas, criar um clima de lassidão e deboche, quando não de perigosa alienação. Isto não acontece com os humoristas alemães, cuja falta de graça
  • 32. só aumenta a revolta geral, mantendo a população ativa e séria. O alívio é dado pelos garçons italianos. — Perfeito! — exclamou o Diabo. — Já vi que acertei. Quando podemos começar a campanha? — Espere um pouquinho — disse o publicitário. — Temos que combinar algumas coisas, antes. Por exemplo: a verba. — Isto já não é comigo — disse o Diabo. — É com o pessoal da área econômica. Você pode tratar com eles. E aproveitar para acertar também o seu contrato. Com isto o Diabo apertou um botão intercomunicador vermelho que havia sobre a sua mesa e disse: — Dona Henriqueta, diga para o Silva vir até a minha sala. — Silva? — estranhou o publicitário. — Nosso gerente financeiro. Toda a nossa economia é dirigida por brasileiros. Aí o publicitário suspirou, levantou e disse: — Me devolve pra grelha... Texto extraído do livro "A Mãe do Freud", L&PM Editores, Porto Alegre, 1985, pág. 93. O Popular Luis Fernando Veríssimo Um número recente da revista Veja trazia fotografias sensacionais das (como diria um inglês) "incomodações" na Irlanda do Norte. Todas eram de ganhar prêmio, mas uma me impressionou especialmente.
  • 33. Nela aparecia a versão irlandesa do Popular. É uma figura que sempre me intrigou. A foto da Veja mostra um soldado inglês espichado na calçada, protegido pela quina de um prédio, o rosto tapado por uma máscara de gás, fazendo pontaria contra um franco-atirador local. Atrás dele, agachados no vão de uma porta, dois ou três dos seus companheiros, também em plena parafernália de guerra, esperam tensamente para entrar no tiroteio. Há fumaça por todos os lados, um clima de medo e drama. Mas ao lado do soldado que atira, em primeiro plano, está o Popular. De pé, olhando com algum interesse o que se passa, com as mãos nos bolsos e um embrulho embaixo do braço. O Popular foi no armazém e na volta parou para ver a guerra. Sempre pensei que o Popular fosse uma figura exclusivamente brasileira. Nas nossas incomodações políticas, no tempo em que ainda havia política no Brasil, o Popular não perdia uma. Os jornais mostravam tanques na Cinelândia protegidos por soldados de baioneta calada e lá estava o Popular, com um embrulho embaixo do braço, examinando as correias de um dos tanques. Pancadaria na Avenida. Corria polícia, corria manifestante, corria todo mundo, menos o Popular. O Popular assistia. Cheguei a imaginar, certa vez, uma série de cartuns em que o Popular apareceria assistindo ao Descobrimento do Brasil, à Primeira Missa, ao Grito da Independência,
  • 34. à Proclamação da República... Sempre com seu embrulho embaixo do braço. E de camisa esporte clara para fora das calças (o Popular irlandês veste terno e sobretudo contra o frio, o Popular tropical é muito mais Popular). Não se deve confundir o Popular com o Transeunte, também conhecido como o Passante. O Transeunte ou Passante às vezes leva uma bala perdida, o Popular nunca. O Transeunte às vezes vai preso por engano, o Popular é o que fica assistindo à sua prisão. O Transeunte, não raro, se compromete com os acontecimentos. Aplaude o visitante ilustre que passa, por exemplo. O Popular fica com as mãos no bolso e quase sempre presta mais atenção ao motociclo dos batedores do que à figura ilustre. O Transeunte pode se entusiasmar momentaneamente com uma frase de comício ou um drama na rua, e aí o Popular é o que fica olhando o Transeunte. O Popular não tem opinião sobre as coisas. Quando o rádio ou a televisão resolvem ouvir "a opinião de um popular" na rua, sempre se enganam. O Popular nunca é o entrevistado, é o sujeito que está atrás do entrevistado, olhando para a câmara. O Popular não merece nem os méritos nem a calhordice que a imprensa lhe atribui. Alguém que é "socorrido por populares", outro, menos feliz, que é "linchado por populares"... Engano. Onde há um bando de populares não há o Popular. O Popular é a antimultidão. Sua única virtude é a sua singularidade.
  • 35. E um certo ceticismo inconsciente diante da História e das coisas. Não é que o Popular desmereça o Poder e os grandes lances da Humanidade, é que ele tem uma fatal curiosidade pelo detalhe supérfluo, um fascínio irresistível pelo insignificante. Nas revoluções, o que atrai o Popular é a estranha postura de um soldado deitado no chão, o mecanismo de um tanque, as lentes de uma câmara. O Popular é uma figura tipicamente urbana. Não tem domicílio certo. Seu habitat natural é a margem dos acontecimentos. E -- este é o seu maior mistério, a chave da sua existência -- ninguém jamais conseguiu descobrir o que o Popular leva naquele embrulho. E tem mais. O dia que pegarem um Popular para desvendarem o mistério, será inútil. Vão se enganar outra vez. O Popular verdadeiro estará atrás do preso, assistindo tudo. Texto extraído do livro "O Gigolô das Palavras", L&PM Editores - Porto Alegre, 1982. Os Moralistas Luis Fernando Veríssimo — Você pensou bem no que vai fazer, Paulo? — Pensei. Já estou decidido. Agora não volto atrás. — Olhe lá, hein, rapaz... Paulo está ao mesmo tempo comovido e surpreso com os três amigos. Assim que souberam do seu divórcio iminente, correram para visitá-lo no hotel.
  • 36. A solidariedade lhe faz bem. Mas não entende aquela insistência deles em dissuadi-lo. Afinal, todos sabiam que ele não se acertava com a mulher. — Pense um pouco mais, Paulo. Reflita. Essas decisões súbitas... — Mas que súbitas? Estamos praticamente separados há um ano! — Dê outra chance ao seu casamento, Paulo. — A Margarida é uma ótima mulher. — Espera um pouquinho. Você mesmo deixou de freqüentar nossa casa por causa da Margarida. Depois que ela chamou vocês de bêbados e expulsou todo mundo. — E fez muito bem. Nós estávamos bêbados e tínhamos que ser expulsos. — Outra coisa, Paulo. O divórcio. Sei lá. — Eu não entendo mais nada. Você sempre defendeu o divórcio! — É. Mas quando acontece com um amigo... — Olha, Paulo. Eu não sou moralista. Mas acho a família uma coisa importantíssima. Acho que a família merece qualquer sacrifício. — Pense nas crianças, Paulo. No trauma. — Mas nós não temos filhos! — Nos filhos dos outros, então. No mau exemplo. — Mas isto é um absurdo! Vocês estão falando como se fosse o fim do mundo. Hoje, o divórcio é uma coisa comum. Não vai mudar nada. — Como, não muda nada? — Muda tudo! — Você não sabe o que está dizendo, Paulo! Muda tudo. — Muda o quê? — Bom, pra começar, você não vai poder mais freqüentar as nossas casas.
  • 37. — As mulheres não vão tolerar. — Você se transformará num pária social, Paulo. — O quê?! — Fora de brincadeira. Um reprobo. — Puxa. Eu nunca pensei que vocês... — Pense bem, Paulo. Dê tempo ao tempo. — Deixe pra decidir depois. Passado o verão. — Reflita, Paulo. É uma decisão seriíssima. Deixe para mais tarde. — Está bem. Se vocês insistem... Na saída, os três amigos conversam: — Será que ele se convenceu? — Acho que sim. Pelo menos vai adiar. — E no solteiros contra casados da praia, este ano, ainda teremos ele no gol. — Também, a idéia dele. Largar o gol dos casados logo agora. Em cima da hora. Quando não dava mais para arranjar substituto. — Os casados nunca terão um goleiro como ele. — Se insistirmos bastante, ele desiste definitivamente do divórcio. — Vai agüentar a Margarida pelo resto da vida. — Pelo time dos casados, qualquer sacrifício serve. — Me diz uma coisa. Como divorciado, ele podia jogar no time dos solteiros? — Podia. — Impensável. — É. — Outra coisa. — O quê? — Não é reprobo. É réprobo. Acento no "e". — Mas funcionou, não funcionou?
  • 38. Texto extraído do livro "As Mentiras que os Homens Contam" , Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2000, pág. 41. Povo Luis Fernando Veríssimo — Geneci... — Senhora? — Preciso falar com você. — O que foi? O almoço não estava bom? — O almoço estava ótimo. Não é isso. Precisamos conversar. — Aqui na cozinha? — Aqui mesmo. O seu patrão não pode ouvir. — Sim, senhora. — Você... — Foi o copo que eu quebrei? — Quer ficar quieta e me escutar? — Sim, senhora. — Não foi o copo. Você vai sair na escola, certo? — Vou, sim senhora. Mas se a senhora quiser que eu venha na Terça... — Não é isso, Geneci! — Desculpe. — É que eu... Geneci, eu queria sair na sua escola. — Mas... — Ou fazer alguma coisa. Qualquer coisa. Não agüento ficar fora do Carnaval. — Mas... — Vocês não têm, sei lá, uma ala das patroas? Qualquer coisa. — Se a senhora tivesse me falado antes...
  • 39. — Eu sei. Agora é tarde. Para a fantasia e tudo o mais. Mas eu improviso uma baiana. Deusa grega, que é só um lençol. — Não sei... — Saio na bateria. Empurrando alegoria. — Olhe que não é fácil... — Eu sei. Mas eu quero participar. Eu até sambo direitinho. Você nunca me viu sambar? Nos bailes do clube, por exemplo. Toca um samba e lá vou eu. Até acho que tenho um pé na cozinha. Quer dizer. Desculpe. — Tudo bem. — Eu também sou povo, Geneci! Quando vejo uma escola passar, fico toda arrepiada. — Mas a senhora pode assistir. — Mas eu quero participar, você não entende? No meio da massa. Sentir o que o povo sente. Vibrar, cantar, pular, suar. — Olhe... — Por que só vocês podem ser povo? Eu também tenho direito. — Não sei... — Se precisar pagar, eu pago. — Não é isso. É que... — Está bem. Olhe aqui. Não preciso nem sair na avenida. Posso costurar. Ajudar a organizar o pessoal. Ajudar no transporte. O Alfa Romeo está aí mesmo. Tem a Caravan, se o patrão não der falta. É a emoção de participar que me interessa, entende? Poder dizer "a minha escola...". Eu teria assunto para o resto do ano. Minhas amigas ficariam loucas de inveja. Alguns iam torcer o nariz, claro. Mas eu não sou assim. Eu sou legal.
  • 40. Eu não sou legal com você, Geneci? Sempre tratei você de igual para igual. — Tratou, sim senhora. — Meu Deus, a ama-de-leite da minha mãe era preta! — Sim, senhora. — Geneci, é um favor que você me faz. Em nome da nossa velha amizade. Faço qualquer coisa pela nossa escola, Geneci. — Bom, se a senhora está mesmo disposta... — Qualquer coisa, Geneci. — É que o Rudinei e Fátima Araci não têm com quem ficar. — Quem? — Minhas crianças. — Ah. — Se a senhora pudesse ficar com eles enquanto eu desfilo... — Certo. Bom. Vou pensar. Depois a gente vê. — Eu posso trazer elas e... — Já disse que vou pensar, Geneci. Sirva o cafezinho na sala. "Extraído do livro "A mãe do Freud", LP&M Editores Ltda. - Porto Alegre, 1985, pág. 55. Terrorismo Luis Fernando Veríssimo Betty insistia, queria conhecer a Europa, e Bob resistia. Pense só, disse Betty, nós num bom restaurante francês, você dando um dinheiro ao maître e pedidndo a melhor mesa, e nós comendo aquela comida maravilhosa.
  • 41. Bob fez uma careta de desgosto. Numa frase Betty incluíra tudo que o revoltava na idéia de ir à Europa: lugares estranhos onde falavam línguas estranhas e você pagava muito mais para comer coisas estranhas. E maîtres franceses. Bob ouvira falar de maîtres franceses. Sabia que eles gostavam de humilhar turistas americanos. Eles se reuniam depois do trabalho, os patifes, soltavam a gravatinha preta, desabotoavam a camisa engomada e trocavam histórias cruéis. "Hoje fiz um americano chorar...". E davam gargalhadas. Ele sabia. Ou superiores risadinhas francesas. Pois não o humilhariam, pensou Bob, desembarcando em Paris, já que Betty tanto insistiu que o carregou para a Europa. Não me humilharão. Não com o que eu carrego no bolso, escondido da Betty. Está certo, só usarei em autodefesa. Mas eles que não tentem nada comigo, pensou Bob. Na noite seguinte Betty e Bob foram ao seu primeiro restaurante em Paris. Quando soube que eles não tinham reserva o maître começou a revirar os olhos como quem vai dizer "Ah, les innocents!", mas foi interrompido por uma nota de cem dólares estrategicamente colocada na sua mão por Bob e lembrou-se que alguém cancelara a reserva e havia, s im, uma mesa. Num canto escuro e pouco freqüentado, principalmente por garçons. Betty e Bob esforçaram-se para ler o menu, prejudicados pela pouca luz e pelo fato do menu ser em francês e, apesar de repetidos sinais de Bob
  • 42. -- Betty conseguiu dissuadi-lo de bater com a faca no lado do copo vazio --, ninguém apareceu para ajudá-los ou tomar seu pedido ou apenas saber como estavam passando. Finalmente Bob resolveu agir. Olhou em volta. Na mesa mais próxima um casal de meia-idade, que chegara depois deles e já estava no meio da refeição, comia pequenas aves aparentemente sacrificadas na infância e trazidas à mesa em meio a delicados arranjos de flores de nabo. Bob levantou-se da mesa, ao mesmo tempo que tirava o pequeno frasco do bolso e, rapidamente, seqüestrou o prato com o pequeno pássaro da frente do homem de meia-idade, segurando-o no ar com uma mão e ameaçando derramar nele o conteúdo do frasco que segurava na outra. -- Ninguém se mexa! -- disse Bob. Espanto e paralisia no restaurante. -- Isto é ketchup -- anunciou Bob. -- Agh! Bob gostou de ver que o som de repulsa escapara dos lábio do maître. Continuou: -- Se minha mulher e eu não começarmos a ser servidos no próximo minuto, esse passarinho inocente será sepultado em ketchup. E não pensem que eu não sei usá-lo. -- Calma! -- pediu o maître, ao mesmo tempo que instruía uma equipe, com gestos, a dar atenção à mesa dos americanos. -- O que vocês querem? -- Para começar, um cardápio em inglês. -- Impossível.
  • 43. Bob aumentou a inclinação do frasco. -- Não! O grito foi do chef, que aparecera da cozinha para ver o que estava acontecendo. -- Façam tudo que ele pedir! -- ordenou o chef quase aos prantos. Bob sorria triunfalmente. Luis Fernando Veríssimo morou durante oito meses em Paris, a exemplo do que já havia feito em New York e Roma. "Traçando Paris", editado pela Artes e Ofícios - São Paulo,1997 O casamento Luis Fernando Verissimo — Eu quero ter um casamento tradicional, papai. — Sim, minha filha. — Exatamente como você! — Ótimo. — Que música tocaram no casamento de vocês? — Não tenho certeza, mas acho que era Mendelssohn. Ou Mendelssohn é o d a Marcha Fúnebre? Não, era Mendelssohn mesmo. — Mendelssohn, Mendelssohn... Acho que não conheço. Canta alguma coisa dele ai. — Ah, não posso, minha filha. Era o que o órgão tocava em todos os casamentos, no meu tempo. — O nosso não vai ter órgão, é claro. — Ah, não? — Não. Um amigo do Varum tem um sintetizador eletrônico e ele vai tocar na cerimônia. O Padre Tuco já deixou. Só que esse Mendelssohn, não sei,não... — É, acho que no sintetizador não fica bem...
  • 44. — Quem sabe alguma coisa do Queen... — Quem? — O Queen. — Não é a Queen? — Não. O Queen. E o nome de um conjunto, papai. — Ah, certo. O Queen. No sintetizador. — Acho que vai ser o maior barato! — Só o síntetizador ou... — Não. Claro que precisa ter uma guitarra elétrica, um baixo elétrico... — Claro. Quer dizer, tudo bem tradicional. — Isso. * — Eu sei que não é da minha conta. Afinal, eu sou só o pai da noiva. Um nada. Na recepção vão me confundir com um garçom. Se ainda me derem gorjeta, tudo bem. Mas alguém pode me dizer por que chamam o nosso futuro genro de Varum? — Eu sabia... — O quê? — Que você já ia começar a implicar com ele. — Eu não estou implicando. Eu gosto dele. Eu até o beijaria na testa se ele algum dia tirasse aquele capacete de motoqueiro. — Eles nem casaram e você já está implicando. — Mas que implicância? É um ótimo rapaz. Tem uma boa cabeça. Pelo menos eu imagino que seja cabeça o que ele tem debaixo do capacete. — É um belo rapaz. — E eu não sei? Há quase um ano que ele freqüenta a nossa casa diariamente. E como se fosse um filho. Eu às vezes fico esperando
  • 45. que ele me peça uma mesada. Um belo rapaz. Mas por que Varum? — E o apelido e pronto. — Ah, então é isso. Você explicou tudo. Obrigado. — Quanto mais se aproxima o dia do casamento, mais intratável você fica. — Desculpe. Eu sou apenas o pai. Um inseto. Me esmigalha. Eu mereço. * — Aí xará! — Ôi, Varum, como vai? A sua noiva está se arrumando. Ela já desce. Senta aí um pouquinho. Tira o capacete... — Essa noivinha... — Vocês vão ao cinema? — Ela não lhe disse? Nós vamos acampar. — Acampar? Só vocês dois? — É. Qual é o galho? — Não. E que... Sei lá. — Já sei o que você tá pensando, cara. Saquei. — É! Você sabe como é... — Saquei. Você está pensando que só nós dois, no meio do mato, pode pintar um lance. — No mínimo isso. Um lance. Até dois. — Mas qualé, xará. Não tem disso não. Está em falta. Ôi,gatona! — Oi, Varum. O que é que você e papai estão conversando? — Não, o velho aí tá preocupado que nós dois, acampados pode pintar um lance. Eu já disse que não tem disso. — Ô, papai. Não tem perigo nenhum. Nem cobra. E qualquer coisa o Varum me defende. Eu Jane, ele Tarzan. — Só não dou o meu grito para proteger os cristais. — Vamos?
  • 46. — Vamlá? — Mas... Vocês vão acampar de motocicleta? — De motoca, cara. Vá-rum, vá-rum. * — Descobri por que ele se chama Varum. — O quê? Você quer alguma coisa? — Disse que descobri por que ele se chama Varum. — Você me acordou só para dizer isto? — Você estava dormindo? — É o que eu costumo fazer às três da manhã, todos os dias. Você não dormiu? — Ainda não. Sabe como é que ele chama ela? Gatona. Por um estranho processo de degeneração genética, eu sou pai de uma gatona. Varum e Gatona, a dupla dinâmica, está neste momento, no meio do mato. — Então é isso que está preocupando você? — E não é para preocupar? Você também não devia estar dormindo. A gatona é sua também. — Mas não tem perigo nenhum! — Como, não tem perigo? Um homem e uma mulher, dentro de uma tenda, no meio do mato? — O que é que pode acontecer? — Se você já esqueceu, é melhor ir dormir mesmo. — Não tem perigo nenhum. O máximo que pode acontecer é entrar um sapo na tenda. — Ou você está falando em linguagem figurada ou eu é que estou ficando louco. — Vai dormir. — Gatona. Minha própria filha... — Você também tinha um apelido pra mim, durante o nosso noivado.
  • 47. — Eu prefiro não ouvir. — Você me chamava de Formosura. Pensando bem, você também tinha um apelido. — Por favor. Reminiscências não. Comi faz pouco. — Kid Gordini. Você não se lembra? Você e o seu Gordini envenenado. — Tão envenenado que morreu, nas minhas mãos. Um dia levei num mecânico e disse que a bateria estava ruim. Ele disse que a bateria estava boa, o resto do carro é que tinha que ser trocado. — Viu só? E você se queixa do Varum. Kid Gordini! — Mas eu nunca levei você para o mato no meu Gordini. — Não levou porque meu pai matava você. — Hmmmm. — “Hmmmm” o quê? — Você me deu uma idéia. Assassinato... — Não seja bobo. — Um golpe bem aplicado... Na cabeça não porque ela está sempre bem protegida. Sim. Kid Gordini ataca outra vez... — O que você tem é ciúme. Nisso tudo, tem uma coisa que me preocupa acima de tudo que é o que me tira o sono. — O quê? — Será que ele tira o capacete para dormir? * — Bom dia. — Bom dia. — Eu sou o pai da noiva. Da Maria Helena. — Maria Helena... Ah, a Gatona! — Essa.
  • 48. — Que prazer. Alguma dúvida sobre a cerimônia? — Não, Padre Osni. E que... — Pode me chamar de Tuco. E como me chamam. — Não, Padre Tuco. E que a Ga... A Maria Helena me disse que ela pretende entrar dançando na igreja. O conjunto toca um rock e a noiva entra dançando, é isso? — É. Um rock suave. Não é rock pauleira. — Ah, não é rock pauleira. Sei. Bom, isto muda tudo. — Muitos jovens estão fazendo isto. A noiva entra dançando e na saída os dois saem dançando. O senhor sabe, a Igreja hoje está diferente. É isto que está atraindo os jovens de volta à Igreja. Temos que evoluir com os tempos. — Claro. Mas, Padre Osni... — Tuco. — Padre Tuco, tem uma coisa. O pai da noiva também tem que dançar? — Bom, isto depende do senhor. O senhor dança? — Agora não, obrigado. Quer dizer, dançava. Até ganhei concurso de chá-chá-chá. Acho que você ainda não era nascido. Mas estou meio fora de forma e... — Ensaie, ensaie. — Certo. — Peça para a Gatona ensaiar com o senhor. — Claro. — Não é rock pauleira. — Certo. Um roquezinho suave. Quem sabe um chá-chá-chá? Não. Esquece, esquece. * — Você está nervoso, papai? — Um pouco. E se a gente adiasse o casamento? Eu preciso uma
  • 49. semana a mais de ensaio. Só uma semana. — Eu estou bonita? — Linda. Quando estiver pronta vai ficar uma beleza. — Mas eu estou pronta. — Você vai se casar assim? — Você não gosta? — É... diferente, né? Essa coroa de flores, os pés descalços... — Não é um barato? * — Um brinde, xará! — Um brinde, Varum. — Você estava um estouro entrando naquela igreja. Parecia um bailarino profissional. — Pois é. Improvisei uns passos. Acho que me sai bem. — Muito bem! — Não sei se você sabe que eu fui o rei do chá-chá-chá. — Do quê? — Chá-chá-chá. Uma dança que havia. Você ainda não era nascido. — Bota tempo nisso. — Eu tinha um Gordini envenenado. Tão envenenado que morreu. Um dia levei no... — Tinha um quê? — Gordini. Você sabe. Um carro. Varum, varum. — Ah. — Esquece. — Um brinde ao sogro bailarino. — Um brinde. Eu sei que vocês vão ser muito felizes. — O que é que você achou da minha beca, cara? — Sensacional. Nunca tinha visto um noivo de macacão vermelho, antes.
  • 50. Gostei. Confesso que quando entrei na igreja e vi você lá no altar, de capacete... — Vacilou. — Vacilei. Mas aí vi que o Padre Tuco estava de boné e pensei, tudo bem. Temos que evoluir com os tempos. E ataquei meu rock suave. Texto extraído do livro "O analista de Bagé", L&PM Editores – Porto Alegre, 1981, pág. 13 O Analista de Bagé Luis Fernando Verissimo Certas cidades não conseguem se livrar da reputação injusta que, por alguma razão, possuem. Algumas das pessoas mais sensíveis e menos grossas que eu conheço vem de Bagé, assim como algumas das menos afetadas são de Pelotas. Mas não adianta. Estas histórias do psicanalista de Bagé são provavelmente apócrifas (como diria o próprio analista de Bagé, história apócrifa é mentira bem educada) mas, pensando bem, ele não poderia vir de outro lugar. Pues, diz que o divã no consultório do analista de Bagé é forrado com um pelego. Ele recebe os pacientes de bombacha e pé no chão. — Buenas. Vá entrando e se abanque, índio velho. — O senhor quer que eu deite logo no divã? — Bom, se o amigo quiser dançar uma marca, antes, esteja a gosto. Mas eu prefiro ver o vivente estendido e charlando que nem china da fronteira,
  • 51. pra não perder tempo nem dinheiro. — Certo, certo. Eu... — Aceita um mate? — Um quê? Ah, não. Obrigado. — Pos desembucha. — Antes, eu queria saber. O senhor é freudiano? — Sou e sustento. Mais ortodoxo que reclame de xarope. — Certo. Bem. Acho que o meu problema é com a minha mãe — Outro. — Outro? — Complexo de Édipo. Dá mais que pereba em moleque. — E o senhor acha... — Eu acho uma pôca vergonha. — Mas... — Vai te metê na zona e deixa a velha em paz, tchê! ~//~ Contam que outra vez um casal pediu para consultar, juntos, o analista de Bagé. Ele, a princípio, não achou muito ortodoxo. — Quem gosta de aglomeramento é mosca em bicheira... Mas acabou concordando. — Se abanquem, se abanquem no más. Mas que parelha buenacha, tchê! . Qual é o causo? — Bem — disse o home — é que nós tivemos um desentendimento... — Mas tu também é um bagual. Tu não sabe que em mulher e cavalo novo não se mete a espora? — Eu não meti a espora. Não é, meu bem? — Não fala comigo! — Mas essa aí tá mais nervosa que gato em dia de faxina.
  • 52. — Ela tem um problema de carência afetiva... — Eu não sou de muita frescura. Lá de onde eu venho, carência afetiva é falta de homem. — Nós estamos justamente atravessando uma crise de relacionamento porque ela tem procurado experiências extraconjugais e... — Epa. Opa. Quer dizer que a negra velha é que nem luva de maquinista? Tão folgada que qualquer um bota a mão? — Nós somos pessoas modernas. Ela está tentando encontrar o verdadeiro eu, entende? — Ela tá procurando o verdadeiro tu nos outros? — O verdadeiro eu, não. O verdadeiro eu dela. — Mas isto tá ficando mais enrolado que lingüiça de venda. Te deita no pelego. — Eu? — Ela. Tu espera na salinha. Texto extraído do livro "O gigolô das palavras", L&PM Editores – Porto Alegre, 1982, pág. 78. Clic Luis Fernando Verissimo Cidadão se descuidou e roubaram seu celular. Como era um executivo e não sabia mais viver sem celular, ficou furioso. Deu parte do roubo, depois teve uma idéia. Ligou para o número do telefone. Atendeu uma mulher. — Aloa. — Quem fala? — Com quem quer falar?
  • 53. — O dono desse telefone. — Ele não pode atender. — Quer chamá-lo, por favor? — Ele esta no banheiro. Eu posso anotar o recado? — Bate na porta e chama esse vagabundo agora. Clic. A mulher desligou. O cidadão controlou-se. Ligou de novo. — Aloa. — Escute. Desculpe o jeito que eu falei antes. Eu preciso falar com ele, viu? É urgente. — Ele já vai sair do banheiro. — Você é a... — Uma amiga. — Como é seu nome? — Quem quer saber? O cidadão inventou um nome. — Taborda. (Por que Taborda, meu Deus?) Sou primo dele. — Primo do Amleto? Amleto. O safado já tinha um nome. — É. De Quaraí. — Eu não sabia que o Amleto tinha um primo de Quaraí. — Pois é. — Carol. — Hein? — Meu nome. É Carol. — Ah. Vocês são... — Não, não. Nos conhecemos há pouco. — Escute Carol. Eu trouxe uma encomenda para o Amleto. De Quaraí. Uma pessegada, mas não me lembro do endereço. — Eu também não sei o endereço dele. — Mas vocês...
  • 54. — Nós estamos num motel. Este telefone é celular. — Ah. — Vem cá. Como você sabia o número do telefone dele? Ele recém- comprou. — Ele disse que comprou? — Por que? O cidadão não se conteve. — Porque ele não comprou, não. Ele roubou. Está entendendo? Roubou. De mim! — Não acredito. — Ah, não acredita? Então pergunta pra ele. Bate na porta do banheiro e pergunta. — O Amleto não roubaria um telefone do próprio primo. E Carol desligou de novo. O cidadão deixou passar um tempo, enquanto se recuperava. Depois ligou. — Aloa. — Carol, é o Tobias. — Quem? — O Taborda. Por favor, chame o Amleto. — Ele continua no banheiro. — Em que motel vocês estão? — Por que? — Carol, você parece ser uma boa moça. Eu sei que você gosta do Amleto... — Recém nos conhecemos. — Mas você simpatizou. Estou certo? Você não quer acreditar que ele seja um ladrão. Mas ele é, Carol. Enfrente a realidade. O Amleto pode Ter muitas qualidades, sei lá. Há quanto tempo vocês saem juntos?
  • 55. — Esta é a primeira vez. — Vocês nunca tinham se visto antes? — Já, já. Mas, assim, só conversa. — E você nem sabe o endereço dele, Carol. Na verdade você não sabe nada sobre ele. Não sabia que ele é de Quaraí. — Pensei que fosse goiano. — Ai esta, Carol. Isso diz tudo. Um cara que se faz passar por goiano... — Não, não. Eu é que pensei. — Carol, ele ainda está no banheiro? — Está. — Então sai daí, Carol. Pegue as suas coisas e saia. Esse negocio pode acabar mal. Você pode ser envolvida. — Saia daí enquanto é tempo, Carol! — Mas... — Eu sei. Você não precisa dizer. Eu sei. Você não quer acabar a amizade. Vocês se dão bem, ele é muito legal. Mas ele é um ladrão, Carol. Um bandido. Quem rouba celular é capaz de tudo. Sua vida corre perigo. — Ele esta saindo do banheiro. — Corra, Carol! Leve o telefone e corra! Daqui a pouco eu ligo para saber onde você está. Clic. Dez minutos depois, o cidadão liga de novo. — Aloa. — Carol, onde você está? — O Amleto está aqui do meu lado e pediu para lhe dizer uma coisa. — Carol, eu... — Nós conversamos e ele quer pedir desculpas a você. Diz que vai devolver o telefone, que foi só brincadeira.
  • 56. Jurou que não vai fazer mais isso. O cidadão engoliu a raiva. Depois de alguns segundos falou: — Como ele vai devolver o telefone? — Domingo, no almoço da tia Eloá. Diz que encontra você lá. — Carol, não... Mas Carol já tinha desligado. O cidadão precisou de mais cinco minutos para se recompor. Depois ligou outra vez. —Aloa. Pelo ruído o cidadão deduziu que ela estava dentro de um carro em movimento. — Carol, é o Torquatro. — Quem? — Não interessa! Escute aqui. Você está sendo cúmplice de um crime. Esse telefone que você tem na mão, esta me entendendo? Esse telefone que agora tem suas impressões digitais. É meu! Esse salafrário roubou meu celular! — Mas ele disse que vai devolver na... — Não existe Tia Eloá nenhuma! Eu não sou primo dele. Nem conheço esse cafajeste. Ele esta mentindo para você, Carol. — Então você também mentiu! — Carol... Clic. Cinco minutos depois, quando o cidadão se ergueu do chão, onde estivera mordendo o carpete, e ligou de novo, ouviu um "Alô" de homem. — Amleto? — Primo! Muito bem. Você conseguiu, viu? A Carol acaba de descer do carro.
  • 57. — Olha aqui, seu... — Você já tinha liquidado com o nosso programa no motel, o maior clima e você estragou, e agora acabou com tudo. Ela está desiludida com todos os homens, para sempre. Mandou parar o carro e desceu. Em plena Cavalhada. Parabéns primo. Você venceu. Quer saber como ela era? — Só quero meu telefone. — Morena clara. Olhos verdes. Não resistiu ao meu celular. Se não fosse o celular, ela não teria topado o programa. E se não fosse o celular, nós ainda estaríamos no motel. Como é que chama isso mesmo? Ironia do destino? — Quero meu celular de volta! — Certo, certo. Seu celular. Você tem que fechar negócios, impressionar clientes, enganar trouxas. Só o que eu queria era a Carol... — Ladrão — Executivo — Devolve meu... Clic. Cinco minutos mais tarde. Cidadão liga de novo. telefone toca várias vezes. Atende uma voz diferente. — Ahn? — Quem fala? — É o Trola. — Como você conseguiu esse telefone? — Sei lá. Alguém jogou pela janela de um carro. Quase me acertou. — Onde você está? — Como eu estou? Bem, bem. Catando meus papéis, sabe como é.
  • 58. Mas eu já fui de circo. É. Capitão Trovar. Andei até pelo Paraguai. — Não quero saber de sua vida. Estou pagando uma recompensa por este telefone. Me diga onde você está que eu vou buscar. — Bem. Fora a Dalvinha, tudo bem. Sabe como é mulher. Quando nos vê por baixo, aproveita. Ontem mesmo... — Onde você está? Eu quero saber onde! — Aqui mesmo, embaixo do viaduto. De noitinha. Ela chegou com o índio e o Marvão, os três com a cara cheia, e... Extraído do livro "As Mentiras que os Homens Contam", Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2000, pág. 41.
  • 59. FERNANDO SABINO Já faz um longo tempo que fui apresentado a Fernando Sabino. Meu irmão Francisco era um ano mais velho que eu. Como todo irmão da mesma idade, vivíamos as grandes alegria e as piores tristezas. Num dos meus aniversário ele me presenteou com o livro Encontro Marcado. Logo em seguida o Senhor Deus da vida fez com que transcendesse a temporalidade. Hoje tenho uma filha que é parecida com ele, na fisionomia e no gênio. Selecionei alguns textos que acho legal e interessante O Homem Nu Fernando Sabino Ao acordar, disse para a mulher: -- Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum. -- Explique isso ao homem -- ponderou a mulher. -- Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar -- amanhã eu pago.
  • 60. Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão. Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento. Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos: -- Maria! Abre aí, Maria. Sou eu -- chamou, em voz baixa. Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro. Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares... Desta vez, era o homem da televisão! Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão: -- Maria, por favor! Sou eu! Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa,
  • 61. encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão. Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer. -- Ah, isso é que não! -- fez o homem nu, sobressaltado. E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror! -- Isso é que não -- repetiu, furioso. Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador. Antes de mais nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu. -- Maria! Abre esta porta! -- gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si. Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho: -- Bom dia, minha senhora -- disse ele, confuso. -- Imagine que eu... A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito: -- Valha-me Deus! O padeiro está nu! E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha: -- Tem um homem pelado aqui na porta! Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava: -- É um tarado! -- Olha, que horror!
  • 62. -- Não olha não! Já pra dentro, minha filha! Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta. -- Deve ser a polícia -- disse ele, ainda ofegante, indo abrir. Não era: era o cobrador da televisão. Esta é uma das crônicas mais famosas do grande escritor mineiro Fernando Sabino. Extraída do livro de mesmo nome, Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 65. A mulher do vizinho Fernando Sabino Contaram-me que na rua onde mora (ou morava) um conhecido e antipático general de nosso Exército morava (ou mora) também um sueco cujos filhos passavam o dia jogando futebol com bola de meia. Ora, às vezes acontecia cair a bola no carro do general e um dia o general acabou perdendo a paciência, pediu ao delegado do bairro para dar um jeito nos filhos do sueco. O delegado resolveu passar uma chamada no homem, e intimou-o a comparecer à delegacia. O sueco era tímido, meio descuidado no vestir e pelo aspecto não parecia ser um importante industrial, dono de grande fabrica de papel (ou coisa parecida), que realmente ele era. Obedecendo a ordem recebida, compareceu em companhia da mulher à delegacia e ouviu calado tudo o que o delegado tinha a dizer-lhe. O delegado tinha a dizer-lhe o
  • 63. seguinte: — O senhor pensa que só porque o deixaram morar neste país pode logo ir fazendo o que quer? Nunca ouviu falar numa coisa chamada AUTORIDADES CONSTITUÍDAS? Não sabe que tem de conhecer as leis do país? Não sabe que existe uma coisa chamada EXÉRCITO BRASILEIRO que o senhor tem de respeitar? Que negócio é este? Então é ir chegando assim sem mais nem menos e fazendo o que bem entende, como se isso aqui fosse casa da sogra? Eu ensino o senhor a cumprir a lei, ali no duro: dura lex! Seus filhos são uns moleques e outra vez que eu souber que andaram incomodando o general, vai tudo em cana. Morou? Sei como tratar gringos feito o senhor. Tudo isso com voz pausada, reclinado para trás, sob o olhar de aprovação do escrivão a um canto. O sueco pediu (com delicadeza) licença para se retirar. Foi então que a mulher do sueco interveio: — Era tudo que o senhor tinha a dizer a meu marido? O delegado apenas olhou-a espantado com o atrevimento. — Pois então fique sabendo que eu também sei tratar tipos como o senhor. Meu marido não e gringo nem meus filhos são moleques. Se por acaso incomodaram o general ele que viesse falar comigo, pois o senhor também está nos incomodando. E fique sabendo que sou brasileira, sou prima de um major do Exército, sobrinha de um coronel, E FILHA DE UM GENERAL! Morou? Estarrecido, o delegado só teve forças para engolir em seco e balbuciar humildemente: — Da ativa, minha senhora? E ante a confirmação, voltou-se para o escrivão, erguendo os braços desalentado: — Da ativa, Motinha! Sai dessa...
  • 64. Texto extraído do livro "Fernando Sabino - Obra Reunida - Vol.01", Editora Nova Aguiar - Rio de Janeiro, 1996, pág. 872. O Golpe do Comendador Fernando Sabino Ele sabia que aquilo ainda ia acabar mal. Ele era noivo, à antiga: pedido oficial, aliança no dedo, casamento marcado, Mas, no ardor da juventude, não se contentava em ter uma noiva em Copacabana: tinha também uma namorada na cidade. Encontravam-se na hora do almoço, ou em algum barzinho do centro, ao cair da tarde, encerrado o expediente. Ele trabalhava num banco, ela num escritório. A noiva não trabalhava: vivia em casa no bem-bom. E tudo ia muito bem, até que a namorada, que morava na Tijuca, resolve se mudar também para Copacabana. A princípio ele achou prudente não voltarem juntos, já que uma não sabia da existência da outra. Com o correr do tempo, porém, foi relaxando o que lhe parecia um excesso de precauções. Mais de uma vez eu adverti ao meu amigo: — Cuidado. Um dia a casa cai. — Seria o auge da coincidência — protestava ele. Pois acabou acontecendo. Foi numa tarde em que os dois voltavam de ônibus para Copacabana, muito enleados, mãozinhas dadas. Ali pela altura do Flamengo, ao olhar casualmente pela janela, ele viu e reconheceu de longe a moça que fazia sinal no ponto de parada. Em pânico, o seu primeiro impulso foi o de gritar para o motorista que não parasse, para evitar o encontro fatal. Era o cúmulo do azar: havia um
  • 65. lugar vago justamente a seu lado, naquele último banco, que comportava cinco passageiros. O ônibus parou e ela subiu. Ele se encolheu, separando-se da outra, mãos enfiadas entre os joelhos e olhando para o lado — como se adiantasse: já tinha sido visto. A noiva sorriu, agradavelmente surpreendida: — Mas que coincidência! E sentou-se a seu lado. Você ainda não viu nada — pensou ele, sentindo- se perdido, ali entre as duas. Queria sumir, evaporar-se no ar. Num gesto meio vago, que se dirigia tanto a uma como a outra, fez a apresentação com voz sumida: — Esta é a minha noiva... — Muito prazer — disseram ambas. E começaram uma conversa meio disparatada por cima do seu cadáver: — Você o conhece há muito tempo? — perguntou a noiva titular. — Algum - respondeu a outra, tomando-o pelo braço: — Só que ainda não estamos propriamente noivos, como ele disse... — Ah, não? Que interessante! Pois nós estamos, não é, meu bem? E a noiva o tomou pelo outro braço: — Você não havia me falado a respeito da sua amiguinha... Atordoado, nem tendo 0 ônibus chegado ainda ao Mourisco, ele perdeu completamente a cabeça. Desvencilhou-se das duas e se precipitou para a porta, ordenando ao motorista: — Pare! Pare que eu preciso descer! Saltou pela traseira mesmo, sem pagar, os demais passageiros o olhavam, espantados, o trocador não teve tempo de protestar. Atirou-se num táxi que se deteve ante seus gestos frenéticos, foi direto à minha casa:
  • 66. — Você tem que me ajudar a sair dessa. Amigo é para essas coisas, mas não me dou por bom conselheiro em tais questões. Mal consigo eu próprio sair das minhas: a emenda em geral é pior do que o soneto. Ainda assim, tão logo ele me contou o que havia acontecido, ocorreu-me dizer que, se saída houvesse, ele teria que abrir mão de uma — com as duas é que não poderia ficar. Qual delas preferia? — A minha noiva, é lógico - afirmou ele, sem muita convicção: É com ela que vou me casar. E torcia as mãos, nervoso: — Pretendia, né? Imagino o que a esta hora já não devem ter dito uma para a outra. O pior é que minha noiva é meio esquentada, para acabar no tapa não custa. Respirou fundo, mudando o tom: — Também, que diabo tinha ela de tomar exatamente aquele ônibus? E o que é que estava fazendo àquela hora no Flamengo? De onde é que ela vinha? — Eu que sei? — e comecei a rir: — Me desculpe, meu velho, mas essa não pega. Ele se deixou cair na poltrona. — É isso mesmo. Não pega. Nenhuma pega. Estou liquidado. Não tem saída. — Só vejo uma — e fiz uma pausa, para dar mais ênfase: — O golpe do comendador. Marido exemplar, pai extremoso, avô dedicado, como se usava antigamente, o ilustre comendador era de uma respeitabilidade sem jaça. Vai um dia sua digníssima consorte, chegando inesperadamente em casa, dá com o ilustre na cama da empregada. Com a empregada. Enquanto a esposa ultrajada se entregava a uma crise de nervos lá na sala, o comendador se recompunha no local do crime, vestindo
  • 67. meticulosamente a roupa, inclusive colete, paletó e gravata. Em seguida se dirigiu a ela nos seguintes termos: — Reconheço que procedi como um crápula, um canalha, um miserável. Cedi aos sentidos, conspurcando o próprio lar. Você tem o direito de renegar-me para sempre, e mesmo de me expor à execração pública. E provocar em conseqüência a desgraça de nosso casamento, a desonra de meu nome e o opróbrio de nossos filhos e netos. A menos que resolva me perdoar, e neste caso não se fala mais nisto. Perdoa ou não? Aturdida com tão eloqüente falatório, a mulher parou de chorar e ficou a olhá-lo, apalermada. — Vamos, responda! — insistiu ele com firmeza: — Sim ou não? — Sim — balbuciou ela, timidamente. Ele cofiou os bigodes e, do alto de sua reassumida dignidade, declarou categórico: — Pois então não se fala mais nisto. Tão logo ouviu o caso do comendador, o noivo desastrado resolveu imitá-lo. De minha casa mesmo telefonou para a noiva, dizendo-lhe atropeladamente que ele era um crápula, um canalha — em resumo: o ser mais ordinário que jamais existiu na face da terra. Depois, sem lhe dar tempo de retrucar, despejou-lhe uma cachoeira de declarações amorosas, invocando o casamento marcado, a felicidade de ambos para sempre perdida, os filhos que não mais teriam... Não faltaram nem reminiscências dos primeiros dias de namoro - tanto tempo já que se amavam, ela não tinha treze anos quando se conheceram, as trancinhas que usava, lembra-se? Tudo isso ia por água abaixo — a menos que o perdoasse. Desligou o telefone, vitorioso. — Concordou em se encontrar comigo.
  • 68. — Não se esqueça. O comendador. — Já sei. Não se fala mais nisto. E se foi, alvoroçado. Nem comigo se falou mais nisto, mas de alguma forma deu certo, pois acabou se casando, teve vários filhos e, segundo ouvi dizer, vive feliz até hoje. Com a outra. Texto extraído do livro “Fernando Sabino – Obra Reunida”, Volume III, Editora Nova Aguilar S.A. – Rio de Janeiro, 1996, pág. 148. No Quarto da Valdirene Fernando Sabino Mal ele entrou em casa, a mulher o tomou pelas mãos, ansiosa: - Estava aflita para você chegar. E sussurrou, apontando dramaticamente para os lados da cozinha: - Tem um homem no quarto da Valdirene. Sacudiu a cabeça com irritação: - Desde o primeiro dia eu achei que essa menina não era boa coisa. Ela nunca me enganou. Valdirene, a jovem empregada, uma mulata de olhos grandes, não faria feio num palco. - Como e que você sabe? - perguntou ele, para ganhar tempo. Não partilhava da opinião da mulher: desde o primeiro dia achou que a Valdirene era ótima. - Sei porque vi. Escutei um ruído qualquer ai fora no corredor, olhei pelo olho mágico, e vi quando ela punha ele para dentro pela porta de serviço. - Ele quem?
  • 69. - O homem. Não sei quem é, só sei que é um homem. Deve ser o namorado dela, ou o amante, tanto faz. O certo e que os dois estão trancados lá no quarto faz um tempão. - Vai ver que já saiu. - Não saiu não, que eu não sou boba, fiquei de olho. Esta lá dentro com ela até agora. - E o que e que você quer que eu faça? - Quero que bote ele pra fora, essa e boa. - Por quê? Ela botou as mãos na cintura: - Por quê? Você ainda pergunta por que? Então tem cabimento a gente deixar que a empregada receba homens no quarto dela? O que e que essa menina está pensando que minha casa é? Um motel? Se você não for lá, eu mesma vou. - Espera ai, vamos com calma, mulher. Você tem razão, mas deixa a gente raciocinar um pouco. Não podemos é perder a cabeça. Pode ser perigoso. Como é que ele é? - Não cheguei a ver direito. Só vi que era um homem. Para mim, basta. - Não posso ir lá no quarto dela sem mais nem menos. Quem sabe é algum parente? Um irmão, talvez... - Um irmão, talvez... Você tem cada uma! Pior ainda: que é que um irmão tem de ficar fazendo trancado no quarto com a irmã como eles dois estão? Você tem de pôr esse homem pra fora. - E se estiver armado? Ele pode muito bem estar armado. - Já que você está com medo... - Não estou com medo. Só que temos de agir com calma. Vamos ver como a gente sai dessa. Deixa comigo. Ele respirou fundo e se meteu pela cozinha, ganhou a área de serviço, ficou à escuta. Nada, tudo quieto e às escuras no quarto da Valdirene. Bateu de leve na porta:
  • 70. - Valdirene. Via-se pelas frestas da veneziana na própria porta que o quarto continuava no escuro. Ele bateu de novo: - Valdirene, está me ouvindo? Valdirene! Escutou alguém se mexendo lá dentro e a voz estremunhada da moça: - Senhor? - Tem alguém com você ai dentro, Valdirene? - Tem não senhor. - Abra um instante, por favor. Em pouco ela abria a porta, furtivamente, e o encarava sem piscar. Vestia um baby-doll pequenino e transparente que, sob a luz mortiça vinda da área, deixava quase todo seu corpo à mostra. - Acenda essa luz, minha filha. Mais para vê-la melhor do que para olhar o quarto, pois mesmo no escuro podia-se verificar que ali dentro não havia mais ninguém. Luz acesa, ela se protegia discretamente com os braços, enquanto ele dava uma olhada rápida por cima do seu ombro: - Tudo bem. Desculpe o incômodo. Boa noite. Voltou para a sala, onde a mulher o aguardava, tensa de expectativa. - E então? - Não tem ninguém. - Como não tem ninguém? Pois se eu vi o homem entrando! - Se viu entrando, não viu saindo. O certo é que não tem ninguém no quarto da Valdirene, além dela própria. Vamos dormir. - Como é que eu posso ir dormir sabendo que tem um estranho dentro de casa? Você vai voltar lá e olhar direito. - Eu olhei direito. Se não acredita, vai lá e olha você. - Quem e o homem nesta casa? Se você não for olhar eu não fico aqui dentro nem mais um minuto. Vou direto à polícia. Ele ergueu os braços e os deixou cair, com um suspiro resignado:
  • 71. - Essa mulher, meu Deus. Agora é você que está com medo. Direto à polícia. Como se fosse um crime... Tudo bem, eu vou lá olhar direito. Voltou a bater na porta da empregada: - Valdirene. Desta vez ela respondeu logo: - Senhor? - Abra ai um instante, por favor. - Sim senhor. Ela abriu e foi logo acendendo a luz. Estimulado pela nova oportunidade de vê-la tão de perto, ele perdeu a cerimônia e entrou no quarto. Sempre de olho nela e ouvido atento à mulher lá na sala. Ali dentro só cabia a cama e o armariozinho com uma cortina, atrás da qual ninguém poderia se esconder. Ainda assim ergueu o pano para se certificar. Satisfeito, voltou-se para a moça que, ao sentir seus olhos tão próximos, abaixara modestamente os dela: - Desculpe, minha filha. É que minha mulher, você sabe, quando ela cisma uma coisa... Mas pode dormir sossegada. Boa noite. Na sala, a mulher voltou a questioná-lo: - Você olhou direito desta vez? - Não há como olhar errado. Um quarto deste tamaninho! Olhei o que tinha para olhar: a Valdirene e a cama. - A Valdirene e a cama? O que você quer dizer com isso? - Não quero dizer coisa nenhuma. É que ali dentro não cabe mais nada além da Valdirene e da cama. - Não é isso que parece estar insinuando, com essa sua cara. - Que é que tem minha cara? Você é que insinuou que tinha um homem lá dentro, não fui eu. Não me admiraria nada. Mas acontece que não tem. Só faltou olhar debaixo da cama. - Não admiraria nada - ela o imitou, com um trejeito. E ordenou, braço estendido:
  • 72. - Pois então vai olhar debaixo da cama. - Essa não! - relutou ele: - Já disse que não cabe ninguém... Mas acabou indo. Pobre da menina, de novo importunada: - Me desculpe, Valdirene, mas é preciso que você abra aí outra vez. ' Ela acendeu a luz, abriu a porta e deu-lhe passagem. Seus olhos o acompanharam impassíveis, quando ele entrou e se agachou para olhar debaixo da cama. De quatro, sentindo-se ridículo naquela postura, ele baixou a cabeça até que a ponta do queixo tocasse o chão, e enfiou-a sob o estrado. Seu nariz esbarrou de cheio em algo branco e macio - era nada menos que o traseiro de um homem. - Oi - assustou-se, recuando. - Oi - fez o homem, como um eco, encolhendo-se ainda mais. Ele se ergueu. perturbado, limpou a garganta, procurando dar firmeza à voz: - O senhor tem um minuto pra sair deste quarto. Um último olhar para Valdirene, como a dizer que sentia muito mas não podia deixar de cumprir o seu dever, e foi ter com a mulher na sala: - Tinha sim. Tinha um homem debaixo da cama. Está satisfeita? - Eu não disse? E o que é que você fez? - Mandei que ele se pusesse pra fora. É o tempo de se vestir. - Meu Deus, ele estava nu? - Que é que você queria? Não sei é como ele pôde caber lá debaixo. Imagino o susto dele. E o da Valdirene, coitadinha. No dia seguinte, mal amanheceu, ela despedia a Valdirene, coitadinha. Texto extraído da revista "Playboy", edição de outubro/1983. (Publicado no livro "O Gato Sou Eu", Editora Record - Rio de Janeiro, 1983, pág. 147).