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O QUE TODO CIDADÃO PRECISA SABER SOBRE IDEOLOGIA

                             III. IDEOLOGIA NA VIDA COTIDIANA



      As aspirações, os desejos de ter propriedades, de vestir-se bem e de subir na vida que
João possui não constituem uma ideologia que ele tenha criado (como vimos na parte anterior).
Na verdade, essa ideologia desenvolveu-se na consciência de João por meio do contato com
amigos, com colegas que partilham as mesmas ideias e, embora encontre aí o espaço para
desenvolver-se, origina-se principalmente da sua situação de trabalho.



O TRABALHO ALIENADO

       O trabalho em nossa sociedade é um processo que as pessoas realizam, em quase todos
os casos, de uma forma não prazerosa. Poucos são aqueles que gostam muito do seu trabalho e
que a ele se dedicam com satisfação, principalmente quando o trabalho não é uma atividade
própria ou quando as pessoas não são donas do negócio e trabalham para outros.

       A atividade do trabalho, no caso do João, bem como dos operários industriais, é um
processo de criação de coisas, de produtos, que, uma vez chegados ao mercado, recebem o
nome de “mercadorias”. Essa atividade de trabalho reduz a potencialidade do homem a uma
atuação muito pouco significativa. Vou explicar melhor: as pessoas não se sentem compensadas
no trabalho, porque a sua atividade é mecânica; o produto não vai alterar em nada seu cotidiano.
No passado, as sociedades tribais construíam as casas, os barcos e seus instrumentos de caça e
pesca. A confecção desses objetos tinha um significado para as pessoas – tratavam-se de bens
que possuíam uma função direta nas necessidades da tribo. Construía-se um barco para
atravessar de um lado a outro o rio e, com isso, obter o sustento – pela caça ou pela pesca – para
toda a comunidade. Na construção desse barco participavam várias pessoas e existia a
consciência de que todo o andamento da produção – cada um tinha noção da importância de seu
trabalho no barco, assim como da importância do barco para a comunidade.

       Esse tipo de trabalho, onde se juntam a noção do valor individual dos produtores e a
consciência da importância desse valor para o produto final e para o bem da comunidade é
diferente daquele realizado hoje nas fábricas e em outras atividades industriais onde o operário já
não tem mais nenhuma consciência de sua importância, da necessidade social de seu produto,
nem dos fins para os quais será utilizado. É evidente que sua relação com o produto será
totalmente diferente. Nas sociedades modernas, o homem não mais se identifica com seu
trabalho, não mais encontra nele uma fonte de satisfação e prazer. É um trabalho denominado
“trabalho alienado”, pois ocorre uma separação entre a produção (o ato de fabricar) e a
consciência de sua utilização (o fim a que se presta o produto). Por esse motivo, o trabalho
perdeu seu caráter de satisfação social, ficando para o trabalhador somente a noção do “dever
cumprido” no final do dia, ou seja, somente a sensação do desgaste físico como se fosse uma
máquina e não mais a consciência da sua importância social e do bem que produziu.

TRABALHO COMO CRÍTICA À VIDA COTIDIANA

       Quem trabalha percebe que existe no trabalho (em fábrica, loja, empresa, repartição) uma
remuneração que não é justa. As pessoas, na verdade, deveriam ganhar muito mais do que de
fato recebem. Quem recebe a parcela maior é o proprietário, cujo trabalho é proporcionalmente
muito menor que o do trabalhador. Todos esses fatores formam um clima que leva o trabalhador
a desgostar de seu trabalho. O trabalho torna-se, então, apenas um meio, primeiramente para
sobreviver, porém não só – passa a significar o trabalho também um meio para garantir melhoria
de vida. Desta maneira, o trabalho implica, necessariamente, uma critica à vida que se vive, pois
trabalha-se para melhorar de vida. Aí desponta a questão da ideologia – eu trabalho, não apenas
para me alimentar, mas, também para que no futuro possa ter uma situação mais cômoda. Este
era também um dos sonhos do João.

       Fundamentalmente, a ideologia surge a partir do processo de trabalho como algo que faz
parte da vida e da consciência das pessoas, as quais através desse processo almejam provocar
mudanças. É claro que essa ligação foi mais marcante na época em que o trabalho significava a
única atividade de toda a classe dos trabalhadores. Hoje em dia, o trabalho é uma atividade mais
diversificada, há muito mais tipos de trabalho (mas nem por isso as pessoas ficam mais
satisfeitas com ele). O que eu quero dizer é que a produção da ideologia acontece de uma forma
menos limitada à fabrica, mais dispersa em vários ambientes da sociedade.

      A partir dessa atividade, ou seja, tomando o trabalho como ponto de partida, o trabalhador,
o nosso personagem João, pretende melhorar de vida. Ele tem seus sonhos, desejos de
ascensão social e o ideal de realização própria enquanto pessoa. Nesta medida, João irá
incorporar algo que se chama “ideologia burguesa”. Vamos ver como isto ocorre.

A OSTENTAÇÃO

       João acredita que trabalhando vai melhorar de vida. Ao mesmo tempo, ele vive uma
situação contraditória, porque vê que muitas pessoas que ele conhece trabalharam a vida inteira
e nunca conseguiram essa melhoria. Assim, ao mesmo tempo ele acredita também em outras
saídas, em “soluções mágicas”, como ganhar na loteria, ter sorte no jogo ou espera que, de
repente, aconteça alguma coisa inesperada em sua vida que vá permitir que ele melhore muito. O
ideal de subir na vida, de diferenciar-se dos demais, principalmente quando ele é buscado a
qualquer preço, faz parte de um conjunto maior, como dissemos, chamado “ideologia burguesa”.
(Não que as pessoas não devam lutar para melhorar sua condição de vida: isso é perfeitamente
legítimo. A questão não é a melhoria que buscamos em nossa situação, mas as formas e os
princípios utilizados a busca de ascensão social desvinculada de qualquer principio, o jogo do
vale-tudo, quando se trata de obter mais prestigio e o investimento utilitarista e oportunista em
cultura, amizades ou movimentos sociais para obter vantagens pequenas e pessoais.) Desse
padrão ideológico, João, pelo contato com os amigos e pela submissão cômoda à moral
existente, absorve alguns elementos e passa a agir segundo eles. Nestes casos, ele estará
confirmando e reforçando essa ideologia.

      As pessoas não pensam em subir na vida apenas para estarem melhor, mas também para
colocarem-se distantes daqueles com quem estavam anteriormente na mesma posição – é aí
também que essa ideologia se aproxima do pensamento burguês. Trata-se de uma ideologia que
defende a diferenciação – quando João for rico e tiver um carro, uma casa bonita, ele voltará ao
Nordeste para exibir isso aos seus amigos e parentes; ele irá apresentar-se, assim, por meio de
objetos (símbolos) ideológicos. Essa será a afirmação social de João.

      Veja bem: João não busca melhora de vida para aplicar esse sucesso em objetivos que
incluam o bem estar de seus amigos e parentes do Nordeste. Em primeiro lugar, aparece na sua
consciência uma necessidade ostentatória, que ele agora porta, e que, em principio, nada tem
haver com os outros. A ideologia aparece aqui, também, na troca da relação com pessoas
afetivamente próximas por uma relação entre objetos, relações simbólicas. Como na explicação
do estereótipo, a imagem externa do João, e não ele mesmo enquanto pessoa, é que deverá ter
efeito sobre os outros.

     Lembram-se da construção do barco? Aquela forma de solidariedade, de preocupação com
a comunidade desaparece neste tipo de ideologia.

OS PRINCIPIOS

         A afirmação social de João está na realização desse sonho de ascensão. Como vai dar-se
a ascensão ele não sabe muito bem, mas ele sabe que pelos caminhos tradicionais a coisa é
difícil. Mesmo assim, ele luta por meio deles. Ele também percebe que na sociedade em que vive,
na sociedade brasileira, muitas pessoas melhoram de vida e tornam-se ricas sem trabalhar, por
pura corrupção. Isso significa, portanto, que no tipo ideológico que ele está em parte
incorporando, o da ideologia burguesa, a questão do como as pessoas sobem não é tão
importante, aliás, não é nada importante. O que vale é que as pessoas “chegaram lá”.

        (Novamente, o valor da ideologia burguesa, já mencionado expressa-se aí – os fins
justificam os meios. Não importa que os meios sejam desonestos, criminosos, traiçoeiros; o que
ele vê, na realidade, é que quem tem dinheiro tem poder e força e ninguém questiona como esse
poder foi criado.)

       A ilusão que João tem é a de que ele, uma vez possuidor dessas coisas, terá autonomia,
será um individuo livre e feliz. (Porque isso é uma ilusão, veremos um pouco mais adiante quando
falarmos da mística do dinheiro.) João, uma vez rico, acha que será senhor de todas as coisa,
das pessoas e dos objetos. Parece, entretanto, que ocorrerá o inverso; quando ele tiver dinheiro,
este irá ser o seu senhor, pois o escravizará e tornará sua vida inteiramente dependente da
manutenção e do crescimento do dinheiro. Ele não possuirá o dinheiro; o dinheiro possuirá João.

(....)

OBJETOS, CONSUMO, PRESTIGIO

         Voltemos ao caso do João. João presenteia Maria com um anel. O anel não possui valor
utilitário algum, é um bem apenas de ostentação. Os bens que existem na sociedade não são,
portanto, apenas para o uso. Quando eu compro um sapato comum, posso achar esse sapato
caro, mas preciso comprar porque tenho necessidade de proteção para meu pé. O sapato então,
é um bem adquirido para satisfazer essa necessidade. Se eu compro, porém um sapato que
custa duas ou três vezes o meu salário, é claro que, se eu optei por ele, já não o fiz mais
pensando no uso. Eu comprei para com ele “esnobar”, para dizer aos outros que eu sou diferente,
que uso coisas boas, que tenho dinheiro e bom gosto (as coisas que esse sapato pode dizer são
muitas). Uma mercadoria, portanto, pode ser comprada, tanto para uso, quanto para a
ostentação.

        Um presente, entretanto, já é um terceiro significado de mercadoria: ele tem um valor
particular para a pessoa que o comprou e para a que o recebeu. Esse valor existe somente para
João e Maria. É um símbolo do amor de João. (Além desses três significados do anel, há ainda
um quarto: o que significa para o revendedor, para quem o objeto não vai ter valor de uso, visto
que ele não vai exibi-lo, tampouco presentear sua mulher com ele? Para o revendedor, a peça só
significa uma coisa: um objeto com o qual ele poderá obter lucro, vendendo-o bem mais caro do
que o comprou.)
Como estava dizendo, esses três significados do anel representam cada um, um valor para
a pessoa que o porta. A ideologia se expressa no tipo de valor que o portador do bem associa a
ele. A ideologia que João incorpora é a ideologia da diferenciação; trata-se da ideologia que toma
os objetos como meios para diferenciar-se dos outros. Tais objetos significam tais prestígios.
Desapercebidamente, quando transfere para o objeto essa capacidade de melhorar sua imagem
perante a namorada, João está ingressando num mundo em que o valor principal é o consumo.
Consumo significa para ele, automaticamente, prestigio.

       Está é uma situação que encontra algumas semelhanças em outras sociedades e culturas.
No passado, alguns aspirantes à chefia em certas tribos americanas faziam uma festa chamada
potlatch, para a qual convidavam amigos e concorrentes e em cuja realização fazia grandes
demonstrações de dispêndio e opulência. Os objetos e alimentos aí também significavam
prestigio.

      O que diferencia essa situação da ostentação do moderno Capitalismo não é a questão do
consumo como forma de prestigio e demonstração de superioridade, mas a vinculação desses
com a mercadoria, a propriedade privada e o capital.

       Como se vê, certos bens na sociedade (alimentos, carros, roupas, joias) como já dito,
manifestam-se pelo sujeito. E se observarmos a questão de um outro ângulo, veremos que isto
empobrece bastante o próprio sujeito que os usa, porque ele fica sendo, na verdade, apenas
mero transportador de objetos. O sujeito se perde atrás deles, deixa de ser uma pessoa com
ideias próprias, com interesses, com vontades e passa a ser puramente um portador, mero
suporte desses objetos.

O FETICHE DO DINHEIRO

       Nesta ideologia que João incorpora, que é a ideologia mais encontrada em nossa
sociedade, o dinheiro tem uma função central. Isto se dá pelo seguinte motivo: dinheiro significa
alguma coisa que tem “poderes mágicos”. Costuma-se dizer que o dinheiro neste caso é um
fetiche.

(...)

A IDEOLOGIA COMO PRÁTICA COTIDIANA

       Através do exemplo do trabalhador João, colocamos alguns elementos-chave desse tipo
de ideologia na nossa sociedade, que é, em última análise, a ideologia majoritária, isto é, de que
a maioria das pessoas compartilha. Isto não significa que ela seja uma ideologia que satisfaça os
indivíduos. Estes compartilham dela porque imaginam que dessa maneira encontrarão felicidade.
Essa felicidade, entretanto, é reduzida ao simples possuir objetos, e a realização realmente
íntima, real do sujeito, ficam em segundo plano.

       Os componentes do pensamento de João são componentes muito comuns em nossa
cultura. A questão da propriedade, do lucro, do capital, a questão da aparência das coisas
tomando o lugar das próprias coisas, a questão do subir na vida, que as pessoas, por mais que
busquem caminhos das formas mais diversas, não conseguem realizar, a questão do casamento,
são exemplos de que a ideologia não é alguma coisa que está apenas “na cabeça”, não se trata
de uma questão de ideias, mas de um tipo de vida. Vive-se segundo uma certa ideologia, não é
que se tem uma ideologia apenas em relação a uma certa posição politica ou econômica.
A importância da estória do João, que acabei de contar, é a de que não se pode considerar
a ideologia como algo imposto as pessoas, mas como um elemento que faz parte de sua vida
cotidiana. As pessoas tem ideologias, as pessoas vivenciam ideologias, as pessoas tem contato
com elas no ambiente de trabalho, na vida que levam com os outros e na forma como participam
da sociedade. Ideologias são praticas que circulam entre as pessoas, que convivem com elas, e
as mesmas partilham ou não delas conforme seus interesses. Elas estão nos fatos que são
vivenciados continuamente na vida cotidiana.

        Ideologias não são somente posições politicas definidas através de lutas mais amplas
entre trabalhadores e patrões, mas são elementos que estão no dia a dia das pessoas, na sua
rotina de vida. Pode-se dizer que ideologia é algo alimentado diariamente. A função especifica
dos meios de comunicação (rádio, televisão, jornais, revistas) e de certas instituições (escola,
igreja, clube) é exatamente a de reforçar continuamente essa ideologia. O contato e a conversa
despreocupada com os amigos atua também da mesma maneira.

      Na vivencia real de todos os dias, a ideologia é praticamente “regada”. Como as flores são
regadas, tem de receber todos os dias um pouco de água e de sol para viverem, da mesma
forma, precisa a ideologia ser diariamente reforçada. O contato com os meios de comunicação,
assim como com outras instituições, reforça no sujeito a ligação a valores, que funcionam para
manter a coesão e a ligação dos indivíduos na sociedade.



MARCONDES FILHO, Ciro. O que todo cidadão precisa saber sobre ideologia. São Paulo:
Global, 1985. p. 31-45.

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  • 1. O QUE TODO CIDADÃO PRECISA SABER SOBRE IDEOLOGIA III. IDEOLOGIA NA VIDA COTIDIANA As aspirações, os desejos de ter propriedades, de vestir-se bem e de subir na vida que João possui não constituem uma ideologia que ele tenha criado (como vimos na parte anterior). Na verdade, essa ideologia desenvolveu-se na consciência de João por meio do contato com amigos, com colegas que partilham as mesmas ideias e, embora encontre aí o espaço para desenvolver-se, origina-se principalmente da sua situação de trabalho. O TRABALHO ALIENADO O trabalho em nossa sociedade é um processo que as pessoas realizam, em quase todos os casos, de uma forma não prazerosa. Poucos são aqueles que gostam muito do seu trabalho e que a ele se dedicam com satisfação, principalmente quando o trabalho não é uma atividade própria ou quando as pessoas não são donas do negócio e trabalham para outros. A atividade do trabalho, no caso do João, bem como dos operários industriais, é um processo de criação de coisas, de produtos, que, uma vez chegados ao mercado, recebem o nome de “mercadorias”. Essa atividade de trabalho reduz a potencialidade do homem a uma atuação muito pouco significativa. Vou explicar melhor: as pessoas não se sentem compensadas no trabalho, porque a sua atividade é mecânica; o produto não vai alterar em nada seu cotidiano. No passado, as sociedades tribais construíam as casas, os barcos e seus instrumentos de caça e pesca. A confecção desses objetos tinha um significado para as pessoas – tratavam-se de bens que possuíam uma função direta nas necessidades da tribo. Construía-se um barco para atravessar de um lado a outro o rio e, com isso, obter o sustento – pela caça ou pela pesca – para toda a comunidade. Na construção desse barco participavam várias pessoas e existia a consciência de que todo o andamento da produção – cada um tinha noção da importância de seu trabalho no barco, assim como da importância do barco para a comunidade. Esse tipo de trabalho, onde se juntam a noção do valor individual dos produtores e a consciência da importância desse valor para o produto final e para o bem da comunidade é diferente daquele realizado hoje nas fábricas e em outras atividades industriais onde o operário já não tem mais nenhuma consciência de sua importância, da necessidade social de seu produto, nem dos fins para os quais será utilizado. É evidente que sua relação com o produto será totalmente diferente. Nas sociedades modernas, o homem não mais se identifica com seu trabalho, não mais encontra nele uma fonte de satisfação e prazer. É um trabalho denominado “trabalho alienado”, pois ocorre uma separação entre a produção (o ato de fabricar) e a consciência de sua utilização (o fim a que se presta o produto). Por esse motivo, o trabalho perdeu seu caráter de satisfação social, ficando para o trabalhador somente a noção do “dever cumprido” no final do dia, ou seja, somente a sensação do desgaste físico como se fosse uma máquina e não mais a consciência da sua importância social e do bem que produziu. TRABALHO COMO CRÍTICA À VIDA COTIDIANA Quem trabalha percebe que existe no trabalho (em fábrica, loja, empresa, repartição) uma remuneração que não é justa. As pessoas, na verdade, deveriam ganhar muito mais do que de fato recebem. Quem recebe a parcela maior é o proprietário, cujo trabalho é proporcionalmente
  • 2. muito menor que o do trabalhador. Todos esses fatores formam um clima que leva o trabalhador a desgostar de seu trabalho. O trabalho torna-se, então, apenas um meio, primeiramente para sobreviver, porém não só – passa a significar o trabalho também um meio para garantir melhoria de vida. Desta maneira, o trabalho implica, necessariamente, uma critica à vida que se vive, pois trabalha-se para melhorar de vida. Aí desponta a questão da ideologia – eu trabalho, não apenas para me alimentar, mas, também para que no futuro possa ter uma situação mais cômoda. Este era também um dos sonhos do João. Fundamentalmente, a ideologia surge a partir do processo de trabalho como algo que faz parte da vida e da consciência das pessoas, as quais através desse processo almejam provocar mudanças. É claro que essa ligação foi mais marcante na época em que o trabalho significava a única atividade de toda a classe dos trabalhadores. Hoje em dia, o trabalho é uma atividade mais diversificada, há muito mais tipos de trabalho (mas nem por isso as pessoas ficam mais satisfeitas com ele). O que eu quero dizer é que a produção da ideologia acontece de uma forma menos limitada à fabrica, mais dispersa em vários ambientes da sociedade. A partir dessa atividade, ou seja, tomando o trabalho como ponto de partida, o trabalhador, o nosso personagem João, pretende melhorar de vida. Ele tem seus sonhos, desejos de ascensão social e o ideal de realização própria enquanto pessoa. Nesta medida, João irá incorporar algo que se chama “ideologia burguesa”. Vamos ver como isto ocorre. A OSTENTAÇÃO João acredita que trabalhando vai melhorar de vida. Ao mesmo tempo, ele vive uma situação contraditória, porque vê que muitas pessoas que ele conhece trabalharam a vida inteira e nunca conseguiram essa melhoria. Assim, ao mesmo tempo ele acredita também em outras saídas, em “soluções mágicas”, como ganhar na loteria, ter sorte no jogo ou espera que, de repente, aconteça alguma coisa inesperada em sua vida que vá permitir que ele melhore muito. O ideal de subir na vida, de diferenciar-se dos demais, principalmente quando ele é buscado a qualquer preço, faz parte de um conjunto maior, como dissemos, chamado “ideologia burguesa”. (Não que as pessoas não devam lutar para melhorar sua condição de vida: isso é perfeitamente legítimo. A questão não é a melhoria que buscamos em nossa situação, mas as formas e os princípios utilizados a busca de ascensão social desvinculada de qualquer principio, o jogo do vale-tudo, quando se trata de obter mais prestigio e o investimento utilitarista e oportunista em cultura, amizades ou movimentos sociais para obter vantagens pequenas e pessoais.) Desse padrão ideológico, João, pelo contato com os amigos e pela submissão cômoda à moral existente, absorve alguns elementos e passa a agir segundo eles. Nestes casos, ele estará confirmando e reforçando essa ideologia. As pessoas não pensam em subir na vida apenas para estarem melhor, mas também para colocarem-se distantes daqueles com quem estavam anteriormente na mesma posição – é aí também que essa ideologia se aproxima do pensamento burguês. Trata-se de uma ideologia que defende a diferenciação – quando João for rico e tiver um carro, uma casa bonita, ele voltará ao Nordeste para exibir isso aos seus amigos e parentes; ele irá apresentar-se, assim, por meio de objetos (símbolos) ideológicos. Essa será a afirmação social de João. Veja bem: João não busca melhora de vida para aplicar esse sucesso em objetivos que incluam o bem estar de seus amigos e parentes do Nordeste. Em primeiro lugar, aparece na sua consciência uma necessidade ostentatória, que ele agora porta, e que, em principio, nada tem haver com os outros. A ideologia aparece aqui, também, na troca da relação com pessoas
  • 3. afetivamente próximas por uma relação entre objetos, relações simbólicas. Como na explicação do estereótipo, a imagem externa do João, e não ele mesmo enquanto pessoa, é que deverá ter efeito sobre os outros. Lembram-se da construção do barco? Aquela forma de solidariedade, de preocupação com a comunidade desaparece neste tipo de ideologia. OS PRINCIPIOS A afirmação social de João está na realização desse sonho de ascensão. Como vai dar-se a ascensão ele não sabe muito bem, mas ele sabe que pelos caminhos tradicionais a coisa é difícil. Mesmo assim, ele luta por meio deles. Ele também percebe que na sociedade em que vive, na sociedade brasileira, muitas pessoas melhoram de vida e tornam-se ricas sem trabalhar, por pura corrupção. Isso significa, portanto, que no tipo ideológico que ele está em parte incorporando, o da ideologia burguesa, a questão do como as pessoas sobem não é tão importante, aliás, não é nada importante. O que vale é que as pessoas “chegaram lá”. (Novamente, o valor da ideologia burguesa, já mencionado expressa-se aí – os fins justificam os meios. Não importa que os meios sejam desonestos, criminosos, traiçoeiros; o que ele vê, na realidade, é que quem tem dinheiro tem poder e força e ninguém questiona como esse poder foi criado.) A ilusão que João tem é a de que ele, uma vez possuidor dessas coisas, terá autonomia, será um individuo livre e feliz. (Porque isso é uma ilusão, veremos um pouco mais adiante quando falarmos da mística do dinheiro.) João, uma vez rico, acha que será senhor de todas as coisa, das pessoas e dos objetos. Parece, entretanto, que ocorrerá o inverso; quando ele tiver dinheiro, este irá ser o seu senhor, pois o escravizará e tornará sua vida inteiramente dependente da manutenção e do crescimento do dinheiro. Ele não possuirá o dinheiro; o dinheiro possuirá João. (....) OBJETOS, CONSUMO, PRESTIGIO Voltemos ao caso do João. João presenteia Maria com um anel. O anel não possui valor utilitário algum, é um bem apenas de ostentação. Os bens que existem na sociedade não são, portanto, apenas para o uso. Quando eu compro um sapato comum, posso achar esse sapato caro, mas preciso comprar porque tenho necessidade de proteção para meu pé. O sapato então, é um bem adquirido para satisfazer essa necessidade. Se eu compro, porém um sapato que custa duas ou três vezes o meu salário, é claro que, se eu optei por ele, já não o fiz mais pensando no uso. Eu comprei para com ele “esnobar”, para dizer aos outros que eu sou diferente, que uso coisas boas, que tenho dinheiro e bom gosto (as coisas que esse sapato pode dizer são muitas). Uma mercadoria, portanto, pode ser comprada, tanto para uso, quanto para a ostentação. Um presente, entretanto, já é um terceiro significado de mercadoria: ele tem um valor particular para a pessoa que o comprou e para a que o recebeu. Esse valor existe somente para João e Maria. É um símbolo do amor de João. (Além desses três significados do anel, há ainda um quarto: o que significa para o revendedor, para quem o objeto não vai ter valor de uso, visto que ele não vai exibi-lo, tampouco presentear sua mulher com ele? Para o revendedor, a peça só significa uma coisa: um objeto com o qual ele poderá obter lucro, vendendo-o bem mais caro do que o comprou.)
  • 4. Como estava dizendo, esses três significados do anel representam cada um, um valor para a pessoa que o porta. A ideologia se expressa no tipo de valor que o portador do bem associa a ele. A ideologia que João incorpora é a ideologia da diferenciação; trata-se da ideologia que toma os objetos como meios para diferenciar-se dos outros. Tais objetos significam tais prestígios. Desapercebidamente, quando transfere para o objeto essa capacidade de melhorar sua imagem perante a namorada, João está ingressando num mundo em que o valor principal é o consumo. Consumo significa para ele, automaticamente, prestigio. Está é uma situação que encontra algumas semelhanças em outras sociedades e culturas. No passado, alguns aspirantes à chefia em certas tribos americanas faziam uma festa chamada potlatch, para a qual convidavam amigos e concorrentes e em cuja realização fazia grandes demonstrações de dispêndio e opulência. Os objetos e alimentos aí também significavam prestigio. O que diferencia essa situação da ostentação do moderno Capitalismo não é a questão do consumo como forma de prestigio e demonstração de superioridade, mas a vinculação desses com a mercadoria, a propriedade privada e o capital. Como se vê, certos bens na sociedade (alimentos, carros, roupas, joias) como já dito, manifestam-se pelo sujeito. E se observarmos a questão de um outro ângulo, veremos que isto empobrece bastante o próprio sujeito que os usa, porque ele fica sendo, na verdade, apenas mero transportador de objetos. O sujeito se perde atrás deles, deixa de ser uma pessoa com ideias próprias, com interesses, com vontades e passa a ser puramente um portador, mero suporte desses objetos. O FETICHE DO DINHEIRO Nesta ideologia que João incorpora, que é a ideologia mais encontrada em nossa sociedade, o dinheiro tem uma função central. Isto se dá pelo seguinte motivo: dinheiro significa alguma coisa que tem “poderes mágicos”. Costuma-se dizer que o dinheiro neste caso é um fetiche. (...) A IDEOLOGIA COMO PRÁTICA COTIDIANA Através do exemplo do trabalhador João, colocamos alguns elementos-chave desse tipo de ideologia na nossa sociedade, que é, em última análise, a ideologia majoritária, isto é, de que a maioria das pessoas compartilha. Isto não significa que ela seja uma ideologia que satisfaça os indivíduos. Estes compartilham dela porque imaginam que dessa maneira encontrarão felicidade. Essa felicidade, entretanto, é reduzida ao simples possuir objetos, e a realização realmente íntima, real do sujeito, ficam em segundo plano. Os componentes do pensamento de João são componentes muito comuns em nossa cultura. A questão da propriedade, do lucro, do capital, a questão da aparência das coisas tomando o lugar das próprias coisas, a questão do subir na vida, que as pessoas, por mais que busquem caminhos das formas mais diversas, não conseguem realizar, a questão do casamento, são exemplos de que a ideologia não é alguma coisa que está apenas “na cabeça”, não se trata de uma questão de ideias, mas de um tipo de vida. Vive-se segundo uma certa ideologia, não é que se tem uma ideologia apenas em relação a uma certa posição politica ou econômica.
  • 5. A importância da estória do João, que acabei de contar, é a de que não se pode considerar a ideologia como algo imposto as pessoas, mas como um elemento que faz parte de sua vida cotidiana. As pessoas tem ideologias, as pessoas vivenciam ideologias, as pessoas tem contato com elas no ambiente de trabalho, na vida que levam com os outros e na forma como participam da sociedade. Ideologias são praticas que circulam entre as pessoas, que convivem com elas, e as mesmas partilham ou não delas conforme seus interesses. Elas estão nos fatos que são vivenciados continuamente na vida cotidiana. Ideologias não são somente posições politicas definidas através de lutas mais amplas entre trabalhadores e patrões, mas são elementos que estão no dia a dia das pessoas, na sua rotina de vida. Pode-se dizer que ideologia é algo alimentado diariamente. A função especifica dos meios de comunicação (rádio, televisão, jornais, revistas) e de certas instituições (escola, igreja, clube) é exatamente a de reforçar continuamente essa ideologia. O contato e a conversa despreocupada com os amigos atua também da mesma maneira. Na vivencia real de todos os dias, a ideologia é praticamente “regada”. Como as flores são regadas, tem de receber todos os dias um pouco de água e de sol para viverem, da mesma forma, precisa a ideologia ser diariamente reforçada. O contato com os meios de comunicação, assim como com outras instituições, reforça no sujeito a ligação a valores, que funcionam para manter a coesão e a ligação dos indivíduos na sociedade. MARCONDES FILHO, Ciro. O que todo cidadão precisa saber sobre ideologia. São Paulo: Global, 1985. p. 31-45.