Evangelista,p. a interpretação fenomenológica de heidegger da primeira epístola aos tessalonicenses a antecipação da parusia
1. FENÔ∑GRUPOS
Like 12
Home
Quem Somos
Formação
Clínica
Cursos
Pesquisa Acadêmica
Artigos
Profissionais Formados
A interpretação fenomenológica de Heidegger da Primeira
Epístola aos Tessalonicenses: a antecipação da parusia
Publicado por: Paulo Evangelista | 14/12/2009
Resumo:
No curso "Introdução à fenomenologia da religião" de 1920-21, Heidegger interpreta as epístolas de
São Paulo. Ele busca uma linguagem capaz de tematizar a experiência pré-teórica da existência humana. Na
interpretação das epístolas, sua tarefa é revelar a ‘experiência de vida fáctica’ cristã, acessível apenas à
fenomenologia. Só a fenomenologia impede a tendência cadente na significância da experiência de vida
fáctica quotidiana. Esta expressão refere-se à existência humana no seu modo de ser mais originário, anterior
ao acesso teórico do mundo.
Na epístola aos Tessalonicenses I, Heidegger revela o modo como Paulo aguarda a nova aparição
do já aparecido Messias. Trata-se da antecipação angustiada da incalculável parusia. Essa antecipação é o
modo como Paulo tem a si mesmo. Nela, o tempo não é seqüência objetiva. Por isso, não pode ser
calculado como queriam os Tessalonicenses. Ademais, determinar a data da parusia é inscrevê-la no tempo
mundano, o que pacifica a antecipação, transformando-a em espera. Com isso, a antecipação angustiada da
2. parusia, que é a temporalidade da experiência de vida fáctica do cristão primitivo testemunhada nas epístolas
de Paulo, esmorece.
Para Heidegger, só a fenomenologia é capaz de revelar a antecipação da parusia, pois a tendência
da experiência de vida fáctica, da qual a relação teórica é derivada, é de estar sempre ligada à significância
do que é encontrado no mundo. A parusia é o acontecimento do fim dos tempos, de modo que não se pode
se relacionar com ela do mesmo modo que se relaciona com os objetos. A relação com a parusia não é,
portanto, uma experiência cognitiva, teórica.
Num exercício fenomenológico, Heidegger revela como a proclamação de Paulo aparece como
fenômeno central de sua vida cristã. A proclamação é o modo como ele se relaciona com a parusia,
resguardando seu caráter não-objetivo. Com isso, ao proclamar para os Tessanolicenses, Paulo está
incitando-os a estarem sóbrios e despertos para a parusia, a fim de que possam a reconhecer quando
aparecer. É o modo cristão de reverter a tendência objetificante da experiência de vida fáctica, que
apresenta um paralelo com a fenomenologia enquanto antídoto para a tendência de decair na significância da
experiência de vida fáctica.
Palavras-chave: Heidegger / Fenomenologia da Religião / Epístolas paulinas
A importância da teologia no desenvolvimento do pensamento heideggeriano, principalmente até a
elaboração de Ser e Tempo, é notória. Foi por conta dos estudos de Escolástica que ele entrou em contato
com a obra de Brentano e, posteriormente, de Husserl. Com este, teve a oportunidade de trabalhar no
começo da década de 1920. Seus estudos já o direcionavam para a filosofia, embora ainda se pensasse que
seu pensamento era comprometido religiosamente. Em uma carta a Natorp em 1916, Husserl afirma que não
possuir uma opinião adequada a respeito de Heidegger, mas que a sua “filiação religiosa (konfessioneller
Hinsicht)” o tornara um candidato adequado para o posto de professor de filosofia católica em Freiburg.
Natorp procurava alguém para uma vaga na filosofia medieval. Heidegger não viria a preencher essa vaga.
(Sheehan, 1979) Após a primeira guerra, Heidegger aproxima-se de Husserl, que, por conta das origens
intelectuais de seu novo assistente, prepara-o para desenvolver a fenomenologia da religião, antes trabalhada
por Adolf Reinach, morto na guerra. Heidegger assume a tarefa, mas as divergências com o mestre logo
aparecem.
A contribuição de Heidegger à fenomenologia da religião é breve. Foram dois cursos entre 1920 e
1921 e um esboço em 1919 sobre os fundamentos filosóficos da mística medieval, nunca lecionado. Nesse
esboço, conhecemos algumas das referências teológicas de Heidegger, já repensadas a partir da filosofia:
Schleiermacher, Dilthey, Lutero, Otto, Mestre Eckhart, Troeltsch, James e a mística medieval.
No semestre de inverno de 1920-21, Heidegger leciona um curso intitulado “Introdução à
Fenomenologia da Religião” no qual interpreta as epístolas de São Paulo aos gálatas e aos tessalonicenses.
Mas seu objetivo principal é desenvolver seu modo de pensar a fenomenologia, já diferente de Husserl. A
fenomenologia é para Heidegger o acesso ao mais originário. É o único meio de resguardar a filosofia de sua
confusão com as ciências. Heidegger pensa esse fenômeno mais originário como aquilo que origina a
filosofia, que é a experiência de vida fáctica.
A vida fáctica é a vida de cada qual. O adjetivo ‘fáctica’ refere-se à sua irrepetibilidade e seu aqui-
3. agora, à sua “vivacidade imediata” (unmittelbare Lebendigkeit) (Heidegger, 1995) incompreensíveis ao
pensamento representacional fundado na temporalidade da presença. A vida fáctica é histórica (historisch).
É dela que a filosofia surge como possibilidade. Quando se pede a alguém que conte de um dia de sua vida,
a narrativa não é teórica. Não há um eu, um ego, uma consciência que se relaciona com objetos. A
experiência de vida fáctica, que Heidegger aponta como ‘objeto’ da fenomenologia, é o modo como cada
qual está envolvido com seu mundo. O ‘mundo’ é um fenômeno que pode ser articulado formalmente em
três âmbitos: mundo ao redor (Umwelt), mundo compartilhado (Mitwelt) e mundo do si mesmo ou próprio
(Selbstwelt). Por mais que se possa tomar para consideração cada um desses mundos, os demais estão
sempre co-presentes.
Já o termo ‘experiência’ (Erfahrung) designa tanto a atividade de experimentar quanto aquilo que é
experimentado na experiência. É assim que a correlação noése-noema aparece na fenomenologia de
Heidegger do começo da década de 1920. A experiência de vida fáctica não é uma atividade cognitiva,
teórica. Essa é uma de suas possibilidades, mas não a mais originária. Pelo contrário, a vida fáctica vive
absorvida pela significância do mundo em seus afazeres, de modo que nada parece lhe escapar (auto-
suficiencia), sendo indiferente ao modos como reage ao que lhe vem ao encontro (indiferença). A
fenomenologia é o método de acesso a essa experiência pré-teórica, inacessível ao pensamento teórico. O
paradoxo que surge é o de como significar essa experiência pré-teórica se a linguagem é conceitual, teórica.
Heidegger resolve esse problema caracterizando os fenômenos a partir de três direções de sentidos
concomitantes. Eles são articuláveis em: o sentido-de-conteúdo (Gehaltssinn), que é ‘o que’ é
experimentado, o sentido-de-relação (Bezugssinn), que é o ‘modo’ como o conteúdo é experimentado, e o
sentido-de-execução (Vollzugssinn), que se refere ao ‘como’ do sentido-de-relação e tem um caráter
temporal. ‘Fenômeno’ é essa totalidade tríplice de sentidos. Na vida fáctica, as mudanças são todas
percebidas a partir dos conteúdos experimentados, mas nunca pelo modo. O sentido-de-execução lhe é
inacessível. Também a filosofia, compreendida como comportamento cognitivo, é incapaz de acessar o
sentido-de-execução. O comportamento teórico é um modo de dirigir-se ao que vem ao encontro que fixa
as conexões entre as coisas descobertas em lógicas objetivas, regiões ônticas. Assim, experimentam-se
objetos. Aquele que experimenta passa a ser um objeto, a saber, o ‘sujeito’, e pode ser investigado do
mesmo modo como se investigam objetos. Mas encontrar algo como objeto já é uma execução diferente do
confrontar-se com fáctico, mais originário, que encontra o mundo na sua significância. A fenomenologia é
então o modo de reverter a tendência da vida fáctica a compreender-se a partir dos conteúdos e de
prender-se no sentido-de-relação objetificante da teoria. Só assim a experiência de vida fáctica pode ser
revelada a partir de si mesma, livre da concepção prévia objetificante que lhe interdita o acesso. Só assim
pode ser acessada como vida fáctica, e não como ‘sujeito’, complexo de vivências, atos psíquicos ou
consciência.
O sentido-de-execução teórico também compromete o sentido do conceito de ‘histórico’. Este é
compreendido como determinação predicativa dos objetos, significando “vir a ser” (Werden), “surgir”
(Enstehen) ou “transcorrer no tempo” (in der Zeit Verlaufen). (Heidegger, 1995, p.32) Esses significados
são derivados da concepção prévia objetiva, que Heidegger denomina “histórico-objetivo”. Não é assim que
o histórico aparece na vida fáctica. Com a fenomenologia, esse sentido é afastado para que o histórico-
executivo possa aparecer. A vida fáctica encontra o ‘histórico’ como diversidade de formas culturais, o que
a preenche, mas também como peso que inibe a criação e tira o entusiasmo pelo absoluto. Assim, o
4. ‘histórico’ é desassossegante para a vida fáctica, que luta contra ele em busca de segurança. Heidegger
encontra na experiência de vida fáctica do cristão primitivo, testemunhada nas epístolas de São Paulo, uma
outra temporalidade. A vida fáctica cristã vive a expectativa do fim dos tempos e a acentuação do
desassossego é sua condição. Assim, a experiência de vida fáctica cristã pode revelar a temporalidade
humana, que a luta contra o histórico afasta e a atitude teórica oculta. Essa temporalidade é kairológica, isto
é, a situação presente é a atualização do tornar-se o que já se é. Para o cristão, é a atualização do haver-se
tornado cristão na espera angustiada da nova vinda do Messias. Essa temporalidade difere da histórico-
objetiva seqüência uniforme passado-presente-futuro. Para acessá-la, deve-se conhecer a situação
(Situation) de Paulo.
Como acessar a experiência de vida fáctica de Paulo testemunhada nas suas epístolas? Para isso, é
necessário conhecer a situação em que o apóstolo escreve. Situação é um conceito fenomenológico que
assinala a passagem do sentido-de-execução histórico-objetivo para o histórico-executivo, desviando, assim,
da metafísica da presença. Para conhecer a situação, não basta uma descrição das ocorrências que
circundam a escrita da carta. É necessário tornar-se co-autor da carta. Parte-se da descrição histórico-
objetiva, isto é, da data da escrita, dos motivos, dos destinatários da carta de Paulo, mas supera-se esse
sentido-de-execução e “executamos com ele mesmo a redação da carta, nós a ditamos.” (Heidegger, 1995,
p.87)
Um primeiro passo na aproximação da situação de Paulo foi dado na interpretação da epístola aos
Gálatas, na qual é narrada sua conversão. Desviando-se das interpretações tradicionais dessa epístola,
Heidegger aponta a proclamação (Verkündigung) como fenômeno central. A epístola é proclamação. O
estilo epistolar, diz Heidegger, “é expressão do escritor e de sua situação” (Heidegger, 1995, p.82). A
proclamação revela o estado de luta (Kampfe) de Paulo. Ele não luta contra algo externo a ele, embora sua
escrita faça referência aos judeus e aos judeus-cristãos. É a sua vida que está tomada pelo conflito entre a fé
(Glaube) cristã e a lei (Gesetz) mosaica. (Heidegger, 1995, p.68) Mais especificamente, a luta diz respeito
ao modo (sentido-de-relação) como cada qual se comporta em relação à fé e à lei. Nessa luta concentra-se
a tensão própria da vida de Paulo, que a interpretação da epístola aos Tessalonicenses descreve melhor.
Para se tornar co-autor da epístola, deve-se ter como pano de fundo as perguntas: como Paulo se
relaciona com seus destinatários? Como os experimenta, isto é, como é seu mundo-compartilhado (Mitwelt)
na escrita da epístola? Para conhecer esses eventos que circundam a situação, é necessário recorrer
primeiramente à narrativa histórico-objetiva. Heidegger indica algumas passagens das epístolas que oferecem
essa descrição (1Ts 3,2 ; 1Ts 3,6 ; At 17,1-16 ; At 18,5). No livro Atos dos Apóstolos, é narrada a
passagem de Paulo por Tessalônica, cidade portuária da Macedônia. Lá ele pregou aos tessalonicenses que
Jesus é o Messias, o Cristo, e muitos se juntaram a ele. (At 17,4) Foram então perseguidos pelos judeus da
cidade, sendo obrigados a fugir durante a noite para a cidade de Beréia, onde foram novamente encontrados
e obrigados a fugir. Paulo seguiu para Atenas, onde o Evangelho foi recebido por poucos. De lá, seguiu para
Corinto, de onde escreve a carta aos Tessalonicenses no ano de 53 d.C. Essa epístola é o documento mais
antigo do Novo Testamento.
Como Paulo tem os tessalonicenses? Como é sua relação com os poucos (τινες) que se tornaram
cristãos? A união (προσεκληρώθησαν) que os liga revela que na relação com eles e naquilo que eles
experimentam, Paulo experimenta a si mesmo. Isto é, aquilo que é a experiência de vida fáctica dos
5. tessalonicenses é a experiência de vida fáctica de Paulo. O que ele atribui a eles refere-se também a si
próprio. Ele está co-incluído na congregação da Tessalônica.
O que é co-experienciado por Paulo? Heidegger apresenta duas determinações. Fundamenta sua
interpretação no uso repetido das palavras “haver-se tornado” (ou “tornastes”, γενέσθαι) e “sabeis”
(οἴδατε), que deve ser entendida como uma “tendência que não deixa de aflorar como motivo” (Heidegger,
1995, p.93). A repetição como motivo e tendência é diferente da recorrência de eventos naturais. Assim,
Paulo experimenta o “haver-se tornado” e o “saber haver-se tornado” dos tessalonicenses.
O haver-se tornado deles é também haver-se tornado de Paulo. Sua entrada na vida dos
tessalonicenses inaugura o haver-se tornado deles e os une. Ele é afetado pelo modo como eles
experimentam seu haver-se tornado. O modo dessa entrada é caracterizado por Paulo como tendo sido sem
“fazer valer nossa autoridade”, “cheios de bondade”, “como uma mãe que acaricia os filhinhos”. (1Ts 2,7) A
partir disso, Paulo e os tessalonicenses estão unidos como cristãos, de maneira a sofrerem os mesmos males.
Escreve Paulo: “Irmãos, vós fostes imitadores das Igrejas de Deus que estão na Judéia, em Cristo Jesus;
pois que da parte de vossos conterrâneos tivestes de sofrer o mesmo que aquelas Igrejas sofreram da parte
dos judeus.” (1Ts 2,14-15)
O saber (οἴδατε) haver-se tornado (γενέσθαι) não é um saber teórico, mas remete os
tessalonicenses a si mesmos a partir dessa experiência. Só é compreensível a partir da experiência de vida
fáctica cristã. A conceitualização da filosofia é incapaz de compreender essa experiência, pois interpretaria o
saber como teoria ou informação. A explicação do haver-se tornado é difícil, afirma Heidegger, pois “não é
um acontecimento qualquer na vida, mas, sim, é co-experimentado continuamente de modo que seu ser no
agora presente é seu haver-se tornado.” (Heidegger, 1995, p.94) Ser cristão é constantemente atualizar seu
haver-se tornado. Isso é o núcleo da experiência de vida fáctica cristã. A partir da concepção prévia da
ontologia da presença, essa expressão seria entendida como um evento que separa um antes e um depois.
Mas nunca se completa o ser cristão.
Na carta, o tornar-se é descrito como acolhimento da Palavra com alegria e com tribulações: “Vós
vos tornastes imitadores nossos e do nosso Senhor, acolhendo a Palavra com a alegria do Espírito Santo,
apesar das numerosas tribulações” (1Ts 1,6). A alegria procedente do Espírito Santo, explica Heidegger, é
uma graça não motivada pela própria existência. (Heidegger, 1995, p.94) Quem acolhe a Palavra entra em
conexão efetiva com Deus, aceitando uma mudança na vida fáctica caracterizada pela tribulação e alegria. A
Palavra é ouvida e acolhida, operando uma transformação em toda a vida fáctica. É uma ruptura violenta
com a vida passada, como aquela experimentada por Paulo na sua conversão. Não se trata, assim, de uma
palavra informativa. (Hebeche, p.108) A conexão com Deus efetivada no acolhimento da Palavra é
apresentada como um “giro absoluto” (“absolute Umwendung”) (Heidegger, 1995, p.94) em direção a
Deus, apartando-se dos ídolos. É uma mudança no ‘como’ das relações consigo mesmo, com os outros e
com o mundo, que se manifesta no comportamento de abandonar a idolatria. (1Ts 9,10) O sentido-de-
execução da vida fáctica cristã determina-se por servir e esperar, caracterizados pela alegria e pela
atribulação.
A investigação exige um esclarecimento sobre a natureza de Deus para que se pudesse entender o
sentido do giro absoluto. A infiltração da ontologia grega desde muito cedo na experiência de vida fáctica
cristã levou a que Deus fosse pensado como objeto de especulação. Isso é uma “diminuição no
6. entendimento autêntico” (Heidegger, 1995, p.97) de Deus. Deus só é compreensível a partir da
temporalidade da espera, que não é espera de um evento objetivo.
Ser cristão é atualizar constantemente o haver-se tornado em tribulação e alegria. É assumir um
sofrimento constante, acompanhado de alegria, servindo a Deus e esperando a parusia. Servir e esperar são
as direções básicas que determinam o sentido da vida cristã. (Heidegger, 1995, p.97) A espera é esperança
e expectativa da parusia, que situa o crente na preocupação do anunciado fim dos tempos. Para Paulo, o
sofrimento é tão intenso que ele mal consegue suportar. Heidegger aponta esse sofrimento insuportável na
repetição de “não podendo mais suportar” (1 Ts 3,1 ; 1Ts 3,5) em duas passagens que relatam o motivo do
envio de Timóteo à congregação tessalônica, enquanto ele seguia para Atenas e depois para Corinto. É o
sofrimento próprio da vida de apóstolo, que espera a parusia, a nova chegada do Messias. Em síntese:
São Paulo vive uma tribulação peculiar que lhe é própria enquanto apóstolo, na expectativa
da chegada do Senhor. Essa tribulação expressa a situação autêntica de são Paulo. A partir
dela, todo momento de sua vida está determinado; ele está sob uma aflição apesar da alegria
como apóstolo. (Heidegger, 1995, p.98)
O modo como Paulo tem os tessalonicenses é tal que sua vida depende de que eles se mantenham
firmes na fé, na expectativa da parusia. Heidegger mostra isso na passagem: “Sim, sois vós a nossa glória e a
alegria nossa.” (1 Ts 2,20) No grego de Paulo, glória é dçxa, palavra que na filosofia grega significa opinião.
O sentido da glória de Paulo só é compreensível a partir do contexto de sua vida. Sua glória é que os
cristãos permaneçam crentes, atualizando a conexão com Deus na expectativa da parusia. A notícia que
Timóteo traz a Paulo é de que permanecem crendo, apesar de algumas dúvidas, e isso faz com que Paulo
sinta-se reanimado. (1Ts 3,8) A fé dos tessalonicenses é a fé de Paulo; que os convertidos permaneçam
crentes é o que atualiza sua própria conversão. Ser cristão é sustentar a tensão entre permanecer crendo e
deixar a fé esmorecer. Por isso, a fé dos tessalonicenses é ânimo para Paulo; a perda da crença deles seria
esmorecimento de sua fé. Ser crente é esperar a parusia, acontecimento certo com data incerta. Ser cristão,
portanto, nunca se define ou encerra; é condição incompleta. A fé pode se esvair a qualquer momento. Paulo
assume sua incompletude, que só se conclui no fim dos tempos da segunda vinda do Messias.
Heidegger ganha mais proximidade do mundo do si mesmo de Paulo, que determina o sentido da
escrita da epístola. Sua glória não advém de suas obras. São sua fraqueza e sua tribulação que lhe importam,
como escreve na epístola aos coríntios (2Co 12,2-10). Além disso, Paulo tem uma “aguilhão na carne” (2Co
12,7). Para Paulo, a fraqueza, a tribulação e o aguilhão na carne são motivos de seu não se glorificar.
Quando ele está fraco, quando suporta as tribulações, é que está próximo de Deus. Além disso, Satanás
(Σατανᾶς), que desvia da fé, exacerba sua tribulação. Satanás é o inimigo de Deus, aquele que luta contra o
que Deus quer. Heidegger cuida para que “Satanás” seja interpretado a partir da vida de Paulo apenas, e
não a partir dos significados já interpretados desse termo. No Livro de Jó, do Antigo Testamento e que
Paulo conhecia, Satã aparece como aquele que testa a fé do homem em Deus. Paulo tem “Satanás”, assim,
como aquilo que “não pára de pôr obstáculos na obra de são Paulo ao aumentar sua tribulação ou a
preocupação apostólica absoluta de sua vocação neste final dos tempos.” (Heidegger, 1995, p.99) Trata-se
da tensão constante referente ao esmorecimento da fé.
Paulo escreve aos tessalonicenses em resposta a suas dúvidas. Eles se preocupam com os mortos,
que não testemunharão a parusia. Serão eles desfavorecidos? E querem saber quando a parusia ocorrerá. A
7. resposta para a primeira pergunta é dada em 1Ts 4:13-18. Os mortos serão ressuscitados, assim como
Jesus foi. Os vivos, em seguida, serão também arrebatados aos céus.
A resposta sobre a data da parusia (1Ts 5,1-2) não é dada com significado compreensível
mundanamente. Paulo não responde que acontecerá neste ou naquele dia. Ao contrário, conclama os
tessalonicenses para si mesmos. Sua resposta é: “1 No tocante ao tempo e ao prazo, meus irmãos, é
escusado escrever-vos, 2 porque vós sabeis, perfeitamente, que o Dia do Senhor virá como ladrão noturno.”
(1Ts 5,1-2) Novamente aparece o “sabeis” (οἴδατε), cujo significado não é o de um conhecimento
informativo. É o saber da parusia, que determina o haver-se tornado cristão. A explicação só é possível a
partir do sentido-de-execução, que é a direção do como da relação com a parusia, de caráter temporal. A
interpretação histórico-objetiva compreenderia que “o comportamento básico em relação à parusia é uma
expectativa e que a esperança cristã (ἐλπὶς) é um caso dela” (Heidegger, 1995, p.102), o que está errado,
pois a parusia não é um evento no futuro, ainda não acontecido. Quando Paulo fala do tempo e do prazo da
parusia, de seu χρόνων e seu καιρῶν, não é de um tempo objetivo e mensurável que está falando. A
determinação do quando em termos objetivos oferece uma segurança que não corresponde à antecipação da
parusia, que é o cerne da experiência de vida fáctica cristã.
A resposta de Paulo convoca os tessalonicenses a olharem para si mesmos, para como
experimentam a espera da parusia. São dois possíveis modos de relação com a parusia. Não se trata de
tipos distintos de vida, mas sim de sentidos-de-execução, que acabam por determinar os sentidos-de-
relação com o que vem ao encontro do mundo, com os outros e consigo mesmo. Nas palavras de Paulo, há
os que “andam nas trevas”, são da “noite”, dormem e se embriagam. Estes não reconhecerão o Messias no
momento de sua chegada e “lhes sobrevirá repentina destruição, como as dores sobre a mulher grávida; e
não poderão escapar.” (1Ts 5,3) Esses homens são os que dizem “paz e segurança” (1Ts 5,3). Não há paz
e segurança possíveis diante da possibilidade iminente do fim do mundo. Mas essas pessoas encontram
estabilidade, sossego e segurança nos seus afazeres quotidianos. A partir da fenomenologia, a expressão
“paz e segurança” mostra-se indicativa do sentido-de-relação com o que lhes vem ao encontro na vida
fáctica. Explica Heidegger que neste caso: “O que me vem ao encontro em meu comportamento mundano
não traz em si nenhum motivo para o desassossego.” (Heidegger, 1995, p.105) É um modo possível de ter-
se a si mesmo, que para Heidegger é “haver-se esquecidos de si mesmos, porque não se têm a si mesmos
com a clareza do saber autêntico.” (Heidegger, 1995, p.103) A parusia não lhes preocupa pois suas vidas
estão absorvidas no que lhes vem ao encontro, encontrando segurança e conforto nas vida quotidiana. A
segurança e a tranqüilidade, entretanto, são ilusórias, pois a parusia acontecerá quer se esteja a esperando,
quer, não.
Conhecer a data da parusia traria essa mesma segurança. Mas a parusia é um acontecimento certo
com data incerta. Datá-la seria transformá-la em um acontecimento intramundano e intratemporal, isto é,
como os demais acontecimentos que ocupam e preenchem a vida fáctica.
A postura correspondente à parusia suporta o sofrimento e as tribulações, pois é assim o único modo
de reconhecê-la como aquilo que ela é e de preparar-se para ela. O Advento é incalculável. Chegará com
um ladrão na noite, imprevisto, enquanto os de casa dormem despreocupados, forçando sua entrada,
roubando e destruindo. Para o cristão, o fim dos tempos já chegou.
É esse o outro modo possível de ter-se a si mesmo proclamado por Paulo na epístola aos
8. tessalonicenses, que se pode caracterizar como antecipação angustiada da parusia. Ele escreve à
congregação: “Vós, porém, meus irmãos. não andais em trevas, de modo que esse Dia vos surpreenda como
ladrão.” (1Ts 5,4) Dia (ἡμέρα), interpreta Heidegger, tem dois significados justapostos. O primeiro é o da
‘clareza’ (Helle) (Heidegger, 1995, p.104) do haver-se tornado e do saber haver-se tornado cristão. É uma
clareza a respeito de si mesmo, do modo como se tem a própria vida. O outro significado de “Dia” é “Dia
do Senhor”, que é o dia da parusia. A resposta de Paulo quanto ao momento da parusia remete os
tessalonicenses de volta a si mesmos, ao modo como se comportam em suas vidas fácticas. Retomando a
questão metodológica das direções de sentido, Heidegger explica que “Como a parusia está em minha vida
remete à execução mesma da vida.” (Heidegger, 1995, p.104) A questão refere-se a como cada qual ‘tem’
seus mundos ao redor, compartilhado e do si mesmo. A expectativa da parusia não opera transformações
‘objetivas’, mas, sim, no modo de se relacionar com o que vem ao encontro. Afinal, o sentido da
significatividade advém da situação. Como está o cristão? Como ‘tem’ sua vida? Deixa-se absorver pelo
mundo, encontrando ilusória segurança e tranqüilidade, ou espera a parusia vigilante, lutando contra a
tendência a se assegurar? Os que assim se comportam são “filhos da luz, filhos do dia. Não somos da noite,
nem das trevas” (1Ts 5,5). Contrariamente aos que dormem e se embriagam, o cristão vigia. Seu
comportamento é vigilante. Vigiar significa observar atentamente, espreitar e também velar por. É vigilância
tensa que corre o perigo constante de encontrar tranqüilidade nos negócios do mundo, seja tentando
determinar a data da parusia, como os tessalonicenses, seja debatendo se é ou não a circuncisão que faz de
um cristão, um cristão, como os gálatas, seja rindo e zombando da proclamação da Palavra, como os
atenienses. Assim, ao escrever aos tessalonicenses, Paulo está os convocando para reanimar sua fé,
experimentada como expectativa da parusia. A fé deles é também a sua. É tarefa árdua suportar essa tensão.
No entanto, é isso que faz do cristão, um cristão. É isso que mantém o cristão, filho do dia, vigilante e lhe
trará a salvação no Juízo Final. Paulo não diz aos tessalonicenses quando a parusia acontecerá. Ele
conclama-os a que “permaneçam vigilantes e sóbrios. Há aqui um ponto contra o entusiasmo, contra a mania
de ruminar daqueles que andam atrás e especulam sobre o ‘quando’ da parusia. Eles só se preocupam com
o ‘quando’, o ‘o que’, a determinação objetiva na qual não tem nenhum interesse pessoal autêntico. Eles
permanecem presos no mundano.” (Heidegger, 1995, p.105)
A expectativa da parusia revela uma temporalidade diferente do tempo cronológico da ontologia
grega. Esse tempo é objetivo. Pode-se determinar as relações entre seus diferentes ‘agoras’. É mensurável.
A temporalidade cristã não é objetiva nem mensurável. Conclui Heidegger que “É um tempo sem ordem
própria, sem lugares fixos, etc. Não se pode encontrar esta temporalidade mediante qualquer tipo de
conceito objetivo de tempo. O quando não é objetivamente apreensível de modo algum.” ((Heidegger,
1995, p.104) A escatologia cristã não é compreensível a partir da filosofia, por isso ela ficou encoberta
desde o primeiro século depois de Cristo. Para a filosofia, o cristianismo é loucura.
A descoberta da insegurança própria da vida fáctica cristã não se limita a ela. A indicação de que a
experiência de vida fáctica cristã vivencia a temporalidade enquanto tal indica que a insegurança é
característica de toda vida fáctica. O cristianismo é uma luta aberta contra a tendência de asseguramento
contra o histórico da vida fáctica, que encontra uma segurança ilusória na significatividade do mundo. Essa
segurança pode ser rompida a qualquer momento sem aviso.
Referências bibliográficas