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1
Clarice de Assis Libânio
ARTE, CULTURA E TRANSFORMAÇÃO NAS VILAS E FAVELAS:
um olhar a partir do Grupo do Beco
Belo Horizonte
Novembro de 2008
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Clarice de Assis Libânio
ARTE, CULTURA E TRANSFORMAÇÃO NAS VILAS E FAVELAS:
um olhar a partir do Grupo do Beco
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como
requisito parcial para obtenção do título de mestre em
Sociologia.
Orientadora: profª Ana Lúcia Modesto
Belo Horizonte
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG
Departamento de Sociologia e Antropologia
Novembro de 2008
3
Clarice de Assis Libânio
ARTE, CULTURA E TRANSFORMAÇÃO NAS VILAS E FAVELAS:
um olhar a partir do Grupo do Beco
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como
requisito parcial para obtenção do título de mestre em
Sociologia.
Dissertação defendida e aprovada em:
Banca examinadora:
____________________________________________
Prof.ª Ana Lúcia Modesto
___________________________________________
Prof. Ronaldo de Noronha
__________________________________________
Prof. José Márcio Pinto de Moura Barros
Belo Horizonte
-- de novembro de 2008
4
Para meus pais, que me deram muito mais do que
exemplo.
Para meus filhos, que me dão, a todo dia, força e
alegria.
Para meu marido, inexplicável.
Para todos aqueles que me inspiraram a crença de
que sim, é possível um mundo diferente.
5
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, ao Grupo do Beco, claro, por sua confiança em mim, por seu
carinho, por sua amizade, pela tolerância com a demora desse trabalho, pelo
companheirismo, pelo apoio nas horas difíceis e pela força, energia e
disponibilidade. Um abraço especial ao Nil e à Jose, que considero hoje amigos de
coração.
Aos amigos do Favela é Isso Aí, sem os quais nada teria sido possível nesses anos
de muita fé e muita descrença.
À minha orientadora, Ana Lúcia, pela infinita paciência, enorme competência,
orientação impecável e fundamental respeito ao meu momento e minhas
dificuldades.
Ao José Márcio Barros, a quem não me canso de agradecer as oportunidades e
inspirações que tem me dado sempre.
Aos meus pais, que me deram a grande chance de “escolher” essa profissão e me
encantar com ela.
Ao meu marido e meus filhos, pela compreensão, pelas ausências e pelo apoio em
todos os momentos.
Obrigada!
6
Existir é diferir, e, de certa forma, a diferença é a
dimensão substancial das coisas, aquilo que elas
têm de mais próprio e mais comum. É preciso partir
daí, evitando qualquer explicação; para onde tudo
caminha, mesmo a identidade, de onde falsamente
partimos. Pois a identidade é apenas um mínimo,
não passando de uma espécie, e espécie
infinitamente rara, de diferença, assim como o
repouso é apenas um caso do movimento e o círculo
uma variedade singular da elipse.
Gabriel Tarde, In Monadologia e Sociologia
7
RESUMO
A dissertação tem como ponto de partida a pesquisa realizada pela autora, no ano
de 2002, que culminou na publicação, em 2004, do Guia Cultural das Vilas e Favelas
de Belo Horizonte. Naquele trabalho, a autora visitou as 226 vilas e favelas da
Capital Mineira e cadastrou cerca de 7.000 artistas em atividade nesses locais.
Durante a pesquisa, foi possível perceber que apenas 20% desses artistas tinham
algum tipo de rendimento com as atividades culturais. Dessa constatação nasceu a
hipótese de que a arte traz, a esse público, algo mais do que uma possibilidade de
geração de renda. Esse algo a mais passa por uma modificação em sua forma de se
relacionar com sua comunidade e para fora dela, bem como possibilita a
transformação da visão que as favelas e seus moradores têm junto à mídia e à
cidade em geral. O texto traz, então, uma visão dessas possibilidades de
transformação através da arte, tendo como estudo de caso o Grupo do Beco, grupo
de teatro formado por moradores da Barragem Santa Lúcia, em Belo Horizonte, e
sua peça, Bendita a Voz Entre as Mulheres. A peça, construída a partir de
entrevistas com 20 mulheres da comunidade, traz a história de Bendita, uma mulher
que foi estuprada, expulsa de casa pelo pai, espancada, traída pelo marido e que
consegue, contra todas as expectativas, mudar de vida a partir do momento em que
se envolve com a arte, como cantora. A partir dessa experiência, a autora discute
como a arte e a cultura são instrumentalizadas nas favelas, como meio de melhorar
a auto-estima daqueles que com elas se envolvem, de criar novas formas de
socialização e convivência grupal e, por fim, de ampliar a participação política, por
vias não tradicionais, e o acesso aos bens e serviços da cidade e direitos do
cidadão.
Palavras-chave: Favelas. Belo Horizonte. Arte e cultura popular.
8
ABSTRACT
This dissertation has as starting point the research accomplished by the author, in
the year of 2002, which culminated in the publication, in 2004, of the Cultural Guide
of the Villas and Slums of Belo Horizonte. To accomplish that work, the author visited
the 226 villas and slums of the Capital of Minas Gerais, and registered about 7000
artists in activity in those places. During that research, it was possible to notice that
only 20% of those artists had some kind of revenue with their cultural activities. From
this verification was born the hypothesis that art brings to that public something more
than a possibility of income generation. This something more promotes a
modification in their relationship with their community and beyond it, as well as it
makes possible the transformation of the image that the slums and their residents
have, in the opinion of the media and of the city in general. The text, then, brings a
vision of those possibilities of transformation through the arts, having as case study
the Grupo do Beco (Group of the Alley), theater group of residents of the Barragem
Santa Lúcia, in Belo Horizonte, and their play, Blessed the Voice Among the Women.
This play, built from interviews with 20 resident women from that community, brings
the history of Bendita (Blessed), a woman that was raped, expelled from home by her
father, beaten, cheated by her husband, and she achieves, against all expectations,
to change her life starting at the moment she gets involved in art, as a singer.
Starting from this experience, the author discusses as art and culture are
instrumentalized in the slums, as a way of improving the self-esteem of those that are
involved in it, of creating new forms of socialization and grupal coexistence, and,
finally, of enlarging the political participation by non-traditional means, and the
access to the goods and services of the city, and the citizen's rights.
Key words: Slums. Belo Horizonte. Art and popular culture.
9
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 – Planta de situação das vilas e favelas de Belo Horizonte.................. 56
FIGURA 2 - Unidades de Planejamento de Belo Horizonte, segundo Região
Administrativa......................................................................................................... 72
10
LISTA DE TABELAS
TABELA 1 Número de núcleos constantes do universo de trabalho oficial da
URBEL, segundo número de domicílios e população total
residente, por Regional ................................................................................
57
TABELA 2 Número de grupos culturais cadastrados e de pessoas
envolvidas e média de pessoas por grupo, por vila e grupos por
vila, segundo Regional .................................................................................
64
TABELA 3 Grupos culturais cadastrados, segundo área cultural, por
Regional (%)................................................................................................
66
TABELA 4 Grupos culturais cadastrados, segundo tempo na atividade, por
Regional ................................................................................................
68
11
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
AVSI Associação de Voluntários para o Serviço Internacional
CEURB/UFMG Centro de Estudos Urbanos
CHISBEL Coordenação de Habitação de Interesse Social de Belo Horizonte
COHAB-MG Companhia Habitacional do Estado de Minas Gerais
DBP Departamento Municipal de Habitação e Bairros Populares
DVS Departamento de Vigilância Social
FAMOBH Federação das Associações de Moradores de Belo Horizonte
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IQVU Índice de Qualidade de Vida Urbana
PLAMBEL Planejamento da Região Metropolitana de Belo Horizonte
PROAS Programa de Reassentamento de Famílias em Decorrência de
Obras Públicas ou Vítimas de Calamidades
PRODECOM Programa de Desenvolvimento de Comunidades
PROFAVELA Programa Municipal de Regularização de Favelas
RMBH Região Metropolitana de Belo Horizonte
SEPLAN/MG Secretaria de Estado do Planejamento e Coordenação Geral
SMAC Secretaria Municipal de Ação Comunitária
UPM Unidade de Planejamento
URBEL Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte
UTP União dos Trabalhadores da Periferia
ZEIS Zona de Especial Interesse Social
12
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 13
1.1 Trilhas e pistas da pesquisa.......................................................................... 15
2 METODOLOGIA ................................................................................................. 18
3 CONCEITOS E REPRESENTAÇÕES DA FAVELA........................................... 23
3.1 Um século de favela: do bom selvagem ao abusado.................................. 23
3.2 Morro, asfalto, comunidade, cidade – o território como conceito-chave.. 34
4 UM BREVE RELATO SOBRE AS FAVELAS DE BELO HORIZONTE ............. 42
4.1 Histórico e caracterização da ocupação ...................................................... 42
4.2 Ocupação atual............................................................................................... 54
4.2.1 Características gerais da ocupação .......................................................... 55
4.2.2 Aspectos demográficos e indicadores sociais......................................... 59
4.2.3 Infra-estrutura e serviços urbanos ............................................................ 61
4.2.4 Organização social...................................................................................... 63
4.3 Produção artístico-cultural............................................................................ 64
5 BENDITA A VOZ ENTRE AS MULHERES – O CASO DO GRUPO DO BECO 71
5.1 O território....................................................................................................... 71
5.1.1 Características gerais da ocupação .......................................................... 71
5.1.2 Aspectos demográficos.............................................................................. 75
5.1.3 Qualidade de vida e infra-estrutura ........................................................... 76
5.1.5 Organização social e participação............................................................. 78
5.1.6 Manifestações culturais.............................................................................. 80
5.2 O Grupo........................................................................................................... 81
5.3 A peça.............................................................................................................. 89
5.3.1Teatro popular e criação coletiva ............................................................... 89
5.3.2 O texto e sua construção............................................................................ 92
5.3.3 Pessoas e personagens.............................................................................. 100
6 O PAPEL DA ARTE DA CULTURA NAS VILAS E FAVELAS .......................... 110
6.1 Auto-estima, identidade, diversidade........................................................... 112
6.2 Grupo, redes, interação ................................................................................. 121
6.3 Mobilização, participação, cidadania............................................................ 124
7 CONCLUSÕES................................................................................................... 129
REFERÊNCIAS...................................................................................................... 134
ANEXOS ................................................................................................................ 138
13
1 INTRODUÇÃO
O trabalho que agora apresento é fruto de quase 20 anos de experiências, vivências
e pesquisas que desenvolvi junto aos moradores de vilas e favelas de Belo
Horizonte.
Essa trajetória se inicia em meados da década de 1980, quando iniciei minha
atividade profissional, ainda estudante, na Cia. Urbanizadora de Belo Horizonte –
URBEL, órgão da Prefeitura responsável pela política pública de habitação e
urbanização nessas comunidades.
Desde aquela época, fosse como estagiária, no princípio, fosse como profissional já
formada, depois, algumas questões me intrigavam e foram, aos poucos,
consolidando minha visão e teorias sobre as favelas, seus moradores e seu lugar na
sociedade.
Entre essas questões, a central e que informava todas as outras, basicamente, era a
noção de que havia uma divisão muito “clara” entre os moradores das favelas e os
moradores dos bairros, ainda que as divisões urbanas e culturais não fossem
explícitas em muitos casos.
Sempre fiquei muito intrigada com o fato de que tanto os moradores dos bairros
quanto os moradores das favelas referiam-se uns aos outros como seres diferentes:
nós e eles, os outros, os que não são nós. A noção de cidade dividida, apesar de
vizinha e convivente (no uso do espaço urbano, nas relações de trabalho etc.) ficou
para mim, desde então, como uma incógnita e, ao mesmo tempo, uma verdade a ser
combatida, sempre.
A bandeira da não-divisão da cidade, aliás, vem de família, porque meu pai,
sociólogo, desde que me entendo por gente trabalha com a regularização das
favelas e na minha infância e adolescência, divorciado, me levava para as reuniões
nas comunidades como programa familiar de sábado à tarde. Naquela época, claro
que eu, filha, não me sentia nada satisfeita com o programa com o pai, mas hoje
14
sinto que ele me ensinou a ver com os mesmos olhos os “de lá” e os “de cá”.
Dentro da URBEL, nos quase dez anos que por lá fiquei, trabalhei em vários setores,
na articulação comunitária, na habitação, no social. Mas o trabalho que mais me
despertou e construiu minha vida profissional até hoje foi na área da pesquisa social.
Conhecer a realidade dessas comunidades sempre foi para mim o que havia de
mais instigante naqueles trabalhos.
Ao sair da instituição, para dedicar-me ao meu primeiro mestrado (aliás, capítulo à
parte), nunca deixei de pesquisar as vilas e favelas, de querer entender melhor
sobre elas e sobre a divisão da cidade.
Nesse momento, gostaria de abrir dois parênteses: um, sobre meus dois mestrados;
o outro, sobre a forma de conhecer as comunidades.
Em relação ao primeiro parêntese, me formei em ciências sociais, habilitação em
antropologia, no ano de 1992. Em 1994 já estava no mestrado da sociologia e
escolhi como tema o relacionamento existente entre bairros e favelas em Belo
Horizonte, seus afastamentos, estigmas e visões dominantes na sociedade.
Naquela época, fiz todos os créditos, mas não consegui finalizar a dissertação, parte
por me sentir órfã dentro do departamento com meu tema, parte por continuar
(desde sempre) trabalhando muito enquanto estudava.
Dez anos depois, jubilada, decidi tentar novamente a prova do mestrado e retomei o
tema, porém, já dentro de outras bases, tendo a cultura como foco, a partir de minha
experiência com a elaboração do Guia Cultural de Vilas e Favelas, do qual falarei
adiante.
Quanto ao segundo parêntese, confesso que já ouvi (por mais de uma vez)
comentários, explícitos ou velados, sobre as pessoas que, como eu, não nasceram
nas favelas, não vivem sua problemática na pele, mas querem estudá-las, conhecê-
las e contribuir, de alguma maneira, para mudar o quadro de exclusão e divisão que
se apresenta.
15
Os comentários são sempre na linha de que nós, “os de fora”, estamos lá para sugar
“os de dentro”, para utilizarmos de seu conhecimento e sua vivência para nossas
teses e depois, como ratinhos de laboratório, descartá-los, não dar retorno, não
contribuir.
Já houve épocas em que me indignei com essas afirmações, mas hoje não levanto
mais a voz para protestar. Primeiro, porque sei que, de fato, é muito comum essa
prática, de pessoas que não têm compromisso com as outras, tão comum que o
“estudante universitário que sobe o morro” já virou personagem cristalizado nessas
comunidades. Segundo, porque sei que só com minha prática posso ter a chance,
ainda que mínima, de ser enquadrada em outra categoria: a daqueles que realmente
gostariam que a cidade fosse mais integrada, menos dividida, menos segregada.
1.1 Trilhas e pistas da pesquisa
Voltando ao processo de construção desta dissertação, no ano de 2002 comecei um
trabalho de pesquisa que tinha como objetivo fazer um levantamento nas favelas de
Belo Horizonte, mapeando todos os tipos de manifestações artísticas e culturais
existentes nessas comunidades.
O produto desse trabalho, lançado em agosto de 2004, foi o Guia Cultural das Vilas
e Favelas de Belo Horizonte, que cadastrou 6.911 artistas em atividade nessas
áreas, número este que vem se mostrando, a cada dia, apenas uma amostra do que
realmente fervilha na área cultural das comunidades periféricas da Capital.
Naquela época, esses resultados de fato foram para mim – e para grande parte das
pessoas ligadas ao cenário cultural mineiro – uma surpresa. A partir do
desvelamento desses grupos, descobrimos como estávamos desinformados a
respeito dessa “arte invisível”, presos em nosso apartamento e de uma certa forma
distantes dessa realidade.
Aliás, a experiência do Guia foi fundamental para que eu me deparasse com meus
próprios preconceitos. Como já disse, trabalho com favelas desde 1987, foi meu
16
primeiro estágio, meu primeiro emprego e é o que faço, desde então. Sempre me
gabei de não ter preconceitos com relação aos moradores das favelas, a transitar
pelas comunidades, etc., etc.
Entretanto, quando a questão é a cultura, sem querer, a gente começa a reproduzir
o que ouve sistematicamente: aquela visão de que o que tem em favela é samba e
pagode e, hoje, hip hop. Sempre há esses rótulos, de tudo muito massificado, como
se fosse uma coisa só, igual, “a pobreza é toda igual, os barracos são iguais, a
cultura é igual”.
Quando me aprofundei nesse olhar para a cultura das comunidades, percebi que, de
fato, as coisas não são assim, é tudo bem ao contrário: se a favela de fora parece
um bloco, de cultura semelhante, do lado de dentro é completamente diferente. O
que eu já sabia do ponto de vista urbano, social e arquitetônico, fiquei sabendo com
relação ao que é artístico e cultural. A pluralidade e a diversidade são muito
grandes.
Foi no contexto do Guia que vim a conhecer o trabalho do Grupo do Beco e passei
então a acompanhar mais de perto sua trajetória, me encantei com eles e
redirecionei todo meu projeto de pesquisa para a dissertação.
Após o lançamento do Guia, me deparei com a necessidade de dar continuidade às
ações de apoio e divulgação dessa rica e intensa produção cultural que havíamos
mapeado, justamente por ter certeza de que o trabalho de pesquisa, apesar de toda
sua importância, perde seu objetivo se não avançar para a realização concreta da
mudança que se espera.
Confesso que foi essa minha incapacidade, desde sempre, de ser imparcial nos
processos de pesquisa, que me levou a fundar a ONG Favela é Isso Aí, dando,
então, continuidade às demandas identificadas mediante o Guia.
Lembranças e motivações à parte, a dissertação que agora, finalmente, publico, traz
reflexões baseadas, principalmente, em uma questão que muito me chamou a
atenção nos resultados do Guia: se somente 20% dos artistas cadastrados tinham
17
renda com a atividade artístico-cultural, quais eram as motivações para continuarem
desenvolvendo seus trabalhos nessa área? Com essa questão em mente, parti,
então, para a pesquisa e as discussões que aqui se apresentam.
O trabalho está estruturado em seis capítulos, ademais dessa introdução. O
segundo traz as metodologias adotadas para a pesquisa, tanto do Guia, que aqui
também entra como fonte fundamental de informações, quanto do relacionamento
com o Grupo do Beco, recorte que fiz para minha dissertação.
O terceiro busca trazer uma discussão sobre a formação e componentes principais
da “mitologia urbana” que se formou em relação às favelas, suas representações e
conceitos principais.
Em seguida, o capítulo 4 volta seu olhar especificamente para a cidade de Belo
Horizonte e conta um pouco da história de ocupação e desocupação das áreas
faveladas ao longo das décadas e das sucessivas políticas públicas implantadas.
O capitulo 5 trata da realidade específica do Grupo do Beco: seu território, seus
atores, sua peça e suas motivações.
Por fim, os capítulos 6 e 7 trazem uma reflexão mais teórica que busca responder
àquela pergunta fundadora e dão algumas linhas que mostram a arte nas vilas e
favelas para além de sua função estética ou econômica.
Espero que essa experiência, vivida nos últimos 20 anos de minha vida profissional,
tenha algo a acrescentar ao debate de muitos, em Minas e fora dela, para o
reconhecimento das comunidades de vilas e favelas como elas são, ou seja, partes
do mesmo tecido social e urbano de que as cidades se constroem.
Como diria meu pequeno Benjamin, espantado ao ver, entre um prédio e outro, a
paisagem de um morro coalhado de casinhas: “Mãe, a favela ‘tá’ no meio do
mundo!!!”.
18
2 METODOLOGIA
O trabalho para elaboração desta dissertação foi realizado através de três etapas
básicas, sobre as quais se discorrerá a seguir.
A primeira foi o aproveitamento da pesquisa do Guia Cultural de Vilas e Favelas de
Belo Horizonte, desenvolvido pela autora do presente estudo entre 2002 e 2004,
com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte – Fundo de
Projetos Culturais.
O projeto realizou o cadastramento, através de pesquisa de campo iniciada em
março de 2002 e concluída em novembro do mesmo ano, de todas as
manifestações culturais, artísticas, folclóricas e populares existentes e em
desenvolvimento nas vilas e favelas de Belo Horizonte. Vale destacar que entre o
início da pesquisa e sua publicação passaram-se quase três anos, por atraso na
liberação dos recursos, obrigando a que duas atualizações fossem feitas no período.
Para proceder ao levantamento dos dados, foram consideradas as seguintes áreas
culturais: Música, Teatro, Dança, Artes Plásticas, Artes Visuais, Literatura,
Artesanato, Folclore e Religiosidade, Escolas de Samba e Blocos Carnavalescos e
outras (atividades de caráter múltiplo, de cunho social ou que não se enquadravam
em nenhuma categoria mencionada).
Iniciou-se a pesquisa pela difícil delimitação do universo de trabalho. Difícil porque
percebeu-se que as áreas de ocupação com perfil designado vilas e favelas têm
grande fluidez em seu surgimento e adensamento, restando sempre a sensação de
que a base de dados está desatualizada.
Assim, optou-se por adotar a listagem oficial fornecida pela então Secretaria
Municipal de Habitação/URBEL, que indicava a presença de 226 áreas, incluindo
vilas e favelas com decreto ZEIS (Zona de Especial Interesse Social), além de
conjuntos habitacionais construídos pelo Poder Público municipal e outras áreas não
decretadas.
19
É importante realçar que das 226 áreas apontadas pela URBEL àquela época, 12
não foram localizadas em campo – algumas, porque já se urbanizaram e se
incorporaram à malha dos bairros do entorno; outras, porque de fato não existem
mais, como é o caso da Vila Camponesa (Regional Leste), desapropriada pelas
obras do metrô; e outras, porque ainda não estavam habitadas à época da pesquisa
de campo, como é o caso do Conjunto São Gabriel (Regional Nordeste). Quanto às
demais, foram todas visitadas pela equipe de campo do Guia e tiveram as
manifestações culturais e artísticas cadastradas.
Encontraram-se também núcleos de baixa renda não constantes da listagem oficial
da URBEL, mas optou-se por não incluí-los no levantamento, já que o parâmetro
adotado era o cadastramento das áreas constantes do universo reconhecido pelo
Poder Público municipal.
Definido o território, partiu-se para a realização de entrevistas com lideranças
comunitárias, a partir das quais se iniciou a busca de artistas e grupos culturais,
formando uma rede de informantes. O mapeamento em rede permitiu identificar e
cadastrar um número relevante de artistas em atividade, mas deixou de fora vários
deles, que não tinham sido indicados por ninguém, quebrando, de alguma maneira,
o ciclo da pesquisa que se propunha censitária.
Além do descompasso entre o universo de trabalho da URBEL e as vilas realmente
existentes na cidade, já mencionado, outros problemas enfrentados foram a
desatualização do cadastro de lideranças fornecido pelo órgão, a existência de
diversas lideranças no mesmo local, dificultando a identificação daquelas com maior
legitimidade e o desconhecimento, por parte das lideranças, dos artistas de sua
própria comunidade.
Foram utilizados dois questionários básicos para a pesquisa: um deles era destinado
às lideranças e levantava todo o contexto urbano e social da comunidade, incluindo
aspectos de saúde, educação, saneamento, segurança pública, iluminação, inclusão
social, emprego e renda; o outro era destinado aos artistas e buscava conhecer de
perto sua atividade, principais problemas e realizações.
20
Além do cadastro dos artistas, foram também realizados cadastros de equipamentos
culturais, meios de comunicação locais e festas de cada uma das comunidades.
Os questionários foram digitados e tabulados e os dados e análises estatísticas
obtidos foram incorporados neste trabalho, como poderá ser visto no Capítulo 4.
Finalmente, vale destacar que o Guia, hoje, encontra-se totalmente desatualizado,
uma vez que a dinâmica das comunidades é bem grande, principalmente no que se
refere à formação e dissolução de grupos culturais. Entretanto, algumas
atualizações já estão sendo feitas e serão incorporadas, quando possível, na análise
deste trabalho.
A segunda etapa da pesquisa, após a escolha do Grupo do Beco como sujeito da
dissertação, foi a realização de entrevistas em profundidade com os participantes e
atores envolvidos no Grupo.
É importante, antes disso, destacar que a escolha do Grupo do Beco não se deu por
sua representatividade no universo da produção cultural das comunidades, já que,
no total de quase 700 grupos cadastrados pelo Guia, apenas 37, ou seja, menos de
5%, eram ligados à área do teatro.
A escolha se pautou pela tipicidade do trabalho do Grupo, dentro da temática
escolhida, isto é, um grupo que declaradamente se propunha a fazer arte em prol da
transformação social, um grupo que acreditava que o papel das manifestações
culturais nas vilas e favelas estava muito mais relacionado aos seus aspectos
sociais e políticos do que estéticos ou econômicos.
Após a escolha, o Grupo foi contatado e o projeto apresentado. A primeira reação foi
de rejeição. O Grupo colocou que já tinha sido, muitas vezes, objeto de análise de
outros estudantes e que não queriam ser sempre “ratinhos de laboratório”. Em
seguida, houve o questionamento, da parte deles, do que receberiam em troca da
pesquisa, fato que se dissolveu pelo contato permanente e aproximação mútua.
Realizaram-se, então, entrevistas coletivas com o Grupo, para conhecer sua história,
21
trajetória, sonhos, expectativas, etc. Esses encontros foram em número de quatro ou
cinco, todos gravados e conduzidos livremente a partir de um roteiro de questões de
cunho qualitativo.
As dificuldades de agenda do Grupo, somadas à necessidade e importância de se
ouvir cada um dos membros em separado, fizeram com que se partisse, então, para
as entrevistas individuais. No total, foram realizadas entrevistas com sete
representantes do Beco, com duas a três horas de duração cada uma, também
utilizando a mesma metodologia. Não foi possível entrevistar dois membros do
Grupo, além de um ator contratado, por problemas de agenda.
As entrevistas individuais aprofundaram mais na história de vida de cada ator do
Grupo, conhecendo sua trajetória prévia à sua entrada para o teatro e sua leitura da
importância da arte e da cultura em sua vivência e na de sua comunidade.
Em seguida, as entrevistas foram transcritas e analisadas, de forma a compor um
panorama geral do Grupo e do trabalho por ele desenvolvido. Em alguns momentos
do texto ora apresentado, são citadas partes das entrevistas sem, entretanto,
identificar o nome da pessoa ouvida, como forma de se preservar cada um dos
atores do Grupo.
Por fim, a terceira etapa do trabalho foi dada, não necessariamente nessa ordem,
pela leitura e análise de bibliografia relativa ao tema do trabalho e pela leitura e
análise dos materiais do Grupo, incluindo matérias de jornais, vídeos, fotos e o texto
da peça “Bendita a Voz entre as Mulheres”.
Do ponto de vista da bibliografia, mostrou-se ser pouco extensa e de difícil
identificação. Em primeiro lugar, no que se refere a um olhar específico sobre as
favelas de Belo Horizonte, já que a maioria absoluta dos trabalhos publicados foca
as favelas do Rio de Janeiro como fenômeno nacional. Em segundo, no que tange
às relações entre cultura e desenvolvimento social e humano, temática da qual muito
se tem falado, mas pouco publicado em termos de pesquisas empíricas conclusivas.
Talvez tenha sido esta a etapa mais difícil do trabalho, não somente porque
22
incorporou mais de perto o aspecto teórico em si e avançou na trilha das conclusões
do estudo, mas fundamentalmente, e principalmente, porque se utilizaram
parâmetros muito mais subjetivos na leitura das informações disponíveis.
Ao contrário dos dados do Guia, trabalhados estatisticamente e com potencial de
comparabilidade entre as diversas comunidades – ao contrário, também, das
informações vindas das entrevistas qualitativas, que focavam as histórias de vida em
suas particularidades, encontrando pontos de afastamento e aproximação –, a
análise da peça trouxe muito mais um olhar sobre o discurso, as representações e
visões dos próprios atores sobre sua comunidade, sua realidade e dificuldades,
vistas pelo ponto de vista de um observador não-morador, não detentor do código
utilizado pelos criadores da obra.
Nesse sentido, como se verá no capítulo dedicado à peça, buscou-se muito mais
descrever as falas e seu encadeamento do que interpretá-las de uma maneira
acabada e estanque, fornecendo ao leitor as respostas prontas.
23
3 CONCEITOS E REPRESENTAÇÕES DA FAVELA
Antes de iniciar a discussão a respeito da gênese e evolução das favelas em Belo
Horizonte e situar o tema da dissertação nesse contexto, buscar-se-á traçar um
breve relato a respeito dos aspectos simbólicos da temática favela. A intenção é
discorrer sobre as visões e representações da favela ao longo do tempo, abordando
um aspecto fundamental e determinante tanto para a identidade dos artistas
moradores dessas comunidades quanto para seu posicionamento perante o restante
da sociedade.
O que se pretende neste capítulo é apresentar um panorama das representações
sociais hegemônicas sobre as favelas, de forma a contextualizar o estudo das
manifestações artísticas ocorrentes nesses espaços e seus resultados do ponto de
vista da ação e da transformação social. Também interessa analisar como a
identidade da favela foi sendo construída ao longo do tempo, conformando essa
visão dominante.
3.1 Um século de favela: do bom selvagem ao abusado
Quando se pretende falar a respeito dos conceitos e representação das favelas na
sociedade em geral, bem como sua transformação ao longo do tempo, há, ao
contrário da temática da produção artística e seu papel, uma série de estudos já
disponíveis que aprofundam essa questão.
Ainda que praticamente todos eles estudem o fenômeno favela na cidade do Rio de
Janeiro, podem ser utilizados como referência para a discussão que se pretende
aqui realizar, pela proximidade das representações encontradas lá e cá a respeito
desses locais. Ademais, há que se lembrar que é a imagem da favela carioca que é
disseminada por todo o País e mesmo no exterior como estereótipo, pela mídia, o
que acaba contribuindo para nivelar um pouco as visões da sociedade a respeito de
todos os outros tipos de comunidade e ocupações humanas no restante do Brasil.
24
De acordo com Pandolfi (2003):
[...] poucos termos são ao mesmo tempo tão evidentes e tão opacos quanto
favela. Sua evidência se dá num duplo sentido. O primeiro é estar ganhando
visibilidade crescente, atraindo as atenções, ocupando de forma constante
espaços significativos na mídia, constituindo-se em tema recorrente de
debates. O segundo é que basta sua simples menção para que se produza,
de modo automático, um efeito de reconhecimento e de assentimento. Isso
significa não apenas que o termo se tornou de uso corrente, mas também
que os seus sentidos passaram a ser partilhados, generalizados. Todos
concordam a respeito do que é uma favela, todos são capazes de visualizar
e de identificar claramente uma favela. (p. 21)
Essa familiaridade distante com o universo da favela, mediada pela televisão que
coloca dentro de cada casa a “realidade” dos morros, tem como conseqüência a
pasteurização, a homogeneização das áreas periféricas ou comunidades urbanas
ocupadas por populações de baixa renda. Áreas de morro, áreas de palafitas,
alagados, fundos de vale, áreas consolidadas urbanisticamente, áreas construídas
com materiais alternativos, áreas com ou sem infra-estrutura. Não importa: ao final,
tudo é visto como o estereótipo da favela carioca, no modelo Rocinha, por exemplo.
Essa concordância guarda relação com o fato de que as favelas são um
dado concreto, são observáveis, têm uma objetividade. Elas delimitam um
espaço com características próprias, que as distinguem do seu entorno. São
estas características físicas, suas marcas externas mais aparentes, que, em
primeiro lugar, dão base à sua identificação como ocupações irregulares do
espaço urbano, cujas construções são toscas e feitas de forma
desordenada. Desassistidas e privadas de infra-estrutura, de serviços
básicos e de condições de higiene e saúde, estão mais sujeitas às
intempéries, com deslizamentos nas que se localizam em áreas de risco de
encostas, e enchentes naquelas instaladas em terrenos planos. Espaços-
dormitório, as favelas seriam formadas por uma população que dela se
desloca para trabalhar ou buscar trabalho e lá se encontra por absoluta falta
de alternativa. Conseqüentemente, tão logo se apresente uma alternativa
razoável, essa população tenderia a deixá-las, não vendo sua presença ali
como algo definitivo. Mais do que dormitórios, portanto, elas seriam espaços
transitórios, locais de passagem. (PANDOLFI, 2003, p. 21).
No caso específico de Belo Horizonte, a situação encontrada nas áreas
denominadas “vilas e favelas” desmente, na grande maioria dos casos, esse
panorama. Como se verá no capítulo que se segue, a partir da década de 1980 uma
série de programas foram sendo implantados nessas áreas, transformando sua
situação urbanística e reduzindo significativamente os problemas de infra-estrutura e
saneamento básico. Por outro lado, é cada vez maior o número de famílias que,
nascidas e crescidas nas favelas, não desejam se mudar de suas comunidades e
25
afirmam categoricamente as vantagens do “morro” em relação ao “asfalto”.
De qualquer forma, o imaginário coletivo continua identificando favela por seus
traços estereotipados e exagerados que, na maioria dos casos, não encontram eco
na realidade.
Partilhada pela mídia, pela academia, pelo Estado, pelas agências de
desenvolvimento e pelas ONGs, essa representação das favelas extrai a
sua força justamente de sua evidência, do fato de corresponder a dados
concretos e de poder ser objetivamente observada. Nelas existem pobres,
haja vista o próprio aspecto das moradias, a infra-estrutura e os serviços
públicos são realmente precários, e não há como negar que hoje o tráfico
de drogas tem ali uma de suas faces mais visíveis. Entretanto, se tudo isso
é verdade e constitui uma pauta de graves problemas a serem
solucionados, é preciso notar que é nessa evidência mesma que reside a
opacidade da favela, pois ela produz a certeza de que já se conhece a
favela, sem que seja preciso conhecê-la efetivamente. Ela induz e direciona
o nosso olhar, condicionando o que ver e como ver; leva-nos a perceber e
tratar como unidade a favela e os favelados, aquilo que, de fato, é marcado
por uma extrema diversidade. A representação sobre a favela impõe-se,
assim, à realidade das favelas. (PANDOLFI, 2003, p. 23).
A visão atualmente dominante a respeito das favelas no Brasil, da qual Belo
Horizonte não foge à regra, foi sendo construída ao longo do último século, tempo
de existência dessa formação urbana tipicamente nacional. 1
O discurso mais disseminado na análise da gênese e formação das favelas tem o
ano de 1897 como marco fundador, relacionado à ocupação do Morro da
Providência, no Rio de Janeiro, por veteranos da Guerra de Canudos, com
autorização do Ministério da Guerra, de onde teriam trazido o nome de uma planta
(fava) comum nas duas regiões.
Entretanto, Souza afirma que na verdade a ocupação desta área é anterior a 1865,
sendo que apenas no final deste século começou a ser vista como problema digno
de atenção pela sociedade, tanto do ponto de vista demográfico e urbano quanto
higiênico e sanitário.
1
Para maiores detalhes sobre a evolução das representações das favelas, ver Zaluar (2004), Silva
(2005) e Valladares (2005). Apesar de algumas diferenças nas abordagens dos três autores, a linha
histórica que traçam sobre as favelas cariocas é semelhante e foi utilizada como referência neste
capítulo.
26
Segundo Maurício Abreu (1994), os barracões situados em morros não
eram raros na paisagem carioca do século XIX. Alguns relatórios de 1865 já
citavam essas habitações. Dispersas e pouco numerosas, no entanto, não
se destacavam na paisagem urbana da época. Tais habitações populares
ainda não faziam parte das preocupações da sociedade, mais assustada
com os cortiços e casas de cômodos que não paravam de crescer na
cidade, principalmente no centro. [...]
Além de perigosos, os cortiços e casas de cômodos eram considerados
ambientes insalubres, anti-higiênicos e focos de doenças (cólera, peste,
varíola e febre amarela) que assolaram a cidade a partir de 1850. (SILVA,
2005, p. 25).
E é justamente da desocupação dos cortiços, pela guerra sanitarista, que vão se
intensificar as ocupações no Morro da Providência e outros morros cariocas,
transformando aos poucos um nome próprio (Morro da Favella) no nome genérico
favela.
Foi a partir do ‘Morro da Favella’ que se começou a generalizar, na
imprensa, a associação do termo ‘favela’ à imagem de ‘perigo’ e de
‘desordem’. A favela já era lugar de malandros e marginais. [...]
Tais conceitos são reforçados com a Revolta da Vacina (1904) e, com o
decorrer dos anos, gradativamente a imagem de ‘terra sem lei’ acaba por
refletir-se também em outros espaços populares da cidade com paisagens
semelhantes. Os distúrbios mais sérios da Revolta da Vacina teriam
ocorrido do sopé do Morro da Providência, onde muitos moravam ou
passaram a refugiar-se, o que acabou aumentando a má fama da favela....
(SILVA, 2005, p. 27).
Deslocando-se a população dos cortiços para os morros e áreas menos centrais,
desloca-se também a preocupação sanitarista e higienista. “Assim, o discurso
higienista, que enfatizava os riscos das habitações precárias para a saúde pública,
passou a direcionar-se para esse tipo de alternativa habitacional.” (SILVA, 2005, p.
29).
Os discursos veiculados pela mídia e poderes constituídos, desde então, mostram o
Rio de Janeiro com uma visão dual, de duas cidades distintas dentro da mesma
Capital Federal. De acordo com Zaluar (2004), todos os autores que trataram a
cidade entre 1908 e 1923 usaram o conceito de dualidade em suas descrições,
pensamento cuja origem insere-se na visão dual da própria sociedade brasileira. “No
Rio de Janeiro, essa reflexão sobre a dualidade brasileira encontrou na oposição
favela x asfalto uma de suas encarnações.” (ZALUAR 2004, p. 13).
E ainda:
27
[...] a classificação bipolar surge de uma ordem social imaginada de tal
modo que qualquer ambigüidade, fronteira sombreada e experiência
contínua oferecem poucos instrumentos para pensar esses problemas.
Essa classificação é devedora de uma ordem social que se estriba na
clareza de quem são os amigos e os inimigos, ou seja, uma ordem pré-
moderna, das sociedades de pequena escala, das províncias, mas
dificilmente aplicável às metrópoles. (ZALUAR, 2004, p. 19-20);
Negativa quando se refere a condições de vida e segurança, positiva quando se fala
de arte e cultura, a favela conquista adeptos e perseguidores desde seu
aparecimento.
Do ponto de vista dos admiradores, vale citar o modernismo, já na década de 1920,
como um dos movimentos que reafirmou a beleza da favela e a idealizou como
característica genuinamente nacional, retrato da garra e criatividade do povo
brasileiro.
Logo também seria reconhecida como ‘berço do samba’ e dona de uma
admirável beleza rústica, para indignação dos setores conservadores.
Essa nova concepção da favela contribuiu para o aparecimento de uma
lógica paradoxal que, dali até a década de 1980, conduziria os olhares
sobre o território. O espaço popular da década de 1920 em diante passa a
ser visto também na condição de palco de ‘musas e poetas’ do samba. Em
sua pobreza, afinal, havia espaço para a beleza e o lirismo da cultura
popular brasileira. É a exotização da favela e de seus moradores. (SILVA,
2005, p. 34).
A imagem do bom favelado foi mote nessa época e nas décadas vindouras,
especialmente na sociedade carioca, que tanto conviveu e convive com artistas
moradores das comunidades pobres. Ícone dessa convivência, Hélio Oiticica foi um
artista que, na década de 1960, era amigo do famoso Cara de Cavalo e realizou
obra de protesto após seu massacre pela polícia carioca.
A estereotipia das favelas e seus moradores faz-se presente não só na
forma conservadora [...] como também em uma forma supostamente
progressista. Na primeira, os jovens aparecem como criminosos em
potencial ou como colaboradores de forças criminosas. Na representação
progressista, os residentes em favelas, há algumas décadas, eram
identificados por alguns setores sociais como ‘bons favelados’. O juízo
estabelecia uma analogia com a visão romântica do bom selvagem, símbolo
antimoderno de uma cidade racional e individualista. Embora essa
idealização ainda se faça presente, tornou-se mais comum, entre os que
assumem a perspectiva identificada como progressista, sua identificação
como vítimas passivas – e intrinsecamente infelizes – de uma estrutura
social injusta. (SILVA, 2005, p. 60).
28
De acordo com Oliveira e Marcier (apud ZALUAR, 2004), que estudaram os
conceitos e representações da favela por intermédio de letras de música, a favela foi
vista, ao longo de sua existência, das seguintes maneiras: o espaço do pobre, o
espaço do samba (ainda que este tenha subido, e não descido o morro), a não-
cidade, o locus da marginalidade urbana e, por fim, como uma questão social.
Ao mesmo tempo em que, por uma visão idealizada, as letras de música
enaltecem o lugar, enaltecem também os laços de vizinhança,
companheirismo e união existentes entre os moradores da favela. Em nítida
oposição à ‘cidade’, onde predominariam as relações impessoais, a favela
seria o locus, por excelência, das relações personalizadas: nela, todos se
conhecem, todos se ajudam [...]. (OLIVEIRA; MARCIER apud ZALUAR,
2004, p.79).
Mas as próprias letras de música reforçam a favela como o local da violência, ontem
e hoje.
Mas se o conjunto dessas letras, produzindo uma visão mítica da
marginalidade, tende por isso mesmo a reforçar o estigma que
historicamente foi lançado sobre a favela como uma espécie de território
sem lei e sobre seus moradores como ‘classes perigosas’, em outras tantas
letras a imagem se dá exatamente na direção contrária [...] ao estigma da
malandragem se contrapõe a representação de um trabalho duro e mal
remunerado; ao da criminalidade, a caracterização de uma gente decente e
honesta, que socializa seus filhos por meio de uma ética que enaltece o
trabalho e recusa a delinqüência. ‘Ser pobre é não delinqüir’. (OLIVEIRA;
MARCIER apud ZALUAR, 2004, p.96).
Vista também como lugar da desordem, inúmeros artigos veiculados pela imprensa
apresentam a favela como
[...] um espelho invertido da civilização (ZALUAR, 1998) e oposta aos
anseios por uma cidade moderna, ordenada, civilizada e limpa. Colaborou
para a construção deste estigma o fato de a lei de então classificar de
vagabundo todo aquele que não tivesse domicílio certo [...], o que incluía, é
claro, os moradores das favelas, pois suas casas não eram consideradas
residências fixas, mas sim de caráter provisório. Como se não bastasse,
ainda ocupavam terrenos de terceiros. (SILVA, 2005, p. 30).
De acordo com Silva (2005), as principais marcas da representação social
hegemônica sobre as favelas são os conceitos de ausência, de homogeneidade e de
distância. Assim, a favela é o lugar do “falta”, do “não tem”; as formas de ocupação
são consideradas todas muito semelhantes; e a distância entre nós e eles é sempre
reforçada, tanto do ponto físico quanto mental e social.
29
Concentrando a pobreza, elas também expõem de forma pura aquilo que é
apontado como sua característica peculiar, tanto em termos positivos
quanto negativos. Por um lado, são tidas como o lugar, por excelência, de
determinadas formas de expressão marcadamente populares, como o
samba e o carnaval. Por outro, são temidas como territórios dominados pela
violência, por grupos, como os do tráfico de drogas, que impõem seu
predomínio por meio das armas e do terror.
Se por um lado a violência é percebida como traço identificador das favelas,
por outro ela é atribuída não só à pobreza, mas também à ausência do
Estado. Cumpre destacar, porém, que essa ausência não se traduz apenas
na incapacidade de garantir a ordem, impondo o monopólio da violência
legítima, mas também na inexistência de investimentos significativos em
infra-estrutura, saneamento, saúde, educação e transporte. Portanto,
ficando à margem daquilo que configura a pauta de direitos mínimos da
cidadania, as favelas teriam na exclusão social mais uma de suas marcas
identificadoras básicas. (PANDOLFI, 2003, p. 22).
Nesse sentido, os próprios conceitos utilizados nos dias atuais pelos Poderes
Públicos para definir as áreas de favela estão focados na noção de ausência. A
favela, em geral, pode ser caracterizada, nas representações que dela se faz, como
o lugar por excelência da ausência, da falta.
O eixo da representação da favela é a noção de ausência. Ela é sempre
definida pelo que não teria: um lugar sem infra-estrutura urbana – água, luz,
esgoto, coleta de lixo –, sem arruamento, sem ordem, sem lei, sem moral e
globalmente miserável. Ou seja, o caos. (SILVA, 2005, p. 24).
Essa concepção da favela como local sem ordem, sem higiene, sem moral, sem lei,
está na origem das políticas públicas destinadas às favelas, que, desde seu início,
estiveram predominantemente focadas na remoção das famílias desses locais.
No caso do Rio de Janeiro, a expansão das favelas vai se dando de maneira
gradual, chegando ao ano de 1920 com cerca de 100 mil pessoas habitando
diversos núcleos, marcando definitivamente a afirmação dessa forma de solução
habitacional no seio da Capital da República. Em resposta aos apelos da sociedade
pela “civilização” da cidade, é criado o Plano Agache, em 1927, que tinha como
objetivo a “remodelação, extensão e embelezamento” da cidade, mas que,
entretanto, não logrou realizar a remoção das favelas do cenário da Cidade
Maravilhosa.
Somente na década de 1940 a remoção de algumas áreas de favela se dá, com a
constituição dos Parques Proletários, que tratavam não somente de construir novas
moradias – muito mais precárias, às vezes, do que as de origem dos removidos –,
30
mas também de impor-lhes regras de convivência, de moral e bons costumes, numa
“pedagogia civilizatória”.
Silva (2005) atenta para o fato de que pelo menos um ponto positivo adveio da
política dos Parques Proletários: a formação de organizações comunitárias dos
moradores de favelas, que deram origem a todo um movimento associativo cujo
ápice foram os anos de 1960.
Em 1948 realiza-se o primeiro censo das favelas do Rio de Janeiro, pela prefeitura,
que trouxe uma série de concepções vigentes à época, expressas pela voz oficial da
municipalidade.
Segundo o texto, os ‘pretos e pardos’ prevaleciam nas favelas por serem
‘hereditariamente atrasados, desprovidos de ambição e mal ajustados às
exigências sociais modernas’. [...] ‘Renasceu-lhe [ao ‘preto’] a preguiça
atávica, retornou a estagnação que estiola [...] como ele todos os indivíduos
de necessidades primitivas, sem amor próprio e sem respeito à própria
dignidade’ [...]. (ZALUAR, 2004, p. 13).
Assim, além de ser o local da desordem e da falta de higiene e moral, a favela
aparece como culpada por sua própria existência, por abrigar pessoas preguiçosas,
atrasadas, sem amor próprio, praticamente animais.
A política de remoções continua nas décadas de 1950 e 1960, ao mesmo tempo em
que se intensificam as ocupações de novas áreas. Em 1970, as estimativas indicam
um total de 162 favelas no Rio de Janeiro, com população de aproximadamente 565
mil habitantes. Silva relaciona a necessidade de liberar terrenos para a especulação
imobiliária na zona sul com a intensificação da prática remocionista nas décadas de
1960 e 1970.
Por um lado, o discurso sustentava-se na idéia de suprimento do déficit
habitacional, oferecendo aos moradores das favelas a possibilidade de
aquisição da casa própria, em condições legais. Por outro, ao atuar de
forma muito mais enfática na zona sul da cidade, área muito valorizada do
ponto de vista imobiliário, revelou-se o compromisso de liberar terrenos para
a expansão imobiliária, de acordo com os interesses do mercado. (SILVA,
2005, p. 44).
Durante os anos do Governo Militar, a visão dominante era mais fortemente a da
necessidade de se disciplinar os favelados, recuperar moralmente, socialmente e
31
higienicamente as famílias e resgatar a estética da cidade.
[...] entre 1962 e 1973, quase 140 mil pessoas foram removidas e
transferidas para conjuntos habitacionais. Os impactos foram profundos:
redes sociais desfeitas e a proximidade do local de trabalho, que propiciava
uma economia significativa com o transporte, não existia mais. Da mesma
forma, fazer qualquer tipo de ‘bico’ para engrossar o orçamento tornou-se
difícil.
Para completar, as famílias não tinham mais com quem deixar os filhos ou
com quem pegar algum dinheiro emprestado. Toda uma rede de relações
criada ao longo de anos na vida da favela foi esfacelada. (SILVA, 2005, p.
47).
Somente a partir do final da década de 1970 começa a se criar um novo olhar sobre
as favelas e suas formas de tratamento. Tanto a partir de fatores exógenos, como as
políticas e preocupações de organismos internacionais e órgãos financiadores,
quanto endógenos, como a formação de organizações fortes de moradores e a
atuação da Igreja Católica, vão sendo transformadas as políticas remocionistas em
políticas urbanizadoras.
Os frágeis barracos, facilmente destrutíveis, desapareceram. Desde o final
dos anos 70, a favela tem luz em cada casa. Durante os anos 80 ela
adquiriu serviços, mais ou menos precários, de água e esgoto. Ninguém fala
mais de remoção. (ZALUAR, 204, p. 21).
Nessa nova concepção, o importante passa a ser recuperar, urbanizar e regularizar
as áreas de favela, para que seus moradores possam ter melhores condições de
vida no próprio local. Essa visão foi o germe do programa Favela-Bairro, da
Prefeitura do Rio de Janeiro, que perdura até os dias atuais. Fundamental nesse
processo também é a participação popular, por meio das organizações comunitárias.
O processo de democratização ocorrido durante a década de 1980 deu
novo impulso ao associativismo nas favelas, o que implicou a maior
organização em torno de reivindicações estruturais. Paradoxalmente, a
definição histórica das favelas centrada na degradação da paisagem
facilitou o aumento de reivindicações por obras de infra-estrutura. A
organização popular conseguiu uma significativa ampliação do acesso
regular à água, esgoto, coleta de lixo, asfaltamento e iluminação. Além
disso, difundiram-se as construções de escolas, creches e postos de saúde,
bandeiras centrais na busca de uma melhor qualidade de vida para os
moradores. O item no qual menos se avançou foi justamente o que coloca
em questão, de modo mais incisivo, as formas de apropriação e uso do
espaço urbano – no caso, o acesso à titulação da propriedade. (SILVA,
2005, p. 51).
Como se verá no próximo capítulo, o processo apresentado foi muito semelhante ao
32
ocorrido em Belo Horizonte, onde, a partir da década de 1980, surgiu o
PRODECOM, marco histórico na consolidação das favelas da cidade.
A partir da década de 1990, em geral, e particularmente a partir dos anos 2000, uma
nova transformação na visão e representações sobre as favelas vem se
processando. Essa nova visão está intimamente relacionada ao incremento do
tráfico de drogas e às guerras nos morros cariocas, e, mais recentemente, na cidade
de São Paulo, que trazem um novo modelo de marginalidade e convivência com a
violência, tanto aos moradores das favelas quanto à população como um todo.
A crueldade e a frieza dos chefes do tráfico são apresentadas cotidianamente na
mídia e contribuem para o acirramento das distâncias sociais e da discriminação
dada pelo local de moradia.
A lógica que caracteriza, de forma consciente ou não, a percepção desses
setores sociais é de que o direito ao exercício da cidadania não é inerente
ao nascimento do indivíduo no Estado-nação, conforme define a
Constituição brasileira. O reconhecimento da cidadania é relativizado, de
acordo com a cor da pele, o nível de escolaridade, a faixa salarial e/ou o
espaço de moradia dos residentes na cidade. O juízo se expressa, de forma
particular, no maior ou menor grau de tolerância com as diferentes
manifestações de violência, de acordo com o alvo da agressão e não com o
ato em si. (SILVA, 2005, p. 7-8).
As pesquisas realizadas por MV Bill e Celso Athayde, (2006) por um lado, e por Luiz
Eduardo Soares, por outro, e que tiveram como produtos o livro “Cabeça de Porco” e
o documentário “Falcões do Tráfico”, esse último apresentado no Fantástico, Rede
Globo, mostram uma face cruel do tráfico e uso de drogas nas favelas e bairros
populares em várias partes do País.
Da mesma forma que as obras de Zuenir Ventura (“Cidade Partida”) e Caco
Barcellos (“Abusado”) trazem a presença de um novo ator no cenário social da
favela: não mais o bom favelado, o bandido protetor da comunidade, o padrinho,
mas, sim, um ser mostrado pela mídia como quase “monstro”, com valores
completamente diferentes dos dominantes na sociedade, frio e pragmático.
O propósito do livro é traçar um vasto painel realista sobre a violência
instalada em vários estados brasileiros. A intenção não é denunciar. É
compartilhar com os leitores preocupações e reflexões, na perspectiva de
33
manter viva a esperança. O inferno está perto de nós, é verdade. Mas há
saída, sim. Basta olhar de perto e sentir o sopro de humanidade que vibra
sob a máscara dos monstros. (ATHAYDE, 2006, p. 14).
O contraponto dessa visão, hoje, é a redescoberta das artes das favelas pela grande
mídia, através do funk e do rap, principalmente. Chegando às emissoras de maior
audiência, haja vista o programa Central da Periferia, na Rede Globo, mais uma vez
a indústria cultural busca na arte popular a expressão vendável e o alimento para o
mercado do entretenimento. De acordo com Zaluar (2004):
[A favela] sempre foi sobretudo o espaço onde se produziu o que de mais
original se criou culturalmente nesta cidade: o samba, a escola de samba, o
bloco de carnaval, a capoeira, o pagode de fundo de quintal, o pagode de
clube. Mas onde também se faz outro tipo de música (como o funk), onde se
escrevem livros, onde se compõem versos belíssimos ainda não musicados,
onde se montam peças de teatro, onde se praticam todas as modalidades
esportivas, descobrindo-se novos significados para a capoeira, misto de
dança, esporte e luta ritualizada. (ZALUAR, 2004, p. 22).
Finalizando, o que se buscou mostrar neste capítulo é como os conceitos e
representações da favela, ao longo do tempo, pautaram-se por uma dualidade, um
paradoxo que tem como seus dois termos exaltação e discriminação.
Ainda que o segundo tenha predominado no imaginário popular, ligado
principalmente ao recrudescimento da violência e do tráfico de drogas a partir da
década de 1990 e a respectiva ênfase da mídia em seus aspectos negativos, é o
primeiro aspecto que tem contribuído para a transformação das formas de inserção
social e mobilização dos moradores das favelas com o restante da sociedade.
Ao longo da história, foi através de suas manifestações artísticas, endêmicas ou
importadas, que a favela teve algum tipo de reconhecimento e aceitação. Primeiro,
pelo samba e o carnaval; depois, pelo rap e pelo funk. Hoje, por sua multiplicidade e
diversidade cultural, é por intermédio da arte que o morador de favela encontra seu
lugar e seu valor nas representações sociais. Por isso, esse é o objeto deste
trabalho.
34
3.2 Morro, asfalto, comunidade, cidade – o território como conceito-chave
Como não poderia deixar de ser, a discussão a respeito das favelas, suas
representações e sua produção cultural passa necessariamente por um conceito-
chave que é o de território. Esse conceito é tão importante para a temática que,
qualquer que seja o viés que se adote, passa-se necessariamente por essa
discussão.
O trabalho, a cultura, o consumo, a moradia, os serviços, as ruas e
avenidas, enfim, as bases materiais e simbólicas da sociedade repousam
nas condições espaço-temporais em que as ações e intenções humanas se
efetivam concretamente. A cidade é obra humana territorialmente impressa.
É por isso que, quando falamos em sociedade, estamos falando sempre de
uma relação sujeito-território. (SILVA, 2005, p. 100).
A importância do território para os moradores da periferia é maior do que deixam
antever as reportagens sobre moradores em fuga do tráfico e a construção social de
uma imagem do eterno migrante sem laços, mais vinculável, de fato, à população de
rua.
No caso de Belo Horizonte, em sua grande maioria oriundos de cidades do interior
de Minas ou de estados do Nordeste, os moradores das vilas e favelas enxergam,
apesar de quaisquer problemas, seu local de moradia como uma conquista.
Defender a casa com unhas e dentes, às vezes às expensas da própria vida,
recusar-se a mudar – a não ser em casos extremos –, construir com as próprias
mãos o seu lar e edificar laços de vizinhança duradouros são as regras e não as
exceções nas vilas e favelas.
É claro que esse sentimento é mais forte entre os mais velhos. Mas também entre
aqueles que já nasceram na favela, a afirmação da origem e o apego ao território
parecem ser processos presentes, ainda que as identidades sejam cada vez mais
múltiplas e não condicionadas apenas a este ou aquele fator.
Como recolhido em uma das entrevistas com o Grupo do Beco, companhia de teatro
cuja trajetória é narrada neste trabalho,
35
“ser identificado como artista de favela tem para nós um lado
positivo e um lado negativo. O positivo é que, de uma forma ou
de outra, nos dá mais visibilidade e faz com que as pessoas
fiquem mais curiosas para conhecer o nosso trabalho. Quanto
ao negativo, é perceber que todos se espantam ao ver a
qualidade de nosso trabalho, como se favelado não pudesse
fazer nada bom!”. (Entrevista com o Grupo Beco)
Nesse caso, a instrumentalização da origem territorial como fator distintivo esbarra
na difícil constatação de que o preconceito existe e parece se alastrar, em proporção
direta ao aumento da insegurança social.
A afirmação do território como base da identidade construiu, ao longo da história,
algumas dicotomias que identificam o lugar social de onde se fala, no caso das
favelas. Uma das principais dicotomias é aquela utilizada na expressão morro x
asfalto. Fruto de uma época e de uma configuração espacial específica (os morros
cariocas, e antes da chegada da urbanização), a dicotomia ainda hoje é usada – na
mídia, pela população e por pesquisadores – para marcar a distância entre as
comunidades faveladas e o restante da cidade.
Ademais, a utilização do termo “morro”, em contraposição a “asfalto”, além de não
refletir a real situação da maior parte das favelas, que se configura de maneira
diferencial no espaço, também traz em si o errôneo pressuposto de que haveria uma
identidade comum dada pelo local de moradia, isto é O Favelado, com maiúsculas.
As favelas e loteamentos irregulares são identificados, em geral, pelos
órgãos públicos municipais do Rio de Janeiro como espaços informais, em
função da ausência do cumprimento de determinadas normas urbanas
legais. Nesse caso, os bairros seriam os espaços formais. A generalização
dos termos contribui para ampliar a imprecisão sobre as características
desses territórios. O termo asfalto, utilizado historicamente pelos moradores
da favela para denominar os bairros, tem caído em desuso. Atualmente, nas
favelas cariocas, quando se fala a respeito da própria localidade, utiliza-se,
em geral, comunidade; mas quando se refere a outros espaços análogos, é
usual o termo favela. (SILVA, 2005, pé de página, p. 57).
Essa discussão insere um novo conceito, que é o de comunidade. Mais complexo do
ponto de vista de sua conceituação, o termo comunidade é utilizado, nas favelas,
para designar um espaço social de iguais, ou seja, é um conceito fundamentalmente
de identidade coletiva. Fazem parte da comunidade não apenas aqueles que
36
residem em seus limites físicos, mas aqueles com os quais se estabelece uma
identificação, com os quais se partilham as dificuldades e cumplicidade da vida na
favela.
A dicotomia cidade x favela, também comum, indica que as áreas faveladas
estariam fora da polis – como se isso fosse possível –, seriam a ela externas e
estranhas.
Eu tenho muito medo da cidade. A gente sempre, ai, eu tenho medo de
subir o morro, mas eu tenho muito medo da cidade. Eu tenho muito medo
de ser engolido por ela, dessa coisa do calculismo, tudo é concorrência,
tudo. Você encontra uma pessoa, cê conversa com a pessoa, a pessoa já tá
querendo te sugar, não como referência, mas como concorrência, entende?
Eu fico me fiscalizando o tempo inteiro pra eu não me vender pra ela, sabe,
porque eu tenho os meus ideais, eu tenho a minha ideologia, e eu tenho
muito medo da cidade. Eu tenho muito medo, porque a cidade, ela não é
humana. As relações humanas não existem, quando existem, são raras.
Sabe, assim, essa coisa da superficialidade, eu não güento, eu não suporto.
A favela, por mais fingimento, por mais fofoca que tenha, tem o lado
humano. Por mais que fique uma pessoa o tempo inteiro na rua, vendo,
controlando quem tá chegando, quem tá saindo, se você for conversar com
essa pessoa, cê vai ver que tem um humano ali. Se você precisar dela,
igual eu precisei, minha mãe faleceu, ela ficou aqui com meu pai, ficou
telefonando pra Deus e o povo, sabe, deu maior assessoria, fez comida,
sabe? Morre alguém no bairro Anchieta! O vizinho nem sabe que morreu!
Eu tenho medo disso! A cidade, ela é muito maior! Essa coisa da
concorrência exacerbada. E é tudo como um código de barra! A favela não
tem, num dá essa importância que o código de barra tem. A cidade não.
(CÉSAR - Grupo do Beco apud NOGUEIRA, 2004, p. 50).
As próprias letras de música expressam esta oposição:
[...] se, por um lado, nas letras das composições, o retrato da favela é feito
com base em suas características intrínsecas, por outro, essa mesma
imagem se constrói de forma relacional, sendo os elementos definidores
traçados a partir da e com referência à cidade.
Quando isso ocorre, o que chama a atenção, num primeiro plano, é a rígida
demarcação que se estabelece entre ambas, fazendo com que a cidade
seja vista como uma coisa e a favela como outra. Inúmeras são as
referências musicais que tratam a favela como algo alheio, algo que não faz
parte, algo, enfim, que é distinto da cidade, não importa a situação, os
personagens ou os sentimentos que aí estejam envolvidos. (OLIVEIRA,
apud ZALUAR, 2004, p. 90).
Referindo-se a artigo da revista Veja denominado “A periferia cerca a cidade”, Silva
(2005, p. 58) aponta:
37
[...] os espaços periféricos e favelados são vistos, nessa proposição, como
externos à polis, ou seja, ao território reconhecido como o lugar, por
excelência, de exercício da cidadania. Nessa lógica, o reconhecimento da
cidadania é relativizado de acordo com a cor da pele, o nível de
escolaridade, a faixa salarial e o espaço de moradia.
E completa: "O primeiro passo é acabar com a relação favela e asfalto. O
reconhecimento realmente democrático dos direitos à cidade passa por uma nova
apropriação do espaço urbano. A cidade, antes de mais nada, é uma só." (SILVA,
2005, p. 90).
Em Belo Horizonte, ao contrário do Rio de Janeiro, um termo habitualmente usado,
tanto no passado quanto nos dias atuais, é o de vila, como sinônimo de favela.
Ainda que haja tentativas de classificar e hierarquizar as duas designações, fato é
que ambas sempre foram usadas para tratar os mesmos espaços, apenas
considerando a distinção de que o termo vila seria menos pejorativo do que o termo
favela.
A Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte, responsável pela implementação da
política pública habitacional na cidade em geral, e nas favelas, em particular, define
favela como uma ocupação espontânea e irregular, sem propriedade legal, sem
infra- estrutura, por população de baixa renda (economicamente carente). Mais uma
vez a noção de ausência se impõe, assim como a noção de irregularidade, daquilo
que não é o certo, o desejável.
Para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as favelas são
classificadas como aglomerados subnormais, isto é, ao pé da letra, localidades
abaixo do normal.
[...] também designados ‘assentamento informal’, independente do material
utilizado em sua construção, como, por exemplo: favela, mocambo,
alagado, barranco de rio, etc. O que caracteriza um aglomerado subnormal
é a ocupação desordenada e quando de sua implantação não havia posse
da terra ou título de propriedade. (IBGE, Manual do Recenseador, censo
2000, p. 43).
Também para o Planejamento da Região Metropolitana de Belo Horizonte
(PLAMBEL), primeiro órgão responsável pela normatização do espaço urbano na
Região Metropolitana de Belo Horizonte, o conceito de favela reforçava a noção de
38
“desobediência” ou desordem, ainda que tivesse a importância de introduzir, por
outro lado, o reconhecimento do “fenômeno favela” como alternativa habitacional.
Favelas são assentamentos residenciais de baixa renda, destituídos de
legitimidade do domínio de terrenos, cuja forma de ocupação se dá em altas
densidades e em desobediência aos padrões urbanísticos legalmente
instituídos.
Conformam-se em espaços de topografia acidentada, fragmentados em
áreas de reduzidas dimensões e ocupadas por construções rudimentares.
Seu sistema de articulação é adaptado às condições topográficas locais,
constituindo-se em grande parte de caminhos de pedestre, sendo raras as
vias para acesso externo.
O fenômeno favela faz parte intrínseca da paisagem das grandes cidades
brasileiras. Tem sua origem no modelo capitalista dependente no qual se
insere o País. As favelas surgem como estratégia de apropriação do espaço
pelos estratos de mais baixo poder aquisitivo e de menores condições de
participação nos benefícios da cidade.
Assim, na RMBH (Região Metropolitana de Belo Horizonte) essas
aglomerações não podem ser consideradas como algo externo à sua
comunidade socioeconômica, mas compreendidas como a alternativa
encontrada por determinadas pessoas para se abrigarem e estarem
próximas aos seus “negócios”; enfim, como maneira de habitar.
O Poder Público, identificado com a lógica do sistema econômico, tende a
canalizar seus investimentos segundo políticas excludentes, fazendo com
que as camadas de menor poder aquisitivo pouco usufruam dos benefícios
da urbanização. (PLAMBEL, 1983).
Por fim, basta olhar o Dicionário para compreender como o conceito de favela é
utilizado e definido pela sociedade brasileira: um local tosco e sem higiene. No Novo
Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda, o vocábulo favela
está assim definido:
Favela. S.f. Bras. 1. Conjunto de habitações populares toscamente
construídas (por via de regra em morros) e desprovidas de recursos
higiênicos. [Sin.: morro (RJ) e caixa-de-fósforos (SP).] 2. V. faveleiro.
(HOLANDA, s/d., p. 618).
É possível, também, um olhar para outras regiões do planeta para se discutir o
conceito de favela. “Planeta Favela” (Planet of Slums), de Mike Davis, é um livro
escrito por um americano sobre um tema que os brasileiros teimam em dizer que é
genuinamente nacional, a Favela. A pesquisa mostra como as periferias em todo o
mundo vêm crescendo em ritmo acelerado, a partir de estudos de crescimento
demográfico das grandes metrópoles, indicando que, seja na América, ou na Ásia, a
tendência é que o mundo se transforme em um grande bolsão de pobreza.
Nesse livro, o autor deixa de lado o purismo conceitual, adotado por muitos
39
estudiosos das favelas brasileiras, e, seguindo as definições adotadas pela ONU2
,
compara áreas em todo o mundo com características semelhantes, principalmente a
alta densidade demográfica e concentração de populações economicamente
carentes em bolsões de pobreza urbana. De acordo com ele,
[...] os autores de The Challenge of Slums [...] conservam a definição
clássica da favela, caracterizada por excesso de população, habitações
pobres ou informais, acesso inadequado à água potável e condições
sanitárias e insegurança da posse da moradia. Essa definição operacional,
adotada oficialmente numa reunião da ONU em Nairóbi, em outubro de
2002, está ‘restrita às características físicas e legais do assentamento’ e
evita as ‘dimensões sociais’, mais difíceis de medir, embora igualem-se, na
maioria das circunstâncias, à marginalidade econômica e social. (DAVIS,
2006, p. 33).
Retomando a discussão anterior, a importância do território como fator de identidade
para o morador da favela é impactada pelas visões negativas que as diversas
designações do espaço carregam. Se a favela é sempre definida como lugar da
ausência, da subnormalidade e da irregularidade, como esse morador se vê ao
habitar tal território?
[...] Suas obras sempre foram interpretadas e tratadas como ilegais,
irregulares, informais, subnormais e clandestinas, por não obedecerem aos
padrões racionais de edificação, por terem se constituído sem o crivo do
controle governamental e por não possuírem documentação escriturada de
propriedade.
Essa situação está longe de ser exclusiva das favelas, embora seja
geralmente dirigida a elas. Segundo as informações da Secretaria de
Programas Urbanos do Ministério das Cidades, pelo menos 60% dos
domicílios urbanos no Brasil não estão devidamente regularizados. (SILVA,
2005, p. 93).
Nos dias atuais, os moradores mais politizados e envolvidos em movimentos tendem
a chamar seu território ou pelo nome de comunidade ou pelo nome de favela,
assumindo a designação sem medo de negar a origem. Nessa perspectiva,
concordam com a afirmação de que
[...] a favela não é um problema, nem uma solução. A favela é uma das
mais contundentes expressões das desigualdades que marcam a vida em
sociedade em nosso país, em especial nas grandes e médias cidades
brasileiras. É nesse plano, portanto, que as favelas devem ser tratadas, pois
são territórios que colocam em questão o sentido mesmo da sociedade em
que vivemos. SILVA, 2005, p. 91).
2
O documento citado é The Challenge of Slums [O desafio das favelas], relatório publicado em
outubro de 2003 pelo Programa de Assentamentos Humanos das Nações Unidas (UN-Habitat).
40
Independentemente de suas possíveis diferenças conceituais, neste trabalho serão
usadas as designações favela, vila e comunidade, indistintamente, referindo-se
sempre aos territórios que são objeto desta dissertação e da produção artística de
origem popular na cidade de Belo Horizonte.
Buscamos compreender o uso que os próprios moradores fazem do termo
comunidade, pensando a apropriação do espaço em suas mais variadas
formas e sentidos, entendendo a formação dos vínculos de sociabilidade
que aí vão se forjar. É fato que [...] o termo comunidade inundou o senso
comum, mas a apropriação feita pelos moradores das favelas assume a
tentativa de encontrar para si uma conotação diferenciada, na forma de um
exercício de construção identitária. Eles se autodenominam “comunidade”,
constroem sua identidade grupal a partir dessa idéia que lhes soa protetora
e digna, numa estratégia defensiva às estigmatizações que o termo favela
recebe. Contudo, o seu uso generalizado acaba por reforçar exatamente a
idéia de carência a ser preenchida por assistencialismo e reforça o rótulo de
exclusão. A conquista dessa auto-estima, alicerçada como está nos valores
da classe dominante, acaba por reforçar a identidade negativa quando não
há, de fato, uma elaboração daqueles valores e de seus próprios, quando
não há transformação. (NOGUEIRA, 2004, p. 92).
Finalizando, pode-se aproveitar um termo que é gíria nas comunidades e foi utilizado
por Magnani como categoria analítica, qual seja, o “pedaço” (atualmente mais
conhecido como “quebrada”).
São dois os elementos básicos constitutivos do “pedaço”: um componente
de ordem espacial, a que corresponde uma determinada rede de relações
sociais. [...] Não basta, contudo, morar perto ou freqüentar com certa
assiduidade esses lugares: para ser do “pedaço” é preciso estar situada
numa particular rede de relações, que combina laços de parentesco,
vizinhança, procedência. (MAGNANI, 2003, p. 137-8).
Concordando com o autor, percebe-se que, de fato, são as relações focadas no local
de moradia, no caso das áreas periféricas, que determinam, além da família, a maior
parte da rede social dos indivíduos. Além disso, é no território que se constroem as
relações mais duradouras e mais personalizadas, menos possíveis em ambientes de
trabalho, lazer ou estudo, considerando a alta rotatividade que se registra nessas
esferas.
Vê-se, desta forma, que a periferia dos grandes centros urbanos não
configura uma realidade contínua e indiferenciada. Ao contrário, está
repartida em espaços territorial e socialmente definidos por meio de regras,
marcas e acontecimentos que os tornam densos de significação, porque
constitutivos de relações. Se se compara, por exemplo, este quadro com o
que ocorre em bairros ocupados por outros segmentos sociais, pode-se
avaliar a importância que o “pedaço” representa para as camadas de rendas
41
mais baixas. Diferentemente daqueles setores – onde na maioria das vezes
os vínculos que ampliam a sociabilidade restrita da família nuclear não são
os de vizinhança, mas o que se estabelecem a partir de relações
profissionais –, uma população sujeita às oscilações do mercado de
trabalho e a condições precárias de existência é mais dependente da rede
formada por laços de parentesco, vizinhança e origem. (MAGNANI, 2003, p.
139-40).
42
4 UM BREVE RELATO SOBRE AS FAVELAS DE BELO HORIZONTE
4.1 Histórico e caracterização da ocupação
Como apresentado no capítulo anterior, o surgimento das favelas está relacionado
ao processo de metropolização e urbanização deflagrado a partir do final do século
XIX, que, entretanto, foi mais fortemente acelerado no Brasil a partir de meados do
século XX.
A industrialização e o êxodo rural são alguns dos fatores componentes desse
processo que, ligados à incapacidade de absorção da população migrante pelas
malhas urbanas e às ineficientes políticas públicas tanto para as áreas urbanas
quanto rurais, geraram um quadro grave de condições de habitabilidade nas
cidades. No Rio de Janeiro, a questão sanitária foi um dos mais fortes argumentos
tanto para a desarticulação dos cortiços quanto para as sucessivas tentativas de
remoção das favelas ao longo do último século.
Belo Horizonte não foge a esse cenário, vivenciando processos bastante
semelhantes aos ocorridos no Rio de Janeiro. Entretanto, o que diferencia o
surgimento das favelas na cidade é que aqui foi a própria hierarquização urbana que
propiciou a formação das favelas, como se estivessem “programadas” desde a
criação da nova Capital Estadual.
Belo Horizonte foi planejada pela Comissão Construtora da Nova Capital,
buscando expressar espacialmente uma idéia de modernidade – que
representasse o centro político-administrativo de Minas Gerais. Para tanto,
foram observadas as referências importadas: ‘conhecimento e proximidade
com relação ao plano de Washington, à reforma realizada por Haussmann
em Paris e, sobretudo, ao plano de La Plata, na Argentina’ (GOMES &
LIMA, 1999, p. 121). Suas largas ruas, desenhadas em xadrez e cortadas
diagonalmente por avenidas, são a expressão da vanguarda, ignorando as
determinações topográficas e hídricas, não se prendendo às especificidades
do lugar, a partir da prática de um urbanismo do alinhamento, da
classificação e da ordem. (OSTOS, 2004, p. 26)
De acordo com os relatos e estudos sobre a cidade planificada por Aarão Reis, a
ocupação do espaço urbano da nova capital foi planejada e sua planta tinha setores
predestinados a diversas atividades, bem como à moradia de funcionários públicos,
43
membros da elite e militares. No entanto, “os operários, tão necessários à
construção da cidade, como ressaltado nos relatórios dos primeiros prefeitos, não
têm espaço para morar." (AFONSO e AZEVEDO in POMPEMAYER, 1987, p. 111.
Uma das principais conseqüências do plano segregador da cidade foi o inchaço de
suas zonas suburbanas e áreas convencionalmente consideradas inadequadas à
moradia humana.
Em 1912 (15 anos depois da inauguração da capital), 60% da população
localizava-se nas zonas suburbanas e rural, o que mostra a importância
dessa tendência no processo de crescimento da cidade. [...] As exigências
para construir e morar no centro, o alto preço dos terrenos e a precariedade
da infra-estrutura nas zonas suburbanas e rural fez com que parte dos
setores mais pobres da população tentasse resolver seu problema
habitacional através de ocupações não controladas de áreas centrais,
próximas a seus locais de trabalho. Desde o início da construção da cidade,
conhecem-se relatos acerca do surgimento de favelas nas áreas centrais,
bem como de iniciativas do Poder Público visando erradicá-las. As primeiras
favelas de Belo Horizonte abrigavam principalmente os operários que
vieram para construir a cidade e se concentravam em duas zonas: Córrego
do Leitão (atual Barro Preto) e a ‘Favela’ ou Alto da Estação (hoje Santa
Tereza). (AFONSO e AZEVEDO in POMPEMAYER, 1987, p. 112.
Da mesma forma que o surgimento das favelas em Belo Horizonte não pode ser
desvinculado do surgimento da cidade, também seu crescimento se fez de forma
concomitante. Em 1955, o IBGE realizou levantamento nas favelas do município,
cadastrando então 36.432 moradores. No ano de 1965, esse número havia mais que
triplicado: 119.799 pessoas residiam em áreas consideradas faveladas. (AFONSO e
AZEVEDO in POMPEMAYER, 1987).
Havia uma contradição entre o modelo, os seus desdobramentos e as
condições concretas, que o negavam. O modelo de cidade almejada, pelas
frações das elites mineiras, orientada para um futuro dominado pela idéia de
progresso, era contraposto inclusive pela localização das classes populares
em áreas irregulares na própria zona urbana, ocupando cafuas, barracos e
barracões, o que era tomado como a face visível do atraso, da ineficácia e
da falta de beleza, contrariando o plano original, “concebido por Aarão Reis
antes mesmo de ter sido definido o sítio onde ela (a capital) seria localizada”
(GUIMARÃES, 1991, p. 45). O adensamento das áreas periféricas, como
Lagoinha, Floresta, Santa Efigênia, Calafate e a subdivisão dos terrenos
das ex-colônias agrícolas (zona rural), era tido como a expressão da
desordem, contrariando a concepção de Aarão Reis, que previa o
crescimento de Belo Horizonte do centro para a periferia. A ameaça ao
modelo se configurou a partir do crescimento da periferia para o centro e da
lógica de investimentos públicos no espaço, do centro para a periferia. Tal
ameaça era a grande visibilidade do fosso entre o modelo original,
concebido através de uma lógica formal, estatista, e a realidade vivida
concretamente, dialetizada, qualificada, porém, como “desordem”, como
ameaça. (OSTOS, 2004, p. 31-32.
44
Assim, pode-se afirmar que as favelas do município são, em sua maioria, de
ocupação muito antiga. Uma ou duas gerações já nasceram nesses locais e
continuam ocupando-os. No entanto, o surgimento de novas ocupações e o
adensamento populacional nas áreas já existentes também tem sido levado a cabo
pela migração de novas famílias antes residentes em outros bairros da própria
capital, como se verá mais adiante.
Um dos problemas mais sérios encontrado nas favelas está relacionado à sua
localização, predominantemente em beiras de córregos e encostas extremamente
íngremes e, muitas vezes, de alto grau de periculosidade para seus moradores. A
disponibilidade dessas áreas para ocupação deriva justamente de sua qualidade
inferior, uma vez que os melhores terrenos foram reservados e ocupados por
populações com maior poder aquisitivo, seguindo a lógica do mercado imobiliário,
restando à classe baixa ocupar as áreas consideradas insalubres ou inabitáveis.
Pela via da análise espacial, percebe-se a existência de uma inclusão
efetiva dos diversos grupos sociais na cidade, ainda que numa participação
social perversa, em que o caso das favelas é exemplar. Afinal, se
determinado grupo existe, necessariamente ocupa de alguma forma o
espaço, se apropria dele – ainda que de um espaço relegado, mesmo que
tal participação se dê pela desqualificação. O que confirma a idéia de que
se trata de uma inclusão perversa é a observação das diferentes
possibilidades de apropriação desse espaço e, ainda, o impacto subjetivo
que tal apropriação implica. A inclusão perversa mostra-se, por exemplo, na
apropriação de ruas e viadutos, por moradores e trabalhadores. Mostra-se
também em sua outra face, no surgimento de fenômenos como os
chamados “condomínios fechados” (um novo feudo?) que efetua a
transformação da rua, espaço público, em privado; na desejada construção
de uma segregação espontânea. A inclusão perversa, observada pela ótica
do espaço, pode ser apontada ainda em diversos outros exemplos (como
elevadores de serviço, shopping centers e a própria existência da favela,
como se verá), mas pode, ainda, como é mais comum, ser apontada pela
via da apropriação da mão-de-obra, desqualificada e aprisionada.
(NOGUEIRA, 2004, p. 66).
Dependendo do ponto de vista que se adota, o processo de favelização em Belo
Horizonte pode ser percebido como mecanismo de exclusão social, ao mesmo
tempo em que se revela como uma construção de novos valores pela classe baixa,
onde se avalia o custo de se morar na favela e o benefício de não morar em áreas
periféricas mais distantes e se "opta" pela comodidade em detrimento do status.
Do ponto de vista econômico, a favela foi a possibilidade de inserção das
classes populares no espaço e nos circuitos econômicos que se
45
estabelecem no e com o espaço urbano. A proximidade do centro histórico
de Belo Horizonte e dos centros regionais, em muitos casos, propiciou uma
redução no custo de transporte e aumentou os contatos para obtenção de
trabalho, viabilizando a permanência nos lugares da cidade “escolhidos” –
compreendidos como local de oportunidades e maior acesso aos benefícios
sociais. (OSTOS, 2004, p. 81-2).
A hipótese é que essa população não aceita ser empurrada para a periferia e acaba
construindo uma inclusão na malha urbana a seu modo e dentro de suas condições.
Assim, o que se vê é a convivência espacial das favelas com bairros de classe
média e alta, configurando um contraste não apenas urbanístico, mas,
principalmente, social e desbancando o conceito espacial de periferia para tratar
esses aglomerados humanos.
Esse cenário, tão presente na configuração urbana do município de Belo Horizonte,
coloca a premência de que as favelas sejam encaradas não mais como situação
transitória de moradia, mas antes como tendência constante no crescimento dos
núcleos urbanos, em especial no Terceiro Mundo.
Em decorrência dessa constatação, faz-se necessário cada vez mais pensar o
fenômeno favela não como aberração a ser extirpada da cidade, mas antes como
uma parte da malha urbana que, como outra qualquer, deve ser consolidada e
beneficiada mediante o atendimento de infra-estrutura básica e da articulação com o
entorno da cidade.
Nesse sentido, pode-se perceber uma evolução das políticas públicas específicas
para áreas faveladas, que seguem tendências semelhantes em todo o País, já que
condicionadas, na maioria das vezes, pela orientação política nacional e pela
representação coletiva e imagem da favela construída e disseminada na sociedade,
como antes discutido.
No caso de Belo Horizonte, desde a criação da capital até os dias de hoje,
ocorreram mudanças significativas no modo como o Poder Público vem encarando
as favelas e as soluções para o problema habitacional.
A fim de possibilitar que se perceba a dimensão em que ocorreram as citadas
46
mudanças, far-se-á um panorama geral das políticas públicas em favelas desde a
criação de Belo Horizonte. 3
A partir da fundação da cidade, em 1897, até início da década de 1980, ou seja,
mais de oitenta anos depois, a política oficial para favelas era a do desfavelamento.
É claro que ao longo desse período houve modificações nas diversas políticas
implantadas, mas todas elas calcadas na mesma filosofia: a de que a cidade deveria
ser "limpa" e os "invasores" enviados para fora do perímetro urbano. Esse
pensamento não era exclusivo da capital mineira, como já relatado, apresentando
similaridades com os processos em desenvolvimento no Rio de Janeiro e o
tratamento dispensado pelo governo às favelas cariocas.
Desde a criação da capital até o Estado Novo, o favelamento e sua erradicação
eram vistos como problema policial. Os moradores das áreas faveladas mais antigas
da capital narram diversos episódios de confrontos com a polícia e o eterno medo de
serem desalojados com o uso da força, sem direitos ou destino certo, muitas vezes,
inclusive, em “batidas”-surpresa, durante a noite. Em conseqüência, não havia
também investimento, por parte dos moradores, em suas habitações, com medo do
prejuízo financeiro com as demolições, o que fez com que só tardiamente algumas
áreas se consolidassem.
Em 1955, foi criado o DBP – Departamento Municipal de Habitação e Bairros
Populares, cuja política era ainda o desfavelamento, mas com o oferecimento de
outra moradia à família removida. Nessa época, já se registrava a formação e
organização de entidades comunitárias para defesa dos interesses dos moradores
das favelas. Entretanto, da mesma forma que o ocorrido no caso carioca, as famílias
continuavam a ser “empurradas” para conjuntos habitacionais populares longe do
centro da cidade, com todos os impactos que isso significava nos sistemas de
parentesco, vizinhança e ajuda mútua, bem como na empregabilidade da população
removida.
Após o golpe militar de 1964, a repressão aos movimentos favelados emergentes foi
recrudescida, voltando o desfavelamento a ser encarado como problema de polícia.
3
Para uma visão completa da questão, até a década de 1980, ver AFONSO E AZEVEDO, 1987.
47
Nesse período, em Belo Horizonte, a prefeitura operava como engrenagem
auxiliar para os interesses nacionais. Se é certo que as condições gerais
requeridas pela industrialização eram asseguradas em muitos aspectos
(como a atualização da infra-estrutura do espaço, por exemplo) pelos
investimentos maciços, efetuados pelo Estado em nível federal e estadual, à
prefeitura cabia um papel complementar, que se explicitava, sobretudo, no
âmbito da dominação política: desmobilização das massas, extinção dos
partidos políticos e o tratamento das favelas como problema policial, esta
última, com clara ajuda do governo municipal. (OSTOS, 2004, p. 44).
A história do movimento popular nas favelas de Belo Horizonte é assunto vasto e
não será tratado neste trabalho. Entretanto, faz-se necessário citar alguns nomes,
por sua importância na organização e mobilização dos moradores, consolidação e
garantia da manutenção da posse da terra e conquista de melhorias para as favelas
da cidade.
Fundamentais nesse processo foram a União dos Trabalhadores da Periferia (UTP),
fundada por Chico Nascimento, além da Pastoral de Favelas, da Igreja Católica, por
meio de representantes como Padre Piggi, Padre Mauro e Padre Mário, cada qual
com sua contribuição e apoio aos moradores das favelas da capital.
A União dos Trabalhadores da Periferia objetivava congregar associações
de favelados e fornecer um plantão jurídico para buscar indenizações justas
para aqueles que fossem desalojados para realização de obras públicas.
Em 1981, estavam filiadas cerca de 40 associações comunitárias de
favelas. (SOMARRIBA, 1984, p. 51).
Na década de 1960, as organizações de moradores foram perseguidas e extintas
pelo Governo Militar, incluindo-se as que representavam os interesses das vilas e
favelas.
[Em Belo Horizonte], logo após a mudança de regime, em março/abril de
1964, a Federação de Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte é
colocada sob intervenção federal, que dura até agosto, quando se decreta
sua extinção por ter sido, após inquérito policial-militar, considerada
subversiva. Durante os meses de intervenção, fizeram ‘batidas’ nas sedes
das UDCs em busca de ‘material subversivo’. Vários líderes do movimento
de favelados foram intimados a depor no Departamento de Vigilância Social
(DVS) e alguns foram processados e cumpriram penas de reclusão.
(SOMARRIBA, 1984, p. 46).
Em dezembro de 1965, criou-se um órgão de assessoria ao DBP, os chamados
"Serviços Municipais para o Desfavelamento das Áreas Urbanas e Suburbanas".
"Este, nos três primeiros meses de existência, destruiu número muito maior de
48
barracões do que o DBP o fizera durante seus dez anos de funcionamento anterior."
(AFONSO e AZEVEDO in POMPEMAYER, 1987, p. 119).
No ano de 1971 foi criada a Coordenação de Habitação de Interesse Social de Belo
Horizonte (CHISBEL). Continuando na linha das políticas anteriores, a CHISBEL
substituiu a contrapartida utilizada pelo DBP (uma nova casa em troca da derrubada
dos barracos) pelo pagamento de indenizações em espécie, que, na maioria das vezes,
era insuficiente para a compra de outra moradia, a não ser em outra favela da capital.
A CHISBEL planejava o total desfavelamento de Belo Horizonte, através de
um convênio com o BNH e a Companhia Habitacional do Estado de Minas
Gerais (COHAB-MG), para construção de moradias. Elegia o
desfavelamento como a solução para os “problemas sociais” de Belo
Horizonte e acreditava na possibilidade de acabar com as favelas, conforme
intenção expressa em relatórios: “A CHISBEL estima poder, num plano a se
desenvolver até 1980, inicialmente estagnar e, a seguir, reduzir as favelas
existentes em Belo Horizonte”. Essa intenção não foi alcançada
concretamente, sua ação ficou restrita aos desfavelamentos para realização
de obras públicas programadas, agindo como sustentáculo dos órgãos
executores. Nos relatórios (discurso) e na prática, a partir da década de
oitenta, é visível a mudança de orientação da CHISBEL: “a enorme
migração e a diminuição do poder aquisitivo de um modo geral fizeram com
que a população favelada crescesse de uma forma assustadora”, o que
impõe uma mudança visando atingir um objetivo mais concreto –
“desfavelar somente para urbanizar”. O entendimento do termo “urbanizar”,
na redação realizada à época, é o da liberação da área para a execução da
obra programada, não estando relacionado à provisão de infra-estrutura
para a favela e, sim, à sua eliminação, para dar passagem às obras
públicas, constantes no “Plano de Obras” da administração municipal.
Portanto, “urbanizar” era o mesmo que “remover” favelas, “liberar” a área,
quando não “limpá-la”. (OSTOS, 2004, p. 47).
É a década de 1980 que vai trazer um novo panorama e uma nova visão em relação
ao tratamento dispensado às favelas da capital mineira.
Quais foram os fatores que possibilitaram o reconhecimento das favelas, no
discurso oficial do Estado? Os movimentos populares, muitos de base local,
foram se reorganizando e reivindicando sua participação no sistema político
que buscavam recriar, a partir da sensibilização quanto às condições de
vida das classes populares. Para isso, no caso de BH, contribuíram as
situações agravadas pelas enchentes de 1979 e 1982, com inúmeros
desabrigados e os protestos: quebra-quebras de ônibus em Venda Nova
(distrito de Belo Horizonte) e na região da Cidade Industrial (SOMARRIBA,
1984, p.50); a invasão da prefeitura em 1981, para que as favelas fossem
“reconhecidas no mapa”, ou seja, fossem reconhecidas como lugares nos
quais a atuação do Estado deveria se concretizar, no sentido da garantia
dos direitos de cidadania; reivindicações, solicitando ajuda, para
reconstrução de abrigos para as famílias removidas pela CHISBEL.
(OSTOS, 2004, p. 56).
49
Em 1981, o Governo do Estado, em parceria com a entidade alemã GTZ, implantou
o Programa de Desenvolvimento de Comunidades (PRODECOM), dentro da
Secretaria de Estado do Planejamento e Coordenação Geral (SEPLAN/MG).
Pioneiro em uma nova visão sobre as favelas, o Programa passou a atuar em Belo
Horizonte de maneira estrutural, no sentido de urbanizar favelas e bairros
periféricos, promover o acesso ao título de propriedade, dotar as comunidades de
equipamentos públicos e fortalecer a participação e os movimentos comunitários
locais. Para tanto, focou sua atuação nos principais aglomerados da cidade, e foi o
responsável pela instalação, em regime de mutirão, de grande parte da infra-
estrutura que ainda hoje existe nesses locais.
A novidade do PRODECOM foi, em primeira medida, não considerar o
desfavelamento e o afastamento das classes populares para áreas
distantes da cidade como solução, isto é, considerou a ocupação desses
espaços como uma conquista de seus moradores e como um direito a ser
garantido. (OSTOS, 2004, p. 61).
As áreas de atuação do Programa foram o Aglomerado Santa Lúcia e o Aglomerado
da Serra, na Regional Centro-Sul; a Vila Senhor dos Passos e a Pedreira Prado
Lopes, na Regional Noroeste; as vilas Vista Alegre, Ventosa e Cabana Pai Tomás e
o Aglomerado Morro das Pedras, na Regional Oeste; e a Vila Cemig, na Regional
Barreiro; entre outras áreas.
Se, para a CHISBEL, urbanizar foi remover famílias, para dar lugar à obra
programada, para o PRODECOM, urbanizar foi manter famílias, melhorar as
condições de infra-estrutura, enfim, conferir melhores condições materiais
ao “lugar” das classes populares urbanas. Esses programas atuavam no
mesmo período, com práticas diferenciadas, não existindo, em Belo
Horizonte, uma superação completa da prática de desfavelamento,
principalmente daquela prática que, além de desfavelar, não se
responsabilizava pelo destino de seus moradores. (OSTOS, 2004, p. 58).
Conviventes na mesma época, as duas políticas públicas divergiam em sua
essência, conceito e prática. Uma, praticada pela administração municipal, outra,
proposta pelo Governo do Estado, seu choque de concepções foi um marco para a
proposição de uma nova política consensual para o tratamento das áreas faveladas
da capital. “Em Belo Horizonte, a “era da urbanização” não excluiu a “era do
desfavelamento”, pelo contrário: foi no auge da atuação do PRODECOM (de 1979 a
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Arte, Cultura e Transformação nas vilas e favelas: Um olhar a partir do Grupo do Beco

  • 1. 1 Clarice de Assis Libânio ARTE, CULTURA E TRANSFORMAÇÃO NAS VILAS E FAVELAS: um olhar a partir do Grupo do Beco Belo Horizonte Novembro de 2008
  • 2. 2 Clarice de Assis Libânio ARTE, CULTURA E TRANSFORMAÇÃO NAS VILAS E FAVELAS: um olhar a partir do Grupo do Beco Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós- graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de mestre em Sociologia. Orientadora: profª Ana Lúcia Modesto Belo Horizonte Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG Departamento de Sociologia e Antropologia Novembro de 2008
  • 3. 3 Clarice de Assis Libânio ARTE, CULTURA E TRANSFORMAÇÃO NAS VILAS E FAVELAS: um olhar a partir do Grupo do Beco Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós- graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de mestre em Sociologia. Dissertação defendida e aprovada em: Banca examinadora: ____________________________________________ Prof.ª Ana Lúcia Modesto ___________________________________________ Prof. Ronaldo de Noronha __________________________________________ Prof. José Márcio Pinto de Moura Barros Belo Horizonte -- de novembro de 2008
  • 4. 4 Para meus pais, que me deram muito mais do que exemplo. Para meus filhos, que me dão, a todo dia, força e alegria. Para meu marido, inexplicável. Para todos aqueles que me inspiraram a crença de que sim, é possível um mundo diferente.
  • 5. 5 AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar, ao Grupo do Beco, claro, por sua confiança em mim, por seu carinho, por sua amizade, pela tolerância com a demora desse trabalho, pelo companheirismo, pelo apoio nas horas difíceis e pela força, energia e disponibilidade. Um abraço especial ao Nil e à Jose, que considero hoje amigos de coração. Aos amigos do Favela é Isso Aí, sem os quais nada teria sido possível nesses anos de muita fé e muita descrença. À minha orientadora, Ana Lúcia, pela infinita paciência, enorme competência, orientação impecável e fundamental respeito ao meu momento e minhas dificuldades. Ao José Márcio Barros, a quem não me canso de agradecer as oportunidades e inspirações que tem me dado sempre. Aos meus pais, que me deram a grande chance de “escolher” essa profissão e me encantar com ela. Ao meu marido e meus filhos, pela compreensão, pelas ausências e pelo apoio em todos os momentos. Obrigada!
  • 6. 6 Existir é diferir, e, de certa forma, a diferença é a dimensão substancial das coisas, aquilo que elas têm de mais próprio e mais comum. É preciso partir daí, evitando qualquer explicação; para onde tudo caminha, mesmo a identidade, de onde falsamente partimos. Pois a identidade é apenas um mínimo, não passando de uma espécie, e espécie infinitamente rara, de diferença, assim como o repouso é apenas um caso do movimento e o círculo uma variedade singular da elipse. Gabriel Tarde, In Monadologia e Sociologia
  • 7. 7 RESUMO A dissertação tem como ponto de partida a pesquisa realizada pela autora, no ano de 2002, que culminou na publicação, em 2004, do Guia Cultural das Vilas e Favelas de Belo Horizonte. Naquele trabalho, a autora visitou as 226 vilas e favelas da Capital Mineira e cadastrou cerca de 7.000 artistas em atividade nesses locais. Durante a pesquisa, foi possível perceber que apenas 20% desses artistas tinham algum tipo de rendimento com as atividades culturais. Dessa constatação nasceu a hipótese de que a arte traz, a esse público, algo mais do que uma possibilidade de geração de renda. Esse algo a mais passa por uma modificação em sua forma de se relacionar com sua comunidade e para fora dela, bem como possibilita a transformação da visão que as favelas e seus moradores têm junto à mídia e à cidade em geral. O texto traz, então, uma visão dessas possibilidades de transformação através da arte, tendo como estudo de caso o Grupo do Beco, grupo de teatro formado por moradores da Barragem Santa Lúcia, em Belo Horizonte, e sua peça, Bendita a Voz Entre as Mulheres. A peça, construída a partir de entrevistas com 20 mulheres da comunidade, traz a história de Bendita, uma mulher que foi estuprada, expulsa de casa pelo pai, espancada, traída pelo marido e que consegue, contra todas as expectativas, mudar de vida a partir do momento em que se envolve com a arte, como cantora. A partir dessa experiência, a autora discute como a arte e a cultura são instrumentalizadas nas favelas, como meio de melhorar a auto-estima daqueles que com elas se envolvem, de criar novas formas de socialização e convivência grupal e, por fim, de ampliar a participação política, por vias não tradicionais, e o acesso aos bens e serviços da cidade e direitos do cidadão. Palavras-chave: Favelas. Belo Horizonte. Arte e cultura popular.
  • 8. 8 ABSTRACT This dissertation has as starting point the research accomplished by the author, in the year of 2002, which culminated in the publication, in 2004, of the Cultural Guide of the Villas and Slums of Belo Horizonte. To accomplish that work, the author visited the 226 villas and slums of the Capital of Minas Gerais, and registered about 7000 artists in activity in those places. During that research, it was possible to notice that only 20% of those artists had some kind of revenue with their cultural activities. From this verification was born the hypothesis that art brings to that public something more than a possibility of income generation. This something more promotes a modification in their relationship with their community and beyond it, as well as it makes possible the transformation of the image that the slums and their residents have, in the opinion of the media and of the city in general. The text, then, brings a vision of those possibilities of transformation through the arts, having as case study the Grupo do Beco (Group of the Alley), theater group of residents of the Barragem Santa Lúcia, in Belo Horizonte, and their play, Blessed the Voice Among the Women. This play, built from interviews with 20 resident women from that community, brings the history of Bendita (Blessed), a woman that was raped, expelled from home by her father, beaten, cheated by her husband, and she achieves, against all expectations, to change her life starting at the moment she gets involved in art, as a singer. Starting from this experience, the author discusses as art and culture are instrumentalized in the slums, as a way of improving the self-esteem of those that are involved in it, of creating new forms of socialization and grupal coexistence, and, finally, of enlarging the political participation by non-traditional means, and the access to the goods and services of the city, and the citizen's rights. Key words: Slums. Belo Horizonte. Art and popular culture.
  • 9. 9 LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 – Planta de situação das vilas e favelas de Belo Horizonte.................. 56 FIGURA 2 - Unidades de Planejamento de Belo Horizonte, segundo Região Administrativa......................................................................................................... 72
  • 10. 10 LISTA DE TABELAS TABELA 1 Número de núcleos constantes do universo de trabalho oficial da URBEL, segundo número de domicílios e população total residente, por Regional ................................................................................ 57 TABELA 2 Número de grupos culturais cadastrados e de pessoas envolvidas e média de pessoas por grupo, por vila e grupos por vila, segundo Regional ................................................................................. 64 TABELA 3 Grupos culturais cadastrados, segundo área cultural, por Regional (%)................................................................................................ 66 TABELA 4 Grupos culturais cadastrados, segundo tempo na atividade, por Regional ................................................................................................ 68
  • 11. 11 LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS AVSI Associação de Voluntários para o Serviço Internacional CEURB/UFMG Centro de Estudos Urbanos CHISBEL Coordenação de Habitação de Interesse Social de Belo Horizonte COHAB-MG Companhia Habitacional do Estado de Minas Gerais DBP Departamento Municipal de Habitação e Bairros Populares DVS Departamento de Vigilância Social FAMOBH Federação das Associações de Moradores de Belo Horizonte IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IQVU Índice de Qualidade de Vida Urbana PLAMBEL Planejamento da Região Metropolitana de Belo Horizonte PROAS Programa de Reassentamento de Famílias em Decorrência de Obras Públicas ou Vítimas de Calamidades PRODECOM Programa de Desenvolvimento de Comunidades PROFAVELA Programa Municipal de Regularização de Favelas RMBH Região Metropolitana de Belo Horizonte SEPLAN/MG Secretaria de Estado do Planejamento e Coordenação Geral SMAC Secretaria Municipal de Ação Comunitária UPM Unidade de Planejamento URBEL Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte UTP União dos Trabalhadores da Periferia ZEIS Zona de Especial Interesse Social
  • 12. 12 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 13 1.1 Trilhas e pistas da pesquisa.......................................................................... 15 2 METODOLOGIA ................................................................................................. 18 3 CONCEITOS E REPRESENTAÇÕES DA FAVELA........................................... 23 3.1 Um século de favela: do bom selvagem ao abusado.................................. 23 3.2 Morro, asfalto, comunidade, cidade – o território como conceito-chave.. 34 4 UM BREVE RELATO SOBRE AS FAVELAS DE BELO HORIZONTE ............. 42 4.1 Histórico e caracterização da ocupação ...................................................... 42 4.2 Ocupação atual............................................................................................... 54 4.2.1 Características gerais da ocupação .......................................................... 55 4.2.2 Aspectos demográficos e indicadores sociais......................................... 59 4.2.3 Infra-estrutura e serviços urbanos ............................................................ 61 4.2.4 Organização social...................................................................................... 63 4.3 Produção artístico-cultural............................................................................ 64 5 BENDITA A VOZ ENTRE AS MULHERES – O CASO DO GRUPO DO BECO 71 5.1 O território....................................................................................................... 71 5.1.1 Características gerais da ocupação .......................................................... 71 5.1.2 Aspectos demográficos.............................................................................. 75 5.1.3 Qualidade de vida e infra-estrutura ........................................................... 76 5.1.5 Organização social e participação............................................................. 78 5.1.6 Manifestações culturais.............................................................................. 80 5.2 O Grupo........................................................................................................... 81 5.3 A peça.............................................................................................................. 89 5.3.1Teatro popular e criação coletiva ............................................................... 89 5.3.2 O texto e sua construção............................................................................ 92 5.3.3 Pessoas e personagens.............................................................................. 100 6 O PAPEL DA ARTE DA CULTURA NAS VILAS E FAVELAS .......................... 110 6.1 Auto-estima, identidade, diversidade........................................................... 112 6.2 Grupo, redes, interação ................................................................................. 121 6.3 Mobilização, participação, cidadania............................................................ 124 7 CONCLUSÕES................................................................................................... 129 REFERÊNCIAS...................................................................................................... 134 ANEXOS ................................................................................................................ 138
  • 13. 13 1 INTRODUÇÃO O trabalho que agora apresento é fruto de quase 20 anos de experiências, vivências e pesquisas que desenvolvi junto aos moradores de vilas e favelas de Belo Horizonte. Essa trajetória se inicia em meados da década de 1980, quando iniciei minha atividade profissional, ainda estudante, na Cia. Urbanizadora de Belo Horizonte – URBEL, órgão da Prefeitura responsável pela política pública de habitação e urbanização nessas comunidades. Desde aquela época, fosse como estagiária, no princípio, fosse como profissional já formada, depois, algumas questões me intrigavam e foram, aos poucos, consolidando minha visão e teorias sobre as favelas, seus moradores e seu lugar na sociedade. Entre essas questões, a central e que informava todas as outras, basicamente, era a noção de que havia uma divisão muito “clara” entre os moradores das favelas e os moradores dos bairros, ainda que as divisões urbanas e culturais não fossem explícitas em muitos casos. Sempre fiquei muito intrigada com o fato de que tanto os moradores dos bairros quanto os moradores das favelas referiam-se uns aos outros como seres diferentes: nós e eles, os outros, os que não são nós. A noção de cidade dividida, apesar de vizinha e convivente (no uso do espaço urbano, nas relações de trabalho etc.) ficou para mim, desde então, como uma incógnita e, ao mesmo tempo, uma verdade a ser combatida, sempre. A bandeira da não-divisão da cidade, aliás, vem de família, porque meu pai, sociólogo, desde que me entendo por gente trabalha com a regularização das favelas e na minha infância e adolescência, divorciado, me levava para as reuniões nas comunidades como programa familiar de sábado à tarde. Naquela época, claro que eu, filha, não me sentia nada satisfeita com o programa com o pai, mas hoje
  • 14. 14 sinto que ele me ensinou a ver com os mesmos olhos os “de lá” e os “de cá”. Dentro da URBEL, nos quase dez anos que por lá fiquei, trabalhei em vários setores, na articulação comunitária, na habitação, no social. Mas o trabalho que mais me despertou e construiu minha vida profissional até hoje foi na área da pesquisa social. Conhecer a realidade dessas comunidades sempre foi para mim o que havia de mais instigante naqueles trabalhos. Ao sair da instituição, para dedicar-me ao meu primeiro mestrado (aliás, capítulo à parte), nunca deixei de pesquisar as vilas e favelas, de querer entender melhor sobre elas e sobre a divisão da cidade. Nesse momento, gostaria de abrir dois parênteses: um, sobre meus dois mestrados; o outro, sobre a forma de conhecer as comunidades. Em relação ao primeiro parêntese, me formei em ciências sociais, habilitação em antropologia, no ano de 1992. Em 1994 já estava no mestrado da sociologia e escolhi como tema o relacionamento existente entre bairros e favelas em Belo Horizonte, seus afastamentos, estigmas e visões dominantes na sociedade. Naquela época, fiz todos os créditos, mas não consegui finalizar a dissertação, parte por me sentir órfã dentro do departamento com meu tema, parte por continuar (desde sempre) trabalhando muito enquanto estudava. Dez anos depois, jubilada, decidi tentar novamente a prova do mestrado e retomei o tema, porém, já dentro de outras bases, tendo a cultura como foco, a partir de minha experiência com a elaboração do Guia Cultural de Vilas e Favelas, do qual falarei adiante. Quanto ao segundo parêntese, confesso que já ouvi (por mais de uma vez) comentários, explícitos ou velados, sobre as pessoas que, como eu, não nasceram nas favelas, não vivem sua problemática na pele, mas querem estudá-las, conhecê- las e contribuir, de alguma maneira, para mudar o quadro de exclusão e divisão que se apresenta.
  • 15. 15 Os comentários são sempre na linha de que nós, “os de fora”, estamos lá para sugar “os de dentro”, para utilizarmos de seu conhecimento e sua vivência para nossas teses e depois, como ratinhos de laboratório, descartá-los, não dar retorno, não contribuir. Já houve épocas em que me indignei com essas afirmações, mas hoje não levanto mais a voz para protestar. Primeiro, porque sei que, de fato, é muito comum essa prática, de pessoas que não têm compromisso com as outras, tão comum que o “estudante universitário que sobe o morro” já virou personagem cristalizado nessas comunidades. Segundo, porque sei que só com minha prática posso ter a chance, ainda que mínima, de ser enquadrada em outra categoria: a daqueles que realmente gostariam que a cidade fosse mais integrada, menos dividida, menos segregada. 1.1 Trilhas e pistas da pesquisa Voltando ao processo de construção desta dissertação, no ano de 2002 comecei um trabalho de pesquisa que tinha como objetivo fazer um levantamento nas favelas de Belo Horizonte, mapeando todos os tipos de manifestações artísticas e culturais existentes nessas comunidades. O produto desse trabalho, lançado em agosto de 2004, foi o Guia Cultural das Vilas e Favelas de Belo Horizonte, que cadastrou 6.911 artistas em atividade nessas áreas, número este que vem se mostrando, a cada dia, apenas uma amostra do que realmente fervilha na área cultural das comunidades periféricas da Capital. Naquela época, esses resultados de fato foram para mim – e para grande parte das pessoas ligadas ao cenário cultural mineiro – uma surpresa. A partir do desvelamento desses grupos, descobrimos como estávamos desinformados a respeito dessa “arte invisível”, presos em nosso apartamento e de uma certa forma distantes dessa realidade. Aliás, a experiência do Guia foi fundamental para que eu me deparasse com meus próprios preconceitos. Como já disse, trabalho com favelas desde 1987, foi meu
  • 16. 16 primeiro estágio, meu primeiro emprego e é o que faço, desde então. Sempre me gabei de não ter preconceitos com relação aos moradores das favelas, a transitar pelas comunidades, etc., etc. Entretanto, quando a questão é a cultura, sem querer, a gente começa a reproduzir o que ouve sistematicamente: aquela visão de que o que tem em favela é samba e pagode e, hoje, hip hop. Sempre há esses rótulos, de tudo muito massificado, como se fosse uma coisa só, igual, “a pobreza é toda igual, os barracos são iguais, a cultura é igual”. Quando me aprofundei nesse olhar para a cultura das comunidades, percebi que, de fato, as coisas não são assim, é tudo bem ao contrário: se a favela de fora parece um bloco, de cultura semelhante, do lado de dentro é completamente diferente. O que eu já sabia do ponto de vista urbano, social e arquitetônico, fiquei sabendo com relação ao que é artístico e cultural. A pluralidade e a diversidade são muito grandes. Foi no contexto do Guia que vim a conhecer o trabalho do Grupo do Beco e passei então a acompanhar mais de perto sua trajetória, me encantei com eles e redirecionei todo meu projeto de pesquisa para a dissertação. Após o lançamento do Guia, me deparei com a necessidade de dar continuidade às ações de apoio e divulgação dessa rica e intensa produção cultural que havíamos mapeado, justamente por ter certeza de que o trabalho de pesquisa, apesar de toda sua importância, perde seu objetivo se não avançar para a realização concreta da mudança que se espera. Confesso que foi essa minha incapacidade, desde sempre, de ser imparcial nos processos de pesquisa, que me levou a fundar a ONG Favela é Isso Aí, dando, então, continuidade às demandas identificadas mediante o Guia. Lembranças e motivações à parte, a dissertação que agora, finalmente, publico, traz reflexões baseadas, principalmente, em uma questão que muito me chamou a atenção nos resultados do Guia: se somente 20% dos artistas cadastrados tinham
  • 17. 17 renda com a atividade artístico-cultural, quais eram as motivações para continuarem desenvolvendo seus trabalhos nessa área? Com essa questão em mente, parti, então, para a pesquisa e as discussões que aqui se apresentam. O trabalho está estruturado em seis capítulos, ademais dessa introdução. O segundo traz as metodologias adotadas para a pesquisa, tanto do Guia, que aqui também entra como fonte fundamental de informações, quanto do relacionamento com o Grupo do Beco, recorte que fiz para minha dissertação. O terceiro busca trazer uma discussão sobre a formação e componentes principais da “mitologia urbana” que se formou em relação às favelas, suas representações e conceitos principais. Em seguida, o capítulo 4 volta seu olhar especificamente para a cidade de Belo Horizonte e conta um pouco da história de ocupação e desocupação das áreas faveladas ao longo das décadas e das sucessivas políticas públicas implantadas. O capitulo 5 trata da realidade específica do Grupo do Beco: seu território, seus atores, sua peça e suas motivações. Por fim, os capítulos 6 e 7 trazem uma reflexão mais teórica que busca responder àquela pergunta fundadora e dão algumas linhas que mostram a arte nas vilas e favelas para além de sua função estética ou econômica. Espero que essa experiência, vivida nos últimos 20 anos de minha vida profissional, tenha algo a acrescentar ao debate de muitos, em Minas e fora dela, para o reconhecimento das comunidades de vilas e favelas como elas são, ou seja, partes do mesmo tecido social e urbano de que as cidades se constroem. Como diria meu pequeno Benjamin, espantado ao ver, entre um prédio e outro, a paisagem de um morro coalhado de casinhas: “Mãe, a favela ‘tá’ no meio do mundo!!!”.
  • 18. 18 2 METODOLOGIA O trabalho para elaboração desta dissertação foi realizado através de três etapas básicas, sobre as quais se discorrerá a seguir. A primeira foi o aproveitamento da pesquisa do Guia Cultural de Vilas e Favelas de Belo Horizonte, desenvolvido pela autora do presente estudo entre 2002 e 2004, com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte – Fundo de Projetos Culturais. O projeto realizou o cadastramento, através de pesquisa de campo iniciada em março de 2002 e concluída em novembro do mesmo ano, de todas as manifestações culturais, artísticas, folclóricas e populares existentes e em desenvolvimento nas vilas e favelas de Belo Horizonte. Vale destacar que entre o início da pesquisa e sua publicação passaram-se quase três anos, por atraso na liberação dos recursos, obrigando a que duas atualizações fossem feitas no período. Para proceder ao levantamento dos dados, foram consideradas as seguintes áreas culturais: Música, Teatro, Dança, Artes Plásticas, Artes Visuais, Literatura, Artesanato, Folclore e Religiosidade, Escolas de Samba e Blocos Carnavalescos e outras (atividades de caráter múltiplo, de cunho social ou que não se enquadravam em nenhuma categoria mencionada). Iniciou-se a pesquisa pela difícil delimitação do universo de trabalho. Difícil porque percebeu-se que as áreas de ocupação com perfil designado vilas e favelas têm grande fluidez em seu surgimento e adensamento, restando sempre a sensação de que a base de dados está desatualizada. Assim, optou-se por adotar a listagem oficial fornecida pela então Secretaria Municipal de Habitação/URBEL, que indicava a presença de 226 áreas, incluindo vilas e favelas com decreto ZEIS (Zona de Especial Interesse Social), além de conjuntos habitacionais construídos pelo Poder Público municipal e outras áreas não decretadas.
  • 19. 19 É importante realçar que das 226 áreas apontadas pela URBEL àquela época, 12 não foram localizadas em campo – algumas, porque já se urbanizaram e se incorporaram à malha dos bairros do entorno; outras, porque de fato não existem mais, como é o caso da Vila Camponesa (Regional Leste), desapropriada pelas obras do metrô; e outras, porque ainda não estavam habitadas à época da pesquisa de campo, como é o caso do Conjunto São Gabriel (Regional Nordeste). Quanto às demais, foram todas visitadas pela equipe de campo do Guia e tiveram as manifestações culturais e artísticas cadastradas. Encontraram-se também núcleos de baixa renda não constantes da listagem oficial da URBEL, mas optou-se por não incluí-los no levantamento, já que o parâmetro adotado era o cadastramento das áreas constantes do universo reconhecido pelo Poder Público municipal. Definido o território, partiu-se para a realização de entrevistas com lideranças comunitárias, a partir das quais se iniciou a busca de artistas e grupos culturais, formando uma rede de informantes. O mapeamento em rede permitiu identificar e cadastrar um número relevante de artistas em atividade, mas deixou de fora vários deles, que não tinham sido indicados por ninguém, quebrando, de alguma maneira, o ciclo da pesquisa que se propunha censitária. Além do descompasso entre o universo de trabalho da URBEL e as vilas realmente existentes na cidade, já mencionado, outros problemas enfrentados foram a desatualização do cadastro de lideranças fornecido pelo órgão, a existência de diversas lideranças no mesmo local, dificultando a identificação daquelas com maior legitimidade e o desconhecimento, por parte das lideranças, dos artistas de sua própria comunidade. Foram utilizados dois questionários básicos para a pesquisa: um deles era destinado às lideranças e levantava todo o contexto urbano e social da comunidade, incluindo aspectos de saúde, educação, saneamento, segurança pública, iluminação, inclusão social, emprego e renda; o outro era destinado aos artistas e buscava conhecer de perto sua atividade, principais problemas e realizações.
  • 20. 20 Além do cadastro dos artistas, foram também realizados cadastros de equipamentos culturais, meios de comunicação locais e festas de cada uma das comunidades. Os questionários foram digitados e tabulados e os dados e análises estatísticas obtidos foram incorporados neste trabalho, como poderá ser visto no Capítulo 4. Finalmente, vale destacar que o Guia, hoje, encontra-se totalmente desatualizado, uma vez que a dinâmica das comunidades é bem grande, principalmente no que se refere à formação e dissolução de grupos culturais. Entretanto, algumas atualizações já estão sendo feitas e serão incorporadas, quando possível, na análise deste trabalho. A segunda etapa da pesquisa, após a escolha do Grupo do Beco como sujeito da dissertação, foi a realização de entrevistas em profundidade com os participantes e atores envolvidos no Grupo. É importante, antes disso, destacar que a escolha do Grupo do Beco não se deu por sua representatividade no universo da produção cultural das comunidades, já que, no total de quase 700 grupos cadastrados pelo Guia, apenas 37, ou seja, menos de 5%, eram ligados à área do teatro. A escolha se pautou pela tipicidade do trabalho do Grupo, dentro da temática escolhida, isto é, um grupo que declaradamente se propunha a fazer arte em prol da transformação social, um grupo que acreditava que o papel das manifestações culturais nas vilas e favelas estava muito mais relacionado aos seus aspectos sociais e políticos do que estéticos ou econômicos. Após a escolha, o Grupo foi contatado e o projeto apresentado. A primeira reação foi de rejeição. O Grupo colocou que já tinha sido, muitas vezes, objeto de análise de outros estudantes e que não queriam ser sempre “ratinhos de laboratório”. Em seguida, houve o questionamento, da parte deles, do que receberiam em troca da pesquisa, fato que se dissolveu pelo contato permanente e aproximação mútua. Realizaram-se, então, entrevistas coletivas com o Grupo, para conhecer sua história,
  • 21. 21 trajetória, sonhos, expectativas, etc. Esses encontros foram em número de quatro ou cinco, todos gravados e conduzidos livremente a partir de um roteiro de questões de cunho qualitativo. As dificuldades de agenda do Grupo, somadas à necessidade e importância de se ouvir cada um dos membros em separado, fizeram com que se partisse, então, para as entrevistas individuais. No total, foram realizadas entrevistas com sete representantes do Beco, com duas a três horas de duração cada uma, também utilizando a mesma metodologia. Não foi possível entrevistar dois membros do Grupo, além de um ator contratado, por problemas de agenda. As entrevistas individuais aprofundaram mais na história de vida de cada ator do Grupo, conhecendo sua trajetória prévia à sua entrada para o teatro e sua leitura da importância da arte e da cultura em sua vivência e na de sua comunidade. Em seguida, as entrevistas foram transcritas e analisadas, de forma a compor um panorama geral do Grupo e do trabalho por ele desenvolvido. Em alguns momentos do texto ora apresentado, são citadas partes das entrevistas sem, entretanto, identificar o nome da pessoa ouvida, como forma de se preservar cada um dos atores do Grupo. Por fim, a terceira etapa do trabalho foi dada, não necessariamente nessa ordem, pela leitura e análise de bibliografia relativa ao tema do trabalho e pela leitura e análise dos materiais do Grupo, incluindo matérias de jornais, vídeos, fotos e o texto da peça “Bendita a Voz entre as Mulheres”. Do ponto de vista da bibliografia, mostrou-se ser pouco extensa e de difícil identificação. Em primeiro lugar, no que se refere a um olhar específico sobre as favelas de Belo Horizonte, já que a maioria absoluta dos trabalhos publicados foca as favelas do Rio de Janeiro como fenômeno nacional. Em segundo, no que tange às relações entre cultura e desenvolvimento social e humano, temática da qual muito se tem falado, mas pouco publicado em termos de pesquisas empíricas conclusivas. Talvez tenha sido esta a etapa mais difícil do trabalho, não somente porque
  • 22. 22 incorporou mais de perto o aspecto teórico em si e avançou na trilha das conclusões do estudo, mas fundamentalmente, e principalmente, porque se utilizaram parâmetros muito mais subjetivos na leitura das informações disponíveis. Ao contrário dos dados do Guia, trabalhados estatisticamente e com potencial de comparabilidade entre as diversas comunidades – ao contrário, também, das informações vindas das entrevistas qualitativas, que focavam as histórias de vida em suas particularidades, encontrando pontos de afastamento e aproximação –, a análise da peça trouxe muito mais um olhar sobre o discurso, as representações e visões dos próprios atores sobre sua comunidade, sua realidade e dificuldades, vistas pelo ponto de vista de um observador não-morador, não detentor do código utilizado pelos criadores da obra. Nesse sentido, como se verá no capítulo dedicado à peça, buscou-se muito mais descrever as falas e seu encadeamento do que interpretá-las de uma maneira acabada e estanque, fornecendo ao leitor as respostas prontas.
  • 23. 23 3 CONCEITOS E REPRESENTAÇÕES DA FAVELA Antes de iniciar a discussão a respeito da gênese e evolução das favelas em Belo Horizonte e situar o tema da dissertação nesse contexto, buscar-se-á traçar um breve relato a respeito dos aspectos simbólicos da temática favela. A intenção é discorrer sobre as visões e representações da favela ao longo do tempo, abordando um aspecto fundamental e determinante tanto para a identidade dos artistas moradores dessas comunidades quanto para seu posicionamento perante o restante da sociedade. O que se pretende neste capítulo é apresentar um panorama das representações sociais hegemônicas sobre as favelas, de forma a contextualizar o estudo das manifestações artísticas ocorrentes nesses espaços e seus resultados do ponto de vista da ação e da transformação social. Também interessa analisar como a identidade da favela foi sendo construída ao longo do tempo, conformando essa visão dominante. 3.1 Um século de favela: do bom selvagem ao abusado Quando se pretende falar a respeito dos conceitos e representação das favelas na sociedade em geral, bem como sua transformação ao longo do tempo, há, ao contrário da temática da produção artística e seu papel, uma série de estudos já disponíveis que aprofundam essa questão. Ainda que praticamente todos eles estudem o fenômeno favela na cidade do Rio de Janeiro, podem ser utilizados como referência para a discussão que se pretende aqui realizar, pela proximidade das representações encontradas lá e cá a respeito desses locais. Ademais, há que se lembrar que é a imagem da favela carioca que é disseminada por todo o País e mesmo no exterior como estereótipo, pela mídia, o que acaba contribuindo para nivelar um pouco as visões da sociedade a respeito de todos os outros tipos de comunidade e ocupações humanas no restante do Brasil.
  • 24. 24 De acordo com Pandolfi (2003): [...] poucos termos são ao mesmo tempo tão evidentes e tão opacos quanto favela. Sua evidência se dá num duplo sentido. O primeiro é estar ganhando visibilidade crescente, atraindo as atenções, ocupando de forma constante espaços significativos na mídia, constituindo-se em tema recorrente de debates. O segundo é que basta sua simples menção para que se produza, de modo automático, um efeito de reconhecimento e de assentimento. Isso significa não apenas que o termo se tornou de uso corrente, mas também que os seus sentidos passaram a ser partilhados, generalizados. Todos concordam a respeito do que é uma favela, todos são capazes de visualizar e de identificar claramente uma favela. (p. 21) Essa familiaridade distante com o universo da favela, mediada pela televisão que coloca dentro de cada casa a “realidade” dos morros, tem como conseqüência a pasteurização, a homogeneização das áreas periféricas ou comunidades urbanas ocupadas por populações de baixa renda. Áreas de morro, áreas de palafitas, alagados, fundos de vale, áreas consolidadas urbanisticamente, áreas construídas com materiais alternativos, áreas com ou sem infra-estrutura. Não importa: ao final, tudo é visto como o estereótipo da favela carioca, no modelo Rocinha, por exemplo. Essa concordância guarda relação com o fato de que as favelas são um dado concreto, são observáveis, têm uma objetividade. Elas delimitam um espaço com características próprias, que as distinguem do seu entorno. São estas características físicas, suas marcas externas mais aparentes, que, em primeiro lugar, dão base à sua identificação como ocupações irregulares do espaço urbano, cujas construções são toscas e feitas de forma desordenada. Desassistidas e privadas de infra-estrutura, de serviços básicos e de condições de higiene e saúde, estão mais sujeitas às intempéries, com deslizamentos nas que se localizam em áreas de risco de encostas, e enchentes naquelas instaladas em terrenos planos. Espaços- dormitório, as favelas seriam formadas por uma população que dela se desloca para trabalhar ou buscar trabalho e lá se encontra por absoluta falta de alternativa. Conseqüentemente, tão logo se apresente uma alternativa razoável, essa população tenderia a deixá-las, não vendo sua presença ali como algo definitivo. Mais do que dormitórios, portanto, elas seriam espaços transitórios, locais de passagem. (PANDOLFI, 2003, p. 21). No caso específico de Belo Horizonte, a situação encontrada nas áreas denominadas “vilas e favelas” desmente, na grande maioria dos casos, esse panorama. Como se verá no capítulo que se segue, a partir da década de 1980 uma série de programas foram sendo implantados nessas áreas, transformando sua situação urbanística e reduzindo significativamente os problemas de infra-estrutura e saneamento básico. Por outro lado, é cada vez maior o número de famílias que, nascidas e crescidas nas favelas, não desejam se mudar de suas comunidades e
  • 25. 25 afirmam categoricamente as vantagens do “morro” em relação ao “asfalto”. De qualquer forma, o imaginário coletivo continua identificando favela por seus traços estereotipados e exagerados que, na maioria dos casos, não encontram eco na realidade. Partilhada pela mídia, pela academia, pelo Estado, pelas agências de desenvolvimento e pelas ONGs, essa representação das favelas extrai a sua força justamente de sua evidência, do fato de corresponder a dados concretos e de poder ser objetivamente observada. Nelas existem pobres, haja vista o próprio aspecto das moradias, a infra-estrutura e os serviços públicos são realmente precários, e não há como negar que hoje o tráfico de drogas tem ali uma de suas faces mais visíveis. Entretanto, se tudo isso é verdade e constitui uma pauta de graves problemas a serem solucionados, é preciso notar que é nessa evidência mesma que reside a opacidade da favela, pois ela produz a certeza de que já se conhece a favela, sem que seja preciso conhecê-la efetivamente. Ela induz e direciona o nosso olhar, condicionando o que ver e como ver; leva-nos a perceber e tratar como unidade a favela e os favelados, aquilo que, de fato, é marcado por uma extrema diversidade. A representação sobre a favela impõe-se, assim, à realidade das favelas. (PANDOLFI, 2003, p. 23). A visão atualmente dominante a respeito das favelas no Brasil, da qual Belo Horizonte não foge à regra, foi sendo construída ao longo do último século, tempo de existência dessa formação urbana tipicamente nacional. 1 O discurso mais disseminado na análise da gênese e formação das favelas tem o ano de 1897 como marco fundador, relacionado à ocupação do Morro da Providência, no Rio de Janeiro, por veteranos da Guerra de Canudos, com autorização do Ministério da Guerra, de onde teriam trazido o nome de uma planta (fava) comum nas duas regiões. Entretanto, Souza afirma que na verdade a ocupação desta área é anterior a 1865, sendo que apenas no final deste século começou a ser vista como problema digno de atenção pela sociedade, tanto do ponto de vista demográfico e urbano quanto higiênico e sanitário. 1 Para maiores detalhes sobre a evolução das representações das favelas, ver Zaluar (2004), Silva (2005) e Valladares (2005). Apesar de algumas diferenças nas abordagens dos três autores, a linha histórica que traçam sobre as favelas cariocas é semelhante e foi utilizada como referência neste capítulo.
  • 26. 26 Segundo Maurício Abreu (1994), os barracões situados em morros não eram raros na paisagem carioca do século XIX. Alguns relatórios de 1865 já citavam essas habitações. Dispersas e pouco numerosas, no entanto, não se destacavam na paisagem urbana da época. Tais habitações populares ainda não faziam parte das preocupações da sociedade, mais assustada com os cortiços e casas de cômodos que não paravam de crescer na cidade, principalmente no centro. [...] Além de perigosos, os cortiços e casas de cômodos eram considerados ambientes insalubres, anti-higiênicos e focos de doenças (cólera, peste, varíola e febre amarela) que assolaram a cidade a partir de 1850. (SILVA, 2005, p. 25). E é justamente da desocupação dos cortiços, pela guerra sanitarista, que vão se intensificar as ocupações no Morro da Providência e outros morros cariocas, transformando aos poucos um nome próprio (Morro da Favella) no nome genérico favela. Foi a partir do ‘Morro da Favella’ que se começou a generalizar, na imprensa, a associação do termo ‘favela’ à imagem de ‘perigo’ e de ‘desordem’. A favela já era lugar de malandros e marginais. [...] Tais conceitos são reforçados com a Revolta da Vacina (1904) e, com o decorrer dos anos, gradativamente a imagem de ‘terra sem lei’ acaba por refletir-se também em outros espaços populares da cidade com paisagens semelhantes. Os distúrbios mais sérios da Revolta da Vacina teriam ocorrido do sopé do Morro da Providência, onde muitos moravam ou passaram a refugiar-se, o que acabou aumentando a má fama da favela.... (SILVA, 2005, p. 27). Deslocando-se a população dos cortiços para os morros e áreas menos centrais, desloca-se também a preocupação sanitarista e higienista. “Assim, o discurso higienista, que enfatizava os riscos das habitações precárias para a saúde pública, passou a direcionar-se para esse tipo de alternativa habitacional.” (SILVA, 2005, p. 29). Os discursos veiculados pela mídia e poderes constituídos, desde então, mostram o Rio de Janeiro com uma visão dual, de duas cidades distintas dentro da mesma Capital Federal. De acordo com Zaluar (2004), todos os autores que trataram a cidade entre 1908 e 1923 usaram o conceito de dualidade em suas descrições, pensamento cuja origem insere-se na visão dual da própria sociedade brasileira. “No Rio de Janeiro, essa reflexão sobre a dualidade brasileira encontrou na oposição favela x asfalto uma de suas encarnações.” (ZALUAR 2004, p. 13). E ainda:
  • 27. 27 [...] a classificação bipolar surge de uma ordem social imaginada de tal modo que qualquer ambigüidade, fronteira sombreada e experiência contínua oferecem poucos instrumentos para pensar esses problemas. Essa classificação é devedora de uma ordem social que se estriba na clareza de quem são os amigos e os inimigos, ou seja, uma ordem pré- moderna, das sociedades de pequena escala, das províncias, mas dificilmente aplicável às metrópoles. (ZALUAR, 2004, p. 19-20); Negativa quando se refere a condições de vida e segurança, positiva quando se fala de arte e cultura, a favela conquista adeptos e perseguidores desde seu aparecimento. Do ponto de vista dos admiradores, vale citar o modernismo, já na década de 1920, como um dos movimentos que reafirmou a beleza da favela e a idealizou como característica genuinamente nacional, retrato da garra e criatividade do povo brasileiro. Logo também seria reconhecida como ‘berço do samba’ e dona de uma admirável beleza rústica, para indignação dos setores conservadores. Essa nova concepção da favela contribuiu para o aparecimento de uma lógica paradoxal que, dali até a década de 1980, conduziria os olhares sobre o território. O espaço popular da década de 1920 em diante passa a ser visto também na condição de palco de ‘musas e poetas’ do samba. Em sua pobreza, afinal, havia espaço para a beleza e o lirismo da cultura popular brasileira. É a exotização da favela e de seus moradores. (SILVA, 2005, p. 34). A imagem do bom favelado foi mote nessa época e nas décadas vindouras, especialmente na sociedade carioca, que tanto conviveu e convive com artistas moradores das comunidades pobres. Ícone dessa convivência, Hélio Oiticica foi um artista que, na década de 1960, era amigo do famoso Cara de Cavalo e realizou obra de protesto após seu massacre pela polícia carioca. A estereotipia das favelas e seus moradores faz-se presente não só na forma conservadora [...] como também em uma forma supostamente progressista. Na primeira, os jovens aparecem como criminosos em potencial ou como colaboradores de forças criminosas. Na representação progressista, os residentes em favelas, há algumas décadas, eram identificados por alguns setores sociais como ‘bons favelados’. O juízo estabelecia uma analogia com a visão romântica do bom selvagem, símbolo antimoderno de uma cidade racional e individualista. Embora essa idealização ainda se faça presente, tornou-se mais comum, entre os que assumem a perspectiva identificada como progressista, sua identificação como vítimas passivas – e intrinsecamente infelizes – de uma estrutura social injusta. (SILVA, 2005, p. 60).
  • 28. 28 De acordo com Oliveira e Marcier (apud ZALUAR, 2004), que estudaram os conceitos e representações da favela por intermédio de letras de música, a favela foi vista, ao longo de sua existência, das seguintes maneiras: o espaço do pobre, o espaço do samba (ainda que este tenha subido, e não descido o morro), a não- cidade, o locus da marginalidade urbana e, por fim, como uma questão social. Ao mesmo tempo em que, por uma visão idealizada, as letras de música enaltecem o lugar, enaltecem também os laços de vizinhança, companheirismo e união existentes entre os moradores da favela. Em nítida oposição à ‘cidade’, onde predominariam as relações impessoais, a favela seria o locus, por excelência, das relações personalizadas: nela, todos se conhecem, todos se ajudam [...]. (OLIVEIRA; MARCIER apud ZALUAR, 2004, p.79). Mas as próprias letras de música reforçam a favela como o local da violência, ontem e hoje. Mas se o conjunto dessas letras, produzindo uma visão mítica da marginalidade, tende por isso mesmo a reforçar o estigma que historicamente foi lançado sobre a favela como uma espécie de território sem lei e sobre seus moradores como ‘classes perigosas’, em outras tantas letras a imagem se dá exatamente na direção contrária [...] ao estigma da malandragem se contrapõe a representação de um trabalho duro e mal remunerado; ao da criminalidade, a caracterização de uma gente decente e honesta, que socializa seus filhos por meio de uma ética que enaltece o trabalho e recusa a delinqüência. ‘Ser pobre é não delinqüir’. (OLIVEIRA; MARCIER apud ZALUAR, 2004, p.96). Vista também como lugar da desordem, inúmeros artigos veiculados pela imprensa apresentam a favela como [...] um espelho invertido da civilização (ZALUAR, 1998) e oposta aos anseios por uma cidade moderna, ordenada, civilizada e limpa. Colaborou para a construção deste estigma o fato de a lei de então classificar de vagabundo todo aquele que não tivesse domicílio certo [...], o que incluía, é claro, os moradores das favelas, pois suas casas não eram consideradas residências fixas, mas sim de caráter provisório. Como se não bastasse, ainda ocupavam terrenos de terceiros. (SILVA, 2005, p. 30). De acordo com Silva (2005), as principais marcas da representação social hegemônica sobre as favelas são os conceitos de ausência, de homogeneidade e de distância. Assim, a favela é o lugar do “falta”, do “não tem”; as formas de ocupação são consideradas todas muito semelhantes; e a distância entre nós e eles é sempre reforçada, tanto do ponto físico quanto mental e social.
  • 29. 29 Concentrando a pobreza, elas também expõem de forma pura aquilo que é apontado como sua característica peculiar, tanto em termos positivos quanto negativos. Por um lado, são tidas como o lugar, por excelência, de determinadas formas de expressão marcadamente populares, como o samba e o carnaval. Por outro, são temidas como territórios dominados pela violência, por grupos, como os do tráfico de drogas, que impõem seu predomínio por meio das armas e do terror. Se por um lado a violência é percebida como traço identificador das favelas, por outro ela é atribuída não só à pobreza, mas também à ausência do Estado. Cumpre destacar, porém, que essa ausência não se traduz apenas na incapacidade de garantir a ordem, impondo o monopólio da violência legítima, mas também na inexistência de investimentos significativos em infra-estrutura, saneamento, saúde, educação e transporte. Portanto, ficando à margem daquilo que configura a pauta de direitos mínimos da cidadania, as favelas teriam na exclusão social mais uma de suas marcas identificadoras básicas. (PANDOLFI, 2003, p. 22). Nesse sentido, os próprios conceitos utilizados nos dias atuais pelos Poderes Públicos para definir as áreas de favela estão focados na noção de ausência. A favela, em geral, pode ser caracterizada, nas representações que dela se faz, como o lugar por excelência da ausência, da falta. O eixo da representação da favela é a noção de ausência. Ela é sempre definida pelo que não teria: um lugar sem infra-estrutura urbana – água, luz, esgoto, coleta de lixo –, sem arruamento, sem ordem, sem lei, sem moral e globalmente miserável. Ou seja, o caos. (SILVA, 2005, p. 24). Essa concepção da favela como local sem ordem, sem higiene, sem moral, sem lei, está na origem das políticas públicas destinadas às favelas, que, desde seu início, estiveram predominantemente focadas na remoção das famílias desses locais. No caso do Rio de Janeiro, a expansão das favelas vai se dando de maneira gradual, chegando ao ano de 1920 com cerca de 100 mil pessoas habitando diversos núcleos, marcando definitivamente a afirmação dessa forma de solução habitacional no seio da Capital da República. Em resposta aos apelos da sociedade pela “civilização” da cidade, é criado o Plano Agache, em 1927, que tinha como objetivo a “remodelação, extensão e embelezamento” da cidade, mas que, entretanto, não logrou realizar a remoção das favelas do cenário da Cidade Maravilhosa. Somente na década de 1940 a remoção de algumas áreas de favela se dá, com a constituição dos Parques Proletários, que tratavam não somente de construir novas moradias – muito mais precárias, às vezes, do que as de origem dos removidos –,
  • 30. 30 mas também de impor-lhes regras de convivência, de moral e bons costumes, numa “pedagogia civilizatória”. Silva (2005) atenta para o fato de que pelo menos um ponto positivo adveio da política dos Parques Proletários: a formação de organizações comunitárias dos moradores de favelas, que deram origem a todo um movimento associativo cujo ápice foram os anos de 1960. Em 1948 realiza-se o primeiro censo das favelas do Rio de Janeiro, pela prefeitura, que trouxe uma série de concepções vigentes à época, expressas pela voz oficial da municipalidade. Segundo o texto, os ‘pretos e pardos’ prevaleciam nas favelas por serem ‘hereditariamente atrasados, desprovidos de ambição e mal ajustados às exigências sociais modernas’. [...] ‘Renasceu-lhe [ao ‘preto’] a preguiça atávica, retornou a estagnação que estiola [...] como ele todos os indivíduos de necessidades primitivas, sem amor próprio e sem respeito à própria dignidade’ [...]. (ZALUAR, 2004, p. 13). Assim, além de ser o local da desordem e da falta de higiene e moral, a favela aparece como culpada por sua própria existência, por abrigar pessoas preguiçosas, atrasadas, sem amor próprio, praticamente animais. A política de remoções continua nas décadas de 1950 e 1960, ao mesmo tempo em que se intensificam as ocupações de novas áreas. Em 1970, as estimativas indicam um total de 162 favelas no Rio de Janeiro, com população de aproximadamente 565 mil habitantes. Silva relaciona a necessidade de liberar terrenos para a especulação imobiliária na zona sul com a intensificação da prática remocionista nas décadas de 1960 e 1970. Por um lado, o discurso sustentava-se na idéia de suprimento do déficit habitacional, oferecendo aos moradores das favelas a possibilidade de aquisição da casa própria, em condições legais. Por outro, ao atuar de forma muito mais enfática na zona sul da cidade, área muito valorizada do ponto de vista imobiliário, revelou-se o compromisso de liberar terrenos para a expansão imobiliária, de acordo com os interesses do mercado. (SILVA, 2005, p. 44). Durante os anos do Governo Militar, a visão dominante era mais fortemente a da necessidade de se disciplinar os favelados, recuperar moralmente, socialmente e
  • 31. 31 higienicamente as famílias e resgatar a estética da cidade. [...] entre 1962 e 1973, quase 140 mil pessoas foram removidas e transferidas para conjuntos habitacionais. Os impactos foram profundos: redes sociais desfeitas e a proximidade do local de trabalho, que propiciava uma economia significativa com o transporte, não existia mais. Da mesma forma, fazer qualquer tipo de ‘bico’ para engrossar o orçamento tornou-se difícil. Para completar, as famílias não tinham mais com quem deixar os filhos ou com quem pegar algum dinheiro emprestado. Toda uma rede de relações criada ao longo de anos na vida da favela foi esfacelada. (SILVA, 2005, p. 47). Somente a partir do final da década de 1970 começa a se criar um novo olhar sobre as favelas e suas formas de tratamento. Tanto a partir de fatores exógenos, como as políticas e preocupações de organismos internacionais e órgãos financiadores, quanto endógenos, como a formação de organizações fortes de moradores e a atuação da Igreja Católica, vão sendo transformadas as políticas remocionistas em políticas urbanizadoras. Os frágeis barracos, facilmente destrutíveis, desapareceram. Desde o final dos anos 70, a favela tem luz em cada casa. Durante os anos 80 ela adquiriu serviços, mais ou menos precários, de água e esgoto. Ninguém fala mais de remoção. (ZALUAR, 204, p. 21). Nessa nova concepção, o importante passa a ser recuperar, urbanizar e regularizar as áreas de favela, para que seus moradores possam ter melhores condições de vida no próprio local. Essa visão foi o germe do programa Favela-Bairro, da Prefeitura do Rio de Janeiro, que perdura até os dias atuais. Fundamental nesse processo também é a participação popular, por meio das organizações comunitárias. O processo de democratização ocorrido durante a década de 1980 deu novo impulso ao associativismo nas favelas, o que implicou a maior organização em torno de reivindicações estruturais. Paradoxalmente, a definição histórica das favelas centrada na degradação da paisagem facilitou o aumento de reivindicações por obras de infra-estrutura. A organização popular conseguiu uma significativa ampliação do acesso regular à água, esgoto, coleta de lixo, asfaltamento e iluminação. Além disso, difundiram-se as construções de escolas, creches e postos de saúde, bandeiras centrais na busca de uma melhor qualidade de vida para os moradores. O item no qual menos se avançou foi justamente o que coloca em questão, de modo mais incisivo, as formas de apropriação e uso do espaço urbano – no caso, o acesso à titulação da propriedade. (SILVA, 2005, p. 51). Como se verá no próximo capítulo, o processo apresentado foi muito semelhante ao
  • 32. 32 ocorrido em Belo Horizonte, onde, a partir da década de 1980, surgiu o PRODECOM, marco histórico na consolidação das favelas da cidade. A partir da década de 1990, em geral, e particularmente a partir dos anos 2000, uma nova transformação na visão e representações sobre as favelas vem se processando. Essa nova visão está intimamente relacionada ao incremento do tráfico de drogas e às guerras nos morros cariocas, e, mais recentemente, na cidade de São Paulo, que trazem um novo modelo de marginalidade e convivência com a violência, tanto aos moradores das favelas quanto à população como um todo. A crueldade e a frieza dos chefes do tráfico são apresentadas cotidianamente na mídia e contribuem para o acirramento das distâncias sociais e da discriminação dada pelo local de moradia. A lógica que caracteriza, de forma consciente ou não, a percepção desses setores sociais é de que o direito ao exercício da cidadania não é inerente ao nascimento do indivíduo no Estado-nação, conforme define a Constituição brasileira. O reconhecimento da cidadania é relativizado, de acordo com a cor da pele, o nível de escolaridade, a faixa salarial e/ou o espaço de moradia dos residentes na cidade. O juízo se expressa, de forma particular, no maior ou menor grau de tolerância com as diferentes manifestações de violência, de acordo com o alvo da agressão e não com o ato em si. (SILVA, 2005, p. 7-8). As pesquisas realizadas por MV Bill e Celso Athayde, (2006) por um lado, e por Luiz Eduardo Soares, por outro, e que tiveram como produtos o livro “Cabeça de Porco” e o documentário “Falcões do Tráfico”, esse último apresentado no Fantástico, Rede Globo, mostram uma face cruel do tráfico e uso de drogas nas favelas e bairros populares em várias partes do País. Da mesma forma que as obras de Zuenir Ventura (“Cidade Partida”) e Caco Barcellos (“Abusado”) trazem a presença de um novo ator no cenário social da favela: não mais o bom favelado, o bandido protetor da comunidade, o padrinho, mas, sim, um ser mostrado pela mídia como quase “monstro”, com valores completamente diferentes dos dominantes na sociedade, frio e pragmático. O propósito do livro é traçar um vasto painel realista sobre a violência instalada em vários estados brasileiros. A intenção não é denunciar. É compartilhar com os leitores preocupações e reflexões, na perspectiva de
  • 33. 33 manter viva a esperança. O inferno está perto de nós, é verdade. Mas há saída, sim. Basta olhar de perto e sentir o sopro de humanidade que vibra sob a máscara dos monstros. (ATHAYDE, 2006, p. 14). O contraponto dessa visão, hoje, é a redescoberta das artes das favelas pela grande mídia, através do funk e do rap, principalmente. Chegando às emissoras de maior audiência, haja vista o programa Central da Periferia, na Rede Globo, mais uma vez a indústria cultural busca na arte popular a expressão vendável e o alimento para o mercado do entretenimento. De acordo com Zaluar (2004): [A favela] sempre foi sobretudo o espaço onde se produziu o que de mais original se criou culturalmente nesta cidade: o samba, a escola de samba, o bloco de carnaval, a capoeira, o pagode de fundo de quintal, o pagode de clube. Mas onde também se faz outro tipo de música (como o funk), onde se escrevem livros, onde se compõem versos belíssimos ainda não musicados, onde se montam peças de teatro, onde se praticam todas as modalidades esportivas, descobrindo-se novos significados para a capoeira, misto de dança, esporte e luta ritualizada. (ZALUAR, 2004, p. 22). Finalizando, o que se buscou mostrar neste capítulo é como os conceitos e representações da favela, ao longo do tempo, pautaram-se por uma dualidade, um paradoxo que tem como seus dois termos exaltação e discriminação. Ainda que o segundo tenha predominado no imaginário popular, ligado principalmente ao recrudescimento da violência e do tráfico de drogas a partir da década de 1990 e a respectiva ênfase da mídia em seus aspectos negativos, é o primeiro aspecto que tem contribuído para a transformação das formas de inserção social e mobilização dos moradores das favelas com o restante da sociedade. Ao longo da história, foi através de suas manifestações artísticas, endêmicas ou importadas, que a favela teve algum tipo de reconhecimento e aceitação. Primeiro, pelo samba e o carnaval; depois, pelo rap e pelo funk. Hoje, por sua multiplicidade e diversidade cultural, é por intermédio da arte que o morador de favela encontra seu lugar e seu valor nas representações sociais. Por isso, esse é o objeto deste trabalho.
  • 34. 34 3.2 Morro, asfalto, comunidade, cidade – o território como conceito-chave Como não poderia deixar de ser, a discussão a respeito das favelas, suas representações e sua produção cultural passa necessariamente por um conceito- chave que é o de território. Esse conceito é tão importante para a temática que, qualquer que seja o viés que se adote, passa-se necessariamente por essa discussão. O trabalho, a cultura, o consumo, a moradia, os serviços, as ruas e avenidas, enfim, as bases materiais e simbólicas da sociedade repousam nas condições espaço-temporais em que as ações e intenções humanas se efetivam concretamente. A cidade é obra humana territorialmente impressa. É por isso que, quando falamos em sociedade, estamos falando sempre de uma relação sujeito-território. (SILVA, 2005, p. 100). A importância do território para os moradores da periferia é maior do que deixam antever as reportagens sobre moradores em fuga do tráfico e a construção social de uma imagem do eterno migrante sem laços, mais vinculável, de fato, à população de rua. No caso de Belo Horizonte, em sua grande maioria oriundos de cidades do interior de Minas ou de estados do Nordeste, os moradores das vilas e favelas enxergam, apesar de quaisquer problemas, seu local de moradia como uma conquista. Defender a casa com unhas e dentes, às vezes às expensas da própria vida, recusar-se a mudar – a não ser em casos extremos –, construir com as próprias mãos o seu lar e edificar laços de vizinhança duradouros são as regras e não as exceções nas vilas e favelas. É claro que esse sentimento é mais forte entre os mais velhos. Mas também entre aqueles que já nasceram na favela, a afirmação da origem e o apego ao território parecem ser processos presentes, ainda que as identidades sejam cada vez mais múltiplas e não condicionadas apenas a este ou aquele fator. Como recolhido em uma das entrevistas com o Grupo do Beco, companhia de teatro cuja trajetória é narrada neste trabalho,
  • 35. 35 “ser identificado como artista de favela tem para nós um lado positivo e um lado negativo. O positivo é que, de uma forma ou de outra, nos dá mais visibilidade e faz com que as pessoas fiquem mais curiosas para conhecer o nosso trabalho. Quanto ao negativo, é perceber que todos se espantam ao ver a qualidade de nosso trabalho, como se favelado não pudesse fazer nada bom!”. (Entrevista com o Grupo Beco) Nesse caso, a instrumentalização da origem territorial como fator distintivo esbarra na difícil constatação de que o preconceito existe e parece se alastrar, em proporção direta ao aumento da insegurança social. A afirmação do território como base da identidade construiu, ao longo da história, algumas dicotomias que identificam o lugar social de onde se fala, no caso das favelas. Uma das principais dicotomias é aquela utilizada na expressão morro x asfalto. Fruto de uma época e de uma configuração espacial específica (os morros cariocas, e antes da chegada da urbanização), a dicotomia ainda hoje é usada – na mídia, pela população e por pesquisadores – para marcar a distância entre as comunidades faveladas e o restante da cidade. Ademais, a utilização do termo “morro”, em contraposição a “asfalto”, além de não refletir a real situação da maior parte das favelas, que se configura de maneira diferencial no espaço, também traz em si o errôneo pressuposto de que haveria uma identidade comum dada pelo local de moradia, isto é O Favelado, com maiúsculas. As favelas e loteamentos irregulares são identificados, em geral, pelos órgãos públicos municipais do Rio de Janeiro como espaços informais, em função da ausência do cumprimento de determinadas normas urbanas legais. Nesse caso, os bairros seriam os espaços formais. A generalização dos termos contribui para ampliar a imprecisão sobre as características desses territórios. O termo asfalto, utilizado historicamente pelos moradores da favela para denominar os bairros, tem caído em desuso. Atualmente, nas favelas cariocas, quando se fala a respeito da própria localidade, utiliza-se, em geral, comunidade; mas quando se refere a outros espaços análogos, é usual o termo favela. (SILVA, 2005, pé de página, p. 57). Essa discussão insere um novo conceito, que é o de comunidade. Mais complexo do ponto de vista de sua conceituação, o termo comunidade é utilizado, nas favelas, para designar um espaço social de iguais, ou seja, é um conceito fundamentalmente de identidade coletiva. Fazem parte da comunidade não apenas aqueles que
  • 36. 36 residem em seus limites físicos, mas aqueles com os quais se estabelece uma identificação, com os quais se partilham as dificuldades e cumplicidade da vida na favela. A dicotomia cidade x favela, também comum, indica que as áreas faveladas estariam fora da polis – como se isso fosse possível –, seriam a ela externas e estranhas. Eu tenho muito medo da cidade. A gente sempre, ai, eu tenho medo de subir o morro, mas eu tenho muito medo da cidade. Eu tenho muito medo de ser engolido por ela, dessa coisa do calculismo, tudo é concorrência, tudo. Você encontra uma pessoa, cê conversa com a pessoa, a pessoa já tá querendo te sugar, não como referência, mas como concorrência, entende? Eu fico me fiscalizando o tempo inteiro pra eu não me vender pra ela, sabe, porque eu tenho os meus ideais, eu tenho a minha ideologia, e eu tenho muito medo da cidade. Eu tenho muito medo, porque a cidade, ela não é humana. As relações humanas não existem, quando existem, são raras. Sabe, assim, essa coisa da superficialidade, eu não güento, eu não suporto. A favela, por mais fingimento, por mais fofoca que tenha, tem o lado humano. Por mais que fique uma pessoa o tempo inteiro na rua, vendo, controlando quem tá chegando, quem tá saindo, se você for conversar com essa pessoa, cê vai ver que tem um humano ali. Se você precisar dela, igual eu precisei, minha mãe faleceu, ela ficou aqui com meu pai, ficou telefonando pra Deus e o povo, sabe, deu maior assessoria, fez comida, sabe? Morre alguém no bairro Anchieta! O vizinho nem sabe que morreu! Eu tenho medo disso! A cidade, ela é muito maior! Essa coisa da concorrência exacerbada. E é tudo como um código de barra! A favela não tem, num dá essa importância que o código de barra tem. A cidade não. (CÉSAR - Grupo do Beco apud NOGUEIRA, 2004, p. 50). As próprias letras de música expressam esta oposição: [...] se, por um lado, nas letras das composições, o retrato da favela é feito com base em suas características intrínsecas, por outro, essa mesma imagem se constrói de forma relacional, sendo os elementos definidores traçados a partir da e com referência à cidade. Quando isso ocorre, o que chama a atenção, num primeiro plano, é a rígida demarcação que se estabelece entre ambas, fazendo com que a cidade seja vista como uma coisa e a favela como outra. Inúmeras são as referências musicais que tratam a favela como algo alheio, algo que não faz parte, algo, enfim, que é distinto da cidade, não importa a situação, os personagens ou os sentimentos que aí estejam envolvidos. (OLIVEIRA, apud ZALUAR, 2004, p. 90). Referindo-se a artigo da revista Veja denominado “A periferia cerca a cidade”, Silva (2005, p. 58) aponta:
  • 37. 37 [...] os espaços periféricos e favelados são vistos, nessa proposição, como externos à polis, ou seja, ao território reconhecido como o lugar, por excelência, de exercício da cidadania. Nessa lógica, o reconhecimento da cidadania é relativizado de acordo com a cor da pele, o nível de escolaridade, a faixa salarial e o espaço de moradia. E completa: "O primeiro passo é acabar com a relação favela e asfalto. O reconhecimento realmente democrático dos direitos à cidade passa por uma nova apropriação do espaço urbano. A cidade, antes de mais nada, é uma só." (SILVA, 2005, p. 90). Em Belo Horizonte, ao contrário do Rio de Janeiro, um termo habitualmente usado, tanto no passado quanto nos dias atuais, é o de vila, como sinônimo de favela. Ainda que haja tentativas de classificar e hierarquizar as duas designações, fato é que ambas sempre foram usadas para tratar os mesmos espaços, apenas considerando a distinção de que o termo vila seria menos pejorativo do que o termo favela. A Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte, responsável pela implementação da política pública habitacional na cidade em geral, e nas favelas, em particular, define favela como uma ocupação espontânea e irregular, sem propriedade legal, sem infra- estrutura, por população de baixa renda (economicamente carente). Mais uma vez a noção de ausência se impõe, assim como a noção de irregularidade, daquilo que não é o certo, o desejável. Para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as favelas são classificadas como aglomerados subnormais, isto é, ao pé da letra, localidades abaixo do normal. [...] também designados ‘assentamento informal’, independente do material utilizado em sua construção, como, por exemplo: favela, mocambo, alagado, barranco de rio, etc. O que caracteriza um aglomerado subnormal é a ocupação desordenada e quando de sua implantação não havia posse da terra ou título de propriedade. (IBGE, Manual do Recenseador, censo 2000, p. 43). Também para o Planejamento da Região Metropolitana de Belo Horizonte (PLAMBEL), primeiro órgão responsável pela normatização do espaço urbano na Região Metropolitana de Belo Horizonte, o conceito de favela reforçava a noção de
  • 38. 38 “desobediência” ou desordem, ainda que tivesse a importância de introduzir, por outro lado, o reconhecimento do “fenômeno favela” como alternativa habitacional. Favelas são assentamentos residenciais de baixa renda, destituídos de legitimidade do domínio de terrenos, cuja forma de ocupação se dá em altas densidades e em desobediência aos padrões urbanísticos legalmente instituídos. Conformam-se em espaços de topografia acidentada, fragmentados em áreas de reduzidas dimensões e ocupadas por construções rudimentares. Seu sistema de articulação é adaptado às condições topográficas locais, constituindo-se em grande parte de caminhos de pedestre, sendo raras as vias para acesso externo. O fenômeno favela faz parte intrínseca da paisagem das grandes cidades brasileiras. Tem sua origem no modelo capitalista dependente no qual se insere o País. As favelas surgem como estratégia de apropriação do espaço pelos estratos de mais baixo poder aquisitivo e de menores condições de participação nos benefícios da cidade. Assim, na RMBH (Região Metropolitana de Belo Horizonte) essas aglomerações não podem ser consideradas como algo externo à sua comunidade socioeconômica, mas compreendidas como a alternativa encontrada por determinadas pessoas para se abrigarem e estarem próximas aos seus “negócios”; enfim, como maneira de habitar. O Poder Público, identificado com a lógica do sistema econômico, tende a canalizar seus investimentos segundo políticas excludentes, fazendo com que as camadas de menor poder aquisitivo pouco usufruam dos benefícios da urbanização. (PLAMBEL, 1983). Por fim, basta olhar o Dicionário para compreender como o conceito de favela é utilizado e definido pela sociedade brasileira: um local tosco e sem higiene. No Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda, o vocábulo favela está assim definido: Favela. S.f. Bras. 1. Conjunto de habitações populares toscamente construídas (por via de regra em morros) e desprovidas de recursos higiênicos. [Sin.: morro (RJ) e caixa-de-fósforos (SP).] 2. V. faveleiro. (HOLANDA, s/d., p. 618). É possível, também, um olhar para outras regiões do planeta para se discutir o conceito de favela. “Planeta Favela” (Planet of Slums), de Mike Davis, é um livro escrito por um americano sobre um tema que os brasileiros teimam em dizer que é genuinamente nacional, a Favela. A pesquisa mostra como as periferias em todo o mundo vêm crescendo em ritmo acelerado, a partir de estudos de crescimento demográfico das grandes metrópoles, indicando que, seja na América, ou na Ásia, a tendência é que o mundo se transforme em um grande bolsão de pobreza. Nesse livro, o autor deixa de lado o purismo conceitual, adotado por muitos
  • 39. 39 estudiosos das favelas brasileiras, e, seguindo as definições adotadas pela ONU2 , compara áreas em todo o mundo com características semelhantes, principalmente a alta densidade demográfica e concentração de populações economicamente carentes em bolsões de pobreza urbana. De acordo com ele, [...] os autores de The Challenge of Slums [...] conservam a definição clássica da favela, caracterizada por excesso de população, habitações pobres ou informais, acesso inadequado à água potável e condições sanitárias e insegurança da posse da moradia. Essa definição operacional, adotada oficialmente numa reunião da ONU em Nairóbi, em outubro de 2002, está ‘restrita às características físicas e legais do assentamento’ e evita as ‘dimensões sociais’, mais difíceis de medir, embora igualem-se, na maioria das circunstâncias, à marginalidade econômica e social. (DAVIS, 2006, p. 33). Retomando a discussão anterior, a importância do território como fator de identidade para o morador da favela é impactada pelas visões negativas que as diversas designações do espaço carregam. Se a favela é sempre definida como lugar da ausência, da subnormalidade e da irregularidade, como esse morador se vê ao habitar tal território? [...] Suas obras sempre foram interpretadas e tratadas como ilegais, irregulares, informais, subnormais e clandestinas, por não obedecerem aos padrões racionais de edificação, por terem se constituído sem o crivo do controle governamental e por não possuírem documentação escriturada de propriedade. Essa situação está longe de ser exclusiva das favelas, embora seja geralmente dirigida a elas. Segundo as informações da Secretaria de Programas Urbanos do Ministério das Cidades, pelo menos 60% dos domicílios urbanos no Brasil não estão devidamente regularizados. (SILVA, 2005, p. 93). Nos dias atuais, os moradores mais politizados e envolvidos em movimentos tendem a chamar seu território ou pelo nome de comunidade ou pelo nome de favela, assumindo a designação sem medo de negar a origem. Nessa perspectiva, concordam com a afirmação de que [...] a favela não é um problema, nem uma solução. A favela é uma das mais contundentes expressões das desigualdades que marcam a vida em sociedade em nosso país, em especial nas grandes e médias cidades brasileiras. É nesse plano, portanto, que as favelas devem ser tratadas, pois são territórios que colocam em questão o sentido mesmo da sociedade em que vivemos. SILVA, 2005, p. 91). 2 O documento citado é The Challenge of Slums [O desafio das favelas], relatório publicado em outubro de 2003 pelo Programa de Assentamentos Humanos das Nações Unidas (UN-Habitat).
  • 40. 40 Independentemente de suas possíveis diferenças conceituais, neste trabalho serão usadas as designações favela, vila e comunidade, indistintamente, referindo-se sempre aos territórios que são objeto desta dissertação e da produção artística de origem popular na cidade de Belo Horizonte. Buscamos compreender o uso que os próprios moradores fazem do termo comunidade, pensando a apropriação do espaço em suas mais variadas formas e sentidos, entendendo a formação dos vínculos de sociabilidade que aí vão se forjar. É fato que [...] o termo comunidade inundou o senso comum, mas a apropriação feita pelos moradores das favelas assume a tentativa de encontrar para si uma conotação diferenciada, na forma de um exercício de construção identitária. Eles se autodenominam “comunidade”, constroem sua identidade grupal a partir dessa idéia que lhes soa protetora e digna, numa estratégia defensiva às estigmatizações que o termo favela recebe. Contudo, o seu uso generalizado acaba por reforçar exatamente a idéia de carência a ser preenchida por assistencialismo e reforça o rótulo de exclusão. A conquista dessa auto-estima, alicerçada como está nos valores da classe dominante, acaba por reforçar a identidade negativa quando não há, de fato, uma elaboração daqueles valores e de seus próprios, quando não há transformação. (NOGUEIRA, 2004, p. 92). Finalizando, pode-se aproveitar um termo que é gíria nas comunidades e foi utilizado por Magnani como categoria analítica, qual seja, o “pedaço” (atualmente mais conhecido como “quebrada”). São dois os elementos básicos constitutivos do “pedaço”: um componente de ordem espacial, a que corresponde uma determinada rede de relações sociais. [...] Não basta, contudo, morar perto ou freqüentar com certa assiduidade esses lugares: para ser do “pedaço” é preciso estar situada numa particular rede de relações, que combina laços de parentesco, vizinhança, procedência. (MAGNANI, 2003, p. 137-8). Concordando com o autor, percebe-se que, de fato, são as relações focadas no local de moradia, no caso das áreas periféricas, que determinam, além da família, a maior parte da rede social dos indivíduos. Além disso, é no território que se constroem as relações mais duradouras e mais personalizadas, menos possíveis em ambientes de trabalho, lazer ou estudo, considerando a alta rotatividade que se registra nessas esferas. Vê-se, desta forma, que a periferia dos grandes centros urbanos não configura uma realidade contínua e indiferenciada. Ao contrário, está repartida em espaços territorial e socialmente definidos por meio de regras, marcas e acontecimentos que os tornam densos de significação, porque constitutivos de relações. Se se compara, por exemplo, este quadro com o que ocorre em bairros ocupados por outros segmentos sociais, pode-se avaliar a importância que o “pedaço” representa para as camadas de rendas
  • 41. 41 mais baixas. Diferentemente daqueles setores – onde na maioria das vezes os vínculos que ampliam a sociabilidade restrita da família nuclear não são os de vizinhança, mas o que se estabelecem a partir de relações profissionais –, uma população sujeita às oscilações do mercado de trabalho e a condições precárias de existência é mais dependente da rede formada por laços de parentesco, vizinhança e origem. (MAGNANI, 2003, p. 139-40).
  • 42. 42 4 UM BREVE RELATO SOBRE AS FAVELAS DE BELO HORIZONTE 4.1 Histórico e caracterização da ocupação Como apresentado no capítulo anterior, o surgimento das favelas está relacionado ao processo de metropolização e urbanização deflagrado a partir do final do século XIX, que, entretanto, foi mais fortemente acelerado no Brasil a partir de meados do século XX. A industrialização e o êxodo rural são alguns dos fatores componentes desse processo que, ligados à incapacidade de absorção da população migrante pelas malhas urbanas e às ineficientes políticas públicas tanto para as áreas urbanas quanto rurais, geraram um quadro grave de condições de habitabilidade nas cidades. No Rio de Janeiro, a questão sanitária foi um dos mais fortes argumentos tanto para a desarticulação dos cortiços quanto para as sucessivas tentativas de remoção das favelas ao longo do último século. Belo Horizonte não foge a esse cenário, vivenciando processos bastante semelhantes aos ocorridos no Rio de Janeiro. Entretanto, o que diferencia o surgimento das favelas na cidade é que aqui foi a própria hierarquização urbana que propiciou a formação das favelas, como se estivessem “programadas” desde a criação da nova Capital Estadual. Belo Horizonte foi planejada pela Comissão Construtora da Nova Capital, buscando expressar espacialmente uma idéia de modernidade – que representasse o centro político-administrativo de Minas Gerais. Para tanto, foram observadas as referências importadas: ‘conhecimento e proximidade com relação ao plano de Washington, à reforma realizada por Haussmann em Paris e, sobretudo, ao plano de La Plata, na Argentina’ (GOMES & LIMA, 1999, p. 121). Suas largas ruas, desenhadas em xadrez e cortadas diagonalmente por avenidas, são a expressão da vanguarda, ignorando as determinações topográficas e hídricas, não se prendendo às especificidades do lugar, a partir da prática de um urbanismo do alinhamento, da classificação e da ordem. (OSTOS, 2004, p. 26) De acordo com os relatos e estudos sobre a cidade planificada por Aarão Reis, a ocupação do espaço urbano da nova capital foi planejada e sua planta tinha setores predestinados a diversas atividades, bem como à moradia de funcionários públicos,
  • 43. 43 membros da elite e militares. No entanto, “os operários, tão necessários à construção da cidade, como ressaltado nos relatórios dos primeiros prefeitos, não têm espaço para morar." (AFONSO e AZEVEDO in POMPEMAYER, 1987, p. 111. Uma das principais conseqüências do plano segregador da cidade foi o inchaço de suas zonas suburbanas e áreas convencionalmente consideradas inadequadas à moradia humana. Em 1912 (15 anos depois da inauguração da capital), 60% da população localizava-se nas zonas suburbanas e rural, o que mostra a importância dessa tendência no processo de crescimento da cidade. [...] As exigências para construir e morar no centro, o alto preço dos terrenos e a precariedade da infra-estrutura nas zonas suburbanas e rural fez com que parte dos setores mais pobres da população tentasse resolver seu problema habitacional através de ocupações não controladas de áreas centrais, próximas a seus locais de trabalho. Desde o início da construção da cidade, conhecem-se relatos acerca do surgimento de favelas nas áreas centrais, bem como de iniciativas do Poder Público visando erradicá-las. As primeiras favelas de Belo Horizonte abrigavam principalmente os operários que vieram para construir a cidade e se concentravam em duas zonas: Córrego do Leitão (atual Barro Preto) e a ‘Favela’ ou Alto da Estação (hoje Santa Tereza). (AFONSO e AZEVEDO in POMPEMAYER, 1987, p. 112. Da mesma forma que o surgimento das favelas em Belo Horizonte não pode ser desvinculado do surgimento da cidade, também seu crescimento se fez de forma concomitante. Em 1955, o IBGE realizou levantamento nas favelas do município, cadastrando então 36.432 moradores. No ano de 1965, esse número havia mais que triplicado: 119.799 pessoas residiam em áreas consideradas faveladas. (AFONSO e AZEVEDO in POMPEMAYER, 1987). Havia uma contradição entre o modelo, os seus desdobramentos e as condições concretas, que o negavam. O modelo de cidade almejada, pelas frações das elites mineiras, orientada para um futuro dominado pela idéia de progresso, era contraposto inclusive pela localização das classes populares em áreas irregulares na própria zona urbana, ocupando cafuas, barracos e barracões, o que era tomado como a face visível do atraso, da ineficácia e da falta de beleza, contrariando o plano original, “concebido por Aarão Reis antes mesmo de ter sido definido o sítio onde ela (a capital) seria localizada” (GUIMARÃES, 1991, p. 45). O adensamento das áreas periféricas, como Lagoinha, Floresta, Santa Efigênia, Calafate e a subdivisão dos terrenos das ex-colônias agrícolas (zona rural), era tido como a expressão da desordem, contrariando a concepção de Aarão Reis, que previa o crescimento de Belo Horizonte do centro para a periferia. A ameaça ao modelo se configurou a partir do crescimento da periferia para o centro e da lógica de investimentos públicos no espaço, do centro para a periferia. Tal ameaça era a grande visibilidade do fosso entre o modelo original, concebido através de uma lógica formal, estatista, e a realidade vivida concretamente, dialetizada, qualificada, porém, como “desordem”, como ameaça. (OSTOS, 2004, p. 31-32.
  • 44. 44 Assim, pode-se afirmar que as favelas do município são, em sua maioria, de ocupação muito antiga. Uma ou duas gerações já nasceram nesses locais e continuam ocupando-os. No entanto, o surgimento de novas ocupações e o adensamento populacional nas áreas já existentes também tem sido levado a cabo pela migração de novas famílias antes residentes em outros bairros da própria capital, como se verá mais adiante. Um dos problemas mais sérios encontrado nas favelas está relacionado à sua localização, predominantemente em beiras de córregos e encostas extremamente íngremes e, muitas vezes, de alto grau de periculosidade para seus moradores. A disponibilidade dessas áreas para ocupação deriva justamente de sua qualidade inferior, uma vez que os melhores terrenos foram reservados e ocupados por populações com maior poder aquisitivo, seguindo a lógica do mercado imobiliário, restando à classe baixa ocupar as áreas consideradas insalubres ou inabitáveis. Pela via da análise espacial, percebe-se a existência de uma inclusão efetiva dos diversos grupos sociais na cidade, ainda que numa participação social perversa, em que o caso das favelas é exemplar. Afinal, se determinado grupo existe, necessariamente ocupa de alguma forma o espaço, se apropria dele – ainda que de um espaço relegado, mesmo que tal participação se dê pela desqualificação. O que confirma a idéia de que se trata de uma inclusão perversa é a observação das diferentes possibilidades de apropriação desse espaço e, ainda, o impacto subjetivo que tal apropriação implica. A inclusão perversa mostra-se, por exemplo, na apropriação de ruas e viadutos, por moradores e trabalhadores. Mostra-se também em sua outra face, no surgimento de fenômenos como os chamados “condomínios fechados” (um novo feudo?) que efetua a transformação da rua, espaço público, em privado; na desejada construção de uma segregação espontânea. A inclusão perversa, observada pela ótica do espaço, pode ser apontada ainda em diversos outros exemplos (como elevadores de serviço, shopping centers e a própria existência da favela, como se verá), mas pode, ainda, como é mais comum, ser apontada pela via da apropriação da mão-de-obra, desqualificada e aprisionada. (NOGUEIRA, 2004, p. 66). Dependendo do ponto de vista que se adota, o processo de favelização em Belo Horizonte pode ser percebido como mecanismo de exclusão social, ao mesmo tempo em que se revela como uma construção de novos valores pela classe baixa, onde se avalia o custo de se morar na favela e o benefício de não morar em áreas periféricas mais distantes e se "opta" pela comodidade em detrimento do status. Do ponto de vista econômico, a favela foi a possibilidade de inserção das classes populares no espaço e nos circuitos econômicos que se
  • 45. 45 estabelecem no e com o espaço urbano. A proximidade do centro histórico de Belo Horizonte e dos centros regionais, em muitos casos, propiciou uma redução no custo de transporte e aumentou os contatos para obtenção de trabalho, viabilizando a permanência nos lugares da cidade “escolhidos” – compreendidos como local de oportunidades e maior acesso aos benefícios sociais. (OSTOS, 2004, p. 81-2). A hipótese é que essa população não aceita ser empurrada para a periferia e acaba construindo uma inclusão na malha urbana a seu modo e dentro de suas condições. Assim, o que se vê é a convivência espacial das favelas com bairros de classe média e alta, configurando um contraste não apenas urbanístico, mas, principalmente, social e desbancando o conceito espacial de periferia para tratar esses aglomerados humanos. Esse cenário, tão presente na configuração urbana do município de Belo Horizonte, coloca a premência de que as favelas sejam encaradas não mais como situação transitória de moradia, mas antes como tendência constante no crescimento dos núcleos urbanos, em especial no Terceiro Mundo. Em decorrência dessa constatação, faz-se necessário cada vez mais pensar o fenômeno favela não como aberração a ser extirpada da cidade, mas antes como uma parte da malha urbana que, como outra qualquer, deve ser consolidada e beneficiada mediante o atendimento de infra-estrutura básica e da articulação com o entorno da cidade. Nesse sentido, pode-se perceber uma evolução das políticas públicas específicas para áreas faveladas, que seguem tendências semelhantes em todo o País, já que condicionadas, na maioria das vezes, pela orientação política nacional e pela representação coletiva e imagem da favela construída e disseminada na sociedade, como antes discutido. No caso de Belo Horizonte, desde a criação da capital até os dias de hoje, ocorreram mudanças significativas no modo como o Poder Público vem encarando as favelas e as soluções para o problema habitacional. A fim de possibilitar que se perceba a dimensão em que ocorreram as citadas
  • 46. 46 mudanças, far-se-á um panorama geral das políticas públicas em favelas desde a criação de Belo Horizonte. 3 A partir da fundação da cidade, em 1897, até início da década de 1980, ou seja, mais de oitenta anos depois, a política oficial para favelas era a do desfavelamento. É claro que ao longo desse período houve modificações nas diversas políticas implantadas, mas todas elas calcadas na mesma filosofia: a de que a cidade deveria ser "limpa" e os "invasores" enviados para fora do perímetro urbano. Esse pensamento não era exclusivo da capital mineira, como já relatado, apresentando similaridades com os processos em desenvolvimento no Rio de Janeiro e o tratamento dispensado pelo governo às favelas cariocas. Desde a criação da capital até o Estado Novo, o favelamento e sua erradicação eram vistos como problema policial. Os moradores das áreas faveladas mais antigas da capital narram diversos episódios de confrontos com a polícia e o eterno medo de serem desalojados com o uso da força, sem direitos ou destino certo, muitas vezes, inclusive, em “batidas”-surpresa, durante a noite. Em conseqüência, não havia também investimento, por parte dos moradores, em suas habitações, com medo do prejuízo financeiro com as demolições, o que fez com que só tardiamente algumas áreas se consolidassem. Em 1955, foi criado o DBP – Departamento Municipal de Habitação e Bairros Populares, cuja política era ainda o desfavelamento, mas com o oferecimento de outra moradia à família removida. Nessa época, já se registrava a formação e organização de entidades comunitárias para defesa dos interesses dos moradores das favelas. Entretanto, da mesma forma que o ocorrido no caso carioca, as famílias continuavam a ser “empurradas” para conjuntos habitacionais populares longe do centro da cidade, com todos os impactos que isso significava nos sistemas de parentesco, vizinhança e ajuda mútua, bem como na empregabilidade da população removida. Após o golpe militar de 1964, a repressão aos movimentos favelados emergentes foi recrudescida, voltando o desfavelamento a ser encarado como problema de polícia. 3 Para uma visão completa da questão, até a década de 1980, ver AFONSO E AZEVEDO, 1987.
  • 47. 47 Nesse período, em Belo Horizonte, a prefeitura operava como engrenagem auxiliar para os interesses nacionais. Se é certo que as condições gerais requeridas pela industrialização eram asseguradas em muitos aspectos (como a atualização da infra-estrutura do espaço, por exemplo) pelos investimentos maciços, efetuados pelo Estado em nível federal e estadual, à prefeitura cabia um papel complementar, que se explicitava, sobretudo, no âmbito da dominação política: desmobilização das massas, extinção dos partidos políticos e o tratamento das favelas como problema policial, esta última, com clara ajuda do governo municipal. (OSTOS, 2004, p. 44). A história do movimento popular nas favelas de Belo Horizonte é assunto vasto e não será tratado neste trabalho. Entretanto, faz-se necessário citar alguns nomes, por sua importância na organização e mobilização dos moradores, consolidação e garantia da manutenção da posse da terra e conquista de melhorias para as favelas da cidade. Fundamentais nesse processo foram a União dos Trabalhadores da Periferia (UTP), fundada por Chico Nascimento, além da Pastoral de Favelas, da Igreja Católica, por meio de representantes como Padre Piggi, Padre Mauro e Padre Mário, cada qual com sua contribuição e apoio aos moradores das favelas da capital. A União dos Trabalhadores da Periferia objetivava congregar associações de favelados e fornecer um plantão jurídico para buscar indenizações justas para aqueles que fossem desalojados para realização de obras públicas. Em 1981, estavam filiadas cerca de 40 associações comunitárias de favelas. (SOMARRIBA, 1984, p. 51). Na década de 1960, as organizações de moradores foram perseguidas e extintas pelo Governo Militar, incluindo-se as que representavam os interesses das vilas e favelas. [Em Belo Horizonte], logo após a mudança de regime, em março/abril de 1964, a Federação de Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte é colocada sob intervenção federal, que dura até agosto, quando se decreta sua extinção por ter sido, após inquérito policial-militar, considerada subversiva. Durante os meses de intervenção, fizeram ‘batidas’ nas sedes das UDCs em busca de ‘material subversivo’. Vários líderes do movimento de favelados foram intimados a depor no Departamento de Vigilância Social (DVS) e alguns foram processados e cumpriram penas de reclusão. (SOMARRIBA, 1984, p. 46). Em dezembro de 1965, criou-se um órgão de assessoria ao DBP, os chamados "Serviços Municipais para o Desfavelamento das Áreas Urbanas e Suburbanas". "Este, nos três primeiros meses de existência, destruiu número muito maior de
  • 48. 48 barracões do que o DBP o fizera durante seus dez anos de funcionamento anterior." (AFONSO e AZEVEDO in POMPEMAYER, 1987, p. 119). No ano de 1971 foi criada a Coordenação de Habitação de Interesse Social de Belo Horizonte (CHISBEL). Continuando na linha das políticas anteriores, a CHISBEL substituiu a contrapartida utilizada pelo DBP (uma nova casa em troca da derrubada dos barracos) pelo pagamento de indenizações em espécie, que, na maioria das vezes, era insuficiente para a compra de outra moradia, a não ser em outra favela da capital. A CHISBEL planejava o total desfavelamento de Belo Horizonte, através de um convênio com o BNH e a Companhia Habitacional do Estado de Minas Gerais (COHAB-MG), para construção de moradias. Elegia o desfavelamento como a solução para os “problemas sociais” de Belo Horizonte e acreditava na possibilidade de acabar com as favelas, conforme intenção expressa em relatórios: “A CHISBEL estima poder, num plano a se desenvolver até 1980, inicialmente estagnar e, a seguir, reduzir as favelas existentes em Belo Horizonte”. Essa intenção não foi alcançada concretamente, sua ação ficou restrita aos desfavelamentos para realização de obras públicas programadas, agindo como sustentáculo dos órgãos executores. Nos relatórios (discurso) e na prática, a partir da década de oitenta, é visível a mudança de orientação da CHISBEL: “a enorme migração e a diminuição do poder aquisitivo de um modo geral fizeram com que a população favelada crescesse de uma forma assustadora”, o que impõe uma mudança visando atingir um objetivo mais concreto – “desfavelar somente para urbanizar”. O entendimento do termo “urbanizar”, na redação realizada à época, é o da liberação da área para a execução da obra programada, não estando relacionado à provisão de infra-estrutura para a favela e, sim, à sua eliminação, para dar passagem às obras públicas, constantes no “Plano de Obras” da administração municipal. Portanto, “urbanizar” era o mesmo que “remover” favelas, “liberar” a área, quando não “limpá-la”. (OSTOS, 2004, p. 47). É a década de 1980 que vai trazer um novo panorama e uma nova visão em relação ao tratamento dispensado às favelas da capital mineira. Quais foram os fatores que possibilitaram o reconhecimento das favelas, no discurso oficial do Estado? Os movimentos populares, muitos de base local, foram se reorganizando e reivindicando sua participação no sistema político que buscavam recriar, a partir da sensibilização quanto às condições de vida das classes populares. Para isso, no caso de BH, contribuíram as situações agravadas pelas enchentes de 1979 e 1982, com inúmeros desabrigados e os protestos: quebra-quebras de ônibus em Venda Nova (distrito de Belo Horizonte) e na região da Cidade Industrial (SOMARRIBA, 1984, p.50); a invasão da prefeitura em 1981, para que as favelas fossem “reconhecidas no mapa”, ou seja, fossem reconhecidas como lugares nos quais a atuação do Estado deveria se concretizar, no sentido da garantia dos direitos de cidadania; reivindicações, solicitando ajuda, para reconstrução de abrigos para as famílias removidas pela CHISBEL. (OSTOS, 2004, p. 56).
  • 49. 49 Em 1981, o Governo do Estado, em parceria com a entidade alemã GTZ, implantou o Programa de Desenvolvimento de Comunidades (PRODECOM), dentro da Secretaria de Estado do Planejamento e Coordenação Geral (SEPLAN/MG). Pioneiro em uma nova visão sobre as favelas, o Programa passou a atuar em Belo Horizonte de maneira estrutural, no sentido de urbanizar favelas e bairros periféricos, promover o acesso ao título de propriedade, dotar as comunidades de equipamentos públicos e fortalecer a participação e os movimentos comunitários locais. Para tanto, focou sua atuação nos principais aglomerados da cidade, e foi o responsável pela instalação, em regime de mutirão, de grande parte da infra- estrutura que ainda hoje existe nesses locais. A novidade do PRODECOM foi, em primeira medida, não considerar o desfavelamento e o afastamento das classes populares para áreas distantes da cidade como solução, isto é, considerou a ocupação desses espaços como uma conquista de seus moradores e como um direito a ser garantido. (OSTOS, 2004, p. 61). As áreas de atuação do Programa foram o Aglomerado Santa Lúcia e o Aglomerado da Serra, na Regional Centro-Sul; a Vila Senhor dos Passos e a Pedreira Prado Lopes, na Regional Noroeste; as vilas Vista Alegre, Ventosa e Cabana Pai Tomás e o Aglomerado Morro das Pedras, na Regional Oeste; e a Vila Cemig, na Regional Barreiro; entre outras áreas. Se, para a CHISBEL, urbanizar foi remover famílias, para dar lugar à obra programada, para o PRODECOM, urbanizar foi manter famílias, melhorar as condições de infra-estrutura, enfim, conferir melhores condições materiais ao “lugar” das classes populares urbanas. Esses programas atuavam no mesmo período, com práticas diferenciadas, não existindo, em Belo Horizonte, uma superação completa da prática de desfavelamento, principalmente daquela prática que, além de desfavelar, não se responsabilizava pelo destino de seus moradores. (OSTOS, 2004, p. 58). Conviventes na mesma época, as duas políticas públicas divergiam em sua essência, conceito e prática. Uma, praticada pela administração municipal, outra, proposta pelo Governo do Estado, seu choque de concepções foi um marco para a proposição de uma nova política consensual para o tratamento das áreas faveladas da capital. “Em Belo Horizonte, a “era da urbanização” não excluiu a “era do desfavelamento”, pelo contrário: foi no auge da atuação do PRODECOM (de 1979 a